O Estado de S.Paulo

Thomas L. Friedman: Nunca se esqueçam dos republicanos que tentaram um golpe de Estado

Para que os Estados Unidos voltem a ser um país saudável, os republicanos decentes precisam romper com este Partido Republicano atrelado ao culto de Trump

O Novo Testamento nos pede no Evangelho de São Marcos 8:36: “Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”.

Os senadores Josh Hawley, Ted CruzRon Johnson e todos os seus colegas do Partido Republicano que tramaram o golpe claramente esqueceram deste versículo – se é que o conheciam – pois estão dispostos a sacrificar as próprias almas, a alma do seu partido e a alma dos Estados Unidos – nossa tradição de eleições livres e justas como o meio para a transferência do poder – a fim de que Donald Trump continue presidente e um destes sacanas possa eventualmente substituí-lo. 

A “filosofia” em que se baseiam estes republicanos sem princípios que cultuam Trump é incontestavelmente clara: “A democracia é boa para nós enquanto mecanismo que nos permita estar no controle. Se não detivermos no poder, para o inferno com as normas e para o inferno com o sistema. O poder não emana da vontade do povo – ele emana da nossa vontade e da vontade do nosso líder’.

Para que os Estados Unidos voltem a ser um país saudável, os republicanos decentes – no governo e nos negócios -  precisam romper com este Partido Republicano atrelado ao culto de Trump e fundar o seu próprio partido. É uma tarefa urgente.

Mesmo que apenas um pequeno grupo de legisladores de centro-direita que se pautam por princípios – e os grandes empresários que os financiam – rompessem e formassem sua própria coalizão conservadora, eles se tornariam tremendamente influentes no Senado, hoje tão dividido. Eles seriam uma facção crucial na mudança que ajudaria a decidir se uma legislação aprovada por Biden seria moderada ou fracassaria. 

Ao mesmo tempo, o Partido Republicano do culto a Trump se tornaria o que é imprescindível para o país voltar a crescer – uma minoria desacreditada de malucos sem nenhum poder, esperando o último tuíte de Trump para dizer-lhes o que fazer, dizer e em que acreditar.

Eu sei que desmantelar um partido estabelecido não é fácil (presumivelmente). Mas os republicanos dotados de princípios, os que defenderam corajosamente e honestamente a vitória eleitoral de Biden, precisam perguntar a si mesmos: “Dentro de alguns dias, quando tudo isto estiver acabado, voltaremos simplesmente para os nossos negócios usuais, com pessoas que, na realidade, estão tentando o primeiro golpe de Estado legislativo na história do país?

Porque quando este episódio estiver encerrado, Trump fará ou dirá alguma outra coisa ultrajante para prejudicar Biden e tornar a colaboração impossível, e os cachorrinhos de Trump, como Cruz, Hawley, e o líder da Minoria da Câmara Kevin McCarthy, exigirão que o partido continue servindo aos seus interesses políticos, colocando diariamente em dificuldade os republicanos dotados de princípios. Todas as semanas haverá um novo teste de lealdade. 

Simplesmente não há nenhuma equivalência agora entre os nossos dois principais partidos Nas primárias, uma maioria esmagadora de democratas, liderados por afro-americanos moderados, optou por seguir Biden, de centro-esquerda, e não a ala socialista-democrática de extrema esquerda que defende uma polícia sem recursos.

Do outro lado, o partido de Trump tornou-se um culto a ponto de decidir na sua convenção que não ofereceria uma plataforma de partido. Sua plataforma seria tudo o que o seu Amado Líder quisesse a qualquer momento. Quando um partido deixa de pensar – e de traçar uma linha vermelha ao redor de um líder antiético como Trump – ele continuará a arrastá-lo cada vez mais para o abismo, para as portas do Inferno. 

Onde acaba de chegar. 

Vimos neste fim de semana o esforço mafioso de Trump de obrigar o secretário de estado da Geórgia a “encontrar” somente 11.780 votos para ele e declará-lo o vencedor do estado por um voto a mais do que Biden.

E o veremos em uma versão ainda mais feia na sessão de quarta-feira no Congresso. Os que cultuam Trump tentarão transformar uma cerimônia destinada explicitamente a confirmar os votos do Colégio Eleitoral apresentados por cada estado – Biden 306 e Trump 232 - em uma tentativa de levar o Congresso a anular os votos do colégio eleitoral dos estados decisivos que Trump perdeu. 

Se eu fosse o diretor deste jornal, estamparia todas as suas fotos em página inteira sob a manchete “Nunca esqueçam destes rostos: Estes legisladores podiam escolher entre a lealdade à nossa Constituição e a Trump e eles escolheram Trump”. 

Se vocês tinham alguma dúvida de que estas pessoas estão envolvidas em um comportamento sedicioso, seus colegas republicanos mais baseados em princípios não estão. Falando do plano de Hawley de contestar a contagem dos votos, Lisa Murkowski, a senadora republicana do Alaska, declarou: “Eu vou sustentar o meu juramento à Constituição. Este é o teste de lealdade”. O senador Ben Sasse, de Nebraska, acrescentou: “Adultos não apontam uma arma carregada para o coração do auto-governo legítimo”. E o senador Rob Portman de Ohio: “Não posso concordar que se permita que o Congresso modifique a vontade dos eleitores”.

Então, o caucus dos que montaram o complô fracassará. Mas perguntem a vocês mesmos:  E se os aliados de Trump controlassem a Câmara, o Senado e a Suprema Corte e conseguissem o que pretendem – eles usariam algumas das manobras legislativas de última horas e anulariam a vitória de Biden?

Eu sei exatamente o que teria acontecido. Muitos dos 81.283.485 americanos que votaram em Biden teriam ido para as ruas – e eu seria um deles – e provavelmente invadido a Casa Branca, o Capitólio e a Suprema Corte. Trump teria chamado o Exército; a Guarda Nacional, chefiada pelos governadores, teria se dividido e nós mergulharíamos na guerra civil.

Este é o fogo com que estas pessoas estão brincando.

Evidentemente, elas sabem disto – o que torna os esforços de Hawley, Cruz, Johnson e os da mesma laia ainda mais desprezíveis. Eles têm tão pouco respeito próprio que estão dispostos a lamber as botas de Donald Trump até o seu último segundo no cargo, na esperança de herdar os seus seguidores – se ele não voltar a concorrer em 2024. E eles estão contando com uma maioria dos seus colegas mais dotados de princípios que votam para confirmar a eleição de Biden – a fim de garantir que os seus esforços fracassem.

Dessa maneira, eles terão o melhor de todos os mundos – crédito junto aos eleitores de Trump por perseguirem a sua Grande Mentira - a sua alegação fraudulenta de que as eleições foram fraudadas – sem nos mergulhar em uma guerra civil Mas o preço a longo prazo será ainda maior - a redução da confiança de muitos americanos na integridade das nossas eleições livres e honestas, a base de uma transferência pacífica do poder. 

Podem imaginar algo mais cínico?

Como os americanos decentes revidarão, além de pedir aos republicanos de princípios para formarem o seu próprio partido? Tenhamos a certeza de que cobraremos um preço tangível de cada legislador que vota com Trump e contra a Constituição. 

Os acionistas de todas as principais corporações americanas deveriam assegurar-se de que os comitês de ação política destas companhias fossem impedidos de fazer contribuições de campanha para quem quer que seja que participar da tentativa de golpe da quarta-feira. 

Ao mesmo tempo, “nós o povo” precisamos lutar contra a Grande Mentira do culto  de Trump com a Grande Verdade. Espero que cada grande emissora e jornal e todos os cidadãos se refiram a Hawley, Cruz, Johnson e seus amigos agora e cada vez mais como os “conspiradores do golpe”.

Façamos com que todos os que propagaram esta Grande Mentira a respeito das eleições fraudadas para justificar o seu voto em Trump e contra a nossa Constituição carregue o título – “conspirador” – para sempre. Se vocês os virem na rua, em um restaurante, no campus universitário, perguntem educadamente: “Você era um dos conspiradores do golpe, não? Vergonha”. 

Adotemos o método de Trump: Repitamos seguidamente a Grande Verdade até que estas pessoas nunca possam se livrar dela.

Não bastará para sanar tudo o que nos aflige – para isto ainda precisaremos de um novo partido conservador – mas seguramente é necessário dar aos outros uma pausa para tentar isto outra vez. / 

Tradução de Anna Capovilla  


O Estado de S. Paulo: Congressistas têm pior desempenho nas eleições municipais desde 1992

Mesmo considerando os que ainda concorrem ao comando dos Executivos locais, o número de parlamentares eleitos pode chegar a no máximo 18, igualando 2008

Daniel Weterman e Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O resultado das eleições municipais 2020 mostra o pior desempenho de deputados federais e senadores na disputa pelas prefeituras em quase três décadas, de acordo com levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Entre os 69 congressistas que se lançaram para os cargos de prefeito e vice-prefeito, apenas quatro se elegeram no domingo e 15 vão disputar o segundo turno. Do total, 50 já perderam a eleição.

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Mesmo considerando os que ainda concorrem ao comando dos Executivos locais, o número de parlamentares eleitos pode chegar a no máximo 18 nas eleições de 2020, igualando 2008, o pior desempenho das últimas oito eleições desde a redemocratização. Isso porque em Recife o segundo turno será disputado entre dois deputados - João Campos (PSB) e Marília Arraes (PT).

De 1992 para cá, a média foi de 26 congressistas vencedores. Um deputado ou um senador não perde o mandato quando concorre na eleição municipal. Caso ganhe a disputa, um suplente é chamado para ocupar o mandato na Câmara ou no Senado.

Um dos fatores que explicam o baixo número de eleitos é que neste ano também houve o menor número de parlamentares candidatos na série histórica. "Além do ambiente fiscal que os municípios enfrentam, muitos parlamentares preferiram se dedicar ao mandato no Congresso ou por questões partidárias ou incerteza em relação a fazer campanha na pandemia de covid-19", afirmou o analista político do Diap Neuriberg Dias ao Estadão/Broadcast Político

Com a possibilidade de indicar recursos no orçamento federal e destinar verbas para seus redutos eleitorais, muitos congressistas preferiram ficar na segurança de seus mandatos federais. O cenário difícil para a economia dos municípios após a pandemia do novo coronavírus agrava ainda mais esse quadro, na avaliação do Diap. Dos 69 candidatos, 40 estão no primeiro mandato no Congresso, um número grande de estreantes, de acordo com o analista. "O eleitorado apostou mais na manutenção de políticos experientes na gestão municipal do que em renovação, como se imaginava."

Dos parlamentares vencedores, apenas dois deputados federais garantiram a eleição para prefeito no primeiro turno: Roberto Pessoa (PSDB), em Maracanaú (CE), e Alexandre Serfiotis (PSD), em Porto Real (RJ). Os outros dois vencedores – Paulinho Marinho Jr (PL), em Caxias (MA), e Juninho do Pneu (DEM), em Nova Iguaçu (RJ) – foram para o cargo de vice-prefeito. No Senado, Vanderlan Cardoso (PSD-GO) foi para o segundo turno em Goiânia e Jean Paul Prates (PT) perdeu na primeira etapa da disputa em Natal. 

Para o segundo turno, o PSD e o PT tem três congressistas candidatos, incluindo um senador e deputados. PSB e PSOL contam com dois cada. PDT, Podemos, Solidariedade e PROS tem um deputado federal cada concorrendo na segunda etapa da eleição municipal. 

Com a aposta do eleitorado destoando do quadro da eleição presidencial em 2018, o presidente Jair Bolsonaro elegeu apenas dez candidatos no primeiro turno entre os 59 políticos para os quais pediu votos nas últimas semanas. O cenário também influenciou o baixo desempenho dos congressistas na eleição, de acordo com o analista do Diap.

"A tendência da eleição de 2018 não se confirmou porque o próprio presidente da República saiu do partido depois do primeiro ano de mandato e não criou um novo. Isso enfraqueceu e fragmentou os grupos que vinham ascendendo na política. O eleitor manteve a naturalidade das eleições municipais quando se esperava uma mudança maior", afirmou Neuriberg Dias.


Modesto Carvalhosa: Nova Constituição?

Uma que ponha o Estado a serviço da Nação, e não o contrário, como é hoje

A declaração de Ricardo Barros, líder do governo na Câmara dos Deputados, propondo constituinte para elaborar nova Carta para o Brasil suscitou reação imediata dos que temiam tratar-se de manobra do presidente da República para consolidar o seu poder com viés populista e autoritário. Mas a ideia pertenceria só a Barros, expoente do Centrão que já serviu a FHC, Lula e Temer, além de ter relatado a distorcida e depenada Lei Anticrime, que acabou enfraquecendo a Lava Jato, operação de que o agora líder de Bolsonaro – quanta coincidência! – também foi alvo há pouco menos de dois meses.

Por sua vez, falando em mera “cirurgia plástica na fisionomia do Estado”, o ex-presidente Michel Temer, embora concorde “com algumas preocupações do deputado Ricardo Barros”, tomou posição contra a ideia de constituinte, que só teria por justificativa uma ruptura institucional.

Ora, mas essa ruptura já ocorreu e só não a reconhece quem não quer. Afinal, o que é uma ruptura institucional? Trata-se da ausência de legitimidade das instituições, refletida na perda do respeito da cidadania pela autoridade do Estado e na incapacidade manifesta dos mandatários de exercerem suas funções em prol do interesse público. Diante da imoralidade da conduta de mandatários que governam e legislam em causa própria, diante de magistrados de cúpula incapazes de interpretar a Constituição a favor da ordem pública, da segurança da sociedade e da paz social, o povo não mais acata espontaneamente o poder constituído, nada mais sendo necessário para caracterizar o divórcio entre a Nação e o Estado. A ruptura político-institucional não precisa ser fruto de revolta sangrenta, como a que persiste há um ano no Chile. Basta o sentimento permanente de indignação e de repulsa da sociedade civil contra o sistema vigente.

O povo brasileiro quer mais do que uma nova Constituição, quer uma nova República que seja capaz de desmontar essa estrutura odiosa que torna o País cronicamente inviável. Quer uma República de oportunidades para todos, instaurando um regime de isonomia, equidade e acesso da cidadania à vida pública, acabando com o arquicorrupto profissionalismo político.

Não se pode falar em democracia baseada apenas nas liberdades públicas que já conquistamos. Os direitos individuais, coletivos e sociais são um dos seus três fundamentos. Porém não existe regime democrático sem igualdade de direitos e deveres para todos os membros da coletividade. Não há democracia sem oportunidades para todos. Não há democracia num país como o nosso, onde 11,5 milhões de pessoas vivem sem o menor risco econômico, enquanto 100 milhões (população economicamente ativa) assumem todos os riscos na luta pela sobrevivência. O povo brasileiro está inconformado com os privilégios do estamento estatal e com as regras constitucionais de dominação da sociedade, que são a causa do nosso atraso, das injustiças sociais, da pobreza crescente, da decadência de nossa indústria e da falta de oportunidades de desenvolvimento pessoal, social e econômico.

É urgente a criação de uma nova República realmente democrática, fundada numa Constituição com os seguintes princípios normativos: proibição de reeleição; voto distrital puro; voto não obrigatório; partidos federais, estaduais e municipais autônomos e independentes entre si, em face do regime federativo; apuração pública das eleições mediante voto impresso acoplado às urnas eletrônicas; candidaturas independentes dos partidos políticos, para todos os cargos eletivos, nas três esferas federativas; perda de mandato por iniciativa dos eleitores (recall); eliminação do Fundo Partidário, do fundo eleitoral e das emendas parlamentares ao Orçamento; reformas constitucionais mediante plebiscito; vedação aos eleitos para o Poder Legislativo exercer qualquer cargo no Poder Executivo; eliminação dos cargos em comissão; regime de estabilidade restrito a magistratura, Ministério Público, oficiais das forças armadas e delegados das polícias judiciárias; regime previdenciário único para os setores público e privado; regime trabalhista único CLT para os setores público e privado; não prevalência do direito adquirido no âmbito do Direito Público; eliminação de adicionais e verbas indenizatórias dos servidores; seguro de obra pública (performance bond); trânsito em julgado mediante decisão de segundo grau; fim do foro privilegiado; transformação do STF em Corte Constitucional, com ministros com mandato de oito anos, nomeados pelo regime de antiguidade dos magistrados das Cortes superiores (o mesmo sistema para procurador-geral da República e para os tribunais de contas); todos os recursos do Orçamento discricionários e contingenciáveis, não podendo a folha de pagamento dos servidores exceder 25% do Orçamento; fim da exploração econômica pelo Estado; dever do Estado e da sociedade de defesa e preservação do meio ambiente.

Essas e outras dezenas de normas estruturais são necessárias em qualquer Constituição que pretenda pôr o Estado a serviço da Nação, e não o contrário, como é hoje, sob o regime de 1988.

ADVOGADO, É AUTOR, ENTRE OUTRAS OBRAS, DE ‘UMA NOVA CONSTITUIÇÃO PARA O BRASIL: DE UM PAÍS DE PRIVILÉGIOS PARA UMA NAÇÃO DE OPORTUNIDADES’ (NO PRELO)


Bolívar Lamounier: Nossa infindável fragilidade

A chance de Brasília fazer uma reforma política e administrativa séria é remota

A pandemia e a certeza de que tão cedo não teremos um ajuste fiscal seguro trouxeram de volta a preocupação com a fala de “resiliência” do sistema político brasileiro. Esse termo significa que nosso Estado cambaleia toda vez que se depara com situações muito negativas.

Triste é constatar que essa joia do jargão politológico não diz nem metade do que precisa ser dito. A fragilidade da organização política brasileira não é ocasional. Não se manifesta somente quando batemos de frente com algum obstáculo poderoso. Trata-se de uma fragilidade mal compreendida, abissal, que deriva de várias causas e produz efeitos crudelíssimos sobre as parcelas mais vulneráveis da sociedade. Seu aspecto mais perceptível é o que Ricardo Noblat certa vez denominou “o céu dos favoritos”. A fauna brasiliense compõe-se de numerosas espécies que diferem em quase tudo, menos no apetite. E na volúpia. Habitam os três Poderes e se valem deles para se apropriarem de cifras estratosféricas, sob a forma de salários, de ajudas de custo, das cotas ministeriais que alimentam o famigerado “presidencialismo de coalizão” e de assessores-de-coisa-alguma, sem esquecer as proverbiais “rachadinhas”. Com as exceções de praxe, claro.

Nesse quadro, o termo “resiliência”, com sua conotação de excepcionalidade ou intermitência, soa doce como o trinado de uma ave da nossa fauna. O buraco é muito mais embaixo, e há um ponto sobre o qual não temos o direito de nos enganar: a chance de Brasília fazer uma reforma política e administrativa séria é remota. Faz 35 anos que estamos discutindo reformas e o saldo é pífio. A rigor, não dispomos sequer de um diagnóstico, ou seja, de uma visão consistente, objetiva e abrangente do Estado e de suas relações com a sociedade. O problema, como vinha dizendo, não é a baixa “resiliência” de nossa estrutura institucional; é sua incapacidade de extirpar de si a infinidade de privilégios obscenos que se entrincheiraram em seus desvãos, para depois, com a ajuda de Deus, estabelecermos um sistema capaz de impulsionar o crescimento da economia, reduzir as desigualdades sociais e revolucionar o sistema de ensino.

Peço permissão aos leitores para repetir um argumento que venho martelando há várias semanas. Sem um sistema político verdadeiramente propulsor estaremos condenados à chamada “armadilha do baixo crescimento”. Com nossa renda per capita crescendo no máximo 2% ao ano, levaremos décadas para progredir. Nem temos como falar em progresso, pois, nesse horizonte, é de retrocesso que se trata, e deixo a critério de cada um imaginar o que isso significa.

Farei a seguir referência a três aspectos de nosso sistema político, os três com uma longa história e com tendência a piorar. O primeiro é nossa infantil fixação no “Executivo forte”, quero dizer, naquele anseio por um salvador, civil ou militar, que venha nos tirar do buraco. Aquele demiurgo capaz de fixar com sabedoria as prioridades nacionais e de assegurar unidade, estabilidade e eficiência à máquina de Estado que as irá executar.

Para ilustrar esse ponto o caminho mais curto é relembrar o ciclo de governos militares, 1964-1985. Durante aqueles 21 anos tivemos complicações sucessórias em todos os períodos presidenciais. Em todos, sem exceção. O próprio marechal Castelo Branco, o primeiro presidente do ciclo, comandante inconteste do golpe de 1964, viu-se encantoado pelo general Arthur da Costa e Silva, que lhe impôs sua própria candidatura. O resto da história é bem conhecido.

Os representantes civis do pós-1985 não demonstraram muito mais tirocínio. No tocante ao tamanho do Congresso Nacional, por exemplo, os constituintes de 1987-1988 conseguiram piorar bastante o que começáramos a construir antes de 1964. Estabeleceu o mínimo de oito deputados por Estado e aumentou de dois para três o número de senadores. Ao mesmo tempo, conferiu status de Estado aos quatro territórios do extremo Norte, criando um Congresso mastodôntico.

Obviamente, não estou afirmando que a sociedade brasileira ficaria bem representada por cem ou duzentos parlamentares, mas o número a que se chegou – 513 deputados e 81 senadores – é um atroz disparate. Basta lembrar que o governo dos Estados Unidos, com uma população um terço maior que a nossa, mantém desde priscas eras uma Câmara de Representantes com 435 deputados e uma Câmara Alta com 100 senadores.

A premissa é a de que o poder da instituição e o poder individual de cada representante crescem indefinidamente com o aumento do total de representantes. No Paper Federalista número 55, um dos documentos que precederam a ratificação da Constituição norte-americana, James Madison foi direto ao ponto: “Mesmo se cada cidadão ateniense fosse um Sócrates, com milhares de membros a assembleia da cidade seria uma balbúrdia”.

Para organizar o tumulto contamos atualmente 26 deputados federais, nenhum deles chegando à marca de 20% das cadeiras. Ora, convenhamos que ter 26 partidos fracos e não ter nenhum é mais ou menos a mesma coisa.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Luiz Carlos Trabuco Cappi: Pix, um salto de transformação

O sistema financeiro será mais competitivo, inclusivo, integrado e inovador

A entrada em operação do Pix, em novembro, será um salto de transformação na intermediação financeira brasileira. O embrião ocorreu há quatro décadas, com a implantação de máquinas de autoatendimento compartilhadas, o conhecido Banco 24 horas. Desde então, clientes de instituições diferentes passaram a poder sacar notas nos mesmos terminais. Duas décadas depois, outro avanço significativo foi o SPB (Sistema de Pagamentos Brasileiro), que possibilitou pagamentos rápidos em dias úteis no horário comercial. A TED (Transferência Eletrônica Disponível) mostrou-se novo passo adiante, ao dar mais agilidade ainda para as transferências financeiras.

Agora, o Pix possibilitará pagamentos instantâneos, com operações liquidadas em até dez segundos, sete dias por semana. Poderá incorporar-se gradualmente aos DOCs e às TEDs, na medida em que cair no gosto popular e conquistar a confiança das pessoas e empresas por sua eficiência.

A vida financeira será menos complicada com o Pix, pois o Banco Central desenvolveu uma arquitetura técnico-financeira sofisticada, que conectará todas as instituições. Nos primeiros dias de adesão, mais de 20 milhões de pessoas e empresas se cadastraram no sistema. Há apenas dois pré-requisitos para isso: ter conta e celular.

Com o Pix, o sistema financeiro brasileiro será mais competitivo, inclusivo, integrado e inovador. A qualidade no relacionamento com o cliente será fundamental enquanto fator de fidelização.

Para cada cidadão, a credibilidade de cada instituição, a parceria com o cliente e sua capacidade de oferecer soluções mais adequadas para cada cidadão contarão bastante na decisão de manter sua base de negócios.

A autoridade monetária assegura que o Pix será tão seguro quanto os demais meios de pagamento. Testes efetuados desde 5 de outubro, entre as mais de 677 instituições financeiras que aderiram ao modelo, têm simulado situações de estresse e risco, para demonstrar toda a sua capacidade operacional e malhas de proteção.

Em diferentes países, o sistema funciona sem problemas. Na China, o salto do uso do dinheiro físico para a disseminação do QR Code no comércio e nos serviços foi direto, uma vez que os cartões de plástico, para débito e crédito, não tinham escala. A Índia implantou a sua UPI – Unified Payments Interface em 2017 e agora, três anos depois, parcela significativa das transações financeiras no país já ocorrem por meio dela.

Como em outros países, outra discussão que se abre é a de que o Pix poderá reduzir a circulação de papel-moeda. Em se confirmando, o fenômeno representará ganho expressivo nos índices de eficiência não só do setor financeiro, mas de toda a economia.

No mundo ideal, a supervisão do sistema financeiro sem papel-moeda é mais abrangente e eficaz. Os pontos cegos de transações em dinheiro vivo são eliminados. Mas a sua supressão deverá ser paulatina no Brasil e ocorrer naturalmente, pela própria evolução dos meios digitais de pagamento. Pesquisa recente do BC apurou que 96,1% dos brasileiros têm no dinheiro físico o seu meio de pagamento mais utilizado. Isso se explica, em parte, pelo alto número de “desbancarizados” no País, que pode chegar a 50 milhões de pessoas.

Nosso sistema financeiro tem grande espaço para crescer em sua escala de atuação, desde que saiba absorver essas pessoas que ainda não têm domicílio bancário. Ao prometer uma inclusão digital rápida e sem custos a cidadãos de baixa renda, o Pix deve ser um dos caminhos para alavancar esse processo.

É um bom caminho a ser percorrido, em termos de oportunidades de eficiência e competitividade e ganhos de escala nos bancos, fintechs e meios de pagamento – e também da qualidade dos fluxos de recursos de todos os agentes econômicos. Sem dúvida, o Pix cria um ambiente instigante, que poderá nos surpreender positivamente em muitas direções.

O sistema financeiro será mais competitivo, inclusivo, integrado e inovador.

  • PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS

Rosângela Bittar: A cartada decisiva

A configuração do Supremo será peça fundamental nas decisões envolvendo o PT

A posse de Luiz Fux na presidência do Supremo Tribunal Federal, amanhã, inaugura o processo de decisões judiciais do longo e tenso calendário eleitoral brasileiro, o da sucessão presidencial de 2022. No alto da lista de providências está a aprovação do grid de candidaturas e, nele, a dúvida na escuderia PT: estará ou não sob a direção de Luiz Inácio Lula da Silva?

A configuração do Supremo será peça fundamental nas decisões que darão vantagem ou desvantagem ao Partido dos Trabalhadores. A ascensão de Fux é uma desvantagem. Na divisão do STF, o novo presidente se alinha à Lava Jato e é titular absoluto no grupo dos punitivistas, em oposição aos garantistas. Entre os primeiros, estão os juízes que passam por cima de regras e adotam a máxima de que, para situações excepcionais, decisões excepcionais. Já os garantistas têm na letra da lei o seu único compromisso.

Na Segunda Turma do STF, no entanto, onde se julgará, ainda sem data marcada, o habeas corpus impetrado por Lula arguindo a suspeição do então juiz Sérgio Moro nas decisões que o tornaram inelegível, o PT enxerga uma vantagem. Tanto se o ministro Celso de Mello reassumir seu posto no STF antes da aposentadoria, em novembro, quanto se não voltar.

Celso teria comunicado a alguns colegas que sexta-feira, dia 11, estará no trabalho. O PT torce para que o decano participe da decisão sobre Lula. Relembra que, ao julgar caso semelhante em processo do Banestado, em que também foi questionada a imparcialidade de Sérgio Moro, Celso de Mello foi veemente ao admitir a falta de isenção do juiz. Agora, a argumentação seria ainda mais densa que a anterior.

Considerando a semelhança das situações, os políticos apostam num placar de 3 a 2 a favor de Lula (Celso, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski contra Edson Fachin e Cármen Lúcia).
Mas, se o decano não voltar, o PT também conta vitória, pois o empate de 2 a 2 favorecerá Lula.

A nova composição do Supremo é um teorema que inclui a discussão sobre a substituição do ministro Celso de Mello, o que pode tirar a vantagem do PT em casos futuros, de recursos, por exemplo. O novo ministro será, com certeza, fiel ao presidente Jair Bolsonaro. Mesmo rompido com Moro e unido ao Centrão, grupo implicado na operação anticorrupção, o presidente não deve capitular: contra a Lava Jato, sim, mas sempre e principalmente contra Lula.

Em pronunciamento pelas redes sociais, no 7 de Setembro, Lula apresentou uma verdadeira plataforma eleitoral em que foi do combate à pobreza à restauração da democracia. Mas se dispensou de declarar-se candidato, por ser óbvio: se conseguir o voto favorável do Supremo, ninguém lhe tira a candidatura.

Se, ao contrário, não se livrar da condição de ficha-suja, aí terá de enfrentar uma situação que o PT não admite, por enquanto: a preparação de outro candidato.

Aí, nesta fase, tudo passará a depender da segunda configuração política crucial para o partido, a das eleições municipais, essenciais para a disputa presidencial de 2022. Nas capitais do Sudeste, mas, sobretudo, em São Paulo, onde o candidato petista patina, nem sequer tem candidato a vice e está flechado à esquerda, ao centro e à direita.

Para se precaver da repetição deste quadro a nível federal, o PT, discretamente, trabalha dois nomes: o governador Rui Costa (Bahia) e o ex-prefeito Fernando Haddad (São Paulo).

Por enquanto, Haddad tem uma vantagem: foi candidato em 2018 e seus 45 milhões de votos não são um recall desprezível. Mas a cúpula do partido não o filtra bem: mesmo lulista, é considerado independente demais do partido.

Quanto a Rui Costa, sua principal vantagem é a capacidade de articular uma grande coligação centro-liberal, que já experimenta com êxito na Bahia. Bom gestor, criativo e ousado, falta-lhe ganhar visibilidade nacional.


José Goldemberg: As teorias conspiratórias e o meio ambiente

Não há nenhuma ameaça estrangeira à nossa soberania sobre a Amazônia

Apelar para teorias conspiratórias é uma arma usada frequentemente para desacreditar adversários, até mesmo governos.
Alguns exemplos mais recentes de teorias conspiratórias são os seguintes:

• O governo americano oculta até hoje a existência de discos voadores que trouxeram seres extraterrestres para nosso planeta.

• O lançamento de astronautas à Lua em 1969 foi uma montagem de Hollywood e nunca houve voos espaciais.

• O atentado terrorista que destruiu as torres gêmeas em Nova York, em 11 de setembro de 2001, foi orquestrado pelo serviço secreto americano para justificar a “guerra ao terror” e a invasão do Iraque e do Afeganistão.

• O assassinato de John F. Kennedy foi promovido pelo governo de Cuba ou por grupos políticos americanos preocupados com as políticas liberais do presidente, e não por um assassino isolado como Lee Oswald.

Característica comum de todas elas – por mais inverossímeis que pareçam – é que são baseadas em suposições que contrariam os fatos ou a compreensão dominante dos eventos históricos e são imunes a argumentos racionais: uma verdadeira questão de fé. Só para dar um exemplo, existem estimativas do número de pessoas que teriam de fazer parte da conspiração de que o homem não pousou na Lua: cerca de 400 mil, contando os cineastas envolvidos, técnicos da Nasa, jornalistas e políticos de todo tipo e outros.

As origens das teorias conspiratórias são predominantemente psicológicas ou políticas. As psicológicas decorrem do fato de que para algumas pessoas a insegurança diante de eventos catastróficos é tal que as leva a criar paranoias conspiratórias. As políticas são mais concretas e têm que ver com vantagens políticas ou econômicas.

Um problema de natureza ambiental que foi objeto de teorias conspiratórias é o uso da fluoretação da água para reduzir a carie dentária, que é adotada em todos os países, mas ainda é contestada por alguns grupos como uma trama para dominar o mundo, provocar esquizofrenia e outras doenças. Afora isso, proteção ambiental em nível local e regional (basicamente para garantir qualidade do ar e da água) nunca foi contestada por teorias conspiratórias. Lamentavelmente, porém, problemas ambientais globais como o aquecimento da Terra e a proteção das florestas tropicais têm sido vítimas frequentes desses ataques.

Os que nos afetam mais de perto são os que dizem respeito à Região Amazônica. Esse é um problema antigo, começou na década dos 70 do século 20, quando a “ocupação” da Amazônia por colonos vindos do sudeste do País se tornou a política pública dominante para garantir a soberania nacional sobre aquela área, o que levou ao desmatamento da floresta. “Ocupar para não entregar” era o mote vigente, que tinha componentes de paranoia.

Participei em 1991, como secretário especial de Meio Ambiente da Presidência da República, de reuniões com outros membros do governo (ministros do Exército e da Justiça) que manifestavam, na época, preocupações com propostas de criação de uma área protegida internacionalmente na Amazônia para assegurar a sobrevivência dos ianomâmis, no extremo norte do Brasil.

Perguntei qual era a origem dessa informação, que eu ignorava, apesar de participar intensamente de todos os preparativos internacionais da Conferência sobre o Clima que se realizaria em dezembro de 1992 no Rio de Janeiro.

A informação que recebi era baseada num panfleto distribuído aos passantes no aeroporto de Houston, nos Estados Unidos, preparado por alguma obscura organização ambientalista americana. No aeroporto de Houston distribuíam-se panfletos de toda espécie. A fragilidade da informação era tão óbvia que o assunto foi abandonado.

Passados 30 anos, esse tipo de paranoia volta a circular em altas esferas do governo, apesar de não haver nenhuma evidência concreta de interferência na soberania nacional sobre a Amazônia. O que há são governos interessados nos problemas ambientais mundiais, como a Noruega e a Alemanha, que se ofereceram para ajudar financeiramente na implementação de programas do governo brasileiro na região que protejam a floresta. Imaginar que isso faça parte de um complô para nos tirar a Amazônia está claramente na categoria de teoria conspiratória.

Não há nenhuma ameaça estrangeira à nossa soberania sobre a Amazônia. A ameaça vem daqueles que não obedecem às leis em vigor e enfraquecem o poder do Estado.

Somente recursos do exterior não resolveriam todos os problemas do desmatamento nessa região, onde a carência fundamental é a ausência do poder público, como ocorre também nas favelas da Baixada Fluminense e do Rio de Janeiro dominadas pelo tráfico.

O fortalecimento do Ibama e a implementação gradativa da legislação fundiária é que levariam a cercear a ação dos “grileiros” e desmatadores da região. A crescente produção agrícola e de carne no País não necessita desse desmatamento predatório e da retirada clandestina de madeira. Há melhores métodos de utilizar a floresta.

*Professor emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente


Maílson da Nóbrega: As quatro reformas tributárias

Se aprovada a PEC 45, haverá crescimento da produtividade e do potencial da economia

Sob o nome genérico “reforma tributária”, discutem-se atualmente quatro distintas propostas para reformar o caótico, regressivo e injusto sistema tributário brasileiro. São elas:

1) A reforma da tributação do consumo configurada nas Propostas de Emenda Constitucional (PECs) 45 (Câmara dos Deputados) e 110 (Senado), que criam um imposto sobre o valor agregado (IVA), denominado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). O método é adotado por mais de 160 países. 2) A criação de um IVA federal mediante a fusão e simplificação do PIS e da Cofins. 3) A proposta do Ministério da Economia para recriar um tributo nos moldes da CPMF, associado à desoneração das contribuições sobre a folha de salários e ao aumento do emprego. 4) E a proposta do Ministério da Economia para melhorar a equidade do sistema tributário, reduzindo privilégios e aumentando a progressividade do Imposto de Renda.

A mais relevante de todas é a primeira, por atacar a principal fonte de ineficiências da economia. Prevê a unificação de cinco tributos, três federais (IPI, PIS e Cofins), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS). Entre as suas principais características estão a alíquota única, a proibição de seu uso como incentivo fiscal (eliminando a guerra fiscal), a completa desoneração nas exportações e a devolução, em espécie, do IBS incidente no consumo dos segmentos menos favorecidos. A PEC 45, a melhor, baseia-se em projeto preparado pelo Centro de Cidadania Fiscal, sob liderança do economista Bernard Appy.

A PEC 45 conta com o apoio inédito e unânime dos secretários de Fazenda estaduais, convencidos das disfunções do ICMS. A questão federativa em tentativas de reforma anteriores constituía ponto de veto. Assim, a proposta tem viabilidade de aprovação, mesmo diante dos desafios políticos.

A PEC 45 e a fusão do PIS e da Cofins, têm forte oposição da área de serviços, hoje subtributados pelo ISS, pois aumentarão a carga tributária em segmentos como os de educação, saúde, lazer e turismo, consumidos pelas classes de maior renda. Os pobres não costumam ter acesso a tais serviços, o que agrava a regressividade da tributação do consumo no Brasil. A coalização contrária à reforma é politicamente poderosa e tem contado com a simpatia da imprensa. Isso poderá levar à solução de compromisso de admitir duas alíquotas, uma para bens e outra, menor, para serviços. Há precedentes mundiais de mais de uma alíquota em IVAs.

A segunda reforma é modesta em seus efeitos, mas tem vantagens, principalmente a de engajar o governo federal no processo. O IVA dual (governo central e governos subnacionais) existe em outros países, mas a PEC 45 é melhor por ser mais ampla e completa. É provável que a proposta seja incorporada nessa PEC.

A terceira reforma tem conhecidos defeitos, a saber: 1) trata-se de tributo disfuncional, em cascata, o que provoca ineficiências e reduz a competitividade dos produtos exportáveis. 2) Torná-la permanente é muito perigoso. Tributos de fácil arrecadação costumam ter sua alíquota elevada durante crises fiscais. 3) Pior do que a CPMF, a nova contribuição incidiria no comércio eletrônico, penalizando transações mais eficientes do que as do comércio físico. 4) Dificilmente haverá aumento de emprego. Como se sabe, na prática o ônus das contribuições previdenciárias recai sobre o trabalhador. Assim, nos casos em que a medida foi adotada, o efeito foi elevar a renda dos empregados, não criar postos de trabalho. 5) A contribuição previdenciária do trabalhador é a base para o cálculo das aposentadorias. Se a proposta incluir sua eliminação, caberia às empresas informar os salários pagos. O potencial de fraudes poderia elevar os gastos previdenciários.

A quarta reforma, fundada basicamente na equidade tributária, buscaria eliminar privilégios que reduzem a progressividade do Imposto de Renda, o qual, historicamente, desde que o mundo o conheceu, no início do século 20, incorporou objetivos sociais. Seu propósito sempre foi o de tributar proporcionalmente mais os segmentos mais ricos, promovendo redistribuição da renda.

No Brasil, conforme demonstraram os economistas Marcos Mendes, Marcos Lisboa e coautores, há incentivo à prestação de serviços mediante a constituição de pessoas jurídicas em substituição ao regime regular de pessoas físicas, a chamada “pejotização”. Com isso se transforma rendimento do trabalho em rendimento do capital. Contribuintes de maior renda gozam do privilégio de abater, na sua declaração anual de rendimentos, as despesas com saúde e educação, o que reduz a progressividade. Os lucros são tributados na pessoa jurídica, o que impede a progressividade na distribuição de dividendos a pessoas físicas. O Ministério da Economia estaria cogitando de rever todas essas distorções.

Caso seja aprovada a proposta mais relevante, a da PEC 45, haverá elevação da produtividade e do potencial de crescimento da economia brasileira. Cálculos recentes indicam que, em 15 anos, ela aumentaria o produto interno bruto (PIB) potencial em 20%. Não é pouco.

SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA