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Gianluca Fiocco: Comunismo e democracia em Togliatti - 100 anos do PCI

STORIA POLITICAO PSI inicialmente aderiu à Terceira Internacional. Quais foram as principais motivações? Quais ideias tinham o grupo de L’Ordine Nuovo e Togliatti nesta primeira fase?

GIANLUCA FIOCCO: O PSI não aderiu à União Sagrada de 1914, contrariamente a outros partidos socialistas, e com a guerra em andamento sustentou iniciativas para relançar um projeto internacionalista depois do colapso da Segunda Internacional [1]. As turbulências russas de 1917 foram saudadas pelos socialistas italianos como grande evento libertador, mesmo com diferenças entre o componente reformista e o maximalista. A clara predominância deste último no Congresso de Bolonha (outubro de 1919) coincide com a adesão à recém constituída Terceira Internacional. Mas o PSI do biênio vermelho, como se sabe, não escolhe coerentemente nem uma linha revolucionária nem uma linha reformadora. Fala-se muito de revolução, projetando uma onda subversora em toda a Europa, mas não há nenhuma atividade preparatória neste sentido.

Em Turim, ponta avançada da classe operária italiana, os jovens dirigentes de L’Ordine Nuovo dão vida à experiência original dos conselhos de fábrica, nestes percebendo o correspondente italiano dos sovietes. Os ordinovistas, entre cujos dirigentes fundadores está Togliatti, operam ativamente pela revolução, considerando que no país existem as condições para uma tomada do poder. Chega-se assim ao teste de força da ocupação das fábricas em setembro de 1920. Em Turim se nutre a esperança de poder dar um golpe decisivo na classe patronal, mas na realidade a contraofensiva de classe está às portas. Togliatti, enviado a Milão para estimular uma ampliação em sentido revolucionário da luta em curso, se choca com as ideias bem diferentes das direções do PSI e da CGIL. Com amargo sarcasmo, Togliatti recordaria nas notas biográficas recolhidas por Marcella e Maurizio Ferrara as objeções bizantinas que lhe foram dirigidas no Conselho Nacional socialista: “Quem autorizou a Seção Socialista de Turim, órgão político, a desencadear um movimento de natureza sindical? E quais eram as reivindicações? Elas foram apresentadas tempestivamente aos órgãos superiores de direção? E por que se deveria ampliar o movimento? Estes conselhos de fábrica, pelos quais se fazia a greve, eram algo ortodoxo, que havia nos estatutos, ou eram uma invenção de intelectuais?”. A Togliatti só restou voltar melancolicamente para Turim, onde participou das negociações com as autoridades para estabelecer formas e tempos da retomada do trabalho.

Jovem Palmiro Togliatti se transformará num dos fundadores do PCI

SP: De que modo o grupo de L’Ordine Nuovo e Togliatti contribuíram para a criação do PCd’I? Quais eram as diferenças em relação às ideias de Bordiga?

GF: No outono de 1920, tanto os ordinovistas quanto os bordiguianos já estavam determinados a romper com os reformistas, considerados traidores e inimigos dos reais interesses do proletariado. Mas também com os maximalistas a convivência se tornou dificílima, uma vez que não pretendiam se separar dos reformistas. Esta separação havia sido pedida por Lenin no II Congresso da Internacional (julho de 1920), mas o líder maximalista Giacinto Menotti Serrati não acolheu a solicitação, incluída nas chamadas “vinte e uma condições” ditadas para a filiação à Internacional. Entre elas, a mudança de denominação de partido socialista para partido comunista. Era precisamente do centro do nascente movimento comunista que vinha a ordem de assumir uma posição inequivocamente revolucionária. O nascimento do PCd’I ocorreu a partir da convergência do grupo de Bordiga e do turinense, com o primeiro em posição predominante, mesmo porque possuía maior ramificação nacional. Entre os dois grupos não faltavam diferenças até relevantes: os ordinovistas se caracterizavam por um costume de síntese político-cultural inteiramente peculiar; além disso, sua concepção da relação entre partido e classe operária era distante da de Bordiga. Mas nesta fase prevaleceu a ideia comum da necessidade de constituir um partido novo, que devia ser disciplinado e impermeável a qualquer influência do reformismo e do pacifismo burguês. Isto fez com que pusessem de lado todas as potenciais divergências, que ressurgiriam mais à frente.

SP: Que posições Togliatti expressou no Congresso de Livorno?

GF: Togliatti acompanhou desde Turim a evolução congressual e compartilhou plenamente a decisão de separar-se do PSI e fundar o novo partido comunista. Esteve certamente entre os que não cumpriram este passo com otimismo superficial. Nos seus escritos daqueles dias surge a consciência de que se iniciava um caminho necessário, mas também marcado por grandes problemas e incógnitas. A perspectiva revolucionária, que parecera ao jovem dirigente, concreta durante a ocupação das fábricas, agora parece algo a ser construído com um trabalho difícil e paciente. As derrotas ensinaram a todo o grupo turinense, que empreende uma reflexão sobre as diferenças entre as várias zonas do país, entre operários e camponeses, entre Norte e Sul. Iniciavam-se as expedições punitivas do esquadrismo fascista. Togliatti começará a dedicar grande atenção ao seu estudo, enquanto os bordiguianos negarão a especificidade do fascismo.

SP: De que modo o exílio na União Soviética influenciou Togliatti no segundo pós-guerra?

GF: Togliatti viveu toda a dureza e todos os dramas da “guerra civil europeia”. Depois da sua volta à Itália, é provavelmente o dirigente do comunismo ocidental que mais se esforça e aposta na possibilidade de deixar para trás esta fase terrível e iniciar um novo caminho na construção do socialismo. Um caminho que não passe por novas catástrofes bélicas. Certamente a sua é uma geração comunista que com a URSS estabelece uma “ligação de ferro” – a definição, como se sabe, pertence ao próprio Togliatti –, consolidada pelas perseguições, pelo esforço de modernização empreendido pelo colosso soviético, pela difusão dos fascismos na Europa até a agressão nazista de 1941. Togliatti adere aos traços fundamentais do stalinismo: a URSS é o baluarte do socialismo e sua defesa é a tarefa primeira de todo comunista. Ao mesmo tempo, nos anos do exílio Togliatti várias vezes se propõe o problema da nacionalização dos partidos comunistas, da importância do seu enraizamento e do estudo de programas e formas de luta calibrados segundo os contextos específicos em que os comunistas veem agindo. Trata-se de uma experiência que determina em Togliatti uma atenção sistemática ao nexo nacional-internacional: os partidos comunistas devem agir sempre como parte de um movimento global, mas nenhuma estratégia global pode ser imposta a cada partido, sem levar em conta as tradições locais e o contexto em que operam.

SP: Quais ideias de Togliatti do primeiro pós-guerra sobre a ideia de partido encontramos no segundo pós-guerra com o “partido novo”?

Togliatti discursa numa das campanhas eleitorais do PCI

GF: A página do segundo pós-guerra é uma página nova. O PCd’I nasceu e se desenvolveu como pequena formação de militantes temperados e disciplinados, em luta contra violências e perseguições. A refundação na metade dos anos vinte, com Gramsci secretário, mudou programas, métodos e perspectivas, mas o partido continuava a ser de “revolucionários profissionais”, entre o exílio e a conspiração interna. Costumes e mecanismos severíssimos de adesão ao partido são abalados por Togliatti quando chega a Nápoles em 1944. Vários testemunhos da época nos referem o desconcerto dos dirigentes com o modelo do partido de massas que é adotado. Togliatti refletiu sobre as características inovadoras introduzidas pelo partido fascista, sobre as características de massa que a política deverá necessariamente manter e reforçar, agora num contexto pluralista. Inicia-se um desafio com os católicos para conquistar adesões na sociedade. Uma seção do PCI para cada campanário: esta é a meta indicada por Togliatti. Certamente, dentro do partido de massas se conserva e atua um núcleo “leninista” selecionado pelo exílio e pela Resistência. A este núcleo mais duro cabe a tarefa de cerrar as fileiras do partido durante o inverno da guerra fria.

O partido novo, pois, como descontinuidade fundamental possibilitada pela História e pelas suas reviravoltas. Podemos, no entanto, observar que há uma lição do primeiro pós-guerra que permanece em Togliatti: o fato de que os movimentos, por mais avançados que sejam (pensemos nos conselhos de fábrica), necessitam de um partido que organize a luta política e cultural, servindo de articulação com a sociedade. Esta visão se reforça ainda mais a partir de 1944, quando os comunistas aceitam o horizonte da democracia. “Os partidos – observa Togliatti na Constituinte de julho de 1946 – são a democracia que se organiza. Os grandes partidos de massa são a democracia que se afirma, que conquista posições decisivas, as quais nunca mais serão perdidas”.

SP:Que papel teve Togliatti na fase constituinte e como mudou depois de 1947?

GF: Ao lado da edificação do partido novo, os esforços principais de Togliatti foram destinados à conquista da República e à sua caracterização no sentido mais progressista possível. Entre os principais líderes políticos, foi o que mais participou dos trabalhos da Constituinte, na qual operou ativamente na Comissão dos 75 e, em seguida, no Comitê dos 18, encarregado de costurar num texto único os artigos formulados pelas diversas subcomissões. Na primeira reunião dos deputados comunistas disse que toda concepção agitatória e retórica do parlamentarismo devia ser abandonada: aquela era a Assembleia conquistada pelo povo, que devia traçar o caminho para uma inserção cada vez mais plena das massas populares na vida do país e nos seus centros de direção.

Togliatti considerou o terreno da Constituinte como um encontro de culturas diversas, chamadas a buscar elementos originais de convergência, sem erigir muros ou cair em disputas ideológicas. Só através de um esforço rigoroso se chegaria a uma Constituição duradoura, capaz de acompanhar o povo italiano num caminho de paz e progresso. A Constituição não devia se limitar a registrar as condições do tempo presente: representava também um programa para o futuro. Esta posição togliattiana foi bem percebida na época por Piero Calamandrei.

Antonio Pallante é preso depois de atentar contra a vida de Togliatti

Podemos dizer que em Togliatti, como em tantos outros pais da República, esteve presente naquele período um espírito risorgimentale. Ao Estado unitário surgido em 1861 se devia conferir nova linfa, reorganizando-o e abrindo-o definitivamente em sentido democrático. Este era o papel histórico que recaía em primeiro lugar sobre os partidos de massa. Togliatti atribuiu particular importância ao diálogo com a DC, por ele considerada como o eixo do sistema político. Com os “professorzinhos” democrata-cristãos da primeira subcomissão houve uma negociação muito intensa, de modo que as esperanças comuns permitiam declinar positivamente as diferenças.

O gelo da guerra fria que recrudesceu no correr de 1947 não fez com que Togliatti recuasse dos seus propósitos. O espírito constituinte foi preservado – mesmo depois da exclusão dos comunistas do governo – na Constituição apôs sua assinatura Umberto Terracini, presidente comunista da Assembleia por cuja nomeação Togliatti se batera depois da demissão de Saragat. Foi um desfecho destinado a se revelar importante para a manutenção do sistema republicano, bem diferente do que aconteceu na França, onde o PCF decidiu não aprovar a Carta constitucional, mesmo tendo contribuído fortemente para sua redação.

O ano de 1948 foi ainda mais duro – com o “choque de civilizações” de 18 de abril e os dias dramáticos do atentado de Pallante [2] –, mas o limiar que podia conduzir a um banho de sangue não foi ultrapassado. Para este resultado contribuíram a moderação e o realismo de Togliatti, mas também sua fidelidade à aposta democrática que fora feita. Por certo, à expectativa de democracia progressiva sucedeu o cenário de uma guerra de posição de duração provavelmente longa e com mil incertezas, em que se fazia sentir o perigo de uma ilegalização do PCI.

SP: Quais foram as críticas de Togliatti ao centrismo e à centro-esquerda? Que críticas dirigiu ao PSI durante a centro-esquerda?

GF: Para Togliatti, o centrismo tinha uma dupla e gravíssima culpa: em política externa ligava a Itália intimamente ao bloco ocidental e à batalha contra o comunismo; em política interna negava as dimensões progressistas de 1944-1947 e permitia, ao contrário, a “restauração capitalista”, no sentido da reproposição do modelo de baixos salários e baixo consumo que sempre marginalizara as massas. Togliatti amadurece um fortíssimo ressentimento em relação a De Gasperi, sente-se traído pelas suas escolhas. Ao mesmo tempo, tenta sempre aproveitar a oportunidade de sair da trincheira da guerra fria, de demonstrar que os comunistas podem oferecer uma contribuição à evolução democrática do país. Mesmo julgando limitadas e insuficientes as reformas do centrismo, reivindica o papel do PCI ao favorecer sua adoção. Em outras palavras, para ele o centrismo freou e desvirtuou o caminho prefigurado na Constituinte, mas não fechou todas as portas. Na DC permanecem forças progressistas e sensíveis às instâncias populares, que se deve aproveitar. Também daqui nasce o conhecido apelo de 1954 “por um acordo entre comunistas e católicos para salvar a civilização humana”.

Participantes de um dos Congressos do PCI que mobilizavam dirigentes de todo país e do mundo

Em relação à centro-esquerda, distinguimos em Togliatti diversas fases, ligadas à evolução do quadro político. Depois da derrota da “lei trapaça” [3], bate-se para que se concretize a “abertura à esquerda”, que permita superar as barreiras do centrismo. Para o PCI existe o perigo de que esta abertura redunde em afrouxamento dos laços com o PSI, mas num certo ponto Togliatti aceita que os socialistas adquiram maior liberdade de movimento (depois dos abalos de 1956 a coisa se torna inevitável). O que para Togliatti não é aceitável é que um acordo de governo entre DC e PSI se torne uma operação transformista que perpetue o sistema de poder democrata-cristão. Sobre isso se inflama periodicamente o choque com Nenni.

Para Togliatti, o PCI deve aproveitar toda brecha para levar adiante, em sentido progressista, a dialética da luta política. Em 1962 anuncia uma oposição construtiva à centro-esquerda “programática” e apoia suas reformas, ainda que observando nelas uma série de limites. Togliatti reconhece as transformações sociais e econômicas em curso – são os anos do “milagre” – e se abre para a possibilidade de se criar na Itália as condições para uma política reformadora em linha com a dos países europeus mais avançados: diante desta possibilidade o PCI deverá fazer sua parte no debate das ideias, no Parlamento, no corpo da sociedade. Mas a seguir, depois das eleições de 1963, quando a centro-esquerda recua e as resistências tradicionais à mudança surgem fortíssimas, Togliatti se torna bastante mais pessimista. Aos seus olhos, a burguesia italiana volta a mostrar a face reacionária e a DC continua a ser sua fiadora. No seu último editorial em Rinascita antes da morte, se perguntará angustiado: “Em que medida os grupos dirigentes da grande burguesia italiana, industrial e agrária, estão dispostos a aceitar nem que seja só um conjunto de modestas propostas de reformismo burguês? Isto é, em que medida é possível, na Itália, um reformismo burguês?”. Por trás destas interrogações se repropõe a tarefa histórica do proletariado italiano de compensar os limites da burguesia nacional. Estas interrogações também nos fazem compreender a máxima togliattiana segundo a qual na Itália, para fazer as reformas, é preciso ser revolucionário.   

SP: Que aspectos, segundo o senhor, deveriam ser aprofundados por ocasião deste centenário do PCI?

GF: Creio que a tarefa principal para a investigação histórica é, hoje, aprofundar o modo pelo qual terminou o PCI, até porque seria uma contribuição fundamental para reconstruir o fim da primeira fase da República. Trata-se de um episódio em que os fatores internacionais são fundamentais. Com a grande transformação dos anos setenta, produz-se a crise fatal dos sistemas comunistas, e o PCI, que apostava na possibilidade de reformar estes sistemas, sofre um golpe terrível. Inicia para Botteghe Oscure [4] uma navegação solitária: não mais inserido no movimento comunista como antes, o PCI permanece, ao mesmo tempo, fora do mundo da socialdemocracia. Com o final da guerra fria e o advento da globalização, ambas as famílias históricas do movimento operário europeu restam sob os escombros do muro de Berlim. Deste ponto de vista, podemos inserir o fim do PCI no ocaso geral da esquerda do século XX. Mas também existem especificidades italianas sobre as quais se deverá continuar a indagar e a refletir. É uma reflexão necessária: passaram-se trinta anos, mas o sistema político italiano não conseguiu se dotar de instrumentos sequer comparáveis ao papel de cimento que desempenhavam os tão vituperados partidos da “primeira República”. Voltar à razão por que, num certo momento, não foram mais capazes de desempenhá-lo pode ser útil em relação aos desafios do tempo presente.

Símbolo do PCI

Gostaria de encerrar com duas observações. A primeira (negativa) é que a inevitável transformação do PCI poderia e deveria ter sido gerida de modo mais razoável, realista e respeitoso da sua tradição política e cultural. Por que isso não ocorreu? Eis a pergunta crucial e reveladora de problemas mais gerais da história do nosso país. A segunda (positiva) é que a batalha do PCI para transformar os súditos em cidadãos, emancipar as massas e inseri-las na vida pública, foi um componente fundamental do esforço, coroado de sucesso, realizado pelo povo italiano para deixar para trás as ruínas da ditadura e da guerra, e empreender um novo caminho de progresso. Enquanto o PCI cumpriu estas tarefas, necessárias para o desenvolvimento da Nação, foi um partido vital, que extraía linfa dos próprios efeitos da sua ação. Em certo ponto, porém, quando se tratou de repensar este papel à luz das transformações da Itália e do mundo, não conseguiu fazê-lo adequadamente. Refletir sobre o declínio e o fim do PCI representa, pois, uma chave importante para raciocinar sobre tais transformações que produziram o mundo em que vivemos hoje.

Notas

[1] A Union Sacré, na França, garantiu o apoio de boa parte dos socialistas franceses ao esforço de guerra do seu governo contra a Alemanha, na Primeira Guerra Mundial. Implicava naturalmente o abandono da sua tradição pacifista e internacionalista dos socialistas.

[2] Em 18 de abril de 1948, realizaram-se as eleições parlamentares que garantiriam à Democracia Cristã, apoiada pelo Ocidente, seu prolongado domínio na vida do país, quebrando a unidade antifascista que havia caracterizado o imediato pós-guerra.  Antonio Pallante foi o autor, em 14 de julho de 1948, de grave atentado contra a vida de Palmiro Togliatti, abrindo no país até mesmo a possibilidade de guerra civil.

[3] Na história política italiana, a “lei-trapaça”, de 1953, pretendia dar um forte prêmio de maioria às forças que conseguissem a metade dos votos válidos. Desenhada em função dos interesses democrata-cristãos, a lei não entrou em vigor: nas eleições políticas do mesmo ano, as forças que a promoviam ficaram a poucos milhares de votos do limiar proposto.

[4] Botteghe Oscure, a sede histórica do PCI na rua de mesmo nome, no centro de Roma.

(Entrevista originalmente publicada no blog Storia e politica –  www.storiapolitica.altervista.org , em 28 de fevereiro de 2021. Tradução de Luiz Sérgio Henriques).


Mario Lavia: Bertolucci, quando o PCI não entendeu o Novecento

Os comunistas não gostaram do “Novecento” de Bertolucci. Em particular, o filme não agradou aos antigos líderes do PCI. Giorgio Amendola, que naqueles anos conduzia uma pesquisa histórica pessoal que inevitavelmente se entrelaçava com sua biografia, avaliou negativamente a obra-prima de Bertolucci num conhecido programa da época, “Ring”. Da mesma forma, Giancarlo Pajetta também recusou a leitura bertolucciana do que depois seria chamado de “século breve”.

Naqueles anos o PCI dedicava-se arduamente a reconstruir uma narrativa inteiramente evolutiva da experiência italiana, a salvo de horrores e atrocidades ou mesmo só de espíritos primitivos de vingança. A leitura da história italiana era uma sucessão de avanços e conquistas, elemento decisivo no credenciamento do PCI como partido nacional de governo. O antifascismo, na narrativa dos comunistas italianos, não era apenas uma página gloriosa, de redenção moral e progresso político, mas também uma elegia heroica, irmanadora e profundamente humana, próxima da redenção cristã. Os grandes líderes antifascistas, por isso, não podiam suportar que dele se fizesse uma representação certamente elegíaca, mas crua, heroica, mas trágica e até cruel, como a que Bernardo Bertolucci, comunista fora dos esquemas comunistas, fizera com a épica de “Novecento”, lançado precisamente em 1976, o ano da legitimação do PCI como partido do governo.

É provável que Bertolucci tenha se agastado. Para ele, o PCI significava o mesmo que para milhões de italianos: um pai ou uma mãe. Uma escola ou uma igreja. A “grande árvore sob a qual se abrigar”, como escrevera o guia de Bernardo, Pier Paolo Pasolini. Amendola, Pajetta… vale dizer, os mestres da política. E ainda bem que Togliatti já estava morto há anos, ele teria massacrado “Novecento”, um filme muito fora dos esquemas propagandístico-zhdanovianos a que estava ligado.

Quando é que – teria dito Togliatti – os camponeses processaram os agrários, onde é que o povo destroçou o velho fascista (Donald Sutherland), como é possível que um rapaz antifascista (Gerard Depardieu) fosse amigo de um rebento dos ricos (Robert De Niro)? A Resistência não tinha sido isso! Mas Bertolucci botara tais coisas no quadro magnífico da resistência moral e da Resistência política. Do ponto de vista histórico tinha razão. E, sobretudo, do ponto de vista literário e poético (a influência do pai, o grande poeta Attilio): porque o “epos” do século XX não teria sido assim se não tivesse sido – também – um emaranhado de paixões e contradições e se o sujeito italiano por antomásia, os camponeses, não fosse portador de uma “cultura” feroz e de paixões primitivas, assim como vira, mais uma vez, Pasolini.

Mas, enfim, deve-se dizer que o mundo comunista não era apenas o dos velhos líderes. Depois deles surgia uma nova geração que da Resistência apenas havia ouvido falar ou lido nos livros, jovens que amavam mais a Pasolini, Bertolucci, Godard do que a Rossellini e De Sica. Nas palavras de Walter Veltroni: “Eu ainda tenho na cabeça a projeção com Amendola e Pajetta. Assim que terminou, houve uma discussão muito dura, na qual Pajetta especialmente expressou um julgamento negativo, as coisas que ele não gostou foram aquelas que amávamos no filme. Precisamente, o fato de que o filme misturava a declaração de fé política com a inspiração poética, a estrutura do romance popular com a alegoria, com o melodrama… Pajetta contestou a maneira pela qual o filme contava a Libertação, dizia que os fatos não tinham sido exatamente assim”.

No PCI, Pietro Ingrao, grande cinéfilo, talvez tenha sido o mais sensível àquela nova narrativa cinematográfica. Também neste terreno houve uma luta cultural e política que se entrelaçou com a luta maior de modernização do PCI. Também neste sentido Bernardo Bertolucci representou uma virada inovadora e um novo modo de pensar a história italiana.

Tradução: Alberto Aggio
Revisão: Luiz Sérgio Henriques


Alberto Aggio: De Beijing a Roma, os dilemas do pós-comunismo

O ex-PCI aprofundou a democracia e a China se aferra ao nacionalismo autoritário histórico

No ano passado relembraram-se os cem anos da revolução bolchevique, referência maior do chamado “comunismo histórico”. Muitos livros foram publicados, um sem-número de artigos ganharam as páginas de revistas e jornais, congressos e seminários foram realizados ao redor do mundo. Seria excessivo imaginar que uma revisão daquele processo histórico, por mais bem feita que fosse, tivesse o condão de superar todas as polêmicas em torno dele. O dado positivo, contudo, é que a “celebração” da efeméride não produz mais o mesmo efeito. A revolução comunista da Rússia já é um fato do passado e não promove as divisões que antes promovia entre os simpatizantes do seu ideário.

Imposto o comunismo na Rússia, não apenas o país foi revolvido, como o mundo passou a ser impactado por um sistema antagonista do capitalismo que se transformou num fenômeno global, influenciando vários países e milhões de pessoas. A crença no poder dos comunistas tornou seu movimento uma força global, não havendo no século 20 nenhuma dimensão da vida que não tenha sofrido sua influência. Mas esse movimento guardava paradoxos que, com o tempo, lhe seriam fatais.

Talvez não haja síntese mais fiel à glória e à tragédia do comunismo do que a formulada por Silvio Pons no seu livro A Revolução Global (Fap/Contraponto, 2014). Para ele, o comunismo se constituiu simultaneamente em “realidade e mitologia, sistema estatal e movimento de partidos, elite fechada e política de massas, ideologia progressista e dominação imperial, projeto de sociedade justa e experimento com a humanidade, retórica pacifista e estratégia de guerra civil, utopia libertadora e sistema concentracionário, polo antagônico da ordem mundial e modernidade anticapitalista. Os comunistas foram vítimas de regimes ditatoriais e artífices de Estados policiais”.

Entre os historiadores, em sua maioria, há um consenso quanto ao fracasso do “comunismo histórico”, levando em conta os objetivos que nortearam suas estratégias. De um ponto de vista analítico, não se aceita mais quem busque “erros” específicos dos principais dirigentes e governantes. Suas ações são inscritas em conjunturas precisas e postas como parte dos desafios e dilemas que se afirmaram no processo histórico. É a história in acto o que importa aos historiadores e aos demais intérpretes, e não uma discussão ideológica e justificativa. O que torna evidente a virada na perspectiva de muitos pesquisadores é o fato de a chamada “história do cotidiano” ter garantido o seu ingresso nessa historiografia, retirando centralidade da discussão sobre poder revolucionário e colocando sob novas luzes a história de homens e mulheres de carne e osso que viveram sob o comunismo.

O resultado não é em nada surpreendente. Diversos investigadores têm demonstrado que o comunismo foi incapaz de inspirar uma crença espiritual que envolvesse mais do que a realidade material da vida. Concluem que a revolução bolchevique e o poder soviético não produziram efetivamente uma hegemonia cultural como “religião civil” (Gramsci falaria em uma “hegemonia civil”) que lhe pudesse dar sustentação. O julgamento é assim categórico e definitivo.

Enganam-se os que pensam que foi uma questão de tempo. Que o capitalismo se afirmou durante séculos e o comunismo necessitaria ser pensando nessa chave. Equivocam-se. Ele entrou em colapso na antiga URSS e se despedaçou porque não foi capaz de construir o que prometeu: um novo mundo e um novo homem! Hoje, numa nova fase da humanidade, o comunismo não é mais do que história e, por essa razão, não há como sustentar que sua prática e seus horizontes possam ainda fazer sentido para os homens e mulheres do século 21.

Entretanto, essa história não está inteiramente arquivada, por conta da fulgurante presença da China na economia global. A sobrevivência do “comunismo capitalista” chinês, baseado num regime ditatorial, que instaurou o capitalismo como modo de produção material, constitui-se hoje no maior enigma quanto aos destinos do pós-comunismo.

Essa alternativa estava inteiramente descartada para os partidos comunistas no Ocidente, em particular para o maior deles, o Partido Comunista Italiano (PCI), ao abandonarem, no início dos anos 1990, o nome, seus símbolos e, especialmente, o que era reconhecido como sua “dupla alma”, isto é, a adesão ao comunismo soviético, (no caso do PCI) sobreposta à defesa da República democrática italiana, vinda à luz com sua colaboração ativa. Acabou prevalecendo o segundo termo da equação como orientação que seguirá presente até o tramonto do comunismo italiano.

A fase pós-comunista do partido de Gramsci, Togliatti e Berlinguer, ao contrário dos chineses, aprofundou a democracia ao se estabelecer como uma força política reformista voltada para a modernização do país e defesa da União Europeia. Abrindo-se para diferentes movimentos e culturas políticas, dentre elas os católicos progressistas, assumiu várias denominações: Partito Democratico di Sinistra (PDS), Democratici di Sinistra (DS) e, por fim, Partito Democratico (PD), nos últimos dez anos.

O pós-comunismo chinês aferra-se ao legado nacionalista e autoritário do comunismo histórico ao mesmo tempo que abre sua economia para o mundo. Essa linha se aprofunda de Deng Xiaoping a Xi Jinping, sem desvios.

Mesmo diante das incertezas da Europa, o caminho do PD parece ser o de superar a fase pós-comunista buscando combinar a ética de defesa do trabalho dos antigos comunistas com o europeísmo social-democrático e sua vertente democrático-reformista. A preponderância de uma ou outra vertente ora o empurra para a oposição, ora lhe abre possibilidades de ser governo.

Não mais comunista nem sequer pós-comunista, o PD talvez seja, na Europa, a possibilidade de um novo sujeito político. Imersa no pós-comunismo, a China parece estar longe disso.