oposição

Sergio Lamucci: Os obstáculos para a retomada da economia

Vacinação lenta, fim do auxílio emergencial, desemprego e inflação atrapalham retomada mais forte da economia

A economia brasileira começou 2021 sem o auxílio emergencial e com a vacinação em ritmo lento, o desemprego elevado e a inflação ainda pressionada. É um cenário que aponta para uma atividade fraca no primeiro trimestre, com provável queda do PIB em relação ao trimestre anterior. O auxílio, porém, deverá voltar, ainda que num valor mais baixo e por um período não muito extenso. A vacinação, por sua vez, vai avançar e, a depender do ritmo das imunizações, tende a permitir restrições menores à mobilidade, favorecendo o claudicante setor de serviços.

Nesse cenário, a economia pode voltar a ganhar algum fôlego daqui a alguns meses. Alguns fatores importantes, porém, jogam contra a retomada, como um mercado de trabalho fraco e pressões inflacionárias decorrentes principalmente da combinação de commodities em alta e do câmbio desvalorizado. Incertezas em relação à sustentabilidade das contas públicas enfraquecem a moeda brasileira, ao mesmo tempo em que mantêm os juros futuros em níveis elevados. Isso leva a uma piora das condições financeiras, prejudicando a recuperação.

O retorno do auxílio emergencial parece inevitável. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, que se opunha à medida, falou na volta do benefício na quinta-feira. Segundo ele, o novo auxílio será voltado para metade do público-alvo da sua primeira versão - em alguns meses, chegou a quase 68 milhões de pessoas. O valor será menor que os R$ 600 que vigoraram de abril a agosto de 2020 - e, na visão da equipe econômica, também inferior aos R$ 300 do período de setembro a dezembro, além de um prazo curto, de três meses. No Congresso, as pressões devem ser um por um benefício maior e por um período menor.

Com a piora da pandemia e a vacinação lenta, a volta do auxílio é necessária para evitar uma perda de renda muito acentuada. O desafio é aliar o retorno do benefício - além de eventuais novos gastos com saúde - a um compromisso com a trajetória sustentável para as contas públicas. Na quinta-feira, Guedes atrelou a volta do auxílio a “um ambiente fiscal robusto”, indicando que ela poderia ocorrer num quadro em que o Congresso acionasse o estado de emergência ou de calamidade pública.

Com uma média de mais de mil mortos por dia, um cenário de excepcionalidade se justifica, e parece improvável que o retorno do auxílio ocorra dentro dos limites do teto de gastos. O estado de calamidade permitiria gastos acima do teto, assim como a abertura de créditos extraordinários. O Citi Brasil avalia que, dado o espaço limitado para corte de despesas discricionárias (como o custeio da máquina e investimentos), os gastos públicos devem superar o teto em 1% do PIB neste ano.

No entanto, isso precisa ser feito com cautela, para evitar pressões adicionais sobre o câmbio e sobre os juros futuros. O ideal é adotar ao mesmo tempo medidas que enfrentem o crescimento das despesas obrigatórias. Versões mais robustas da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial e da reforma administrativa ajudariam nesse sentido, ao combater a expansão dos gastos de pessoal. A questão é que o presidente Jair Bolsonaro resiste a bancar esse tipo de medida, e é difícil acreditar na disposição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), de levar o Congresso nessa direção, que afeta os interesses do funcionalismo. De qualquer modo, é possível encontrar uma saída para financiar o auxílio emergencial e mais gastos com saúde sem que isso signifique o abandono do compromisso com a sustentabilidade fiscal.

Isso é fundamental para tirar pressão do câmbio, que segue volátil e desvalorizado. Um modelo dos pesquisadores Livio Ribeiro e Samuel Pessôa, do Instituto Brasileiro da Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), decompõe a variação do câmbio, considerando fatores externos (preços de commodities, o comportamento do dólar no cenário global e a taxa de dez anos dos títulos do Tesouro americano), a diferença de juros externos e internos e fatores locais (levando em conta o risco-país, mas expurgando a influência de fatores globais). Pelos cálculos de Ribeiro, a alta de 9% do dólar de 10 de dezembro do ano passado ao fim de janeiro deste ano, quando a moeda passou de R$ 5,02 a R$ 5,47, se deveu quase toda a fatores domésticos. Em texto para o Blog do Ibre, Ribeiro diz que o real “opera descolado do comportamento de seus pares desde o evento da covid, com reconciliações incompletas e pontuais (principalmente em relação ao comportamento das moedas emergentes)”. Segundo ele, há algo específico que “nos atrapalha” e, desde novembro, fica evidente que esse fator negativo é de responsabilidade do país. “O real tem operado sob fogo amigo e, enquanto isso não for resolvido, continuaremos não aproveitando bons ventos globais em sua totalidade. Ainda pior, quando os ventos inverterem, não estaremos bem posicionados para enfrentá-los”, afirma Ribeiro.

No texto, o pesquisador do Ibre/FGV não aponta quais motivos domésticos seriam responsáveis por pressionar o câmbio - pelo modelo, os fatores domésticos são o “resíduo” não explicado pelos fatores externos e pela diferença de juros. As incertezas fiscais, em especial, ajudam a entender as pressões sobre o real, assim como possíveis dúvidas quanto ao ritmo de crescimento do país, devido à piora da pandemia e a vacinação lenta.

Num ambiente de alta dos preços das commodities, o câmbio desvalorizado é um fator que preocupa, por elevar a inflação. Em janeiro, o Índice de Commodities do Banco Central, medido em reais, subiu 10,6%, a maior alta desde maio de 2020, como lembra o Bradesco. Com isso, avalia o banco, a inflação não deve dar alívio no curto prazo. “Se por um lado o aumento das cotações internacionais de produtos básicos, favorecido pela demanda chinesa aquecida, tende a continuar favorecendo as exportações brasileiras, por outro, tais cotações, quando mensuradas em reais, aumentam os desafios na condução da política monetária”, afirma o Bradesco, em relatório.

O BC já indicou que deverá elevar os juros em breve. A persistência da combinação de commodities em alta expressiva e câmbio mais depreciado pode levar a instituição a aumentar a Selic mais do que se antecipa hoje. Isso tenderia a colocar em risco uma recuperação que já é frágil. Além da volta do auxílio e de uma vacinação mais rápida, evitar pressões exageradas sobre o câmbio é importante para garantir a retomada da economia, num país que desde 2014 tem enormes dificuldades para crescer.


Bruno Carazza: Realidades paralelas

O longo caminho da agenda de Bolsonaro

Imagine-se em 2022. No auge da campanha, o candidato à reeleição é questionado sobre seus feitos durante o mandato. A pandemia atrapalhou muito os seus planos, mas com a vacinação já avançada, o pior havia ficado para trás. E o mais importante: a economia voltara a crescer.

Além disso, graças à sua parceria com os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, uma ampla agenda de projetos havia sido aprovada, deixando o país pronto para decolar nos próximos quatro anos.

Aguardada por décadas, a reforma tributária iniciou um processo de simplificação gradual de impostos federais, estaduais e municipais, reduzindo bastante a burocracia. A aliança com o Centrão venceu a resistência das corporações de servidores públicos e, com o novo pacto federativo e a reforma administrativa, seria possível começar a colocar as contas em ordem.

Tantas vezes questionado, Paulo Guedes deu a volta por cima com os novos marcos regulatórios para os setores de petróleo, gás natural, energia elétrica, ferrovias e navegação. Um novo ciclo de crescimento, liderado pelo investimento privado, estava prestes a começar - e a privatização da Eletrobras, anunciada para os próximos meses, não deixava nenhuma dúvida quanto a isso.

Depois que os principais países do mundo controlaram a covid, em meados de 2021, um incrível “boom” de commodities impulsionou a mineração e o agronegócio brasileiros. Com a simplificação do licenciamento ambiental, a regularização fundiária na Amazônia e a autorização para a extração mineral em terras indígenas, as exportações brasileiras bateram novo recorde. A entrada de dólares no país foi beneficiada pelas novas regras no mercado de câmbio e o novo Banco Central independente.

Mas não era só na economia que o presidente tinha resultados a entregar aos seus eleitores. No campo da segurança pública, as forças policiais agora tinham melhores condições de combater o crime com a exclusão de ilicitude nas operações para Garantia de Lei e Ordem. Os agentes públicos puderam se proteger melhor depois que cada um ganhou autorização para adquirir até dez armas de fogo. Cidadãos de bem, associados aos clubes de colecionadores, atiradores e caçadores, também foram beneficiados com uma legislação mais permissiva para a compra de armamento e munição.

Depois de indicar um ministro terrivelmente evangélico para o Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro e a ministra Damares Alves anunciaram a abertura das inscrições para o “homeschooling” em 2023. Contra as críticas de que a medida poderia aumentar o número de crianças abusadas sexualmente, eles citaram as novas leis que aumentaram as penas e tornaram hediondos os crimes sexuais contra menores e a pedofilia.

Entre a intenção e a realidade há uma enorme distância: 513 deputados, 81 senadores e dezenas de votações em comissões e no plenário das duas casas legislativas. Soma-se a isso a resistência da opinião pública e de grupos com interesses divergentes influenciando o jogo.

O anúncio da agenda prioritária do governo servirá de métrica para indicar se o novo casamento de Bolsonaro com o Centrão renderá ganhos eleitorais no ano que vem.

Há frutos fáceis de serem colhidos. Na área econômica, a autonomia do Banco Central, os limites mais restritos para o teto remuneratório no serviço público e a nova lei do gás natural já passaram pelo Senado e estão prontos para serem votados na Câmara. Trilhando o caminho inverso, as novas normas para a navegação de cabotagem e para o gás natural aguardam serem pautadas no plenário do Senado, para daí irem à sanção presidencial.

O pacote fiscal de Paulo Guedes, porém, mal começou a tramitar. O trio das PECs emergencial, do novo pacto federativo e dos fundos públicos ainda aguardam parecer do relator - e a reforma administrativa nem relator tem. Para virarem realidade, precisam ser aprovadas em dois turnos por pelo menos 308 deputados e 49 senadores. Até lá ainda haverá audiências públicas, debates em comissões, manobras para adiamento de votação. Enfim, “it’s a long and winding road”.

Pior é o caso da reforma tributária, para a qual não há acordo sobre qual modelo deve prosperar: se o da Câmara (PEC nº 45/2019), do Senado (PEC nº 110/2019) ou a alternativa ainda incompleta de Paulo Guedes (PL nº 3.887/2020). Como diz o velho ditado: nenhum vento é favorável quando não se sabe para onde ir.

Na questão ambiental, tanto a regularização fundiária quanto a mineração em terras indígenas ainda não começaram a andar, embora a proposta sobre licenciamento esteja avançada na Câmara. Todas elas, contudo, enfrentarão forte resistência não só de ambientalistas, mas de países comprometidos com o clima - agora reforçados pelos Estados Unidos, com Joe Biden na Presidência.

Por fim, na pauta de segurança pública e costumes, com a exceção do PL nº 3.723/2019, que facilita a aquisição de armas por policiais e já foi aprovado na Câmara, as demais proposições ainda estão em estágio inicial de análise.

É bem verdade que existe um repertório imenso de possibilidades para se pular etapas e se dispensar exigências do processo legislativo. Tudo depende de uma sintonia fina entre o Palácio do Planalto, os presidentes da Câmara e do Senado e os líderes dos partidos. A vitória de Lira e Pacheco foi um importante passo; porém, como num casamento, Bolsonaro terá que cultivar a relação com o Centrão dia a dia.

Também é importante não ter ilusões. Ainda que as PECs sejam aprovadas, os investimentos não inundarão o país imediatamente, pois em geral se exige regulamentação e, sobretudo, estabilidade política e econômica. Aliás, se a PEC emergencial passar, o presidente terá coragem de cortar despesas mesmo em ano eleitoral?

Se os resultados econômicos podem demorar a chegar, mais armas nas ruas e menos rigor com o meio ambiente, por sua vez, têm efeitos imediatos. E eles, infelizmente, são irreversíveis.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Catarina Rochamonte: A alta nata do que não presta

Bolsonaro não só abraçou o centrão como se tornou seu chefe

O mau conceito do centrão —ajuntamento fisiológico mais descarado da política brasileira, com vários dirigentes envolvidos em corrupção— é quase unanimidade, e, por isso, falar mal dele rende votos. Na campanha de 2018, o candidato Jair Bolsonaro referiu-se a esse agrupamento político como "a alta nata de tudo o que não presta no Brasil" e disse que "essa forma de governar" (o "toma lá dá cá", o loteamento dos órgão públicos) "é que levou o Brasil a essa ineficiência e a essa corrupção não encontrada em nenhum lugar do mundo".

No mesmo ano, em convenção nacional do PSL, o general Augusto Heleno parodiou um samba, substituindo a palavra "ladrão" e cantarolando para a plateia: "se gritar pega centrão, não fica um meu irmão...".

Águas passadas e samba velho. Agora, o centrão foi promovido pelo governo ao centro das decisões da República. Bolsonaro não só o abraçou: tornou-se seu chefe, tendo agido com despudor no caso da disputa pela Presidência da Câmara, quando, com verbas bilionárias e oferta de cargos, comprou a eleição de Arthur Lira, um réu por corrupção.

Logo em seguida, veio outra vitória da acomodação de interesses ou do acordão da impunidade: a extinção da Lava Jato (decidida pelo PGR indicado sob encomenda para atingir esse fim). Bolsonaro entregou aos novos presidentes da Câmara e do Senado uma lista de prioridades que não contempla nada da agenda anticorrupção. Nenhuma menção à PEC da prisão em segunda instância (que, segundo o líder do governo na Câmara, foi criada "só para prender o Lula e tirá-lo da eleição").

A "nata do que não presta" está eufórica: varou a madrugada da vitória de Lira comemorando na mansão de um empresário denunciado pelo MPF e réu por fraude tributária. Convivas aglomerados esbaldaram-se em atitude indecorosa pela ostentação e despropósito em um contexto no qual a pandemia já ceifou mais de 230 mil vidas. Muitas das quais poderiam ter sido salvas não fosse a incúria das autoridades.


Celso Rocha de Barros: Bolsonaro vence em Brasília, perde no Brasil

Resta saber se o presidente e seus aliados têm outros projetos em comum além de fugir de impeachment, cassação e cadeia

Na semana passada, políticos que deveriam ser presos por seus crimes durante a pandemia e políticos que deveriam ser presos por corrupção livraram uns aos outros de impeachment, cassação e cadeia.

Na segunda-feira (1º), Bolsonaro elegeu Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara. Com isso, caiu a probabilidade de impeachment. O impeachment seria o começo da responsabilização do presidente da República pelos crimes que cometeu durante a pandemia. O passo seguinte seria sua prisão. Isso teria sido a lei sendo aplicada, as instituições funcionando.

Mas a frente ampla contra o bolsonarismo, representada pela candidatura de Baleia Rossi (MDB-SP), levou uma surra. Houve traições à esquerda, mas ficou claro que Rossi perdeu porque a centro-direita desertou. Doria conseguiu evitar um espetáculo mais vergonhoso no PSDB, mas o DEM, o partido do próprio Rodrigo Maia, vendeu-se para o Planalto na frente de todo mundo.

Na prática, o DEM dissolveu-se no “arenão”, como o jornalista José Roberto de Toledo gosta de chamar o centrão. Na época da ditadura, dizia-se que a Arena era “a filha da UDN que caiu na zona”. Na última segunda-feira, o cafetão que levou o DEM de volta para a zona foi Jair Bolsonaro. O DEM aceitou de Bolsonaro as verbas e os cargos que o PFL, seu antecessor, não aceitou da ditadura no colégio eleitoral em 1985.

Mas não é só dinheiro que segura Bolsonaro no cargo. Na eleição da Câmara, Bolsonaro contava com a popularidade da grande realização de seu governo: o acordão que melou a Lava Jato. Em um eleitorado de 500 deputados em que predomina o arenão, matar a Lava Jato vale como uma mistura do que o Plano Real, o Bolsa Família, crescimento chinês por 20 anos e a realização das promessas daqueles emails “enlarge your penis” juntos valeriam para o público em geral.

Poucos dias depois da eleição na Câmara, Bolsonaro ofereceu o que havia sobrado da Lava Jato como sobremesa para Brasília. O procurador-geral da República de Bolsonaro dissolveu a força-tarefa de Curitiba. A força-tarefa da Lava Jato de São Paulo, é bom lembrar, já tinha renunciado coletivamente em protesto pela intervenção do mesmo procurador-geral, sempre a mando de Bolsonaro.

Não, companheiro, a Lava Jato não foi extinta porque sacaneou o Lula. Nem o Bolsonaro nem ninguém na direita parou e pensou, “pô, realmente, sacaneamos o Lula, terrível esse escândalo da Vaza Jato, vamos reestabelecer os ritos jurídicos apropriados”. As denúncias da Vaza Jato são mesmo gravíssimas, Lula foi mesmo sacaneado, mas a Lava Jato acabou porque era a hora de prender a direita.

Vários analistas viram no engajamento de Bolsonaro na eleição da Câmara um sinal de moderação, de aceitação das regras do jogo. Não há nenhum gesto de Bolsonaro que justifique essa hipótese.

Nas duas pautas que mais exigem governança racional —economia e combate à pandemia— Rodrigo Maia nunca colocou qualquer obstáculo para Bolsonaro, muito pelo contrário. Se o presidente topou gastar tanto para eleger Lira, é porque suas pautas são outras.

No momento em que perde popularidade no Brasil, Bolsonaro venceu em Brasília. Resta saber se o presidente e seus novos aliados parlamentares têm outros projetos em comum além de fugir de impeachment, cassação e cadeia.


Almir Pazzianotto Pinto: Golpe de Estado

É necessária e urgente a mobilização nacional em defesa do Estado Democrático de Direito

Golpe de Estado é o ato de violência praticado por governante ou seu opositor contra governo eleito de conformidade com as normas constitucionais, para manter ou tomar o poder. Ler a respeito o livro Técnica do Golpe de Estado, de Curzio Malaparte (1898-1957), sobre o assalto ao poder na Rússia, pelos bolchevistas, em 1917.

O verbete golpe de estado no Dicionário de Política de Bobbio, Matteucci e Pasquino (Ed. UnB, Brasília, DF, 1994) contém análise assinada por Carlo Barbi, do qual transcrevo o seguinte trecho: “Tomando como objeto de pesquisa os anos recentes, achamo-nos frente a uma verdadeira proliferação de golpes, embora com características bem diferentes. Na verdade, no início dos anos 70, mais da metade dos países do mundo tinha governos saídos de golpes de Estado e o golpe de Estado, por conseguinte, tornou-se mais habitual como método de sucessão governamental do que as eleições e a sucessão monárquica. Mas os atores do golpe de Estado mudaram. Na maioria dos casos, quem toma o poder político por golpe de Estado são os titulares de um dos setores-chave da burocracia estatal: os chefes militares” (vol. 1, pág. 545).

Em 1930 não houve golpe de Estado, mas revolução articulada pela Aliança Liberal, liderada por Getúlio Vargas. O objetivo era depor o presidente Washington Luís e impedir a posse de Júlio Prestes, presidente do Estado de São Paulo no período 1927-1930, eleito presidente da República pelo Partido Republicano Paulista (PRP) nas eleições de 1.º de outubro de 1930.

Vargas assumiu o governo provisório, em 10 de novembro, com o objetivo de permanecer. Protelou enquanto lhe foi possível a convocação da Assembleia Constituinte, medida tomada por decreto em abril de 1933. Promulgada a Constituição em 16 de julho de 1934, elegeu-se presidente pelo Congresso Nacional, para encerrar o mandato em 3 de maio de 1938.

Em 10 de novembro de 1937 deu o golpe que o pôs na chefia do Estado Novo. Permaneceu até 29 de outubro de 1945, quando foi deposto pelos mesmos militares que o apoiaram na implantação da ditadura. A Carta de 1937, redigida por Francisco Campos, justificava o golpe como resposta às “legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários”. E atribuía a responsabilidade “ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista”.

As gerações de hoje pouco sabem sobre o Estado Novo. Alguma coisa, porém, devem conhecer a respeito do regime militar instalado em 31 de março de 1964. O preâmbulo do ato institucional baixado em 9 de abril pelo Comando Supremo da Revolução, integrado pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, advertia estar o País diante de revolução vitoriosa, que “se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A Revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte (...). Essa é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte”.

Durante 20 anos o País viveu sob regime de exceção. Para presidir a República era requisito ser general de Exército. As feridas abertas, de ambos os lados, estão mal cicatrizadas. A volta à democracia, com a eleição de Tancredo Neves em 1985 e a promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988 não nos garantem contra eventual golpe de Estado. A ameaça do fechamento do Supremo Tribunal Federal por um cabo e dois soldados, o clima de belicosidade com governadores, o negacionismo imbecil, a infame guerra à vacina, a hostilidade contra o Butantan, a militarização do governo, a proposta de criação do generalato nas Polícias Militares, a aversão à liberdade de imprensa, o estimulo à idolatria, o ataque ao voto eletrônico, a declaração “quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as Forças Armadas” são reveladores de que alguém está à procura de pretexto para a ruptura da ordem institucional.

A mobilização nacional em defesa do Estado de Direito Democrático é necessária e urgente. Os partidos estão debilitados. As oposições, divididas. É difícil identificar alguém, entre os possíveis candidatos, capaz de galvanizar a opinião pública. A pandemia afeta a economia, provoca o fechamento de empresas, agrava o desemprego e a miséria.

Revela a História que cenário como esse poderá propiciar o aparecimento de demagogo com pretensões a salvador. Assim aconteceu na Alemanha após a 1.ª Grande Guerra, dando ensejo à tomada do poder por Adolf Hitler, e na Itália, por Benito Mussolini. A derrota do Exército russo em 1917 diante dos alemães abriu as portas à ditadura do Partido Comunista. Lenin tomou o poder à força de discursos, como mostra John Reed no livro Dez Dias que Abalaram o Mundo.

A democracia é planta frágil entre os subdesenvolvidos. A indisposição à disputa democrática e a dificuldade para se reeleger poderão espicaçar a ambição sem limites de Jair Bolsonaro. Avisto no horizonte sinais de fumaça.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Ricardo Noblat: Pouco ou nada separa o MDB dos demais partidos do Centrão

As diferenças estão no passado

Por que ao falar do Centrão e nomearem-se os partidos que o integram costuma-se deixa de fora o MDB? Talvez em respeito ao seu passado de lutas contra a ditadura militar de 64.

Tempos arriscados aqueles quando uma palavra fora de lugar, uma imagem mais forte ou uma proposta infantil bastava para cassar o mandato do seu autor, condená-lo à prisão ou forçá-lo ao exílio.

Há menos de um mês, morreu o advogado e ex-deputado federal José Alencar Furtado. Em 1977, líder do MDB na Câmara, ele foi cassado por ter dito num programa de televisão:

“O MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana para que não haja lares em prantos. Filhos órfãos de pais vivos – quem sabe – mortos, talvez. Órfãos do talvez ou do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez, ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe e do talvez”.

O ato de cassação foi assinado pelo então presidente da República, o general Ernesto Geisel, que dizia conduzir o país na direção de uma abertura política lenta, gradual e segura.

O deputado Márcio Moreira Alves (MDB-RJ) acabou cassado por ter feito um discurso em setembro de 1968 que não chamou a atenção de ninguém nem mereceu uma linha nos jornais.

Propôs um “boicote” ao desfile de 7 de setembro e recomendou às moças que não dançassem com oficiais naquele dia. Foi o pretexto que a ditadura usou para tirar a máscara e se assumir como tal.

Por pouco, em 1975, Geisel não cassou o mandato do deputado Ulysses Guimarães (SP), presidente nacional do MDB, que o comparou a Idi Amin Dada, à época ditador de Uganda.

Do seu passado, o MDB, hoje, só guarda lembranças para desenterrá-las às vésperas de eleições e sepultá-las no dia a dia da desfaçatez e do fisiologismo compartilhado com o Centrão.

O presidente Fernando Henrique Cardoso aliou-se ao PFL, hoje DEM, para governar. Os presidentes Lula e Dilma aliaram-se ao PMDB, hoje MDB, com o mesmo propósito.

DEM, MDB e companhia ilimitada governaram quando Michel Temer, depois de muito conspirar, sucedeu a Dilma. Bolsonaro tem ministros do DEM e espera, em breve, ter também do MDB.

Se por ora ainda não dispõe de ministérios, o MDB desfruta de centenas de cargos nos terceiros e demais escalões do governo. Diz-se independente, como o DEM diz que é. Os dois mentem.

Contagem regressiva para o Dia D e a Hora H de Rodrigo Maia

Fica ou sai do DEM?

Convites não lhe faltam. O PSDB do governador João Doria (SP), o MDB de Michel Temer e Baleia Rossi (SP), o PSL de Luciano Bivar (PE), ex-aliado do presidente Jair Bolsonaro, e o CIDADANIA de Roberto Freire, possível abrigo de Luciano Huck caso ele seja candidato no ano que vem, abriram-lhe as portas.

Na semana passada, antes de ser derrotado por Artur Lira (PP-AL) que se elegeu presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia ameaçou deixar o DEM acusando ACM Neto, o poderoso chefe do partido, de traição. Consumada a derrota, Maia repetiu a ameaça dizendo que com ele levaria para onde fosse um monte de gente.

Eduardo Paes (DEM), prefeito do Rio, confirmou que o acompanhará junto com seu grupo. Deputados do DEM, sob a garantia de não terem seus nomes revelados, disseram que irão com Maia. Ao ex-presidente da Câmara, ACM Neto prometeu passe livre para sair desde já sem risco de perder o mandato.

No último fim de semana, Maia reafirmou que está com um pé fora do DEM e que não passará desta semana. Estava furioso com ACM Neto. Aberta, portanto, a contagem regressiva para que se saiba afinal se a palavra dada por Maia será cumprida, adiada ou simplesmente esquecida.


Carlos Pereira: Por que apenas sobreviver?

Uma coalizão reformista requer uma gerência profissional e não amadora

A decisão de montar uma coalizão com os partidos que fazem parte do Centrão e a vitória de seus candidatos, Arthur Lira (Progressistas-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), à presidência da Câmara e do Senado, trouxe para o presidente Jair Bolsonaro um desafio ainda maior pela frente: o de escolher como vai gerenciar sua coalizão.

Minhas pesquisas sobre gerência de coalizões indicam que quanto maior o número de partidos participando da coalizão, maior a heterogeneidade entre eles, menor a proporcionalidade na alocação de recursos, e maior a incongruência entre as preferências da coalizão e do Congresso, maiores serão os problemas de coordenação e os custos de governabilidade e menor o sucesso legislativo.

A coalizão construída por Bolsonaro é, até o momento, minoritária. O número de cadeiras ocupadas pelos dez partidos que fazem parte do Centrão totaliza apenas 204 das 513 existentes. Ou seja, nos termos atuais, é fundamentalmente uma coalizão “negativa”, com capacidade apenas de veto às iniciativas legislativas indesejáveis para o governo (impeachment, por exemplo). Não é uma coalizão proativa ou promotora de reformas.

Apesar de ser minoritária, a coalizão de Bolsonaro possui um número muito alto de partidos, o que dificulta a sua coordenação. Entretanto, ela é relativamente homogênea do ponto de vista ideológico, composta basicamente por partidos de centro-direita, o que diminui os custos de transação. Outro aspecto facilitador de governabilidade da coalizão do presidente é que seus partidos estão muito próximos da preferência mediana da Câmara dos Deputados, que é de direita.

Se a ambição de Bolsonaro fosse a aprovação de uma agenda ampla de reformas no Congresso, ele teria plenas condições de montar uma coalizão majoritária, convidando alguns dos partidos próximos da mediana da Câmara. Poderia, por exemplo, fazer uma oferta a potenciais partidos aliados como Podemos (13), Novo (8), Democratas (29) e PSL (55), ou mesmo a partidos supostamente neutros como PV (4), Cidadania (7) e MDB (34).

A principal fragilidade da coalizão do governo Bolsonaro é a desproporcionalidade na alocação de poder e de recursos entre os parceiros, pois o presidente não tem levado em consideração o peso político de cada um deles na Câmara. Dos 23 ministérios, apenas sete são alocados para ministros filiados a partidos políticos, dos quais três não pertencem aos que fazem parte formalmente da sua coalizão. Uma reforma ministerial se faz urgente e necessária.

Se Bolsonaro não corrigir essa desproporcionalidade, animosidades vão surgir e a coalizão vai apresentar fissuras e ressentimentos. Os partidos não se sentirão comprometidos com o governo e terão incentivos a inflacionar o preço do apoio a cada nova votação que o presidente sinalizar como prioridade na sua agenda.

A estratégia anunciada, de “esperar para ver” como o Centrão se comporta primeiro e premiá-los depois, certamente aumentará os custos de gerência. Como o jogo é de repetição, a melhor estratégia é premiar os parceiros proporcionalmente ex ante para comprometê-los com uma agenda de votações em vez de recompensá-los ex post a cada votação.

Estando o presidente disposto a jogar o jogo do presidencialismo multipartidário, precisa aprender a gerir sua coalizão de forma profissional e não amadora.

*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de empresas (FGV EBAPE)


Luiz Carlos Azedo: Centrão X Anvisa - Novo front de guerra da vacina se forma no país

Líder do governo na Câmara e ex-ministro da Saúde, Ricardo Barros está à frente das críticas mais incisivas à agência responsável por autorizar o uso de imunizantes no Brasil. Parlamentar ressalta que a legislação se impõe sobre normas internas

A polêmica entre o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), e o presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, é a primeira queda de braços entre os políticos do Centrão e os militares do governo Bolsonaro após a eleição do novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Colega de bancada de Lira, Barros foi um dos protagonistas da campanha que conquistou 302 votos na Casa. Engenheiro e ex-prefeito de Maringá (PR), o líder do governo é um dos nomes cotados para substituir o general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, do qual foi titular no governo Michel Temer. Quer liberar vacinas importadas em cinco dias, sem testagem no Brasil.

Médico e contra-almirante, Barra Torres comanda a Anvisa como se estivesse num navio. Responde por tudo a bordo e tem prestigiado o corpo técnico da autarquia, cujo padrão de excelência é reconhecido internacionalmente. A pressão de Barros sobre a Anvisa, segundo o próprio, é uma questão do Congresso e não do governo. Os deputados e senadores voltaram do recesso pressionados pelos eleitores a resolverem logo o problema da vacina. “A Anvisa tem seu ritmo e sua visão de velocidade e, o Congresso tem a velocidade do povo. Fomos para a base e vimos o retorno: o maior receio é da falta de vacina”, justificou. O parlamentar tem sido duro com os técnicos da Anvisa, defendendo a mudança de legislação, se for o caso, para liberação dos medicamentos.

Barra Torres, que vem atuando sob fortes pressões do próprio presidente Jair Bolsonaro, dos governadores e do corpo científico, é diplomático, mas politizou a crise. “A quem interessa o enfraquecimento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária?”, pergunta. Em entrevista, na semana passada, disse que sempre teve uma boa relação com Barros e defendeu a agência: “É a mais rápida do mundo em análise de protocolos vacinais”, disse. Barra Torres nega que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ou qualquer ministro da Saúde em sua gestão tenha feito qualquer tipo de pressão à Anvisa, antes ou durante a pandemia de covid-19: “O presidente da República, Jair Bolsonaro, nunca, em momento algum, exerceu qualquer tipo de pressão sobre a agência. Nunca fez um pedido, nunca disse 'gostaria que aprovasse isso ou aquilo'. E ele é o chefe do Executivo. Nunca fez”, afirmou Torres.

Briga de laboratórios

O que esticou a corda entre o líder do governo na Câmara e o presidente da Anvisa foram as dificuldades para liberação das vacinas já aprovadas no exterior para uso imediato no Brasil, entre as quais a vacina russa Sputnik V. Das 11 vacinas já em uso no mundo, todas aprovadas por agências reguladoras reconhecidas internacionalmente, somente duas, até agora, estão sendo usadas no Brasil, o que aumentou o estresse entre os políticos e a agência. Segundo Ricardo Barros, a exigência de 10 dias para a liberação do uso emergencial, como queria a Anvisa, é ilegal. “O presidente deve sancionar a medida aprovada pelo Congresso que estabelece 5 dias; a própria Anvisa havia estabelecido um prazo de 72 horas”, esclarece.

Segundo Ricardo Barros, a exigência de testagem em território nacional para vacinas já aprovadas por agências reguladoras no exterior custa US$ 80 milhões, o que dificulta a compra de vacinas. “Sem essa exigência, não faltará vacinas; todos os governos e planos de saúde poderão comprar. Cerca de 50 milhões de brasileiros têm plano de saúde, haverá vacina pra todos”, argumenta o líder do governo.

No caso da Sputnik V, há um ingrediente a mais: a disputa entre a Fiocruz e o Butantan e a União Química, fabricante da Sputnik V no Brasil. O presidente da empresa, Fernando Marques, acusou os laboratórios públicos de dificultarem a chegada de vacinas produzidas por laboratórios privados. A Sputnik V é produzida pela farmacêutica, que tem um acordo com o Fundo Soberano da Rússia e o Instituto Gamaleya para receber tecnologia e trazer doses prontas do imunizante para o Brasil.

Até o momento, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária autorizou duas vacinas, produzidas por laboratórios públicos brasileiros: a Coronavac, do Butantan, e a AstraZeneca, da Fiocruz. A Sputnik é a primeira fabricante privada a firmar contrato de venda de vacinas com o governo brasileiro. Seriam 10 milhões de doses, inicialmente. Mas, antes da nova vacina ser utilizada, a União Química precisa obter a autorização de uso emergencial da vacina no Brasil.


Correio Braziliense: 'Auxílio é importante, mas com responsabilidade', defende diretor da IFI

Felipe Salto admite a importância da criação de um benefício emergencial para os mais vulneráveis, de preferência, fora do Bolsa Família e de forma temporária. Ele também considera a vacinação essencial para a retomada econômica

Vicente Nunes e Rosana Hessel, Correio Braziliense

O economista Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, demonstra preocupação com o excesso das propostas na lista de 35 prioridades apresentadas pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso. Para ele, a inclusão de pautas de costumes atrapalha o andamento dos trabalhos do Legislativo, pois as reais prioridades do país são a saúde e a economia. Nesse sentido, ele considera a vacinação em massa e o auxílio emergencial, que não provoque desequilíbrio fiscal elevado, os assuntos mais urgentes. “É preciso que o governo acelere essa questão da vacinação contra a covid-19 para que a economia possa ter uma recuperação, ainda que pequena, mas garantida, neste ano, porque ainda não está”, afirma.

Em relação ao auxílio, Salto acredita que o melhor formato seria fora do Bolsa Família, usando um modelo temporário e mais focado. Especialista em contas públicas, ele reconhece que o fato de o governo ter avançado pouco nas reformas limita uma ação mais contundente para socorrer os mais vulneráveis. No entender dele, os problemas estruturais do país continuam os mesmos e precisam ser encarados, pois a dívida pública está muito elevada e continuará crescendo por um longo período.

Pelas projeções da IFI, o país permanecerá com as contas no vermelho por pelo menos até 2030, num cenário conservador. Com isso, é mínimo o espaço para a criação de um novo auxílio emergencial sem comprometer o Orçamento e o teto de gastos — emenda constitucional que limita o crescimento das despesas pela inflação do ano anterior. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Salto ao Correio.

As reformas vão andar agora? Em uma lista de 35 itens, nada é prioritário.
Pois é. Reformas, nesse sentido genérico, não resolvem muito o problema. Precisamos saber mais claramente quais são as prioridades de verdade. A PEC Emergencial, por exemplo, dependendo do desenho, pode ajudar numa questão importante, que é o teto de gastos. A emenda 95, aprovada em 2016, prevê os chamados gatilhos, que seriam as medidas automáticas de ajuste. Mas a interpretação majoritária é de que seria necessária uma mudança de um trecho dessa emenda para poder acionar os gatilhos. O diabo mora nos detalhes. Não sabemos, ainda, qual será a proposta. E as outras reformas são relevantes, como a tributária e a administrativa, que estão na mesa. Contudo, é preciso saber exatamente quais são as propostas que o governo tem. No modelo brasileiro de presidencialismo de coalizão, a Presidência tem um papel fundamental e o Ministério da Economia, também. Eles são os definidores da agenda.

Nos últimos dois anos, não vimos um papel ativo do Planalto e do Ministério da Economia. A reforma da Previdência, por exemplo, só foi aprovada graças ao esforço do Congresso. Desta vez, o empenho vai ser maior? Por quê?
A reforma da Previdência tem um mérito importante do governo Michel Temer, que definiu essa pauta como prioritária e trabalhou muito por ela. Pelas razões políticas que sabemos, atrasou. Mas ele amadureceu a discussão. Fazia tricô com quatro agulhas. O governo atual conseguiu terminar, então, mérito dele. Agora, nas outras agendas, está tudo muito confuso. O Ministério da Economia, por exemplo, vive falando do imposto de transações financeiras. E, ao mesmo tempo, mandou uma proposta de reforma tributária para o Congresso prevendo a unificação do PIS e da Cofins. Em paralelo, o Congresso tem duas PECs sobre reforma tributária, a 45 (na Câmara) e a 110 (no Senado), que tratam de outro tema mais abrangente, que é o IVA nacional ou o IVA dual — um, para o governo federal e, outro, para estados e municípios. Esses temas precisam ser mais bem detalhados, porque não está claro.

E ainda há a covid...
No meio disso tudo, há as medidas que são ainda mais prioritárias. É preciso que o governo acelere a vacinação para que a economia possa ter uma recuperação, ainda que pequena, mas garantida, neste ano – porque ainda não está. Há uma incerteza muito grande, e isso tem a ver com a dificuldade de se ter um plano mais coeso e bem executado para a vacinação. Com isso, a pauta econômica e fiscal também se funde com a da saúde. E o Orçamento que abrange tudo isso está em aberto. Achei positivo o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, anunciar que a CMO (Comissão Mista de Orçamento) deve ser instalada nesta terça-feira. A Comissão vai ser o local para a discussão de muitas coisas, inclusive, o auxílio emergencial, e outras questões envolvendo gastos com saúde, como comportar tudo no Orçamento, que está sem margem alguma.

Será possível recriar o auxílio emergencial?
O auxílio emergencial é muito importante, porque, no ano passado, a população ocupada no mercado de trabalho diminuiu bastante, e, neste ano, vai se recuperar menos do que caiu. Então, haverá um contingente de pessoas que estão à margem de qualquer tipo de recebimento de renda formal ou mesmo no mercado informal. E a pandemia continua evoluindo. Algum auxílio, aparentemente, pelo que avaliamos, é possível que seja necessário. A questão é como fazer isso com responsabilidade fiscal.

Mas tem espaço no Orçamento?
Se olharmos a LDO para 2021, a despesa discricionária está em R$ 83,9 bilhões, sem contar os
R$ 16,3 bilhões de emendas parlamentares, que são impositivas. Esse é o menor nível de despesa discricionária da série. O risco de romper o teto é elevado porque a despesa discricionária, que é a variável de ajuste, está bastante exaurida. Para resolver essa questão, existem dois caminhos. O governo deveria eleger uma série de despesas que poderiam ser cortadas ou contingenciadas, inclusive, gastos obrigatórios. Claro que tudo isso tem um custo político. Se o governo for mexer em subsídio creditício, que é uma despesa que está sujeita ao teto, ele vai enfrentar aqueles que defendem cada um dos programas que estão lá nessa rubrica. Tem também mais de 50 mil cargos a título de reposição de aposentadorias de servidores previstos no PLOA. Só isso já tem um efeito de R$ 2,4 bilhões. O que seria importante é verificar despesas que podem ser cortadas para mostrar que está havendo um esforço fiscal. O outro caminho é via crédito extraordinário, que está previsto na Constituição para situações de imprevisibilidade e de urgência e, claro, que tem que ter critérios. Seria importante o governo sinalizar medidas compensatórias e não partir direto para uma coisa extrateto. Essas são as duas possibilidades.

É melhor retomar o auxílio ou ampliar o Bolsa Família?
O Bolsa Família é um programa de sucesso e bem avaliado, inclusive, pela academia. Ele beneficia muita gente com um valor orçamentário anual, em torno de R$ 35 bilhões, que é relativamente baixo para o benefício que ele produz (na economia). São discussões diferentes. A reformulação dos programas sociais seria importante, com melhor focalização, porque temos Benefício de Prestação Continuada (BPC), Bolsa Família, abono salarial, tudo para públicos diferenciados. Agora, a discussão do auxílio é mais imediata. É uma transferência que precisar ser feita, temporariamente, para resolver algo que não estava previsto, que foi a crise da covid-19 que se abateu sobre nós. O benefício pode ser resolvido pelo Bolsa Família. Mas o ideal é ter uma ação concreta direcionada para essa finalidade e, em paralelo, discutir a eficiência dos programas sociais, como melhor focalizar.

O Brasil precisa de um programa de renda mínima?
Nós já temos o Bolsa Família, que é um programa importante nesse sentido. Ele poderia ser ampliado. Agora, qualquer discussão a respeito de um novo programa precisaria ser pensada também do ponto de vista do equilíbrio fiscal. A dívida pública bruta, no ano passado, encerrou em 89,3% do PIB. Foi mais baixo em relação ao que se projetava, mas houve um efeito do PIB, que ficou mais alto por causa da inflação. Quando comparada à evolução da dívida, foram 15 pontos percentuais do PIB de aumento em relação aos 74,3% de dezembro de 2019. É uma dívida gigantesca, que vai continuar crescendo ainda por algum tempo. Por isso, o governo precisa anunciar um plano de médio prazo para mostrar quando essa relação dívida-PIB voltará a ficar sustentável. Essa falta de um horizonte para as contas públicas me preocupa até mais do que as questões de curtíssimo prazo. O momento é de exceção, que exige medidas excepcionais.

As propostas apontadas pelo governo são paliativas?
A PEC Emergencial é uma tentativa de dar uma sobrevida ao teto de gastos, permitindo acionar os gatilhos da regra. É claro que o teto, nas condições atuais do cenário base, não vai aguentar até o 10º ano, quando está previsto na emenda a alteração do indexador. Não podemos perder de vista que os problemas estruturais continuam, infelizmente, sendo os mesmos de 10 anos atrás: uma despesa obrigatória grande e crescente e um espaço para investimento cada vez menor. O Estado vem perdendo capacidade para investir e está aumentando, cada vez mais, a pressão das despesas. Claro que parte dessas despesas também tem a ver com a melhora de vida das pessoas, porque tem saúde e gastos sociais, mas será preciso uma reestruturação muito mais complexa do que apenas a discussão da PEC Emergencial.

Mas a PEC Emergencial ainda está em pé? Ela foi enviada ao Congresso no fim de 2019.
Quando o governo enviou ao Congresso essa PEC Emergencial em 2019, ele prometia que ela seria aprovada até dezembro daquele ano. Então, está muito atrasada essa previsão que o governo tinha.

Arthur Lira e Rodrigo Pacheco disseram que a reforma tributária pode ser aprovada em até oito meses. Acredita nisso?
A questão tributária é a mais complexa de todas, porque envolve várias trincheiras de batalha. Tem a trincheira dos estados e municípios contra a União, porque, nessa situação em que todo mundo está, o desejo dos entes federativos é ter mais receita e não menos. E tem, também, a questão da autonomia, porque, com a criação do IVA, estados e municípios perderiam o ICMS e o ISS. Não é uma questão trivial, ainda que as compensações fossem feitas e fosse criado o mecanismo automático para a distribuição das receitas que seriam arrecadadas centralmente. Mas essa é a primeira trincheira. A segunda é a setorial. O setor de serviços ainda não engoliu essa questão de ter aumento de tributação. Não se fala muito que esse segmento é subtributado. Só que é difícil sair de um equilíbrio ruim para um equilíbrio melhor, em que a indústria seria menos tributada com o IVA e o setor de serviços, que não tem uma cadeia de produção tão longa, tem dificuldade de acumular crédito. E, como vai tudo para o destino, obviamente, vai ter um aumento de tributação. E tem a terceira frente de batalha que é o fato de a União e o Ministério da Economia quererem aumentar a receita. O próprio ministro Paulo Guedes vive falando no imposto de transações financeiras, ou seja, está implícito aí um ajuste pelo lado da receita também. Isso é muito complicado. Acho positivo que as novas lideranças do Congresso indiquem que isso é uma prioridade, mas não vai ser fácil. Há pouco tempo para conseguir avançar nesse tema tão complicado.

Passados dois anos, é possível considerar que o governo Bolsonaro é reformista ou é mais discurso?
Eu acho que não é um governo reformista. O Ministério da Economia, sob a liderança do Paulo Guedes, tem essa intenção. Começou com aquela história das privatizações, de reduzir o tamanho do Estado, de fazer um enxugamento de gastos... Ele até prometeu zerar o deficit primário em um ano, mas percebeu que era impossível. Na verdade, o discurso da área econômica vai numa direção mais liberalizante, mas, na prática, o governo vai em outra direção. Até agora, com mais da metade do mandato, além da reforma da Previdência, não teve mais nada de relevância aprovado. O que podemos constatar é que as agendas que foram consideradas prioritárias, em algum momento, ainda não avançaram.

O presidente Bolsonaro já deixou claro como quer que a pauta de costumes ande, como excludente de ilicitude, ampliação ao acesso ao porte de armas... Isso é prioridade quando o país está atrasado na vacinação e ainda não tem Orçamento aprovado? Há riscos dessa agenda de costumes se sobrepor a das reformas?
A agenda de costumes que está refletida na lista de prioridades do governo é uma coisa que já se sabia que era intenção do presidente. E, claro, ela ocupa espaço e tempo no Congresso. Mas o que mais me preocupa na lista de 35 prioridades é que são muitos itens e não se sabe, ao certo, qual é a pauta prioritária e o que virá primeiro. Agora, as agendas de saúde e de economia deveriam ser prioritárias.

O cenário básico da IFI prevê deficit primário até 2030. É possível que fique pior?
O nosso cenário atual prevê que o deficit público diminuirá aos poucos até 2030, quando ainda estará negativo, em torno de 0,8% do PIB. Nos próximos anos, o quadro vai melhorando, porque a receita aumentará com algum crescimento do PIB, de 2% a 2,5% na média da década. E, do lado da despesa, nossa previsão não considera nenhuma, digamos assim, estripulia. O nosso cenário é bastante conservador. E, ainda assim, não é suficiente para vermos o superavit primário voltar em um período mais curto. Isso só acontecerá depois de 2030.


Fernando Gabeira: Roteiro para tempos difíceis

O Congresso caiu nas mãos de Bolsonaro. É o fato da semana.

Um bolsonarista escreveu no Instagram que me ver chorar na TV não tinha preço. Usava o termo chorar em sentido figurado. Certamente expressei tristeza com a vitória de Arthur Lira, coroada com uma festa para 300 pessoas, sem máscaras, numa mansão do Lago.

Mas se, como no poema, o bolsonarista nunca conheceu quem tivesse levado porrada, muito prazer, me apresento.

Situações difíceis não devem nos intimidar, embora seja assustador pensar na continuidade de um governo que mata as pessoas com seu obscurantismo e destrói vorazmente os recursos naturais de um dos mais belos países do mundo.

Muita gente acha que Bolsonaro tornou-se mais forte em 22, porque controla o Congresso. Temer controlava, mas jamais foi uma alternativa eleitoral viável.

As coisas não passam por aí. Pelo contrário, as relações de toma lá dá cá, as diárias afirmações de que é dando que se recebe, apenas reforçam a aura de decadência que envolve a política no Brasil.

A ideia de uma frente não se esvai porque alguns setores saltaram do barco. O que a fortalece, de fato, não são as letrinhas que designam partidos, nem necessariamente o número de deputados e senadores que a compõem.

O importante para uma oposição é compreender essa nova relação de forças no Congresso e olhar mais para fora, buscar o apoio da sociedade, batendo em alguns pontos essenciais. Um deles é denunciar o estelionato eleitoral de Bolsonaro, separando-o das pessoas que acreditaram em seu discurso.

Os outros estão claros na própria conjuntura: apoio emergencial para milhões de necessitados, defesa da ciência na condução da política contra a pandemia e luta para que todos se vacinem de forma eficaz e segura.

Esse encontro com a sociedade poderá ser mais amplo ainda na medida em que a vacinação avance. Muitos discutem as eleições de 22, quem será candidato, quem vai vencer.

É um tema inescapável. No entanto, daqui até lá, há muita luta, muitas peripécias. Os nomes devem surgir desse processo. Não creio em candidaturas que ficam abrigadas da tempestade e aparecem apenas no momento eleitoral.

Bolsonaro, Witzel e outras figuras se elegeram num momento de decadência da política. Nas próximas eleições, possivelmente viveremos um clima em que não só a política, mas também as novidades radicais decaíram. Daí a importância do que sobrou de resistência, de como se mostrará no processo, sua habilidade para unir, coragem para encarar o governo de frente.

Grande parte dos analistas descarta o impeachment quando um governo passa a dominar o Congresso. É razoável. Mas não se pode ver o Congresso como um bloco impermeável à pressão popular.

É preciso trabalhar com todos os cenários, sabendo que são tempos quase tão difíceis como no período da ditadura. É verdade que agora existe liberdade de imprensa, mas, no entanto, desapareceu um clima mais fraterno entre os opositores.

E isso não apenas porque a história moderna do Brasil colocou em campos opostos os que lutaram pelas eleições diretas.

O debate político não é mais mediado exclusivamente pela imprensa profissional. Ele vive noutras plataformas, deformado por fake news e num clima de agressividade verbal sem precedentes.

Um agradável lugar-comum que sempre vale a pena repetir: a história não coloca problemas que as pessoas não possam resolver.

É urgente evitar mortes e, simultaneamente, desenvolver as lutas que possam fortalecer uma vontade de tirar o Brasil dessa condição de pária sanitário e ambiental, dominado pelo obscurantismo.

Perdemos o Congresso, é verdade. Mas algum o dia o tivemos? Por enquanto, a parte que nos toca é uma modesta minoria. Vamos com ela, com o que sobrar, pois resistir ainda é melhor do que tudo.


Monica de Bolle: Índia, Rússia e China reinventaram a economia com foco na saúde pública para a covid-19

Cabe pensar como os países devem se organizar para não apenas se adequar à nova realidade, mas também para aproveitar as oportunidades que ela oferece

Nesses primeiros dias de fevereiro a Anvisa suspendeu a exigência de que ensaios clínicos de fase III sejam conduzidos no país para qualquer empresa farmacêutica que queira solicitar o uso emergencial de vacinas. Diferentemente do que circulou, a agência não deixou de exigir os ensaios de fase III, que nos fornecem as informações sobre a segurança e a eficácia das vacinas, sendo, portanto, críticos. O que a Anvisa fez foi remover a exigência de que eles sejam feitos em território nacional. A decisão produz efeitos de pronto. Abre espaço para que o Governo negocie a compra de mais doses de outras vacinas, ampliando o leque de imunizantes disponível à população.

O Ministério da Saúde, por exemplo, está em vias de negociar a compra de doses da vacina Sputnik V, produzida pelo Instituto Gamaleya, da Rússia, e da Covaxin, produzida pelo laboratório Bharat Biotech, da Índia. A Sputnik V jáestá sendo usada em cerca de 16 países, embora os ensaios de fase III ainda estejam na fase final de conclusão. A Índia, por sua vez, começou a vacinar sua população com a Covaxin, vacina de vírus inativado (como a Coronavac), mesmo sem os dados dos ensaios clínicos. Caso a Anvisa venha a aprovar o uso dessas vacinas —e espero que os faça tendo disponíveis os dados dos ensaios de fase III—, o Brasil passará a usar vacinas de três países emergentes com os quais compunha os BRICs: China, Índia, Rússia.

Tenho pensado muito na importância desses três países nas campanhas de vacinação dos países emergentes, que não tiveram acesso às vacinas gênicas, as da Pfizer e da Moderna, ou mesmo a outros imunizantes. É fato documentado, inclusive por mim e coautores em artigo recém-publicado pelo Peterson Institute for International Economics, que os países ricos adotaram a estratégia de comprar o máximo de doses que podiam de tais imunizantes, sem dar muita atenção à necessidade de cooperação global. Nesse contexto, países como Rússia, China e Índia perceberam a saúde pública como eixo reconfigurante da economia e viram nessa reconfiguração a oportunidade de serem fornecedores de vacinas para o resto do mundo, em que a escassez vacinal é a realidade.

O movimento dos três países suscita outras inquietações. A pergunta que todos se fazem é: quando a pandemia irá acabar? Penso, no entanto, que a pergunta é equivocada. Não temos resposta para ela, o que ficou ainda mais evidente com o surgimento de variantes virais preocupantes, as chamadas VOCs (Variants of Concern). O SARS-CoV-2, o vírus causador da covid-19, é ardiloso. O mais provável é que tenhamos de lidar com ele por tempo prolongado, atualizando vacinas à medida que ele encontre novas formas de escapar às nossas respostas imunológicas. Desse ponto de vista, podemos passar de uma pandemia aguda para uma pandemia crônica, ou seja, talvez tenhamos de aprender a conviver com o vírus e suas inevitáveis novas formas. Foi assim com outro vírus causador de doença distinta, a aids. Embora muitos não pensem tanto no assunto hoje em dia, a aids ainda é uma pandemia de acordo com as definições da Organização Mundial da Saúde (OMS). A diferença é que passamos de uma pandemia aguda para uma crônica.

Sendo esse o cenário adiante de nós, cabe pensar como as economias devem se organizar para não apenas se adequar à nova realidade, mas também para aproveitar as oportunidades que ela oferece. Porque, sim, há muitas oportunidades nesse cenário, como mostram no presente as ações da Rússia, da China, da Índia.

Como disse, os três países reorganizaram sua economia com centro na saúde pública, e isso faz sentido por motivos diversos: da segurança nacional à proteção social, da ordenação dos gastos públicos ao meio ambiente. No caso do meio ambiente, ter a saúde pública como eixo de políticas públicas significa garantir a existência de uma rede abrangente de saneamento básico, reduzir a poluição do ar, as emissões de carbono, preservar as reservas naturais para, inclusive, evitar o contato com novos vírus zoonóticos, aqueles capazes de pular espécies chegando a nós.

No caso do Brasil, não faltam vantagens comparativas para uma reorganização da economia nesses moldes. Temos um sistema de saúde público bem montado, dispomos de recursos naturais, possuímos alguma capacitação tecnológica. Nossas competências e experiências sanitárias sobram, já tendo sido motivo de orgulho nacional. A reorientação da nossa economia para a saúde pública sob o pano de fundo de uma pandemia crônica possibilitaria o renascimento da nossa indústria farmacêutica, voltada para as necessidades domésticas e para o abastecimento do mercado internacional, como têm feito a Rússia, a Índia, a China.

Novos empregos seriam criados, assim, na indústria e se abririam chances reais de inserção no comércio internacional, nas cadeias de valor ligadas à saúde. Tal inserção, por sua vez, ajudar-nos-ia a ampliar as possibilidades de saltos tecnológicos, que hoje inexistem. Economias voltadas para a saúde necessitam de serviços diversos, que vão de cuidadores e acompanhantes a profissionais de alta qualificação. O setor de serviços, tão abalado pela pandemia, teria a oportunidade de se reerguer a partir desse eixo, sobretudo com as necessidades que já surgem. São muitas as pessoas afetadas por sequelas de covid-19 e a elas muitas mais se somarão. Essas pessoas precisarão de atendimentos diversos.

Deixaríamos de fazer as reformas necessárias para o país? Pelo contrário. Faríamos essas reformas, agora com objetivo claro: sustentar e aprimorar o eixo central da saúde pública. O objetivo da reforma administrativa? A saúde pública. O objetivo da reforma tributária? A saúde pública. O objetivo de outras reformas fiscais? A saúde pública.

A pandemia nos tem apresentado muitas tragédias, dificuldades, dilemas, conflitos. Em meio à gestão de uma crise humanitária aguda, não é fácil elaborar o que sobrevirá. Mas é muito importante começar a fazê-lo, e isso implica abrir mão dessa espécie de pensamento mágico de que a pandemia vai acabar. A pandemia aguda, sem dúvida, acabará. Mas dela virá a pandemia crônica, essa que nos oferece o desafio e a oportunidade de uma transformação real da economia brasileira. A economia do cuidado é aquela que tem na saúde pública o eixo central e que se desenha explorando a reconfiguração do mundo que o vírus nos está apresentando. É claro que não acredito que o Brasil irá trilhar esse caminho nos próximos dois anos, com um Governo antibrasileiro. É mais provável que o país seja testemunha do que outros farão para pôr a saúde pública no centro das suas políticas. Mas quem sabe se os assistindo dessa vez, pela primeira vez, nós não nos articulamos para aproveitar a oportunidade visível, mesmo que tardiamente.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins e pesquisadora-sênior do Peterson Institute for International Economics.


Luiz Werneck Vianna: Encontro marcado (se possível, suspenso por força maior)

Com os êxitos eleitorais das forças conservadoras no Senado e na Câmara Federal experimentamos um momento inédito na política brasileira de captura dos instrumentos do poder por parte de elites parasitárias do Estado, agrupadas no chamado Centrão, assim conhecido na linguagem dos jornais, melhor designado pelos cientistas sociais como o reduto do nosso atraso político-social. Tais elites nos acompanham ao longo do nosso processo de modernização, de Vargas a Lula, sempre como coadjuvantes, fornecendo bases de sustentação em seus rincões aos diferentes surtos de modernização que se sucederam na história republicana moderna no processo de imposição do capitalismo brasileiro.

Foi assim com a política de Vargas, que nos trouxe ao moderno da industrialização em aliança com o atraso – basta lembrar sua recusa em levar a legislação trabalhista ao campo –, com a de JK, com a do regime militar de1964, especialmente no desenvolvimentismo do governo Médici, que confiou sua política à Arena, partido formatado com as elites do atraso. Chegamos à modernização por meio desse conúbio, classicamente uma modernização conservadora, que nos embaraçou em nosso movimento em direção ao moderno.

O ineditismo da hora presente reside, pois, nessa abstrusa situação em que o coadjuvante chega ao proscênio na ausência de um protagonista. Para que um ator exerça protagonismo em cena é indispensável que ele seja portador de um papel ativo na condução de um enredo em que ele centralize o sentido das ações, papel que o Centrão, por natureza um conjunto amorfo de políticos sem luz própria, não tem como exercer. Bolsonaro igualmente não cabe nesse perfil, presidente acidental que chega ao governo num lance de fortuna e que tem como único projeto a conservação do poder, desconfiado como os tiranos clássicos de tudo e de todos ao seu redor.

O cenário é de desconcertante miséria política numa sociedade carente de lideranças que lhe apontem um rumo em meio às suas dolorosas aflições pela ação de uma cruel pandemia, acossada pelo desemprego e com boa parte dela às portas da miséria absoluta. As respostas a essa situação de descalabro inaudito são desalentadoras, como a do prefeito de Salvador, ACM Neto, virtual candidato ao governo do seu estado, indicando seu alinhamento a Bolsonaro, como foi a do ex-presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, que por cálculos mesquinhos sentou-se em cima de dezenas petições em favor do impeachment presidencial. E chegam ao inacreditável com a recusa de Lula de compor uma ampla coalizão democrática na próxima sucessão presidencial em nome de uma candidatura do seu partido.

Não há governo e nem sequer uma oposição digna desse nome, assombrada diante da mula sem cabeça assentada em seu destino a sociedade clama por uma voz e ações que venham a seu socorro, que somente podem provir de suas entranhas, como estão vindo das comunidades populares e dos seus artistas e intelectuais, dos profissionais da saúde e das nossas maiores personalidades intelectuais, que fazem coro aos parlamentares que receberam no Congresso o presidente que aí está aos brados de facínora genocida.

Mais do que denunciar o caráter perverso do atual governo, por sua incúria em enfrentar a pandemia, os movimentos que se fazem presentes na luta contra ela têm importado em impulsos para a auto-organização da vida social, registrando-se inclusive petições de impeachment apresentadas por personalidades das atividades de saúde pública. Cabe ao campo democrático amplificar a ressonância dessas vozes traduzindo-as em um sonoro clamor público, chave acionada para nos livrar do horror a que estamos submetidos.

É verdade que temos um encontro marcado com o que aí está em 2022, se não conseguirmos antecipar essa data com um reparador impeachment. Para ele devemos nos preparar, em primeiro lugar com a apresentação de um projeto de soerguimento do país, de reanimação da sua vida econômica e cultural que devolva esperança aos brasileiros. Sobretudo com a articulação de uma frente política tão ampla quanto possível, e que encontre suporte na sociedade civil na forma que aprendemos a fazer nas lutas contra o regime militar.

As condições para tal empreendimento estão dadas e visíveis a olho nu, como no cenário internacional em que a potência dominante defenestrou o populismo reacionário de Trump, e entroniza como eixo estratégico da sua política os temas ao meio ambiente e dos direitos humanos, calcanhares de Aquiles do atual governo que logo sentirá os efeitos perturbadores dessa nova orientação. Internamente, o experimento exótico de um governo dominado pelo Centrão com a consistência das gelatinas, em que pesem as cabriolas hermenêuticas que rolam por aí, promete ser minado pela fúria dos apetites desencontrados dos seus quadros numa feroz competição que ignora quem a arbitre, tal como se testemunha no interior do DEM, satélite enrustido do Centrão.

A composição dessa frente implica em engenho e arte por parte das forças democráticas, particularmente da esquerda, artífice de importância crucial de sua elaboração, cabendo a ela tecer os fios de comunicação entre as forças convergentes no propósito maior de servir a afirmação dos seus valores e princípios. Não chegou ainda a hora da fulanização, para se usar uma expressão de Fernando Henrique, ela virá do processo de construção da frente democrática conforme sustenta Guilherme Boulos em sua resposta a uma precoce proposta de candidatura por parte do PT.

É preciso reconhecer que os recentes resultados negativos nas eleições congressuais adensaram a neblina dos mares que singramos, mas contamos com os bons conselhos do poeta que nos recomenda que, em meio ao nevoeiro, levemos o barco devagar. Devagar, mas em frente, sugerem as suas palavras. A tempestade já passou, ficaram para trás os delírios de um novo AI-5, e é preciso tirar proveito da aragem amável que nos bafeja, seguir viagem ao lugar pretendido. Se formos firmes e prudentes, ele está logo ali, ao alcance da mão.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio