oposição

Míriam Leitão: Centro não é o ponto entre dois extremos

Na disputa entre Lula e Bolsonaro não há dois extremistas. Há um: Bolsonaro. O centro deve procurar seu espaço, seu programa, seu candidato, ou seus candidatos, porque o país precisa de alternativa e renovação. Mas não se deve equiparar o que jamais teve medida de comparação. O ex-presidente Lula governou o Brasil por oito anos e influenciou o governo por outros cinco. Não faz sentido apresentá-lo como se fosse a imagem, na outra ponta, de uma pessoa como o presidente Jair Bolsonaro.

O PT jogou o jogo democrático, Bolsonaro faz a apologia da ditadura. A frase que abre esse parágrafo eu disse em 2018, em comentários e colunas, no segundo turno das últimas eleições. Era a conclusão da análise dos fatos e das palavras dos grupos políticos que disputavam a eleição. Fui hostilizada por dirigentes petistas do Rio dentro de um avião, processei por difamação um servidor do Planalto no governo Dilma. Sou vítima de constantes fake news e agressões do gabinete do ódio do governo Bolsonaro. Já fui criticada em público pelo ex-presidente Lula mais de uma vez e fui vítima de mentiras sórdidas ditas pelo presidente Jair Bolsonaro. Poderia com base nisso afirmar que os dois são iguais? Objetivamente, não. Seria falso. Posso concluir que ambos não gostam de mim, mas isso é o de menos. Não é uma questão pessoal.

Em dois anos e quatro meses, Bolsonaro superou as piores expectativas. Na pandemia, ele mostrou seu lado mais perverso. A lista é longa. Deboche diante do sofrimento alheio, disseminação do vírus, criação de conflitos, autoritarismo. O país chegou ao número inaceitável de 400 mil mortos com um presidente negacionista ameaçando usar as Forças Armadas contra a democracia. Em Manaus, no último fim de semana, ele repetiu que poderia lançar os militares contra as ordens dos governadores. “Se eu decretar, eles vão cumprir”. Esse clima de beligerante intimidação prova, diz um general, uma “necessidade doentia de demonstrar ter poder”. Segundo essa fonte, “cada vez que se declara detentor dessa suposta força, demonstra na verdade não tê-la”. Seja qual for a análise da mente distorcida do presidente, o fato é que ele ameaça o país com a ruptura institucional no meio de um doloroso sofrimento coletivo.

O ex-presidente Lula teve uma política ambiental de excelentes resultados na gestão da ministra Marina Silva e do ministro Carlos Minc. O país viu avanços na inclusão de pobres e negros. Na economia, houve erros e acertos. No campo institucional, escolheu ministros do Supremo qualificados e nomeou procuradores-gerais da lista tríplice. Bolsonaro quer devastar a floresta, capturar as instituições e seu governo exibe preconceito como se fosse natural.

Bolsonaro faz ataques sistemáticos aos veículos de imprensa e aos jornalistas. Lula ameaçou impor o que ele chamou de “regulação da mídia”, mas recuou diante da resistência dos órgãos de comunicação. Ameaças nunca devem ser subestimadas, mas as instituições sabem lidar com um governante que tenha um mau projeto. Mais difícil é se defender de um inimigo da democracia como Bolsonaro.

As decisões recentes do Supremo Tribunal Federal tiraram as penas que recaíram sobre Lula e ele tem dito que foi inocentado. Tecnicamente sim, porque não é mais um condenado pela Justiça. O PT defende a tese de que foi tudo uma conspiração contra o partido. Falta explicar muita coisa, mas principalmente a materialidade do dinheiro que foi devolvido por corruptos e corruptores ao poder público.

Bolsonaro usou o sentimento anticorrupção sem o menor mérito, como se vê na sucessão de rachadinhas, funcionários fantasmas, pagamentos em dinheiro vivo e transações imobiliárias que rondam a família. Isso sem falar nas relações estreitas com personagens obscuros, como o miliciano Adriano da Nóbrega.

Partidos de outras tendências políticas devem trabalhar para oferecer alternativas ao eleitor brasileiro, porque a democracia é feita da diversidade de ideias e de propostas. O erro que não se pode cometer é dizer que essa é a forma de fugir de dois extremos. Isso fere os fatos. Não existe uma extrema-esquerda no país, mas existe Bolsonaro, que é de extrema-direita. No governo, ele multiplicou as mortes da pandemia e sempre deixa claro que se puder cancela a democracia.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/centro-nao-e-o-ponto-entre-dois-extremos.html


Eliane Cantanhêde: Fechando as porteiras

A lógica se inverteu. Não é mais o governo que aproveita a “distração” do Brasil e da mídia com a pandemia e os já mais de 400 mil mortos para passar suas “boiadas”. Agora, são o Supremo, o Congresso e a sociedade que se unem para resistir às “boiadas” governistas, enquanto o presidente Jair Bolsonaro, seus ministros e assessores estão muito ocupados com a CPI da Covid.

Um bom exemplo é o próprio meio ambiente. Foi o ministro Ricardo Salles quem avisou, naquela reunião ministerial histórica, que o governo estava aproveitando a pandemia para passar a “boiada” e pisotear o Ibama, o ICMBio, a legislação ambiental e, portanto, toda a estrutura de fiscalização e acompanhamento de florestas, rios, santuários. Mas a resistência cresce, e é sólida.

O delegado Alexandre Saraiva foi afastado da PF no Amazonas ao denunciar Salles por se aliar a madeireiros ilegais e, em vez de proteger a Amazônia, operar para destruí-la. Com essa denúncia, mais as ações de Ministério Público, ex-ministros, ONGs e entidades contra Salles e a política ambiental, a oposição colhe assinaturas para uma nova CPI, a do Meio Ambiente, na Câmara. Pode não ser inteligente, porque divide os holofotes da CPI da Covid, no Senado. Mas mobiliza.

Como há “fatos determinantes” abundantes para a da covid, também não faltam para uma eventual CPI do Meio Ambiente. Há montes de cinzas, madeira ilegal, dados e evidências de destruição. Aliás, Bolsonaro anunciou na cúpula do clima que estava dobrando os recursos para a fiscalização ambiental. No dia seguinte, veio o anúncio do Orçamento da União com cortes de R$ 240 milhões exatamente aí.

Funcionários do setor denunciaram “o colapso da gestão ambiental”, mas o desmanche não se resume a Ibama e ICMBio, resvalando para o Inpe. Nem a reação a ele. Sete ex-ministros da Educação, por exemplo, lançaram manifesto a favor do Inep, que cuida de Enem (ensino médio) e Ideb (ensino básico). Segundo eles, “o Inep está gravemente enfraquecido e isso coloca em risco políticas públicas cruciais”.

O que dizer da Cultura, que já teve secretário de alma nazista, mantém um negro racista na Fundação Palmares, persegue os ícones do teatro (como Fernanda Montenegro) e da música (como Chico Buarque), além de investir contra a Ancine e o Conselho Superior do Cinema?

E, por falar em “risco a políticas públicas cruciais”, ainda não está claro quem e por que, efetivamente, impediu o Censo de 2021. O IBGE pediu R$ 2 bilhões, Congresso destinou R$ 71 milhões e, com o corte do Planalto, sobraram R$ 58 milhões. Sem dinheiro, sem Censo. Sem Censo, como avaliar e planejar o País? Será que Bolsonaro temia a foto do “seu” Brasil na campanha à reeleição?

Na política externa, o chanceler Ernesto Araújo caiu, mas os escombros se espalham por toda parte, na forma de má vontade com insumos das vacinas, críticas de governos, parlamentos, entidades, sociedades. Até integrantes do Parlamento Europeu condenaram o “negacionismo” e a “necropolítica”, ou “política da morte”, no Brasil.

E na economia? O ministro Paulo Guedes não caiu, mas não sobra pedra sobre pedra de sua equipe, seus planos, suas reformas e seus propósitos liberais. E não por culpa da esquerda, da oposição ou da mídia, e não adianta dizer que foi por causa do Congresso. Quem não assume, e inclusive sabota, a política de Guedes é… Jair Bolsonaro.

Agora, o presidente só pensa em soterrar a CPI da Covid, mas continua em campanha por aí e proibindo máscaras, álcool em gel e – pelo que se deduz da revelação do general Luiz Eduardo Ramos – até vacinas. Enquanto isso, as boiadas enfrentam cada vez mais resistência. A turma dos atos golpistas insiste em defender o indefensável, mas a reação é firme e só aumenta.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fechando-as-porteiras,70003701080


Vinicius Torres Freire: Paulo Guedes não sabe o que diz sobre saúde, pobres e não sabe o que faz

“Pobre? Está doente? Dá um voucher para ele. Quer ir no Einstein? Vai no Einstein. Quer ir no SUS, pode usar seu voucher onde quiser”, disse Paulo Guedes em seu mais recente surto de ignorância e horror a pobre.

Estritamente falando, um voucher é um vale, como um vale-refeição. No desvario de Guedes, “um pobre” receberia um vale-saúde para se tratar onde quisesse, no SUS ou no Einstein, um dos grandes e excelentes hospitais privados de São Paulo. Nem Guedes deve acreditar estritamente nessa idiotice. Mas argumente-se por absurdo e a favor do ministro.

O setor público gasta por ano 3,9% do PIB em saúde (na média trienal até 2017, do IBGE, ou até 2018, da OMS). Equivale a uns R$ 1.380 por pessoa, R$ 115 por mês. Dá para pagar um plano de saúde dos mais baratos, sem contar coparticipação, com serviço inferior ao do SUS. Daria um pouco mais por pessoa caso o dinheiro todo fosse reservado para quem ora não tem plano de saúde (71,5% da população, segundo o IBGE).

O vale-plano-de-saúde não daria para escolher o Einstein, ocioso ressaltar, nem o SUS. Não haveria mais SUS. O dinheiro da saúde pública teria sido confiscado pelo vale-guedes. Não haveria mais serviço público de vacina, de emergência (ambulância, PS), remédio, exame, nada. Se o seu plano baratinho não cobrisse certos tratamentos ou se você se arrebentasse em um local descoberto (quase todos), que você pagasse ou morresse.

Obviamente esse argumento é louco, simplificação da mais grosseira. Serve apenas para sugerir que a coisa não funciona assim, aqui ou alhures.

O gasto em saúde no Brasil já é majoritariamente privado (famílias, empresas, filantropia): 58% do total. Não é assim na Argentina (38%) ou no México (48,7%), menos ainda é o caso de França (27%), Reino Unido (21%) ou Alemanha (22%) e nem mesmo o do Chile (49,7%) e o dos EUA (49,6%). Na mão de um Guedes da vida (ou da morte) iremos na direção dos EUA, que tem um dos gastos em saúde mais ineficientes da OCDE (clube de três dúzias de países ricos).

Mas, afora para ricos, e olhe lá, o SUS é o recurso de primeira ou última instância, que banca tratamentos que muito plano não cobre, por falta de dinheiro ou competência. O SUS é uma rara preciosidade nacional, com problemas de administração, sim, mas não é conversa para o bico de Guedes.A discussão não cabe em poucas colunas de jornal. A comparação entre sistemas nacionais de saúde, muito diversos, é complexa. Existem vários esquemas de financiamento público, com serviços quase todos prestados pelo setor privado, mas inteiramente pagos e vigiados pelo governo (Canadá), ou como o SUS original, estatal, do Reino Unido. Em geral, voucher, no sentido estrito, é alternativa parcial onde o sistema de saúde é tão precário que se dá um vale aos muito pobres de país muito pobre, naÁfrica ou na América Central.

O problema aqui é Guedes e seu mundo de caricaturas reacionárias. Não trata de assuntos de modo técnico: adora dar aulas magnas genéricas baseadas em suas fantasias liberalóides apodrecidas. Não propõe políticas públicas específicas e fundamentadas, com planos e apoio político para implementá-las.

Vive de tiradas, truques com os quais pensa engambelar o Congresso e mentiras lunáticas (trilhão de privatização, 44 milhões de testes de Covid, déficit público zero em um ano etc.). Adora velhos mitos extremistas da direita americana e tem saudade do Chile de Pinochet.

Essa barbaridade guedista, variação pedante do bolsonarismo dá mais pano para a manga. Vamos voltar a tratar disso.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/05/paulo-guedes-nao-sabe-o-que-diz-sobre-saude-pobres-e-nao-sabe-o-que-faz.shtml

 


Janio de Freitas: Piora nos índices sociais vai se acelerar em número e desumanidade

Jair Bolsonaro quer mais cortes em gastos sociais previstos no Orçamento para este ano. As mutilações já feitas foram brutais, mas Bolsonaro quer mais alguns bilhões para o que se mostra no governo como o segundo gasto na ordem de nobreza: a compra de parlamentares com a liberação de bilhões para suas propostas de obras, que são catapultas eleitorais. O único gasto mais nobre no Planalto é o dos militares, cujo montante inicial perdeu apenas 3%.

As reduções são o oposto do requerido pelo forte agravamento das condições de sobrevida da maioria dos brasileiros. A retenção por mais de três meses do também mutilado auxílio emergencial anulou o alívio trazido pelas parcelas do ano passado, concedidas pelo Congresso.

A fome aumenta, e se espraia mais. Qualquer oferta de alimento atrai filas enormes, e as coletas de doações recebem ainda quantidade ínfima para a necessidade crescente. A maioria não tem disponibilidades para ser solidária.

Aos que a têm, o que falta, historicamente, é o próprio sentido de solidariedade, até de humanidade mesmo. Fosse diferente, já veríamos, há tempos, forte movimento de socorro aos que têm fome.

Na chegada de Bolsonaro ao poder, considerava-se, com provável otimismo, haver em torno de 24 milhões de brasileiros vivendo com menos de R$ 246 por mês: R$ 8 por dia. Passados dois anos, a FGV e dados do IBGE indicam o aumento desse contingente para 35 milhões de pessoas.

Não só os já habitantes da pobreza descem à miséria mais miserável. O título de reportagem de Fernando Canzian para a Folha sintetiza o que se passa nos intermediários: “Fenômeno dos anos Lula, classe C afunda e cai na miséria”. Eloquência justificada por mais de 30 milhões que “estão despencando diretamente da classe C para a miséria”.A pandemia não é causa única da derrocada social. Desde seu primeiro momento, o governo investiu contra os programas sociais, sem exceção, e os manteve na precariedade quando o vírus se anunciou,se propagou e se impôs.

Nem a mínima atenção foi dada à necessidade de se buscarem modos de atenuar os efeitos socioeconômicos da pandemia. E, em paralelo, fosse preparada a defesa da população com a compra de vacinas, campanhas instrutivas, orientação para as alternativas empresariais e gerais.

Nada disso, era só uma “gripezinha”, a cloroquina a eliminaria. A vaguidão de Paulo Guedes, com os pés no ministério e a cabeça na Bolsa, e o desvario de Bolsonaro associaram-se ao vírus.

Passamos de 400 mil mortes. Esse morticínio atordoa, as crianças e famílias que caem no desamparo, se desorganizam, também perdem a vida por outra que começa e só podem temer.

O vírus não é o causador único dessa imensa desgraça coletiva. Tanto que maio e junho são esperados por cientistas como ainda mais calamitosos no Brasil. E explicam: por decorrência da baixa vacinação até aqui, da falta de vacinas porque o governo chegou tarde, desacreditado e arrogantemente suspeito ao balcão mundial dos imunizantes.Logo, os passos degradantes na escala socioeconômica, mais do que continuar, vão se acelerar em número e em desumanidade. Nenhuma resposta lúcida pode ser esperada do governo que pretendeaté cortar mais gastos sociais.

Se a sociedade, por sua vez, é inerte por preguiça moral maciça ou indolência cultural incapacitante, a alienação é a mesma e mesma a consequência. Então, lamento, o que há a dizer é isto: a perspectiva de futuro próximo é péssima —talvez seja o que nossa paralisia mereça.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2021/05/piora-nos-indices-sociais-vai-se-acelerar-em-numero-e-desumanidade.shtml

 


Dorrit Harazim: Joe, Jair e Modi

Esta semana Joseph Robinette Biden Jr. trocou de roupa e de imagem oficial. Sai de cena “Uncle Joe”, a grife caseira do democrata conciliador, afável e algo distraído por ele cultivada ao longo de 4 décadas de vida pública. Esta semana Joe Biden se apresentou perante o Congresso com nova roupagem — a do arrojado visionário 46º presidente dos Estados Unidos — e detalhou como pretende reformatar já no presente a vida da nação sob seu comando. Também descreveu os planos, metas e projetos com que planeja moldar o futuro das gerações seguintes, sem esquivar-se de alocar cifras concretas a cada item do pacotão. Se aprovada na totalidade pelo Senado, o que é pouco provável, sua agenda de resgate da economia, força de trabalho e seguridade familiar custará astronômicos US$ 4,1 trilhões. Mas, mesmo que venha a ser fatiada, a visão de Biden sobre o papel do Estado ficou clara: o Estado deve funcionar como zelador da infraestrutura humana e do bem-estar social. Soou quase revolucionário e revela quanto o mundo está carente de bom senso.

A surpresa com esse Biden arrojado se justifica, uma vez que, durante a campanha eleitoral, ele se apresentara como mero homem de transição capaz de aquietar o país tarja preta que sobrevivera a Donald Trump. Uma vez sentado no Salão Oval, porém, o mandatário de 78 anos e alguns lapsos já fez saber que não exclui tentar a reeleição dentro de quatro anos. Sai de cena o gestor conciliador, como Biden foi retratado enquanto candidato, para dar lugar a quem pretende ser lembrado como líder mundial transformador. Para tanto, mantém algumas características pétreas — é disciplinado, metódico e prefere ficar abaixo do radar para não escorregar.

Na verdade, por mais que Biden queira envergar simultaneamente o manto do New Deal de Franklin D. Roosevelt, da Grande Sociedade de Lyndon Johnson, importar algumas ideias de Barack Obama e outras mais arretadas de Bernie Sanders, bastará que consiga liderar a urgente arrancada ambiental para fazer um governo de dimensão histórica. Sem isso, o restante de sua visão para uma sociedade menos desigual, de maior justiça racial, econômica e jurídica ficará embaçada. Sem isso, até mesmo a espetacular invertida que imprimiu ao combate e controle da Covid-19 nos EUA, por meio de uma vacinação maciça e ordenada, acabará parecendo natural à medida que a vida por lá retomar alguma normalidade. O vírus pode até ressuscitar em novas ondas, mas nada roubará de Biden a gratidão nacional pela tranquilidade vacinal que injetou no país.

Enquanto isso, Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, terão, para sempre, seus nomes e sobrenomes vinculados ao epíteto Covid-19. Ambos se condenaram à morte política e à desgraça histórica por abandonar suas gentes a morrer sem oxigênio. Abatidos feito moscas, aos montes, milhares, centenas de milhares, mal enterrados ou incinerados em piras humanas, pranteados no medo e em silêncio. Na capital indiana, as autoridades florestais tiveram de emitir uma autorização especial para o abate de árvores, pois a lenha dos crematórios acabara. A ativista política e escritora Arundhati Roy publicou no “Guardian” um testemunho pungente da desolação que tomou conta do país. “No lugar mais baixo da mercadagem pela vida”, escreveu Roy, “você suborna o atendente para poder jogar um derradeiro olhar sobre o embrulho que foi sua pessoa amada, agora estocado na morgue hospitalar”. Há quem venda terras ou propriedades, ou junte as últimas rúpias em busca de atendimento em hospital privado — sem garantia de internação, apenas como depósito.

No último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, quando Europa e Estados Unidos mergulhavam na segunda mortandade da pandemia, o líder indiano não expressou nenhum sentimento, empatia ou compreensão com a aflição de seus pares. Ao contrário, arrostou soberba. “Amigos”, discursou na ocasião, “convém não comparar a Índia a qualquer outra nação… Abrigamos 18% da população mundial e salvamos a Humanidade de um imenso desastre, pois conseguimos conter o vírus”. Como se sabe, o país, hoje, mais se assemelha a um inferno de 1,4 bilhão de almas errantes, largadas à própria sorte.

No cômputo dos crimes cometidos por mandatários contra seus povos, será difícil elencar a quem ficará reservado o opróbio maior da era Covid-19 — se a Jair Bolsonaro ou Narendra Modi. Por serem filhos de culturas tão diversas, também suas respectivas formas de desprezo pelo bem comum, a índole autoritária, a ignorância, as medidas repressivas, o escárnio pelo outro, se manifestam de formas díspares. Porém ambos comungam da mesma incapacidade de compreender o que aprendemos a chamar de civilização, felicidade, progresso, humanidade.

Não defendem a vida, qualquer espécie de vida, de quem não lhes seja de imediata utilidade. A Covid-19 apenas serviu de oportunidade para isso ficar claro.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/joe-jair-e-modi.html


Demétrio Magnoli: O general que obedecia

“Um manda, outro obedece”. Eduardo Pazuello, o general que logo sentará na cadeira de testemunhas da CPI da Covid, carrega um álibi no bolso, mas pensará duas vezes antes de invocá-lo. A alegação permitiria à CPI saltar as etapas intermediárias, girando seus holofotes diretamente para a suposta fonte das ordens, que é Bolsonaro. Além disso, como revela a história argentina, não seria capaz de livrá-lo da responsabilidade por seus próprios atos.

Sob pressão militar, Raúl Alfonsín, o primeiro presidente da redemocratização argentina, anunciou em março de 1987 a edição de uma lei destinada a interromper inúmeros processos por crimes contra a humanidade. A Lei de Obediência Devida foi antecipada pela sublevação dos “carapintadas”, comandada por um tenente-coronel condecorado na Guerra das Malvinas, na Escola de Infantaria do Campo de Mayo, durante a Semana Santa. Promulgada em junho de 1987, tornou inimputáveis cerca de 500 oficiais indiciados por torturas, “desaparecimentos” e assassinatos durante a ditadura militar.

A lei erguia-se sobre o reconhecimento de que as Forças Armadas operam com base na regra da “obediência devida” —ou seja, os subordinados na cadeia de comando cumprem “atos de serviço”. Contudo, mesmo cedendo à chantagem dos quartéis para estabilizar uma jovem democracia acuada, o presidente eleito introduziu uma cláusula limitante: o benefício da impunidade só seria concedido a oficiais com patentes inferiores a coronel. Pazuello teria que responder por suas ações e omissões até na Argentina abalada pelos motins militares.

O conceito de obediência devida sustentou a defesa do nazista Adolf Eichmann no célebre julgamento em Jerusalém, em 1961. Seu advogado, Robert Servatius, declarou que o coronel da SS responsável pela deportação dos judeus aos campos de extermínio era “culpado diante de Deus, não diante da lei”. Na Argentina, a Lei de Obediência Devida foi derrogada pelo Congresso em 1998 e declarada inconstitucional pela Corte Suprema em 2005. Crimes contra a humanidade não são passíveis de anistia, decidiram os juízes.

Pazuello não cometeu crimes contra a humanidade, mas crimes potenciais contra a saúde pública que se estendem da postergação da compra de vacinas à divulgação de falsos tratamentos milagrosos contra a Covid-19, passando pela distribuição de cloroquina a hospitais de Manaus carentes de oxigênio. Nem assim, porém, o álibi dos “atos de serviço” pode ser admitido na CPI.

O general obediente permaneceu na ativa quando assumiu o cargo de ministro da Saúde, borrando um pouco mais a fronteira democrática que separa as Forças Armadas do governo. Sua deliberação pessoal, contudo, em nada altera o fato institucional de que ministros são auxiliares políticos do presidente, não subordinados numa hierarquia militar. Diante dos senadores da CPI, deporá um político fantasiado em uniforme militar, não um oficial sujeito à cadeia de comando castrense.

Eichmann e os oficiais argentinos estavam submetidos a ordens superiores. Entretanto, não agiam automaticamente, à moda de robôs: cotejavam, numa balança invisível, o peso das hipotéticas punições por desobediência contra os imperativos das suas consciências. Como explicou Kant, eles continuavam a dispor de autonomia e decidiram cumprir ordens abomináveis. Seus crimes resultaram de obediência consentida, não de obediência devida.

Pazuello, como eles, mas encarando consequências muito menores, poderia ter dito “não”.

Alfonsín concedeu bastante, até um certo limite. No Processo das Juntas, em 1985, os chefes militares que emitiram as ordens da “guerra suja” foram sentenciados e encarcerados. A CPI tem o dever de analisar as responsabilidades pessoais do general que obedecia, mas não tem o direito de usá-lo como bode expiatório, fingindo que ninguém emitia as ordens desastrosas.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/04/o-general-que-obedecia.shtml


Cristina Serra: Biden, Guedes e a Casa-Grande

Merece ampla discussão o plano do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para a retomada pós-pandemia, especialmente pelo que propõe sobre o papel do Estado numa economia capitalista e numa sociedade profundamente desigual como a norte-americana.

Basicamente, o presidente propõe reformas de caráter progressista, que se destinam a melhorar as engrenagens do capitalismo, para que o motor econômico volte a girar sem deixar para trás multidões de desesperados revirando lixo para não morrer de fome.

Biden quer criar empregos para a classe média e trabalhadores com menor qualificação, aumentar o valor do salário mínimo, ampliar a educação pública e melhorar o acesso à saúde, que, segundo ele, deve ser um direito, não um privilégio.

A questão é saber quem vai pagar a conta dos investimentos do Estado. Biden quer elevar a carga tributária das empresas e daqueles que ocupam, digamos, o topo da cadeia alimentar e que engordaram suas fortunas ainda mais durante a pandemia. Ele enunciou seu argumento de forma até singela: “É hora de pagarem a sua parte justa”.

No Brasil, porém, falar em aumento de carga tributária dos mais ricos (inclusive no âmbito de uma reforma sobre o tema) é um debate interditado, sobretudo em parte da grande mídia, que deveria amplificá-lo. Esta parece domesticada pelo “mercado” e se comporta como porta-voz de Paulo Guedes em seu projeto de desossar o Estado e seu papel de indutor da mobilidade social.

Guedes é exemplo extremo de “aporofobia”, expressão cunhada pela filósofa espanhola Adela Cortina para definir a aversão aos pobres e que se manifesta de diversas formas no mundo contemporâneo. A palavra vem do grego áporos (pobre) e fobéo (rejeitar).

Guedes não cansa de demonstrar ódio de classe: empregadas domésticas não podem viajar e filhos de porteiros não merecem estudar. Cada vez que abre a boca, Guedes exala o mau hálito da Casa-Grande.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/04/biden-guedes-e-a-casa-grande.shtml


Marcus Pestana: 2022, cada coisa ao seu tempo

O grande político pernambucano Marco Maciel comentou certa vez com ironia: “O importante é não botar o depois antes do antes”. O ex-presidente e governador de Minas Tancredo Neves, do alto de sua experiência, argúcia e habilidade, cunhou a metáfora; “Só examine a espuma depois que as ondas pararem de bater”.

O tempo da política nem sempre coincide com a percepção e as necessidades da sociedade. A gestão da variável tempo é estratégica no jogo da política. A precipitação não é boa conselheira.

A leitura das pesquisas joga o foco muito mais nas intenções de voto do que no sentimento oculto na alma dos cidadãos comuns. Já assisti viradas eleitorais históricas.  A opinião pública é volátil, sujeita a chuvas e trovoadas. Não só as virtudes dos candidatos contam, mas também a sorte, o destino. “Tudo que é sólido desmancha no ar”. O acaso também tem o seu papel. É só lembrar o acidente aéreo que vitimou o talentoso governador de Pernambuco Eduardo Campos, em 2014, ou a absurda tentativa de assassinar Bolsonaro, em 2018. Eleição não é concurso de provas e títulos. A democracia acerta sempre no atacado e no longo prazo, e comete visíveis injustiças no varejo e no curto prazo. É um processo coletivo de aprendizagem permanente.

As decisões do STF que resultaram na reabilitação eleitoral de Lula, sem inocenta-lo, desencadearam a precipitação do debate sobre as eleições presidenciais de 2022.

A agenda da sociedade e o interesse real dos brasileiros, neste exato momento, poderiam ser resumidos em emprego na carteira, vacina no braço e comida no prato.

No entanto, o quadro político-partidário não pode ficar inerte diante de fatos novos que ocorrem. Todo cuidado é pouco para não gerar uma rejeição absoluta do eleitorado a partir da falsa percepção que os políticos só pensam em eleições e não se preocupam com a pandemia, o desemprego, a fome e a miséria.

O quadro parece clarear a cada dia. Bolsonaro será candidato à reeleição e agirá nestes próximos quatorze meses para aguçar a polarização e manter fiel a base social que o apoia. Lula será candidato a reeleição ou lançará novamente Haddad pelo PT e tentará com seu carisma e experiência reverter o desgaste derivado do mensalão, da Lava Jato e do desastroso legado de Dilma. Ciro Gomes dificilmente recuará e tentará construir pontes com o centro democrático visando compensar as perdas à esquerda, mas as convergências com o centro dificilmente cancelarão divergências substantivas que existem em termos programáticos.

A variável ainda não presente à mesa é: qual será a chapa que representará o centro democrático? O PSDB realizará prévias em outubro com seus quatro pré-candidatos: Arthur Virgílio, Eduardo Leite, João Dória e Tasso Jereissati. O DEM tem dois bons nomes, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. O apresentador de TV, Luciano Huck, ainda não resolveu se entrará ou não na disputa. João Amoêdo e o NOVO estão flexibilizando seu fundamentalismo liberal e se abrindo para o diálogo. Todos estão conversando e procurando a melhor solução.

Fato é que a polarização dos extremos personificada pelo embate Lula versus Bolsonaro não é uma realidade definitiva e inabalável, como muitos cravam precipitadamente. Há um amplo espaço para a construção de uma 3ª. Via.

*Marcus Pestana, ex-deputado (PSDB-MG)

Fonte:

O Tempo

https://www.otempo.com.br/politica/marcus-pestana/subscription-required-7.5927739?aId=1.2479266


Valor: ‘Bolsonaro abraçou a morte’, diz Felipe Santa Cruz

Monica Gugliano, Valor Econômico

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe de Santa Cruz Oliveira Scaletsky, viu um fantasma que julgava exorcizado voltar a assombrar. “Nenhum de nós que passou pelos tempos da redemocratização poderia ter ideia do risco que esse vírus incubado do autoritarismo deixou na sociedade brasileira”, diz o advogado de 49 anos.

Entre muitas outras sinalizações de retrocessos e de que “esse vírus” voltou a circular, aponta Santa Cruz, está a “reaparição” no governo de Jair Bolsonaro da Lei de Segurança Nacional (LSN), promulgada em 1983. A lei tem sido usada para justificar inquéritos que investigam manifestações e qualquer comentário considerado crítico ao chefe do Executivo e prevê penas de até quatro anos.

O youtuber Felipe Neto e o político Guilherme Boulos (PSOL) foram intimados a depor com base na lei. “Faz parte da política de intimidação do governo, que recorre a esse entulho autoritário para proteger aqueles que tentam derrubar o estado democrático de direito”, afirma o advogado, lembrando que o texto já começou a ser modificado na Câmara dos Deputados, incluindo crimes como o do uso de fake news. “Todos os presidentes da República pós-democratização foram acossados por críticas. Por que Bolsonaro não pode ser?”

Passa do meio-dia e a sala de Santa Cruz reluz com a claridade do Sol a pino do lado de fora da casa, onde ele vive com a mulher, a advogada tributarista Daniela Ribeiro de Gusmão, e os quatro filhos: Lucas, 20; Beatriz, 18; Maria Eduarda, 15; e João Felipe, 11. Ele explica que é um condomínio tranquilo, rodeado de verde, na Barra da Tijuca. Está sentado à frente do quadro do artista plástico goiano Marcelo Solá, uma explosão de cores que parece amenizar a frieza destas conversas em frente da tela do computador.

Elas estão incorporadas à rotina de Santa Cruz desde que o isolamento passou a ser, junto com o uso de máscaras, álcool em gel e outros cuidados, a forma de prevenir o contágio do coronavírus. Diz ele que, mantendo o isolamento, não passa dia sem que várias reuniões, conversas e entrevistas, como este “À Mesa com o Valor” pelo Zoom, estejam marcadas em sua agenda. Suas poucas saídas, relata, são até a sede da OAB, próxima de sua casa, também na Barra da Tijuca.

Há muito tempo que o Judiciário não tinha esse protagonismo na vida pública do país. “Acabou tendo esse papel preponderante pelo enfraquecimento do Legislativo e do Executivo”, pondera. Segundo ele, esse cenário está mudando, inclusive porque há muitas críticas entre os próprios juízes e advogados à exposição que esse quadro tem permitido, porque o Legislativo busca retomar seu protagonismo.

“Acho que não podemos negar o acesso ao Judiciário, quando há tanta disfuncionalidade”, diz, lembrando que foi a OAB a responsável pela ação que permitiu a Estados e municípios decidirem suas próprias ações no combate à covid-19. “O que teria sido do Brasil, sem isso? Porque Bolsonaro abraçou a morte, literalmente.”

Outro tema que expôs o Judiciário, assinala ele, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de promover um novo julgamento dos casos que envolviam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo Santa Cruz, o julgamento foi um divisor de águas, e ele lembra também que em muitas ocasiões se opôs à forma como os integrantes da Operação Lava-Jato procederam. “O mais importante nessa questão é que não joguemos a criança com a água da banheira.”

“Jogar a criança junto com a água da banheira”, explica ele, seria não preservar o legado de combate à corrupção que a Lava-Jato trouxe à sociedade brasileira.

Santa Cruz diz que não lhe cabe discutir o caso do ex-presidente Lula. O que lhe cabe, afirma, é mostrar que o processo necessita ter os devidos cuidados com a constitucionalidade, com o contraditório, garantir o direito de defesa.

O almoço pedido por Santa Cruz é mais do que frugal. Ele escolhe uma salada caesar, acompanhada por uma Coca Zero, pedida no Gula Gula, um restaurante com mais de 36 anos, considerado quase uma “instituição” no Rio de Janeiro.

Na foto do cardápio, a salada parece um prato de alface, com algumas lascas de queijo parmesão por cima. Mas o advogado explica que o prato faz parte da dieta que começou com a pandemia e conta que perdeu 30 quilos nos últimos meses passando fome em casa e fazendo exercícios físicos. “A noite é uma sopa – e só”, diz, contente com o emagrecimento, mas também com uma ponta de tristeza por não poder comer nada do que gosta.

Santa Cruz diz que a OAB tem tido muito trabalho desde a posse de Bolsonaro. Em sua opinião, a pandemia atingiu o Brasil em um dos piores momentos no que diz respeito a representação. “O presidente boicotou a máscara, a vacina, fez pouco caso de uma doença que está matando mais de 2 mil cidadãos por dia. É o governo da ignorância”, critica. “Este governo caminha para a reta final, com uma conta trágica de mortos e sem nada para apresentar, além de peculiaridades como a ministra da Mulher ser machista; o representante dos negros, racista; o do Meio Ambiente, um ecocida militante; e o secretário da Cultura, analfabeto”. Procurados, o Palácio do Planalto, a ministra da Mulher, Damares Alves, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o secretário de Cultura, Mario Frias, e o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, não se pronunciaram.

Em sua opinião, o Brasil vive um momento muito delicado e de muita instabilidade. “É importante que as Forças Armadas reafirmem permanentemente o papel de instituições de Estado, que elas não pertencem a Jair Bolsonaro”, diz. Ele também critica os decretos que ampliam as licenças para ter armas e a política para armar a população.

Embora esteja acostumado com os encontros via tela de computador, Santa Cruz aparenta estar um pouco sem graça em falar e comer ao mesmo tempo. É preciso explicar que, como a comida faz parte da entrevista, ele não precisa deixar o prato de lado, ainda que no caso dele não se corra o risco de as folhas de alface esfriarem. “Não tem problema. Muitas vezes preciso postergar o almoço.”

Felipe Santa Cruz era líder estudantil no governo de Fernando Collor (1990-1992) – hoje senador pelo Pros-AL – quando milhares de jovens, inclusive ele, saíram às ruas, com os rostos pintados de verde e amarelo – os caras-pintadas – pedindo a destituição do presidente da República. Primeiro chefe da nação escolhido pelo voto direto após a ditadura militar, Collor foi acusado de corrupção e perdeu o mandato no julgamento da Câmara e do Senado, que votou a favor do pedido de impeachment assinado pelo então presidente da OAB Marcello Lavenere e pelo presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Barbosa Lima Sobrinho.

A participação da OAB em episódios da história recente, como o impeachment de Collor, segundo o advogado, fomenta a ideia de que ali se faz política partidária. “A OAB não é politizada, como Bolsonaro quer fazer crer. É um instrumento de política institucional. Há pessoas aqui de esquerda, de direita, de centro, de todos os lados. Há eleitores bolsonaristas e de oposição”, afirma.

Formado em direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio, ele foi por duas vezes consecutivas presidente da seção fluminense da OAB (2013-2015, 2016-2018). Em 31 de janeiro de 2019, foi eleito presidente nacional da OAB. “Era o começo do governo Bolsonaro, e acho que ele sabia que sou um democrata radical. Jornalista, artista e advogado que não são democratas radicais não compreenderam a faculdade. Porque estas são profissões que vivem da liberdade”, diz.

Segundo Santa Cruz, o presidente nunca compreendeu – entre muitas outras coisas – o sentido do sigilo entre advogado e cliente. Bolsonaro passou a exigir que lhe fosse revelado quem havia defendido Adélio Bispo, o autor das facadas desferidas contra ele ainda na campanha eleitoral, durante um ato em Juiz de Fora, em setembro de 2018.

Mesmo depois de muitas investigações, inclusive da Polícia Federal, Bolsonaro sempre deu e dá a entender que o atentado teve motivação política e que Adélio foi usado para tirar-lhe a vida, evitando que se tornasse presidente. “Ele ficou inconformado com a defesa das prerrogativas do acusado”, diz Santa Cruz.

Ainda deputado, Bolsonaro disse mais de uma vez que o pai de Santa Cruz, Fernando Santa Cruz, desaparecera porque havia caído bêbado na rua. Antes mesmo da posse na presidência, relata Santa Cruz, o presidente, que incluiu a entidade no amplo rol de comunistas que boicotavam seu trabalho, já havia atiçado suas redes sociais, que passaram a atacá-lo sem piedade. Mas o pior momento desse embate ainda estava por vir.

Era julho de 2019, quando Bolsonaro, em uma das entrevistas que dava na grade do Palácio da Alvorada, afirmou que “um dia” contaria ao presidente da OAB como o pai dele desaparecera durante a ditadura. Ainda segundo Bolsonaro, certamente Santa Cruz não iria querer saber “a verdade”.

Segundo a Comissão Nacional da Verdade, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, estudante de direito, servidor público e militante da Ação Popular Marxista Leninista, foi preso no dia 23 de fevereiro de 1974, morto por agentes do Estado, e seu corpo nunca foi encontrado. “Quando Bolsonaro disse aquilo, fiquei em choque. Minha mãe, meus tios, todos ficaram em estado de choque. Foi um segundo assassinato”, descreve, com lágrimas correndo pelo rosto.

Bolsonaro, no entanto, disse na entrevista – e nunca mostrou alguma prova – ter informações de que o militante não fora sequestrado e assassinado por agentes da ditadura. Mas por seus próprios companheiros. “Não é minha versão. É a que a minha vivência me fez chegar às conclusões naquele momento. O pai dele (Felipe Santa Cruz) integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio a desaparecer no Rio de Janeiro”, insinuou o presidente.

“Foi de uma perversidade que eu jamais pensei encontrar. Meu pai foi um herói da história brasileira. Não era um clandestino, era um estudante, tinha emprego, endereço. Mas Bolsonaro fez com que eu, de repente, me visse sozinho, com a ajuda da imprensa e outros tentando defender uma pessoa que está morta há 40 anos.”

O desaparecimento de Fernando, naquele Carnaval de 1974, marcou para sempre a família Santa Cruz. Felipe tinha apenas dois anos e vivia em São Paulo quando o pai foi sequestrado no Rio de Janeiro com o também militante e amigo de infância Eduardo Collier Filho. O corpo de Eduardo também nunca foi encontrado, e as famílias só presumiam que os dois rapazes haviam sido capturados.

A mãe do estudante, a pernambucana Elzita Santa Cruz, morreu em junho de 2019 em Olinda (PE), aos 105 anos, sem conseguir resposta para a angústia e a dor da perda. Durante 45 anos, ela buscou qualquer indício ou pista do paradeiro que fora dado ao corpo de seu filho. Percorreu gabinetes, quartéis, recorreu a autoridades e até presidentes brasileiros, explicando que só queria o direito de enterrar os restos do filho e já não lhe interessava saber quem o havia executado.

Tal qual a estilista Zuzu Angel, cujo filho, Stuart, também desapareceu na ditadura, Elzita – como dizem os versos de Chico Buarque na canção “Angélica”, escrita em homenagem a Zuzu – “só queria embalar seu filho, que mora na escuridão do mar”.

A mãe de Santa Cruz, Ana Lúcia, se casou novamente e se mudou com o filho para Porto Alegre, onde moravam os pais do marido. Entre 1977 e 1987, a família se instalou no Bom Fim, bairro tradicional entre as famílias judaicas. Ele conta que cresceu sem a mais vaga lembrança do pai. “Meu pai, para mim, é uma história contada pelos outros”, descreve.

O padrasto, Eduardo Scaletsky, militava na Convergência Socialista. Era professor, mas passava muito tempo em porta de fábricas. “Moramos em 17 lugares, no subúrbio de São Paulo, em Minas Gerais”, recorda Santa Cruz, acrescentando que sua vida só passou a ter alguma normalidade no fim dos anos 1970, quando seus pais terminaram a faculdade.

Ainda assim, lembra de ter tido um susto muito grande quando sua mãe, que liderava uma das primeiras e grandes greves nacionais dos bancários, foi presa pela Polícia Federal. “Entrei em pânico, mas aí os tempos já eram outros. Ela teve direito a advogados, sua prisão foi notícia.”

Muitos anos de terapia depois de passadas sua infância e adolescência, Santa Cruz diz que foi tão marcado por esses episódios que uma das razões de rejeitar até agora os convites para fazer carreira política são os filhos. Ele chegou a se candidatar a vereador do Rio em 2004 pelo PT, mas não tentou novamente depois daquele primeiro fracasso. Seu nome agora tem sido cogitado para uma possível candidatura a governador do Rio em 2022.

“Posso até pensar e, em algum momento, até aceitar. Mas a vida inteira quis dar a eles uma vida de propaganda de margarina. É aquela coisa de pai, mãe, estabilidade e não achar que a qualquer momento pode acontecer uma hecatombe”, explica, acrescentando que os filhos têm medo de que ele sofra um atentado, da violência nas redes sociais.

Santa Cruz recorda que foi uma criança com muito medo. Mas não carregava esse sentimento na vida adulta. O sentimento, conta ele, voltou desde que apareceram os primeiros infectados com o coronavírus e a “perversidade” de Bolsonaro se fez mais presente. Hoje, afirma o advogado, parte dos brasileiros vive com muito medo do presente e do futuro.

“Vivemos cercados pela morte”, lamenta. “Estive pensando sobre as famílias que não conseguem cumprir o luto quando seus familiares e amigos morrem vítimas da covid. É uma situação semelhante àquela da ditadura. Semelhante à morte do meu pai.”

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/04/30/a-mesa-com-o-valor-felipe-santa-cruz-bolsonaro-abracou-a-morte-diz-o-presidente-da-oab.ghtml


Monica de Bolle: A reconstrução dos EUA com Joe Biden é um nó na cabeça dos “liberais à brasileira”

Muito se tem falado e escrito no Brasil, com lentes brasileiras, sobre o Governo Biden e seus planos. Contudo, e isso não é novidade, tais lentes distorcem e deturpam ao fazerem ver um país que não existe e jamais existiu. Conta-se, por exemplo, uma história no Brasil de que o desenvolvimento dos Estados Unidos se deu pelo papel preponderante da iniciativa privada. Não há ideia mais errada do que essa para quem conhece a história deste país em que vivo há mais tempo do que no Brasil e no qual finquei as bases da minha carreira como economista, a qual passa hoje por uma espécie de transição. Os EUA sempre viram no Estado o papel de indutor do desenvolvimento de longo prazo. Não se trata da visão nacional-desenvolvimentista da América Latina, tampouco pode ser compreendida com lentes sulistas. O desenvolvimento norte-americano e a atuação do Estado têm contextos, texturas, estruturas e história próprios.

Pode ser uma história pouco contada no Brasil aquela segundo a qual os EUA se industrializaram por meio de políticas de substituição de importações e muitas práticas protecionistas inspiradas na obra de 1791 do primeiro secretário do Tesouro norte-americano, Alexander Hamilton. Em seu Report on the subject of manufactures, Hamilton delineou os conceitos de indústria nascente e apoio estatal, que, mais tarde, influenciariam não apenas a industrialização de seu país, mas a da Alemanha, a do Japão, a da França, chegando à América Latina nos anos 1930, quarenta e cinquenta. A obra de Raúl Prebisch e o que ficou conhecido como pensamento Cepalino cita Hamilton recorrentemente, e não é por acaso.

O Estado indutor norte-americano seria revisto e reinventado ao longo de toda a história, passando pela corrida espacial da Guerra Fria, o surgimento da Internet, o desenvolvimento do setor de tecnologia, sobretudo o de bioteconologia, que tanta relevância tem tido na atual pandemia. Para que as vacinas gênicas, as mais sofisticadas contra covid-19, saíssem dos laboratórios para os nossos braços, o Governo de Donald Trump fez a enorme Operação Warp Speed. Logo, no mundo real se deu o contrário do que sustenta o ministro da Economia brasileiro, e não haveria Moderna ou Pfizer sem a atuação vultosa do Estado.

Então entra em cena o atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Muitos no Brasil têm interpretado os planos de Biden como uma ruptura em relação ao passado, seja o passado recente, seja o longínquo. Também entendo que há ruptura; mas penso não ser a que imaginam. A ruptura que se deu nas eleições de 2020 foi a passagem de um país liderado por uma pessoa despreparada para o cargo e com instintos nitidamente autoritários para outra com largo, orgulhosamente reclamado histórico político e um democrata, não somente pelo nome do partido ao qual pertence. Quanto ao resto, não há rompimento: os planos de Biden, vulgarmente apelidados de “Bidenomics”, são profundamente marcados pela tradição norte-americana do Estado indutor. Há, sim, diferenças marcantes, que reanimam essa tradição.

Os planos de Biden, literalmente trilionários, compreendem o American Rescue Plan, o American Jobs Plan e o American Families Plan. Todos eles aparecem em destaque no site da Casa Branca, em que são apresentados de forma clara e resumida, com acesso à integra do documento e convite a compartilhar como a política econômica lhe pode ajudar. Para entender melhor essa política, tomemos o American Families Plan, o seu segundo. Trata-se, como disse a Casa Branca, de um plano de “infraestrutura humana”, isto é, de uma agenda que parte do foco nas pessoas, em particular, das famílias, para dar forma a um Estado de Bem-Estar Social. Lembro aqui que, entre as economias maduras, os EUA são o único país que não têm as redes de proteção social robustas, como seus pares europeus. O nome do plano toma as famílias como elo de articulação das políticas de redistribuição de renda. A escolha reflete a percepção compartilhada de que a família é a unidade de cuidado por definição na sociedade norte-americana, como também é, por sinal, no Brasil.

O que saltar a olhos de “liberais à brasileira” como excessivo é o entendimento de que, quando as desigualdades são demasiadas, políticas incrementais de proteção social não resolvem os problemas econômicos, sociais, e políticos. Primeiro, para equacioná-los pode ser importante ter um horizonte de igualdade, a qual é inalcançável, mas nem por isso precisa deixar de ser buscada. Sua busca pode criar condições que tornam a liberdade possível. Segundo, políticas incrementais dificilmente têm o condão de reconstituir um senso de união nacional, de identidade comum, em sociedades extremamente fragmentadas e polarizadas. Quando Biden falava em unificação durante a campanha, a necessidade da ousadia estava explícita. Não viu quem não quis, ou quem não soube interpretar por desconhecimento. É realmente muito difícil entender os Estados Unidos e suas contradições quando não se vive no país: a máxima de Tom Jobim sobre os principiantes e seus olhares não vale apenas para o Brasil.

Tenho visto gente no Brasil dizer com grande confiança que a agenda de Biden está fadada ao fracasso no Congresso. A afirmação se baseia no fato de que os democratas têm uma maioria muito estreita no Congresso, sobretudo no Senado. Mas, novamente, essa é uma visão equivocada sobre as transformações que acometeram os partidos políticos daqui, especialmente o partido Republicano. Sob Trump, o partido Republicano deixou de ser aquele que defendia a “responsabilidade fiscal” na representação de déficits e dívida baixos. As reduções tributárias de Trump e os aumentos de despesas em 2017 levaram os EUA ao maior déficit em décadas, e esse cenário se produziu com o aval dos Republicanos no geral e, em particular, dos Republicanos mais tradicionais, como os Senadores Mitch McConnell e Lindsey Graham. Tivesse Trump sido um político mais dedicado, teria conseguido emplacar seu próprio plano de infraestrutura, no valor de 1,5 trilhão de dólares, alardeado por Steve Bannon durante a campanha de 2016 e tantas vezes mencionado nos anos trumpistas. É curioso que algumas pessoas tenham escolhido apagar isso de suas memórias.

O partido Republicano, hoje, tem dificuldades de enfrentar agendas que preveem grandes despesas, sobretudo se essas despesas forem facilmente sentidas e compreendidas pelas pessoas, pelas famílias. A aprovação de Trump subiu no início da pandemia quando seu pacote de assistência passou no Congresso, assim como a de Biden aumentou desde o início de seu Governo, mesmo o país estando muito dividido. Aqui nos Estados Unidos há eleições a cada dois anos: no ano que vem haverá eleições legislativas. O custo para os Republicanos poderá ser alto caso eles rejeitem por completo a agenda de Biden ―e o partido sabe disso. É claro que os Republicanos haverão de se opor aos aumentos de tributação sobre corporações, os mais ricos, os ganhos de capitais, que devem financiar parcialmente os ambiciosos planos. Porém, apostar no fracasso da agenda Biden é nada entender do que aconteceu com os Republicanos e com os Democratas nos últimos quatro anos. Enquanto Republicanos buscam novos caminhos e narrativas políticas, Democratas se reinventaram a partir de algumas noções básicas de justiça social. Sim, básicas, pois os democratas mais à esquerda estão muito longe daquilo que brasileiros consideram ser “de esquerda”.

Com Biden, os Estados Unidos estão fazendo aquilo que sempre fizeram de melhor: se reimaginando e reiventando. Por certo, há lições aí para o Brasil. Mas elas estão longe de ser o que tantos regurgitam nos jornais ou na TV.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-04-30/a-reconstrucao-dos-eua-com-joe-biden-e-um-no-na-cabeca-dos-liberais-a-brasileira.html


El País: Bem-vindos à galáxia paralela de Bolsonaro no Facebook

Naiara Galarraga Gortázar, El País

Jair Messias Bolsonaro mais genuíno aparece toda quinta-feira em celulares e telas. Às 19 horas em ponto começa a live semanal do presidente do Brasil no Facebook. A cada sete dias, o elenco muda, mas o cenário, o roteiro e o tom variam pouco no resumo moldado à medida dos bolsonaristas da direita mais extremista. Dois indígenas, que ele apresentou como “irmãos índios”, o acompanharam esta semana como exemplo vivo do que motiva seu mais polêmico projeto legislativo para a Amazônia. Em calça e camisa, os dois convidados ofereciam a imagem do indígena de que Bolsonaro gosta, o assimilado à vida urbana. Nada a ver com os povos originários que vivem nas aldeias.

O presidente chegou a dizer que, para prosperar, os indígenas deveriam poder plantar em larga escala, cortar madeira, extrair ouro, diamantes ou construir hidrelétricas em suas terras, se assim quiserem (agora é ilegal). Falou-se em desenvolvimento social e econômico, mas nenhuma palavra sobre o valor ecológico dessas terras —que incluem a Amazônia—, a biodiversidade ou a crise climática.

O assunto que tomava as manchetes da imprensa naquele momento —o coronavírus já matou 400 mil brasileiros— foi mencionado de passagem durante a hora de transmissão, feita no Palácio do Planalto, em Brasília. Tudo sem máscaras nem distanciamento de segurança.

É uma espécie de Alô, presidente à la Bolsonaro. Versão 2.0 do formato inventado por outro populista, este de esquerda, o venezuelano Hugo Chávez. É a galáxia paralela que a extrema direita brasileira criou para se comunicar diretamente, agora desde o topo do poder político, com aqueles que permanecem ao seu lado, apesar da pandemia, da inflação, do desemprego e dos escândalos: um terço do eleitorado, segundo as pesquisas.

Com mais de 20 milhões de seguidores nas redes, reúne um grande público neste país de 210 milhões de habitantes. Quase um milhão de internautas assistiu ao último programa ao vivo, que ultrapassou os 93.000 comentários. O poder multiplicador do Facebook e do WhatsApp foi determinante para sua surpreendente vitória eleitoral em 2018 neste país sem televisão pública, onde a Rede Globo domina a televisão com imenso poder midiático.

O formato é sempre o mesmo. Bolsonaro está sentado atrás de uma mesa com um intérprete de sinais à sua esquerda (muitas vezes, a única mulher em cena, porque o Governo é quase todo masculino) e à direita, um ou dois ministros ou altos funcionários a quem ele faz perguntas como se lhes estivessem tomando a lição. Às vezes, anuncia medidas governamentais, como o bônus de Natal do Bolsa Família.

Nesta quinta-feira foi a vez do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier da Silva, delegado de polícia. Juntos, esmiuçaram a defesa do projeto de lei que visa autorizar a exploração de minérios em terras indígenas com o argumento de que não é possível que milhões de índios vivam na miséria em terras de fabulosas riquezas. Com eles, os indígenas Arnaldo, da etnia parecis, e Josélio, um surucucu. O primeiro falava em português fluente até que Bolsonaro o interrompeu: “Ei, fala alguma coisa na tua língua”.

Como todo populista, o Bolsonaro precisa de inimigos para manter as fileiras cerradas. Os desta quinta-feira eram a Europa, que apresentou como preocupada da boca pra fora com os indígenas, mas alheia às suas misérias, e as ONGs, e uma imprensa que acusa de desinformar … Também repisou as clássicas ameaças do seu manual: o socialismo, comunismo, a Venezuela, a esquerda, o partido social-democrata, “o candidato que acaba de recuperar seus direitos políticos”, referindo-se a Luiz Inácio Lula da Silva. E com os olhos postos nas eleições presidenciais de 2022, agitou o fantasma da fraude eleitoral. Gabou-se de medidas governamentais e pronunciou uma de suas frases favoritas: “Eu me chamo Messias, mas não faço milagres”.

Os dois assuntos mais quentes na imprensa tradicional apareceram apenas fugazmente. Às vítimas da covid-19, Bolsonaro dedicou poucas palavras: “Lamentamos as mortes, chegou um número enorme de mortes”, seguidas de um apelo: “A gente espera que não haja uma terceira onda, a gente pede a Deus”. E sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que vai analisar a partir da próxima terça-feira as ações e omissões do seu Governo nesta crise sanitária, disse: “A gente continua trabalhando a todo vapor, não tamos preocupados com essa CPI, nós não tamos preocupados”. Em seguida, ele anunciou a inauguração de uma dessas obras eternas.

Desde que descobriu o filão de se comunicar com o povo sem intermediários, Bolsonaro o adotou com fervor. Os FBs ao vivo são agora a zona de conforto deste presidente que não dá coletivas de imprensa, oferece poucas oportunidades de ser abordado diretamente pela imprensa e só concede entrevistas a jornalistas afins. É a sua bolha, onde ninguém o questiona ou critica. As entrevistas diretas incluem perguntas via um celular que um militar traz para ele, mas não vêm do povo, e sim de jornalistas de um programa radiofônico simpático a ele.

O Brasil acaba de cair para a 111ª posição entre 180 países na classificação anual da Repórteres Sem Fronteiras. A RSF sustenta que “o contexto tóxico em que trabalham os profissionais da imprensa brasileira” é culpa principalmente do presidente. “Os insultos, a estigmatização e as humilhações públicas orquestradas contra os jornalistas se tornaram a marca registrada do presidente Bolsonaro, de sua família e de seu círculo próximo”, acrescenta a RSF.

Durante as transmissões presidenciais ao vivo, os internautas comentam. Entre incentivos, elogios e bênçãos ardentes, petições antidemocráticas como a de Rubanubio Pereira Silva: “Presidente, esperamos uma intervenção militar com o senhor à frente”.

Neste país aficionado pelas redes sociais, muitos momentos viralizaram. Dois dos mais polêmicos: ele e seu então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, um trumpista, bebem um copo de leite em um gesto interpretado pelos internautas como um aceno aos supremacistas brancos. E no dia em que o Brasil ultrapassou 55.000 mortes por covid-19, o atual ministro do Turismo, Gilson Machado, tocou no acordeão a Ave Maria em homenagem às vítimas junto com o presidente da “gripezinha”, o ministro da Economia e a intérprete de sinais. Para os 400.000 que morreram, não houve homenagem.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-30/bem-vindos-a-galaxia-paralela-de-bolsonaro-no-facebook.html


Alon Feuerwerker: Será a economia?

Os leilões de concessão na infraestrutura, federal e em estados, caminham bem, a alta do dólar deu uma aliviada nos últimos tempos e a Bolsa navega pelo dobro do ponto a que mergulhara um ano atrás. Os números de criação de empregos formais, os do Caged, são positivos e o resultado das grandes empresas no primeiro trimestre veio bastante bom.

Do outro lado, há dois dígitos de milhões de desempregados, uma segunda onda inclemente da Covid-19 e uma vacinação que caminha, mas ainda bem abaixo da cobertura necessária para, por exemplo, evitar uma possível terceira onda. E o termômetro político mostra altas temperaturas, elevadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado sobre a pandemia.

Na economia, resta pouca dúvida de que o setor exportador já se beneficia do forte ritmo de recuperação dos Estados Unidos (graças à vacinação) e da China (graças ao rápido controle da difusão do SARS-CoV-2). E o dólar num nível relativamente bom ajuda na substituição de importações, apesar de atrapalhar na importação de bens de capital.

Mas, e a resultante? As previsões mais frequentes para o curtíssimo prazo na economia brasileira são de certa retração combinada com alguma inflação. Esta segunda variável leva o Banco Central a aumentar a taxa básica de juros de maneira até algo agressiva. Tem margem para isso, porque o juro real andava, e ainda anda, bem negativo.

Se o BC vai acertar a mão, fazer a inflação convergir para a meta sem estender o período de recuo econômico, o futuro dirá. Outra coisa que o futuro vai dizer é se uma eventual recuperação econômica daqui até o final do ano vai conseguir mexer para baixo nos crônicos e altos números do desemprego. Que, sabemos, será um ponto apetitoso no debate de 2022.

Ainda sobre a economia, outra dúvida é o que a oposição de esquerda vai dizer no próximo ano. Se vai tentar replicar o Plano (do Joe) Biden e sugerir o enfrentamento crise por meio principalmente do endividamento e investimento públicos, ou vai novamente guinar ao dito centro e assumir os compromissos de continuidade habituais em anos eleitorais.

É razoável supor que muita coisa vai depender dos números. Se em meados de 2022 a economia estiver em recuperação, mesmo que lenta, o desemprego em queda, mesmo que suave, e o governo dizendo que enfrentou “a pior crise”, com a pandemia, é possível que a oposição tenha de mudar de assunto. Talvez não venha a ser “a economia, estúpido”.

Grande chance de ser “a pandemia, estúpido”. Mas como estará ela daqui a um ano e meio? Será que ainda vai sensibilizar?

Foi em algum grau o que aconteceu na eleição americana. Pouco se debateram os temas econômicos. A frente ampla antitrumpista formou-se com base na rejeição pessoal ao próprio Donald Trump, nas agudas tensões raciais desencadeadas pela morte de George Floyd e no enfrentamento da Covid. E deu certo para Biden. Ele está na Casa Branca e Trump voltou para a Flórida.

Pipocam teorias sobre a necessidade e a conveniência de um “Biden brasileiro”. Muita gente, até gente bem apetrechada para a eleição, quer ser. Nos aspectos não propriamente econômicos vai ser fácil de mimetizar, pois a agenda liberal americana está na ofensiva ideológica entre nós, e em todo o mundo. Mas, e na economia? Alguém vai arriscar?

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

Fonte:

Análise Política

http://www.alon.jor.br/2021/05/sera-economia.html