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O Globo: Nova cepa do coronavírus se espalha pelo país e cientistas temem terceira onda

Tire as principais dúvidas sobre a variante de Manaus, que pode aumentar velocidade da pandemia no Brasil

Giuliana de Toledo e Johanns Eller, O Globo

RIO e SÃO PAULO — Já somam, de acordo com a Secretaria estadual de Saúde, 25 os casos de Covid-19 no estado de São Paulo provocados pela variante do coronavírus inicialmente identificada em Manaus. Desses, 16 são de pessoas que não estiveram no Amazonas nem em contato com quem tenha viajado pela região. Ou seja, a linhagem P1 está produzindo em número significativo infecções autóctones, que ocorrem sem “importação”.

Faça o teste:  Qual é o seu lugar na fila da vacina?

O Ministério da Saúde informa que, além de Amazonas e São Paulo, essa mutação do vírus já atinge pelo menos Ceará, Espírito Santo, Pará, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro, Roraima e Santa Catarina. E, segundo autoridades de saúde locais, há registros na Bahia e houve um episódio autóctone registrado no Rio Grande do Sul.

O avanço da P1 pelo país é preocupante, pois, segundo cientistas, ela demonstra ser mais transmissível. O principal freio seria a vacinação em massa. Mas a campanha nacional de imunização sofre com a escassez de vacinas.

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A própria eficácia dos imunizantes é outra incógnita. Não há estudos que indiquem o grau de proteção da CoronaVac e da vacina de Oxford/AstraZeneca contra essa cepa. O Instituto Butantan informa que testes já estão em curso e devem ser concluídos nas próximas semanas sobre a vacina chinesa. A AstraZeneca, parceira de Oxford e da Fiocruz, também iniciou estudos.

Para tentar conter a propagação, Araraquara, que concentra 12 dos 25 casos de São Paulo — os demais estão na capital (9), em Jaú (3) e em Águas de Lindoia (1) —, entrou ontem em lockdown por 15 dias.

Também para barrar as variantes (incluindo a britânica e a sul-africana), o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC) emitiu um alerta recomendando medidas de contenção como toques de recolher e lockdown.

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A reportagem procurou o Ministério da Saúde para entender a estratégia federal de contenção da nova cepa, sem retorno. E a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não respondeu se adotaria medida similar à da reguladora da União Europeia, que agilizará a liberação de vacinas eficazes contra novas mutações.


Como o Brasil pode evitar uma onda da nova cepa?

País corre risco de enfrentar terceira onda, afirma virologista

Para Fernando Spilki, virologista que coordena a Rede Corona-ômica (iniciativa do Ministério da Ciência para observar a evolução do coronavírus), diante do número elevado de casos, do ritmo lento da vacinação e da nova linhagem circulando, o país deveria considerar, “se não um lockdown completo”, medidas que restrinjam a circulação. A situação atual, ele alerta, nos encaminha para uma terceira onda, ainda mais preocupante, pois, agora, com variantes do vírus. Ele diz que vivencia-se hoje o efeito da falta de controle da movimentação de cidadãos no país.

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A variante é mais transmissível? É mais letal?

Estudos epidemiológicos podem demonstrar potencial de contágio

As mutações afetam a proteína S, que é determinante na propagação do vírus. Por isso, e pelo pico de doentes observados em Manaus, cientistas acreditam que a variante seja sim mais transmissível. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, afirmou, em audiência no Senado, que “análises indicam que ela seja três vezes mais contagiosa", mas não informou a estratégia da pasta para evitar a disseminação da cepa. Ainda não se sabe se ela é mais letal. “Precisamos de estudos epidemiológicos e clínicos melhores”, explica Ester Sabino, da USP, que lidera sequenciamentos genéticos do vírus.

É possível a reinfecção pela nova linhagem?

Brasil deve considerar restrição de circulação, diz especialista

Sim. Quem já foi contaminado pode ser novamente infectado por essa variante do Sars-CoV-2. “Sabemos que a reinfecção está sim ocorrendo, mas ainda não sabemos com que frequência”, conta Sabino. Os pesquisadores se preocupam pela capacidade que essa linhagem do coronavírus parece ter em “driblar” o sistema imunológico de quem já superou a doença e deveria, em tese, ser resistente. Uma outra questão que não está respondida é a da intensidade da infecção em quem já adoeceu anteriormente: ela é mais, igualmente, ou menos forte?


Devo fazer teste para saber se estou com essa cepa?

Identificação só pode ser feita por exame ainda indisponível

É impossível descobrir por iniciativa própria se você está infectado com alguma variante, incluindo a de Manaus. A identificação das cepas só pode ser feita por sequenciamento genético, ainda indisponível nos laboratórios brasileiros. A Fiocruz do Amazonas anunciou que está criando um teste de PCR capaz de diferenciar a P1. “Hoje o sequenciamento só é feito em laboratórios de vigilância e pesquisa. Não há indicação para fazer o teste com o objetivo de saber que variante as pessoas têm”, diz Sabino. O tratamento contra a Covid-19 é o mesmo.


As vacinas usadas no Brasil são eficazes contra a cepa?

Imunizantes não divulgaram estudos que respondam sua ação diante da linhagem de Manaus

As duas vacinas em uso no Brasil, a da AstraZeneca/Oxford, produzida em parceria com a Fiocruz, e a do Butantan, em acordo com a Sinovac, não divulgaram estudos que respondam sua ação diante da linhagem de Manaus. O instituto paulista informa que testes para checar a eficácia nesses casos estão em curso e serão apresentados “nas próximas semanas”. O imunizante da AstraZeneca também está em avaliação contra a cepa brasileira. Procurada pela reportagem, a Fiocruz não respondeu sobre o estágio da investigação.


Detectamos com precisão mutações do vírus no Brasil?

Pesquisadores buscam concluir levantamentos sobre vigilância genômica

Não. Para Sabino, faltam recursos para o país conduzir um sequenciamento genético mais amplo de amostras de vírus que circulam aqui. Há vários grupos nacionais com esse enfoque, mas os esforços não estão bem distribuídos “no tempo nem no espaço", de modo que o retrato da epidemia acaba ficando incompleto. Spilki, por sua vez, destaca que, para além da vigilância genômica, o país não se vale de dados para criar estratégias, o que seria indicado “inclusive para questões de cicatrização do tecido econômico e de retorno à normalidade”.


Marco Aurélio Nogueira: Dilúvios à vista

Há muitos 'presidenciáveis' em cogitação, mas não há o fundamental: nem uma boa articulação democrática, nem um programa mínimo com que tirar o país do buraco em que se encontra.

O açodamento, em política, é inimigo do protagonismo inteligente. Hoje, faltando quase dois anos para as próximas eleições, andam todos em busca do candidato “campeão”, aquele que será capaz de bater nas urnas o capitão cloroquina, hoje tido como adversário de respeito e o mais forte no ringue.

Pelo centro e pela esquerda a especulação campeia, juntamente com balões de ensaio em profusão e muito movimento de ocupação de espaço. Há quem busque se cacifar com antecedência, caso de João Dória, que põe em curso uma operação desenhada para fracassar, seja pela falta de carisma do personagem, seja por sua baixa densidade nacional, seja pela incapacidade de ser um ponto de convergência consistente do centro liberal-democrático. 

Há os que procuram um nome de “fora da política”, capaz de fornecer ao eleitorado uma perspectiva de renovação, derivada da ideia de que o eleitor médio está cansado dos mesmos de sempre. Chega-se mesmo a ventilar o nome da empresária Luiza Trajano, nome digno mas que está anos-luz distante de uma briga eleitoral mais profissional. Passa-se o mesmo com Luciano Huck, cuja juventude e cujo dinamismo podem estar sendo desperdiçados por falta de definições e bases sólidas de sustentação. Lula, por sua vez, incapaz de agir em articulação com os vários pedaços da esquerda, diz para Fernando Haddad “por o bloco na rua” e o ex-prefeito de São Paulo obedece, sem levar em conta os humores do próprio partido. Ciro Gomes mexe-se o tempo todo, mesmo que em silêncio e sem sair do lugar.

E isso para não falar dos que se aproveitam da conjuntura para atiçar a luta interna nos partidos.

Há nomes sendo cogitados, mas não há o fundamental: nem uma boa articulação entre as correntes democráticas, nem um programa mínimo com que tirar o país do buraco em que se encontra. Sem isso, nomes ficarão a flutuar, sem agarrar coisa alguma. E aquele que está mais assentado (no caso, o presidente da República) vai não só mantendo posição como pondo em curso o projeto de dividir e impulsionar a “implosão” dos partidos institucionalmente mais fortes (DEM, PSDB) do centro democrático. Até agora, ele está nadando de braçada.

Muitas águas vão rolar, com certeza, ao longo de 2021. Mas só promoverão dilúvios desagregadores se não houver esforços tenazes para construir diques democráticos de sustentação, que agreguem o que está sendo atacado pelo vírus demoníaco da divisão e do açodamento.

*Marco Aurélio Nogueira, professor titular, Teoria Política da Unesp


Marcus Pestana: Regulação, privatizações e crescimento

Além da universalização da imunização para superarmos a pandemia, há um desafio central que é a retomada do crescimento econômico visando a geração de renda e emprego. Quem pode desencadear a retomada são os investimentos. E como sabemos, o setor público brasileiro encontra-se mergulhado em grave fiscal. Ou seja, a resposta virá majoritariamente dos investimentos privados. E não basta para atrair investimentos possuir bons fundamentos macroeconômicos. É preciso um ambiente de confiança e credibilidade ancorado em previsibilidade, bons marcos legais e regulatórios, estabilidade de regras e respeito aos contratos.

Ao longo dos séculos XIX e XX, o papel do Estado esteve no centro das discussões sobre modelos de intervenção e desenvolvimento. Há uma dimensão ideológica que coloca liberalismo versus estatismo, mas há também a questão da eficiência global da economia e sua produtividade e dos impactos no orçamento público e suas prioridades.

As tarefas necessárias para o funcionamento da sociedade e da economia podem ser supridas pela ação direta do Estado, pelo terceiro setor, como hospitais filantrópicos e as APAES, por exemplo, ou pela iniciativa privada. O desfaio é conseguir o melhor e mais eficiente mix que potencialize a efetividade das ações e a produtividade dos recursos.

Na atual crise fiscal e diante da evolução da economia, o papel do Estado no Brasil deve ser muito mais de regulador, coordenador e estimulador. Não faria o menor sentido em pleno século XXI ter uma VALE estatal produzindo minérios ou uma EMBRAER produzindo aviões. Quando o serviço é público ou há monopólio natural e se delega à iniciativa privada, devem existir agências regulatórias robustas, fortalecidas e eficientes para defender os usuários e a estabilidade contratual, oferecendo segurança tanto à sociedade, quanto aos investidores.

O Governo Federal almeja privatizar a Eletrobrás e os Correios. O Governo de Minas pretende vender a CODEMIG e o do Rio, a CEDAE, entre tantas outras propostas de privatização.

Na última semana, foram tomadas atitudes contraditórias. Por um lado, aprovou-se a autonomia do Banco Central, medida positiva para blindar o agente que defende a nossa moeda de intervenções políticas voluntaristas e desastrosas. Por outro lado, a ofensiva política contra a autonomia da ANVISA na questão das vacinas, abala o prestígio de nossas agências regulatórias como um todo. Para a privatização da Eletrobrás ou dos Correios, que apoio, precisamos de uma ANEEL e de uma ANATEL transformada em ANACOM, fortes, autônomas, profissionalizadas e prestigiadas. A população não quer saber se o fornecimento de energia ou o abastecimento de água é feito por uma empresa estatal ou privada. Quer, na verdade, eficiência, qualidade e preço justo.

Quanto à CODEMIG, tenho minhas dúvidas. Ela gera soluções, não problemas. Tem uma estrutura levíssima para administrar os direitos minerários da exploração do nióbio, minério do futuro, que será cada vez mais valorizado. É uma das poucas fontes de financiamento de investimentos públicos em Minas. Ainda mais que se dará o famoso caso de “vender a geladeira para pagar comida”.

A parceria entre Estado e iniciativa privada pode ser, se bem construída, uma importante alavanca para a retomada do crescimento no Brasil pós-pandemia.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)   


Adriana Fernandes: Por enquanto, a reforma tributária vive uma baita crise de identidade

Tributaristas já têm lista de perguntas sem respostas sobre reforma em tramitação no Congresso

A prova maior de que a reforma tributária está sem rumo é a obsessão do presidente Jair Bolsonaro em reduzir a tributação dos combustíveis sem conexão alguma com as propostas que tramitam no Congresso Nacional de mudança no caótico sistema tributário brasileiro.

Uma dessas propostas, enviada pelo próprio governo, cria a Contribuição sobre Bens e Serviços para substituir o PIS/Cofins, os dois tributos que o presidente quer diminuir para diminuir o preço do diesel, uma demanda dos caminhoneiros.

Pelas três principais propostas tributárias em tramitação no Congresso (duas PECs e o PL do CBS) esse movimento desejado por Bolsonaro jamais seria possível tecnicamente. Bolsonaro também avançou em seara que não é a sua e divulgou nesta sexta-feira projeto que altera a forma de tributação do ICMS de combustíveis, imposto dos governadores.

Com uma lista bilionária de isenções tributárias para compensar a redução do PIS/Cofins, o presidente até agora não teve coragem de pegar a sua caneta bic e botar a assinatura para cortar alguma delas e compensar a redução da arrecadação com a medida, uma exigência das leis de Responsabilidade Fiscal e de Diretrizes Orçamentarias (LDO) de 2021. Nada agradou.

A compensação teria de ser ou pela via de aumento de arrecadação ou corte de despesas. No primeiro caso, só há dois caminhos: aumentar alíquota de impostos ou passar a tesoura nas isenções e outros benefícios tributários.

Cortar despesas não dá nem para contar, diante da pouca disposição vista nos últimos seis meses para buscar espaço fiscal para dar o auxilio aos mais pobres do País dentro do Orçamento.

A solução que o presidente Jair Bolsonaro botou a área jurídica do governo para quebrar a cabeça é garantir a medida justamente sem precisar compensar. Tudo isso sem falar no problema central da discussão de prioridades quando o cobertor é curto. Vale a pena perder bilhões de arrecadação com essa desoneração? O próprio presidente disse e repetiu que o Brasil está quebrado. 

Esse tipo de articulação sabota qualquer tentativa de mudança mais profunda da reforma tributária, que continua com um cenário nebuloso mesmo depois do anúncio do “acordo” político entre os presidentes da Câmara e do Senado para ela ser aprovada em oito meses.

O curioso é que, se algo andar na reforma tributária, teremos os mesmos dilemas do ano passado. Afinal, nada foi resolvido ano passado. Cenário que faz com que os defensores da não reforma ganhem espaço. E eles são muitos.

Com esse quadro nebuloso, tem gosto para tudo. Focar na PEC 45 da Câmara, reforçar o substitutivo elaborado pelos Estados, colocar as fichas na PEC 110 do Senado, esquecer as PECs e concentrar no CBS do ministro Paulo Guedes, começar pela desoneração da folha com uma nova CPMF ou dar o pontapé inicial numa reforma que reduza os privilégios dos mais ricos para beneficiar os mais pobres.

Na semana passada, o mercado financeiro tremeu com ruídos sobre aumento da tributação dos bancos.

Os tributaristas que acompanham no detalhe a tramitação da reforma já fizeram até uma listinha das perguntas sem respostas depois do acordo que manteve o funcionamento da comissão mista de reforma, sob o comando do senador tucano Roberto Rocha (MA) e relatoria do deputado Aguinaldo Ribeiro (PB).

É certo que Ribeiro não vai querer apresentar agora o seu relatório para a votação do parecer só em outubro e muito menos deixar que o texto comece a tramitação pelo Senado. Da Câmara ou Senado, o texto terá que seguir.

Na lista: indefinição dos próximos passos da tramitação; incógnita se Aguinaldo vai mesmo apresentar o relatório; ressurreição da PEC 110 e suas marcantes diferenças com a PEC 45; a nova CPMF, que pode vir tanto para bancar aumento de gastos como para reduzir a tributação da folha de salários; a PEC 128 de reforma que corre por fora; a CBS, que é a preferida Guedes, mas tem aumento da carga tributária; e o “esquecimento” da ideia da tributação de dividendos.

Por enquanto, a reforma tributária vive uma baita crise de identidade.


Pablo Ortellado: Auxílio é viável e é urgente

Congresso e governo discutem uma reedição do auxílio emergencial, em nova versão. A medida é viável, no tocante às regras fiscais, e urgente, do ponto de vista social.

A pobreza extrema, que chegou a ser reduzida para 4,5% em agosto de 2020, com a primeira edição do auxílio, subiu para 12,8% em janeiro de 2021. São 27 milhões de brasileiros vivendo com menos de R$ 246 ao mês. Temos, além disso, 14,1% da força de trabalho desocupados, com os índices do segundo semestre de 2020 atingindo o nível mais alto de toda a série histórica. São 14 milhões de trabalhadores.

Depois de idas e vindas, o governo lançou a ideia de um auxílio enxuto, de R$ 200 e distribuído para cerca de metade dos beneficiários de 2020. Mas Congresso e sociedade podem pressionar o governo a entregar mais.

O auxílio não é apenas despesa, mas também estímulo à atividade econômica, como mostrou estudo da Faculdade de Economia e Administração da USP. Quando recebem o auxílio, as famílias aumentam o consumo, estimulando as expectativas de vendas das empresas e o investimento privado.

O estudo da USP estima que o efeito estabilizador do auxílio sobre o Produto Interno Bruto em 2020 foi o grande responsável pela sua redução em apenas 4,1%, sendo que o mercado chegou a estimar uma queda do PIB de 11% —que, afinal, terminou sendo aproximadamente a redução do PIB na maioria dos outros países latino-americanos.

O governo tem a oportunidade de corrigir e melhorar os instrumentos de implementação da política, aperfeiçoando a integração dos cadastros da Receita Federal, emprego, servidores públicos e óbitos. A falta dessa integração, em 2020, fez com que muita gente que precisava desesperadamente do auxílio não tivesse tido acesso ao benefício, e muita gente que não precisava tanto tivesse ganhado.

O valor também pode ser majorado para R$ 300 ou mesmo R$ 350, já que R$ 200 certamente não é suficiente para enfrentar a pobreza extrema. Esse valor proposto, de R$ 200, é a retomada da velha ideia de Paulo Guedes de fazer um programa que não compita com o Bolsa Família, que paga aproximadamente esse montante por família.

Mas o valor precisa ser maior neste momento em que desemprego e pobreza atingem valores recordes. É preciso também garantir que as famílias monoparentais recebam outra vez uma cota dupla.

Há preocupação de operadores do mercado de que um programa mais amplo comprometa o teto de gastos e, com isso, ponha ainda mais em risco o equilíbrio fiscal. Mas a solução que está sendo encaminhada — fazer o novo auxílio por meio de uma combinação da concessão de crédito extraordinário (que está fora da regra do teto) e uma revisão da meta de déficit primário — permite implementar a medida sem modificar as regras fiscais vigentes.

O auxílio emergencial não é a solução de política social de que o Brasil precisa. Em algum momento será necessário reformular amplamente o Bolsa Família. Até lá, precisamos apoiar os brasileiros mais vulneráveis — e podemos fazer isso atendendo todos os que precisam e combatendo a pobreza extrema.


Ascânio Seleme: O fura fila, nenhuma surpresa

Somos um país egoísta, que esconde sua natureza com uma alegria contagiante, musical, dançante, calorosa

Escrevi os três parágrafos abaixo no início da pandemia de coronavírus, a pedido da filha de um amigo que coletava impressões sobre como sairíamos da crise sanitária que se espalhava pelo mundo:

Muita gente acha que o Brasil será melhor, que o trauma da pandemia tornará os brasileiros mais tolerantes, solidários e amigáveis. Tenho sérias dúvidas sobre isso. Somos um país egoísta, que esconde sua natureza com uma alegria contagiante, musical, dançante, calorosa. Quem nos vê rapidamente, durante uma semana de carnaval, por exemplo, acha que somos os melhores seres do planeta, amáveis, tolerantes, misturados. Trata-se de um engano. Não somos, nunca fomos e jamais seremos modelo para o mundo.

“Farinha pouca, meu pirão primeiro” é um velho adágio popular que mostra bem como pensa o brasileiro. Uma outra máxima, conhecida como a “Lei do Gerson”, foi expressada em um comercial dos anos 1970, em que o velho craque da seleção e do Fluminense afirmava que “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo”. Verdade. Somos isso mesmo, não adianta querer negar. E temo que esse modo degenerado de ver o mundo seja intensificado depois da pandemia de coronavírus. Os bons exemplos são poucos, é necessário garimpar muito fundo para encontrar casos que mereçam destaque. Quando os encontramos, batemos bumbo, fazemos festa, damos prêmio.

Não somos solidários, não somos caridosos, não somos filantropos e também não somos voluntários. Alguém certamente dirá que estou sendo rigoroso com o brasileiro, que há muitos generosos e amorosos entre nós. É verdade, mas nem por isso dá para ser complacente com os demais. O futuro mostrará se estou errado, mas acho que sairemos dessa mais egoístas e sectários. Nossa xenofobia e nosso racismo serão ainda mais escancarados, porque o brasileiro não terá que se desculpar ao ultrapassar os limites, pois entenderá, equivocadamente, estar se defendendo. A máscara da cordialidade se esgarçará mostrando melhor a verdadeira face do brasileiro.

Exagerei? Talvez pudesse fazer esta pintura com menos tintas. Mas veja agora o caso dos fura filas da vacina. Eles estão espalhados pelo Brasil, são milhares os até aqui descobertos, deve haver muitos mais. São o retrato mais fiel do malandro, que está sempre procurando uma brecha para melhor se encaixar e ter alguma vantagem em relação a todos os outros. São impulsionados pela cultura nacional do jeitinho, do golpe, da maracutaia, do manda quem pode. Você sabe como a coisa funciona. Se olhar ao seu redor, vai rapidamente identificar alguns desses espertalhões.

Em alguns casos, pode-se até entender, embora não justificar, o esforço de muitos brasileiros em superar obstáculos para chegar antes, para obter alguma vantagem. Num país tão desigual como o nosso, em que 55 milhões vivem abaixo da linha de pobreza, há os que fazem qualquer tipo de malabarismo para levar meia dúzia de pães e um litro de leite para casa. Estes lutam pela sobrevivência, mas acabam cometendo crimes previstos no código penal, o que obviamente é inadmissível.

E então chegamos aos fura filas da vacina. Além da já mencionada cultura brasileira que enaltece e valoriza o malandro, o que se vê nos dias atuais é a negação sistemática do politicamente correto pregada pelo presidente Jair Bolsonaro, seus zeros e sua tropa cega e burra. O exemplo de cima é excelente para quem quer chegar antes ao fim do jogo pulando casas. No episódio em que quis nomear o zero fritador de hambúrguer para a embaixada nos EUA, Bolsonaro disse o seguinte: “Lógico que é filho meu, pretendo beneficiar filho meu, sim. Se puder, dou filé-mignon para meu filho”.

Se o presidente decide questões de Estado puxando a brasa para o seu filé, imagine como seu povo reage. Estimulado, tende a seguir o exemplo do mito. E, já que não pode nomear seus filhos para uma embaixada, vai dando jeitinhos aqui e ali, furando uma filinha de vez em quando, buscando vantagens para si, para parentes e amigos, se lixando para os demais. Este é o Brasil que construímos ao longo dos anos e cujas estruturas reforçamos elegendo Jair Bolsonaro.

Sua majestade

O que Arthur Lira quer é conforto. Uma sala maior, com uma vista mais agradável. O gabinete atual da presidência da Câmara é pequeno, a sala privada do presidente é até acanhada. Então, ele resolveu remover a imprensa, retirando mais de cem veículos credenciados na Câmara do seu local tradicional de trabalho para lá instalar-se majestaticamente. Segundo o vereador Chico Alencar (PSOL), seria como transferir as cabines da imprensa esportiva para o subsolo do Maracanã. Do comitê, os jornalistas têm acesso direto ao plenário e ampla visão do gramado em frente, onde ocorrem as manifestações populares, contra ou a favor de qualquer coisa. Somente presidentes pequenos como Lira, Arlindo Chinaglia e Eduardo Cunha cogitaram esta mudança. O maior de todos, Ulysses Guimarães, presidiu a Câmara, a Constituinte e a República daquela sala acanhada. Sem reclamar e sem ameaçar os jornalistas.

A quem incomoda

A Lava-Jato incomodou mais por ter alcançado gente graúda do que pelos pecados que cometeu. Que história é essa de prender empreiteiros, recuperar dinheiro desviado e cobrar multas de empreiteiras só porque se serviram dos cofres públicos como se fossem contas privadas? Que desplante. E, depois, como assim prender deputados, senadores e até dois ex-presidentes do Brasil somente porque se valeram de benefícios de particulares enquanto exerciam cargos públicos? Que exagero.

Verdade real

Há um princípio na jurisprudência que poderia servir a Sergio Moro caso o Supremo Tribunal Federal aceite o pedido da defesa do ex-presidente Lula e não rejeite sumariamente a arguição de suspeição do ex-juiz da Lava-Jato. Trata-se da “busca da verdade real”. Por ele, a Justiça não pode se satisfazer com a realidade formal dos fatos, mas sim buscar que o ius puniendi (direito de punir do Estado) seja efetivamente produzido. Neste caso poderia até caber ao juiz orientar o Ministério Público em processos penais.

Resultados

O senador Rodrigo Pacheco, recém-eleito presidente do Senado com o apoio do presidente Bolsonaro, já começa a produzir resultados para o governo. Ele está sentado em cima do pedido para a abertura da CPI da Pandemia, como se não fossem evidentes os erros e as omissões oficiais no combate ao coronavírus. Na quinta, Pacheco disse que esperava o depoimento do ministro Pazuello no plenário da Casa para ver se, depois dele, ainda seria necessária a CPI. Ninguém confunde por acaso um debate no plenário com o poder de fogo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito.

Ciumento

A decisão de não convidar Hamilton Mourão para a última reunião ministerial evidencia mais uma vez como é pequeno o presidente do Brasil. Não se sabe se ele se parece mais com um menino mimado ou um marido ciumento. O que se sabe com certeza é que atitudes como aquela comprovam que o principal líder nacional segue envergonhando o país e seus cidadãos.

O Brasil aguenta

O presidente do STF, Luiz Fux, está enganado. O Brasil aguenta, três, quatro ou quantos impeachments forem necessários. Primeiro porque, pela letra da Constituição, crime de responsabilidade deve ser punido com o afastamento do presidente. Segundo, o Brasil consolidou o seu presidencialismo parlamentar. Já testou e viu que funciona bem a cassação do mandato de um presidente criminoso. Trata-se de um modelo, do modelo brasileiro. O que o Brasil não pode é aguentar mais um golpe de Estado, como aquele sugerido pelo próprio Jair Bolsonaro, que um dia disse que daria um golpe e fecharia o Congresso se fosse eleito presidente. Ou que defendem seus três zeros. Um deles afirmou, Fux deve se lembrar, que para fechar o Supremo não precisa nem de um jipe, bastariam um soldado e um cabo.

Democracia jovem

O sentimento de Fux é compartilhado pelos que dizem que a democracia no Brasil ainda é jovem e precisa de cuidados especiais. Não é e não precisa. Se considerada desde a Anistia, tem 42 anos; desde o primeiro presidente civil, tem 36; da Constituinte, 33; do primeiro presidente eleito pelo voto direto, tem 32 anos. Democracia madura como a nossa se preserva exercitando-a. Ao votar o segundo impeachment de Donald Trump, o Congresso dos EUA está fazendo exatamente isso, fazendo funcionar sua democracia, que tem mais de 230 anos.

Abismo

Quem assistiu na íntegra a transmissão da sessão em que deputados democratas defenderam o impeachment de Donald Trump notou a diferença abissal entre aqueles parlamentares e os nossos similares nacionais. Estavam preparados, com argumentos sólidos, detalhes históricos e denúncias novas. Aqui, como já se viu no passado, as sessões são palanques onde eleitores, amigos e famílias são lembrados e, em muitos casos, exaltados.

Acelerado

O secretário da Fazenda do Rio, o deputado Pedro Paulo, não tem tempo a perder. Ele ouve podcasts por uma hora todas as manhãs. Mas as horas rendem porque os áudios são tocados em ritmo acelerado, de 1.2 ou 1.5 acima da velocidade normal. A coisa é tão grave que até filmes e séries no streaming ele assiste em velocidade alterada. O secretário diz que aprendeu a técnica com o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), que ouve todo tipo de áudio com velocidade até duas vezes maior.

Faz diferença

Luiza Trajano deu um exemplo de cidadania ao propor a participação de empresários no apoio logístico, material e financeiro ao processo de vacinação dos brasileiros contra o coronavírus. Por isso, aliás, começa a ser torpedeada pela tropa bolsonarista. Que tragédia virou essa gangue presidencial.

Saudades do vovô

Incrível a falta de habilidade do ex-prefeito ACM Neto no episódio da eleição para a presidência da Câmara. Ficou evidente a distância que o separa do verdadeiro ACM, seu avô, Antônio Carlos Magalhães, ou do seu tio Luiz Eduardo. Se o tio não tivesse morrido tão cedo, a esta altura Neto seria dono de uma concessionária da Ford em Salvador.

Cantinho do moreno

ACM Neto saiu menor do embate contra Rodrigo Maia e em favor de Bolsonaro.


Demétrio Magnoli: A vacinação como espetáculo

No lugar de imunizar, fazemos o que realmente queremos: linchar pessoas malvadas

No Brasil, em média, vacinamos menos de 300 mil por dia. Sem escassez de imunizantes, seríamos capazes de vacinar perto de 2 milhões. Mas, mesmo agora, poderíamos vacinar facilmente 600 mil. A lentidão, que amplifica as mortes, não escandaliza quase ninguém. A indignação concentra-se na já lendária figura do fura-fila. É que, de fato, mais que vacinar, queremos colocar todo mundo no seu lugar numa hierarquia de prioridades. Na sociedade do espetáculo, passar julgamento moral vale mais que salvar vidas.

A cidade do Rio reservou um dia inteiro para cada grupo etário de um ano, dos 99 aos 80. Vacinas e enfermeiros despendem horas ociosas, diariamente, à espera do idoso "certo". Legal, isso: garante que o idoso de 89 anos não passe na frente do camarada mais velho, de 93, participante de um grupo de maior risco. São Paulo foi na mesma linha, economizando só um pouco do ridículo: reservou uma semana completa para a faixa dos 90 anos ou mais. Nas unidades de saúde, manhãs inteiras passaram na janela sem a presença de um único "vacinável". Bem planejado: assim, evitamos aglomerações.

A fila perfeita é, claro, imperfeita. Profissionais de saúde, nossos heróis, vêm primeiro. Daí que imunizamos psicoterapeutas de 60 anos que trabalham online antes de gente comum com mais de 80 anos. A parcimônia cumpre função não divulgada: vacinando bem devagar, escapamos do vexame de interromper a campanha por esgotamento das doses —e, portanto, o governo federal oculta seu atraso na aquisição de imunizantes. Por essa via, na sociedade do espetáculo, o negacionismo de direita estabelece uma aliança tácita com o humanismo de esquerda.

"Somos um país só!", gritou o Ministério da Saúde na deflagração da campanha da vacina, dizendo nas óbvias entrelinhas que o comando pertence ao governo federal (Bolsonaro), não ao governo paulista (Doria). Mas, num "país só", a estratégia de imunização em cenário de escassez priorizaria as regiões mais afetadas, que são também os berços de cepas mutantes do vírus. O Amazonas tem cerca de 510 mil habitantes com mais de 50 anos. Já poderíamos ter injetado a primeira dose em todos eles, sem deixar de vacinar os agentes de saúde da "linha de frente" e parcela dos idosos do país inteiro, se o slogan de Pazuello fosse mais que uma peça de propaganda política.

O governador de Nova York, Andrew Cuomo, não desconhece o efeito narcótico da fotografia da fila perfeita. Lá no começo, determinou a imunização exclusiva dos profissionais de saúde —e decretou multa de US$ 1 milhão para quem vacinasse algum fura-fila. Resultado: uma campanha em ritmo de tartaruga manca, em cenário de abundância de doses. Cuomo só mudou de ideia quando emergiram imagens de ampolas descartadas por vencimento de prazo, saltando do zero ao infinito para autorizar a vacinação de todos os idosos com mais de 65 anos. Na sociedade do espetáculo, é a foto errada, não a razão, que provoca correções de rumo.Quantos artigos destinados a envergonhar fura-filas já foram publicados na Folha? Compare o espaço preenchido por eles com aquele destinado a questionar a eficácia prática de nossos critérios de vacinação. O cotejo oferece uma janela para a paisagem banhada de sol da hipocrisia nacional.O julgamento moral, fundamento da cultura do cancelamento, está na moda. Apontar o dedo acusador para o fura-fila legal (a psicoterapeuta online) ou ilegal (o estudante de medicina que nunca entrou num hospital) confere prestígio social, uma almejada recompensa psicológica.

A eficácia da vacinação depende de sua abrangência demográfica, pois todos estaremos imunes se a ampla maioria for imunizada. Mas preferimos esquecer isso para tratar a vacinação como questão individual. Por meio desse truque, no lugar de vacinar, fazemos o que realmente queremos: linchar pessoas malvadas.


Alberto Aggio: O fim da guerra e a antecipação da batalha por 2022

No início do mandato, movido pela euforia, Bolsonaro optou por uma “guerra de movimento” cujo objetivo era o estabelecimento de um regime iliberal autoritário. Confrontou o STF, o Congresso e um conjunto de instituições. Sem uma milícia realmente atuante nos padrões do fascismo, exagerou e teve que mudar de estratégia: adotou gradativamente a “guerra de posições”.

A mudança necessitava novos arranjos. Mas veio a pandemia e o cenário se complicou. Uma ruinosa gestão sanitária o impediu de ganhar posições significativas, vieram as fraturas no governo e a queda na popularidade. A derrota nas eleições municipais sinalizou que só havia uma saída: aprofundar suas relações com os partidos do Centrão para garantir uma blindagem contra o impeachment, mantendo ainda o discurso reacionário para assegurar suas bases originais.

Bolsonaro versus Doria, um dos embates em torno da eleição presidencial de 2022

A “guerra de posições” dá agora seus primeiros resultados positivos: a vitória nas eleições para as presidências da Câmara dos deputados e do Senado. Na Câmara, venceu com candidato próprio e no Senado com quem não o fustiga diretamente. Mas, o mais importante é que derrotou em campo aberto tanto Rodrigo Maia, ex-presidente da Casa, quanto João Doria Jr., governador de São Paulo, visto por Bolsonaro como seu principal antagonista na corrida presidencial de 2022.

Apesar de ir em sentido contrário à queda na popularidade denotada nas pesquisas, a vitória no Legislativo altera muita coisa. A “aliança” com o Centrão relativiza o discurso bolsonarista como a única voz do poder. Apesar de ensaios, a bolsonarização de políticos do Centrão não parece ter estofo para se manter. Mas a reviravolta dá claros poderes a um grupo político que vive de recursos e cargos. Para se blindar, Bolsonaro cede poder e sua metamorfose ganha nova figuração.

Tudo parece indicar que, com a conquista da Câmara e a neutralização do Senado, a guerra cede lugar à política, a uma política pragmática que pode ir do conluio dos negócios privados à retomada de um discurso da “tradição republicana brasileira” (Werneck Vianna) de elogio à modernização e ao moderantismo. A partir de agora, o poder terá que buscar o equilíbrio entre os atores que dão sustentação ao governo: o Centrão, com sua imensa diferenciação de personagens; os militares governistas, deslizando para uma posição coadjuvante; e o bolsonarismo raiz, em posição secundária. Não à toa projeta-se uma reorganização ministerial que poderá mudar inteiramente a cara do governo, embora não se saiba ainda o que irá prevalecer: se Bolsonaro será capaz de comandar o Centrão ou se o Centrão subordinará Bolsonaro ou mesmo o anulará.

Uma mirada mais ampla, que ultrapasse a conjuntura, poderia apresentar avaliações curiosas. Uma delas diz que Bolsonaro poderia ter estabelecido um “governo militar sem AI5” e que a “alternativa Centrão” salvou o país de um “ensaio fascista”. Assim, o Bolsonaro que deve se apresentar em 2022 carregará as ambiguidades das metamorfoses que sofreu e não tem como ser idêntico ao de 2018.

A crise nas oposições repercute diretamente no PSDB

Desnecessário dizer que o cenário se alterou também para as forças que se mostravam contrarias a Bolsonaro. O comportamento divisionista do Democratas, especialmente na Câmara, quebrou a espinha dorsal do bloco oposicionista que deveria agregar MDB, PSDB além de parte da esquerda. A derrota acarreta duras repercussões às forças do campo democrático, ampliando suas dificuldades de coesão. O Senado escapou da debacle porque o candidato eleito mostrou-se distinto do bolsonarismo e maleabilidade suficiente para não confrontá-lo.

A resultante é de aprofundamento das divisões no interior do “centro político” e entre este e a esquerda, além das discrepâncias internas em cada força política, o que faz emergir um conjunto de novos atritos e dificuldades, tardando a que se encontre um novo rumo. Nesse cenário, se a sedução por um oposicionismo frouxo a Bolsonaro aumenta, a fórmula salvadora da “frente democrática” se mostra de difícil efetivação.

Num contexto de “democracia de audiência” e de aberta competição eleitoral, a ideia de frente democrática só tem sentido se for ressignificada. Sabendo que não partirá do PT – ele nunca aceitou a lógica e a composição das frentes contra o autoritarismo –, só terá lugar se o centro político conseguir formata-la em torno de uma candidatura competitiva que apresente propostas de superação da crise sanitária e econômica, e avance uma pauta concreta de reformas que reorganize o Estado, enfrentando a desigualdade social e recolocando o país numa perspectiva de cooperação mundial, recuperando sua vocação cosmopolita perdida nos últimos anos.

Caso contrário, restarão essas premissas como referencial às candidaturas de perfil democrático contra a de Bolsonaro, na expectativa de que o nosso sistema eleitoral de dois turnos seja terreno para uma competição eleitoral que não impeça a unidade em torno de uma proposta reformista em favor da reorganização política da Nação.


O Estado de S. Paulo: Nas Forças Armadas, dinheiro público pagou de lombo de bacalhau a uísque 12 anos

Em representação à PGR, deputados detalham gastos de militares com alimentação e bebida

André Borges, O Estado de S.Paulo

O cardápio de iguarias consumidas pelas Forças Armadas não se limitou à aquisição de milhares de quilos de picanha e garrafas de cerveja ao longo de 2020. Os dados oficiais mostram que a dieta verde oliva também incluiu, no ano passado, a compra de itens como milhares de quilos de lombo de bacalhau – lombo, não o peixe desfiado, que é bem mais em conta –, além de uísques 12 anos e garrafas de conhaque.

As novas informações reunidas pelos deputados do PSB serão anexadas à representação que o partido fez à Procuradoria-Geral da República (PGR), para pedir esclarecimentos sobre os gastos alimentares das Forças Armadas, os quais incluíram a compra de mais de 700 mil quilos de picanha e 80 mil cervejas.

Os dados oficiais, obtidos a partir de informações que são repassadas pelos próprios militares ao Painel de Preços do Ministério da Economia, mostram que, no ano passado, foram aprovados processos de compra de 140 mil quilos de lombo de bacalhau, além de outros 9,7 mil quilos de filé do peixe salgado.

Em uma das compras registradas pelos militares, consta um pedido homologado pelo Comando da Aeronáutica, para aquisição de 500 quilos de lombo de bacalhau, em que o preço de referência usado pelo órgão público foi de nada menos que R$ 150 o quilo. Esses pedidos, uma vez homologados, ficam à disposição dos órgãos, para que façam suas compras com os fornecedores aprovados.

Muitos copos de uísques e conhaques também foram brindados com o uso do dinheiro público. O 38.º Batalhão de Infantaria, por exemplo, comprou dez garrafas do uísque Ballantine’s, mas desde que fosse com 12 anos de envelhecimento. O preço da garrafa proposto foi de R$ 144,13.

Já o Comando da Marinha preferiu adquirir 15 garrafas de Johnnie Walker, também com 12 anos de envelhecimento, o chamado “Black Label”. O valor que se dispôs a pagar para cada unidade foi de R$ 164,18.

Conhaques mais populares também entraram na lista do Batalhão Naval da Marinha. Em setembro do ano passado, o órgão aprovou o registro para compra de até 660 garrafas de conhaque das marcas “Presidente” e “Palhinha”, com preço unitário proposto de R$ 27,06.

“É um poço sem fundo. Quanto mais investigamos, mais absurdos e irregularidades encontramos. Se não bastasse o governo comprar picanha e cerveja, ainda tem o corte mais caro do bacalhau, uísque e conhaque e com indícios de superfaturamento”, diz o deputado Elias Vaz de Andrade (PSB-GO), que está entre aqueles que assinam a representação enviada ao procurador-geral da República, Augusto Aras, para que investigue os gastos militares. “Além da PGR, eu e mais nove deputados do PSB vamos levar essas informações ao Tribunal de Contas da União. Também estamos discutindo propor a instalação da CPI das compras do governo na Câmara Federal.”

Defesa

A reportagem questionou o Ministério da Defesa sobre cada uma das novas informações. A pasta, no entanto, não se manifestou sobre esses dados até a conclusão desta reportagem. Na quinta-feira, por meio de nota, o ministério afirmou que “reitera seu compromisso com a transparência e a seriedade com o interesse e a administração dos bens públicos” e que “eventuais irregularidades são apuradas com rigor”.

Segundo o Ministério da Defesa, “existe sempre uma significativa diferença entre processos de licitação e a compra efetivamente realizada, cuja efetiva aquisição é concretizada conforme a real necessidade da administração”.

Assim, “é imprescindível que se faça essa segmentação adequada, quando se faz a totalização dos valores, interpretação e principalmente a divulgação pública destes dados, de modo a evitar a desinformação”, afirma o ministério.

De acordo com a pasta, “apresentar valores totais de processos licitatórios homologados como sendo valores efetivamente gastos constitui grave equívoco”, afirma a nota, referindo-se aos dados incluídos na representação. No documento apresentado à PGR, entretanto, os deputados exibem dados detalhados com a identificação da compra realizada e seu referido fornecedor.

Elias Vaz afirmou que se trata de processos já concluídos e com fornecedores escolhidos pelos militares. “Estamos denunciando esses processos licitatórios. Essas empresas tiveram suas propostas aprovadas, por esses valores. Há processos de compra concluídos e, inclusive, já efetivamente pagos. Todos eles foram homologados pelas Forças Armadas”, disse o deputado.

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Marco Aurélio Nogueira: Implosão do DEM pode ajudar a que se saia do marasmo

Dissonâncias no partido permitem que se veja melhor quais são os planos e as ambições das distintas correntes

Embora algum estrago tenha provocado de imediato, não é propriamente ruim, para a democracia e a dinâmica política que nos levará a 2022, que tenha havido uma “implosão” no DEM e muito barulho no PSDB em função das dissonâncias e deslealdades ocorridas na eleição dos presidentes do Congresso Nacional.

Seria possível incluir o MDB nesse grupo, especialmente porque suas bancadas traíram Baleia Rossi na Câmara e Simone Tebet no Senado. Mas o MDB foi o que tem sido desde que cedeu ao fisiologismo e perdeu densidade programática, entregando-se às flutuações do jogo político miúdo. O MDB tornou-se um partido de alta elasticidade, que vai para o lado que oferece mais vantagens.

O DEM e o PSDB, porém, não queriam ser assim. Insistiam em afirmar um perfil de centro-direita com leves inflexões à esquerda. E se vangloriavam de ser o esteio de uma articulação liberal-democrática ampla o suficiente para derrotar o petismo e o bolsonarismo em 2022. Tiveram bom desempenho nas eleições municipais do ano passado, mas não conseguiram imprimir velocidade ao jogo, nem manter unidas suas tropas. Ao contrário, vieram à tona todos os personalismos e os mais variados interesses que se abrigavam nas duas legendas. A dispersão foi aguda.

A implosão do DEM, agora, com as rusgas públicas entre Rodrigo Maia e ACM Neto, paralisa operações que estavam em curso, mas, ao mesmo tempo, põe as cartas na mesa e aumenta a transparência: permite que se veja melhor quais são os planos e as ambições de cada corrente.

Parte dos demistas está no terreno de um fisiologismo dissimulado, encapuçado, o que não é propriamente uma novidade ou uma mudança de posição. O presidente nacional da legenda, ACM Neto, é um defensor destemido da “independência” do partido, que não deveria se conduzir pelo posicionamento oposição ou governo. Depois das eleições no Congresso, bateu bastante em Rodrigo Maia (um “passional” que se “apegou ao poder”) e esclareceu que “jamais estaria com o governo Bolsonaro”, cujo foco é mais eleitoral que de governo.

Outros, como Rodrigo Maia, partiram para proclamar sua oposição ao governo atual e para defender a formação de uma ampla frente oposicionista. Estão sendo abraçados por João Dória, o que complica um pouco o discurso, dados o caráter camaleônico e a falta de imagem do governador paulista. Para piorar, Dória resolveu usar o convite a Maia como recurso para travar a luta interna no partido, propondo o afastamento do deputado Aécio Neves, o que gerou pronta resposta do parlamentar mineiro: o “destempero do governador paulista” nada mais seria do que uma “fracassada tentativa de se apropriar do partido”, uma legenda que não tem dono.

Se Maia e seu grupo se soltarem de fato do DEM, poderão ajudar não só a fortalecer o partido de destino como contribuir para que se saia do discurso genérico da frente democrática. Que uma articulação é necessária o sabem todos os pássaros brasileiros. O problema é que não se sabe como alcançá-la com inteligência, senso de oportunidade e respeito às circunstâncias. Faltam ideias, iniciativas, lideranças públicas reconhecidas, disposição de luta. Sobram interesses, cálculos, justificativas e temores. Há ressentimentos e desejos de vingança, espalhados entre os mais radicais e os mais moderados. As esquerdas, que poderiam ser um poderoso combustível para a operação, enroscam-se em seus próprios dilemas.

Uma boa sacudida na institucionalidade partidária existente poderá ajudar a que se saia do marasmo. E, mesmo que por vias tortas, contribua para manter em circulação a ideia de uma articulação democrática que seja competitiva no País, seja para desenhar um programa de atuação que reverbere efetivamente, seja para sustentar uma candidatura para 2022.

*Professo titular de Teoria Política da Unesp


Roberto Freire: Huck deve decidir até o meio do ano sobre candidatura presidencial

O presidente nacional do Cidadania defende uma alternativa a Bolsonaro e ao PT em 2022

Alessandra Kormann, Brasil Independente

Em entrevista exclusiva ao Brasil Independente, Roberto Freire falou sobre as possibilidades atuais da candidatura de Luciano Huck à Presidência da República em 2022 pelo Cidadania, depois dos rachas em outros partidos nas eleições no Congresso Nacional.

Segundo o presidente nacional do Cidadania, a decisão de Huck deve ser tomada até o meio do ano para que se possa começar a trabalhar a pré-campanha. “Não cabe a gente pressionar, o tempo é dele. Ele é que sabe quando terá que decidir. Ele também está consciente de que não tem todo o tempo do mundo.”

Freire é um entusiasta da candidatura do apresentador da Globo. “O Cidadania imagina que Huck seja a melhor alternativa que nós tenhamos para derrotar Bolsonaro. E ao mesmo tempo não queremos o retorno do lulismo, isso não dá, é passado, o país tem que olhar para a frente.”

No caso de Huck não se candidatar, Freire ainda não sabe quem o seu partido deve apoiar. “Uma coisa eu digo: não será nenhum lulista e será uma candidatura de oposição clara e firme a Bolsonaro.”

Freire falou ainda sobre a possibilidade de filiação ao Cidadania de Rodrigo Maia e, para disputar o governo de São Paulo, de Geraldo Alckmin.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida por telefone.

Como o senhor avalia o governo de Jair Messias Bolsonaro? Podemos esperar o Cidadania na oposição ao governo nos próximos dois anos e na eleição de 2022?

Claro. É um péssimo governo. O Cidadania inclusive está defendendo o impeachment. É um governo irresponsável, por todos os seus atos, o negacionismo, propostas antidemocráticas, desrespeito à Constituição. O que não faltam são crimes de responsabilidade, alguns crimes comuns no enfrentamento da pandemia, que demonstram um governo desastroso, o que torna imperioso um impeachment.

O Cidadania chegou a entrar com algum dos mais de 60 pedidos de impeachment contra Bolsonaro?

Não, porque não é momento disso. A gente está no momento de ter um pedido de impeachment aceito e tramitando no Congresso.

Agora com a eleição da nova Mesa Diretora, como o senhor avalia a possibilidade do novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), pautar o impeachment?

Agora não tem nenhuma condição. Ninguém está propondo o impeachment para hoje ou amanhã, ainda não tem condições objetivas para isso. Falta mobilização, falta a maioria ampla da sociedade concordar com a tese de que é melhor encurtar esse mandato para que nos próximos dois anos o país tenha um outro governo, tal como a sociedade brasileira viu isso com Collor e com Dilma. No momento em que isso ocorrer no seio da sociedade, não tenha dúvida de que você terá mudanças também no Congresso Nacional.

O senhor acredita que, depois que a grande maioria do povo estiver vacinada e puder voltar para a rua, vai haver uma pressão popular e esse tipo de manifestação tende a ganhar corpo?

Acredito que sim, porque você vê hoje a sociedade brasileira se mobilizando para ter vacina. E está percebendo que a ação desidiosa e criminosa de Bolsonaro gera problemas, como o ritmo da vacinação, que é lento porque o governo não cuidou de ter vacina, de tornar o processo ágil e rápido.

Como o senhor avalia a importância de uma frente ampla para combater esse governo? O Cidadania vem participando do movimento “Janelas Pela Democracia” junto com PDT, PSB, Rede e PV. Pode estar se desenhando uma aliança em torno desses cinco partidos para 2022?

Não. A questão da luta contra o governo Bolsonaro não implica que em 2022 vai haver essa unidade. Se for possível, ótimo. Agora, num segundo turno, se houver uma disputa contra Bolsonaro, vai ter essa unidade sem nenhuma dúvida.

Mas para o primeiro turno o senhor não acredita que seja possível?

Para o primeiro turno, não se pode dizer. O que se pode afirmar é segundo turno. Para o primeiro, se você tivesse condições de unir todas essas forças, seria ótimo. Mas não adianta a gente falar, por exemplo, com o PT, que não consegue nem dialogar antes com seus aliados históricos, como o PSOL, e já lançou um candidato.

Como o senhor viu o lançamento da candidatura de Fernando Haddad, no caso de Lula não recuperar os seus direitos políticos?

Ele tem todo o direito de fazer o que quer. Agora, respondendo à sua pergunta anterior, ele não faz nenhuma questão disso [a formação de uma frente ampla]. O Cidadania não está muito preocupado com essa posição. Agora não tenha dúvida de que o PSOL está preocupadíssimo, provavelmente PDT, PSB, PC do B, que estavam todos na base do governo Lula e Dilma, embora Ciro tenha se afastado na última eleição em 2018. E continuam juntos na oposição a Bolsonaro. Nós estávamos numa articulação que foi desarranjada agora, com as atitudes do DEM, do PSDB, as suas divisões internas [na eleição no Congresso Nacional] criaram problema para uma aliança mais ao centro contra Bolsonaro.

Uma aliança possivelmente em torno do Luciano Huck como candidato? O senhor já demonstrou simpatia e entusiasmo com a candidatura do apresentador. Como estão essas conversas?

Não dá para dizer que Luciano Huck seria o candidato porque o PSDB está discutindo se terá Doria ou não. O Cidadania imagina que Huck seja a melhor alternativa que nós tenhamos para derrotar Bolsonaro. E ao mesmo tempo não queremos o retorno do lulismo, isso não dá, é passado, o país tem que olhar para a frente. Nós achamos que quem melhor pode representar essa alternativa é o Luciano Huck, pela sua capacidade, pela sua visão de mundo e da realidade brasileira, pelo seu entendimento concreto da nova economia e da necessidade de lutar contra a desigualdade na sociedade. Ele nos parece um excelente candidato, com chance de crescer e disputar a eleição.

Após todo o processo da eleição no Congresso, o racha no DEM, como o senhor vê hoje a possibilidade de o Luciano Huck disputar a eleição pelo Cidadania?

Não sei, é bom perguntar para ele [risos]. O que eu posso dizer da nossa parte é que a gente gostaria e trabalha para isso, para que ele se vincule ao Cidadania e com toda certeza criaremos as condições de ser uma ampla frente democrática. Não temos a ideia de que seremos sozinhos, temos que estar abertos. Mas estamos trabalhando muito para que ele faça essa opção pelo Cidadania.

O senhor conversou com ele recentemente?

Tenho conversado sim. Mas não há nenhuma decisão, e não cabe a gente pressionar, o tempo é dele. Ele é que sabe quando terá que decidir. Ele também está consciente de que não tem todo o tempo do mundo. Ele vai ter que tomar uma decisão num prazo razoável, até o meio do ano. Em meados de maio, junho, ele tem que já estar decidido.

Em qual espectro o senhor colocaria a candidatura de Luciano Huck?

Eu tenho uma compreensão de que esse referencial de direita e esquerda está passando por um momento em que não se tem nenhuma clareza do que isso significa. Você tem forças que se dizem de esquerda e que estão em posições bem reacionárias e atrasadas. E tem outras que se fala que são de direita e que estão sendo vanguarda nas mudanças que estão ocorrendo no mundo. Nós estamos em uma sociedade pós-industrial, pós-capitalista até. Então, nesse sentido está tudo muito misturado, e o que eu acho melhor dizer aonde Luciano se situa é isto: ele é um candidato progressista. Pronto. Não tem mais a direita e a esquerda tradicional do sistema capitalista. Isso acabou. Agora mesmo estava lendo que Cuba está abrindo mais de 200 setores da economia pra inciativa privada. Há quanto tempo a União Soviética foi derrotada historicamente? O que a China ensinou, depois da derrota da URSS, da queda do muro de Berlim? A China fez reformas e é hoje uma economia que está disputando no mundo a hegemonia com os Estados Unidos. Com desenvolvimento acelerado, melhoria na qualidade de vida, é um case pra se estudar. Quanto tempo Cuba perdeu até entender que o que existia já não tinha mais futuro? Então é um pouco o que está acontecendo com certas esquerdas, prisioneiras de um tempo que já não mais existe. Eu posso ainda dizer que sou de esquerda, historicamente, pelos meus valores. Agora, se eu falar isso, tem essa esquerda tradicional que vai dizer: “você não é mais de esquerda!”. E aí eu respondo que quem não é mais de esquerda é ele, que ficou perdido na história.

O senhor já foi comunista. Como vê as pessoas que chamam de comunista todo mundo de esquerda?

E há do outro lado aqueles para quem tudo que for de direita é fascista. Mas, para nós que militamos no comunismo, inclusive num tempo em que não era nada fácil ser comunista, ver os outros chamando de comunistas alguns que estiveram no governo e não mudaram nada a realidade brasileira, eu digo que é um deboche. Não estou dizendo que esses referenciais não têm importância, mas eles não estão encontrando na realidade algo concreto para que se saiba bem onde está a direita e a esquerda neste momento de transformação, de disrupção. Uma confusão muito evidente é a junção entre a esquerda mais tradicional com os mais radicais extremistas de direita na questão da globalização – ambos são contra.

Surgiu na semana passada a informação que o Cidadania poderia se fundir à Rede Sustentabilidade e ao PV para abrigar uma possível candidatura de Luciano Huck. A informação procede? Como estão as conversas?

Isso se deu muito em função desses desarranjos em alguns partidos, e aí veio a especulação de que Rodrigo Maia iria patrocinar alguma fusão. Nesse caso, lá atrás tentamos isso. Estava definido que a Rede e o Cidadania iríamos para a fusão, mas a Rede desistiu. Com o PV não avançamos muito, mas eu diria que há uma maior identidade, desde o PPS [antigo nome do Cidadania], com o PV. É uma ideia que sempre esteve nas nossas elucubrações e de alguns setores do PV, mas não tem nada de concreto neste momento. O que posso dizer da parte do Cidadania é que não temos nada a opor se porventura isso começar a se transformar em algo concreto, pelo contrário. Nós estamos abertos a esse diálogo e quem sabe pode ser uma coisa importante para o país.

Caso Huck não tope se candidatar, o Cidadania deve ir com quem? Ciro Gomes, Doria, Flávio Dino, algum nome do PT?

Não sei. Aí vamos ter que analisar. Uma coisa eu digo: não será com nenhum lulista e será uma candidatura de oposição clara e firme a Bolsonaro.

Como está hoje a sua relação com Ciro Gomes?

Não tenho nenhum problema com ele, nenhum obstáculo maior. Temos alguns desencontros de pontos de vista. O principal é que ele tem uma concepção muito nacionalista, como se as economias ainda pudessem estar prisioneiras das fronteiras dos Estados nacionais. Isso é uma tese política que pra nós do Cidadania é impeditiva para o Brasil buscar uma maior integração na economia globalizada, que pra nós é o futuro. O Brasil tem que saber como se integrar e não ter uma visão pra dentro, de proteção. Fala-se muito em soberania nacional, dentro dessa visão que o PDT tem, de defesa de algumas estatais como se fossem representantes da nossa soberania.

Então o senhor apoia a agenda de privatizações?

Eu vou contar uma história que resume tudo. Eu fui líder do governo de Itamar Franco na Câmara. E nós fomos o governo que fez as primeiras grandes privatizações no país, da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda e da Cosipa em Cubatão. Sou favorável às privatizações quando são justificáveis, não temos a questão da privatização ou estatização como princípios, mas sim como melhor eficácia da economia. Itamar Franco não era muito aberto a isso, depois foi convencido pela necessidade e fez. Alberto Goldman, já falecido, que foi do PCB como eu, era parte também do governo. Estávamos lá, eu líder e ele ministro [dos Transportes]. Então, em uma ocasião, quando nós defendíamos a privatização, Itamar brincou: “Não se fazem mais comunistas como antigamente”.

Como o senhor vê a agenda do Paulo Guedes, que inclui privatizações?

Ele não tem agenda, ele só fala em privatização e esse é um dos governos que menos privatizou, talvez com exceção de Lula, que criou muita estatal, até porque muitas delas eram facilitadoras de negociatas e corrupção. A única coisa que foi feita fora do governo Bolsonaro, algo que estava tramitando há tempo no Congresso, foi o marco regulatório do saneamento, um avanço importante. Que não é privatização, mas permite que possa haver privatizações. E a outra coisa que Paulo Guedes sabe fazer é falar de CPMF, pra ele tudo se resume a isso, e no resto é um blablablá. Ele fala bem, é um bom palestrante, agora como gestor é um desastre completo.

Mas com a eleição do Arthur Lira na Câmara e Rodrigo Pacheco no Senado, apoiados por Bolsonaro, existe a possibilidade de que eles consigam avançar com essa agenda liberal?

É o contrário. Esse centrão é estatizante, pois é nas estatais que estão os seus cargos. O centrão dificilmente vai pra privatização porque gosta, só vai se tiver um governo que faça. O centrão estava junto com o Lula estatizando. Isso é um discurso de Bolsonaro, como se o Congresso o tivesse impedido de governar. É o contrário. Ai do governo Bolsonaro se não fosse o Congresso, porque talvez nem auxílio emergencial nós tivéssemos. Esse governo é completamente incompetente. A reforma da Previdência só foi feita porque começou lá atrás, no governo Temer, e Rodrigo Maia foi o grande responsável por ela ter sido votada na Câmara dos Deputados, e no Senado Davi Alcolumbre ajudou também. Não tem nada a ver com Bolsonaro nem com Guedes, que é um incompetente.

Depois das traições na eleição para a presidência da Câmara, Rodrigo Maia pode estar de saída do DEM. Há possibilidade de ele ir para o Cidadania?

Eu conversei com ele depois da eleição, coloquei o Cidadania aberto para ele. Quem vai decidir é ele. Rodrigo Maia ainda deve demorar um tempo para decidir, não é uma coisa fácil. Quer dizer, eu não tenho nenhuma experiência nisso, nunca saí de partido. Eu era do PCB, mas como ele foi proibido na época da ditadura, aí fui pro MDB, sou fundador do MDB lá em Pernambuco. Continuei no PCB, depois mudamos pra PPS e agora Cidadania, são sucessores.

O senhor aceitaria disputar novamente uma eleição presidencial na cabeça de chapa ou como vice?

Não. É a nova geração que tem que assumir. O meu papel é articular essa nova candidatura Huck, como uma alternativa capaz de derrotar o bolsonarismo e evitar o retrocesso do retorno do lulismo.

Surgiu nas últimas semanas a informação de uma possível filiação do ex-governador Geraldo Alckmin ao Cidadania para disputar o governo de São Paulo. A informação procede? Alckmin seria bem-vindo ao Cidadania?

Muito bem-vindo. O Alckmin é uma das figuras que merece todo o nosso respeito. Foi excelente governador. Uma pena a eleição de 2018, que foi uma surpresa. Estávamos juntos e fomos derrotados. Não estou sabendo muito disso porque ainda não conversei com ele, não sei se isso corresponde a um interesse dele. Eu não sabia disso, estou surpreendido. Mas vou até procurar saber, pra mim é motivo de muita satisfação. Nem conversei com o partido, mas não tenho dúvida de que pode ser algo muito importante se ele realmente tiver ideia dessa possibilidade.

Depois do levantamento do sigilo das mensagens da Lava Jato pelo STF, aumentaram as possibilidades de os julgamentos de Lula por Sergio Moro serem anulados, restaurando os direitos políticos do ex-presidente. Como o senhor vê isso?

Eu acho um absurdo um país que não permite o uso de provas ilícitas estar discutindo isso no Supremo Tribunal Federal, quando há uma jurisprudência consolidada de que não cabe prova ilícita em nenhum momento de qualquer processo na Justiça brasileira. Isso evidentemente é vergonhoso.

O deputado estadual Fernando Cury, acusado de assediar a deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP), conseguiu suspender na Justiça o seu processo de expulsão do Cidadania. O conselho de ética do partido já opinou pela expulsão. O senhor defendeu que a questão fosse julgada pelo Diretório Nacional. Por quê? A permanência dele no Cidadania compromete a imagem do partido?

As pessoas imaginam que o partido político vai ter que fazer suas normas como se fosse um tribunal do Poder Judiciário. Não é. Nós temos que ter a ação política. Nós temos que garantir o direito à ampla defesa, e isso foi garantido a ele, agora a Justiça não pode determinar como vamos agir. Nós não vamos processar ninguém, nós podemos tomar a medida política que for indicada para que o partido tome. Eu não estou condenando ninguém, eu estou dizendo que não queremos conviver com um determinado militante, com um determinado parlamentar, com um determinado filiado. Isso é um direito do partido. O partido não tem a autonomia de dizer que não quer determinado filiado? Então entramos com recurso para suspender essa liminar que paralisou o processo, um processo político interno. Esperamos que seja derrubada essa liminar para que a gente possa decidir isso no Diretório Nacional, que é o órgão máximo do partido. O que ele fez é um fato com repercussão nacional e até internacional. Isso não é um tribunal, não é o Poder Judiciário, com primeira instância, segunda instância, tem a ver com a política, em função da repercussão. Se for alguém do Diretório Estadual, mas se o que ele praticou é de tal ordem que repercute nacionalmente, é o Diretório Nacional que tem que cuidar. A conduta dele não tem justificativa, é claramente um crime.


Luiz Carlos Mendonça de Barros: O novo espaço de Paulo Guedes

As novas condições políticas do Brasil serão uma restrição muito forte à liberdade do ministro

Uma pergunta domina hoje coração e mente dos principais agentes econômicos no Brasil: qual será a agenda do ministro Paulo Guedes depois do cavalo de pau - para usar uma expressão dos primeiros anos do governo Lula - que o presidente Bolsonaro acaba de dar na política brasileira?

A nova relação com os partidos do chamado “Centrão” certamente garante uma maior tranquilidade política ao governo, mas implica a aceitação de uma agenda na economia diferente daquela com a qual Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil. Praticamente calado durante todo o mês de janeiro - uma prova de sabedoria - em função da árdua disputa pelo controle das mesas diretoras da Câmara e do Senado, cabe a ele agora mostrar suas cartas para a definição de uma agenda econômica para 2021. A disputa eleitoral no Congresso, controlada com mão de ferro pelo Palácio do Planalto, produziu um forte rearranjo na política brasileira - o terceiro nestes dois anos de mandato do presidente Bolsonaro - e foi montado com o objetivo de preservá-lo politicamente até as eleições presidenciais de 2022 e depois, vencê-las.

E é em função deste cenário que o poderoso czar da economia brasileira na primeira metade do mandato presidencial terá que se posicionar. Não existe mais hoje o governo com uma pauta de ação política e administrativa confusa e sem maiores definições que saiu das urnas em 2018. Nele Paulo Guedes se sobressaiu com um discurso vigoroso, claro e articulado de reformas radicais no modelo econômico que prevaleceu nos últimos 10 anos no Brasil.

Seu objetivo era a construção de uma economia de mercado radicalmente liberal, tendo Roberto Campos - o simbólico ministro do primeiro governo militar - como seu inspirador.

Apesar do longo histórico político de Jair Bolsonaro se chocar com as ideias do então chamado Posto Ipiranga, houve um movimento eufórico no mercado financeiro e entre os grandes empresários, brasileiros ou não.

Embora as metas colocadas para serem executadas - R$ 1 trilhão de privatizações por exemplo - fossem ambiciosas demais para um governo sem nenhuma base política no Parlamento, milagres poderiam ocorrer, e os mercados apostaram nele.

Em março passado, esta euforia já estava desgastada quando recebeu um golpe mortal com a chegada da pandemia ao Brasil. A crise econômica que se instalou obrigou o ministro a adiar seu plano de voo e a recorrer aos velhos ensinamentos de Keynes, inimigo mortal de seu liberalismo e principal inspiração de governos anteriores. A antiga agenda foi deixada de lado e Paulo Guedes - e seu companheiro, o presidente do Banco Central Roberto Campos Neto - presidiram a implantação de um dos mais exitosos planos de enfrentamento da recessão da covid- 19 que aconteceram nas maiores economias de mercado do mundo.

Os dados, que estão disponíveis hoje, confirmam esta minha leitura quando comparados com os dos Estados Unidos e vários países da Comunidade Europeia. Um exemplo claro do êxito das medidas tomadas pela equipe econômica é a recuperação da indústria brasileira que chegou ao fim do ano com sua produção agregada acima do nível do ano de 2019.

Mas este êxito teve um custo fiscal pesado - mais de 10% do PIB - e colocou as contas fiscais e a dívida pública brasileira em uma zona de perigo dentro do protocolo do liberalismo econômico dominante nas elites brasileiras. A reação natural do ministro seria a de promover em 2021 reduções vigorosas no chamado gasto público e acelerar as reformas estruturais que consolidem um equilíbrio fiscal mais sólido para o futuro. Mas as novas condições políticas do Brasil de hoje vão representar uma restrição muito forte à liberdade de ação do ministro.

Do lado do presidente, empenhado que está na campanha de sua reeleição em 2022, não existe mais o mandato que detinha no primeiro ano de governo, como já foi ressaltado acima. Naquela época, com as eleições muito adiante ainda, as suas divagações sobre as maravilhas de uma economia liderada pelas forças de mercado serviam inclusive ao objetivo de diferenciar o governo eleito de seus inimigos históricos da esquerda e centro-esquerda.

Muito ajudou este estado quase eufórico a presença de Rodrigo Maia na presidência da Camara de Deputados com sua origem política e seus valores sinceramente liberais. Tudo apontava na direção de uma parceria histórica com chances de vencer o ranço estatizante de grande parte do Congresso e caminhar na direção de uma economia mais eficiente. Mas esta parceria não existe mais e as primeiras declarações públicas dos novos comandantes do parlamento apontam no sentido contrário.

Me impressionou muito o “body language” do presidente do Senado e do ministro Paulo Guedes em uma rápida entrevista coletiva na noite da última quinta-feira e que deixou claro duas coisas para mim: a primeira é a autoconfiança do senador por Minas Gerais, Rodrigo Pacheco, que preside o Senado, em expor suas ideias em relação à economia. Em segundo lugar, a postura compreensiva do poderoso ministro da Economia que mostrou com clareza - pelo menos para mim - que já entendeu o novo equilíbrio de forças entre Executivo e Legislativo que se seguiu ao cavalo de pau do presidente Bolsonaro.

Um novo desenho ainda não conhecido da agenda econômica em 2021 estará sendo gerado nas próximas semanas deste embate entre o Congresso e o ministro Paulo Guedes, mas com certeza será bem diferente do que os mercados previam.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.