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RPD || Henrique Brandão: Uma história de amor e resiliência

Maid já entrou para a lista de séries mais queridinhas da Netflix, superando O Gambito da Rainha

Henrique Brandão / RPD Online

A minissérie ‘Maid” (Empregada Doméstica), em exibição na Netflix, é um dos grandes sucessos de todos os tempos do canal de streaming. Lançada em primeiro de outubro, a produção se tornou a mais vista da plataforma, com cerca de 67 milhões de espectadores, superando, inclusive, a incensada “O Gambito da Rainha, vista por 62 milhões de pessoas e tida, até então, como a campeã de audiência entre as minisséries. 

O fenômeno mundial do canal é a série coreana “Round Six”, lançada quase ao mesmo tempo e vista, até agora, por 111 milhões de espectadores ao redor do mundo. Certamente, esse número será maior quando você estiver lendo esse artigo. Dado o estrondoso sucesso, a série, galinha dos ovos de ouro da Netflix, ganhará uma continuação. 

E aqui vale explicar a diferença entre os dois formatos: as séries, como é o caso de “Round Six”, podem ganhar continuações infindáveis, a depender, sobretudo, do sucesso comercial da produção. A última temporada de uma série deixa sempre em aberto a possibilidade de novos desdobramentos da trama (um “gancho”, como se diz no jargão técnico), que ganhará outra temporada e episódios inéditos, sucessivamente. Já a minissérie, termina no último episódio da primeira e única temporada. São relatos “fechados”. Muitas vezes narram histórias reais ou são adaptações de livros.  

É o caso de ‘Maid”, adaptado de “Maid: Hard Work, Low Pay, and a Mother's Will to Survive” (2019), livro de memórias escrito por Stephanie Land, best-seller da lista do “New York Times”. 

A minissérie narra a trajetória de Alex, jovem mãe que dá duro fazendo faxina a fim de ganhar alguns caraminguás para poder criar a filha sozinha, em meio a um ambiente hostil de violência psicológica e pouca ajuda familiar. 

São muitos os perrengues. O marido, o pai e a sogra de Alex têm ou tiveram problema com o álcool. A mãe, bipolar, vive em um mundo próprio de ilusões e que a impossibilita de atender aos apelos de ajuda da filha. Para onde se vira, Alex é obrigada a superar obstáculos que parecem fáceis de lidar, mas que se mostram muito mais complexos do que aparentam à primeira vista: o que parecia porto seguro se revela instável. A estrada da vida se converte numa espiral que a leva sempre de volta ao ponto de partida.  

Lido assim, pode até parecer enredo barato, de dramalhão mexicano, ou então de séries maniqueístas, que mostram a mocinha perseverante em luta contra o mundo cruel que a cerca. Não é o caso. Em “Maid”, o que se vê na tela são seres humanos retratados em suas nuances, com todas as suas contradições, angústias, erros e acertos.  

No marasmo das paisagens da pequena cidade em que se desenrola a trama, o passado contamina o presente e turva o horizonte. Em determinado momento, a mãe de Alex revela a falta de perspectiva dos habitantes do lugar: ela nasceu ali, sua mãe também e a avó idem. Por que partir? – questiona, diante da insistência da filha em mudar de cidade. 

Certo dia, o marido de Alex, bêbado, esmurrou a parede, quebrou objetos e esbravejou injúrias.  Na calada da noite, com a filha Maddy no colo, Alex aproveita para escapar. A violência que sofre não é física, mas deixa marcas profundas na alma. O que a leva a se livrar daquele ambiente opressor, onde só o medo prevalecia. 

Fugir foi só o começo. Desde então, mãe e filha empreendem uma cruzada que passa por dormir no chão da estação das barcas ao acolhimento provisório em um abrigo para vítimas de violência doméstica. De faxina em faxina, sujeita a humilhações e a salários miseráveis, tendo que lidar com a indiferença da burocracia, Alex apenas sobrevive. É mais uma “invisível” que o Estado ignora. O que a mantém resoluta na sua luta é o amor por Maddy. 

Com uma história real dessas, é grande a possibilidade de escorregar para o exagero, carregar nas tintas. O roteiro, no entanto, muito bem estruturado, evita o melodrama. Não há choros de esguichos, tampouco gargalhadas retumbantes. 

A brilhante interpretação de Margaret Qualley como Alex, acrescenta meios-tons à direção sóbria da minissérie. A intimidade da relação que estabelece com Rylea Nevaeh Whittet, a criança de dois anos que interpreta sua filha, é impressionante. Andy MacDowell faz o papel da mãe de Alex. Na vida real, Qualley é filha de MacDowell.  

Para quem quiser conhecer uma outra faceta de Margaret Qualeey, aqui vai a dica: ela é também bailarina. Sua performanceno comercial do perfume "Kenzo World", de 2016, dirigido por Spike Jonze, (https://www.youtube.com/watch?v=itqQS_gpNHM) é de tirar o fôlego. Ninguém diria que se trata da mesma pessoa. A moça é danada. Puro talento. 


Saiba mais sobre o autor
Henrique Brandão é jornalista e escritor


Fabiana de Souza: Ele não pode estar de volta se nunca foi embora

No filme, Adolf Hitler “acorda” na Berlim de 2014 e, paulatinamente, se habitua ao cotidiano

Fabiana de Souza / Horizontes Democráticos

O filme Ele está de volta coloca como questão central os limites, cada vez mais tênues, entre ficção e realidade, explorando os significados desta mudança contemporânea para a sustentabilidade da política democrática. Dirigido pelo cineasta alemão David Wnendt e lançado em 2015, o roteiro contou com a participação de Timur Vermes, autor do romance de título homônimo, no qual o filme foi inspirado. No enredo, Adolf Hitler “acorda” na Berlim de 2014 e, paulatinamente, se habitua ao cotidiano. Não são poucas as situações inusitadas em que Hitler se envolve até perceber que não se encontra em 1945. Conhece um produtor autônomo de programas de TV que o insere no centro do poder contemporâneo, as mídias.

Cena do filme “Ele está de volta”

Ele está de volta nos obriga a perguntar: mas por onde ele andou? Como voltou? Por que voltou? As circunstâncias esdrúxulas do aparecimento de Adolf Hitler na Berlim de 2014 permitem elaborar um incômodo essencial: não é possível que ele esteja de volta! E não é possível não porque seja um absurdo do ponto de vista biológico, mas porque ele nunca deixou de estar entre nós. O personagem Hitler não entende como voltou, mas, logo, demonstra saber o motivo: aproveitar a chance de repetir uma história, para a qual o final se encontra aberto, no ambiente da ficção. Aos espectadores são apresentados novos cenários e novos personagens, mas a história desfila marcada pela permanência. Essa é a causa do desconforto. Para o Hitler da ficção, enfrentar sobriamente uma senhora judia, em 2014, era o mesmo que suportar, estoicamente, não caçar judeus durante as Olimpíadas em 1936. Ainda não chegara o tempo de eliminá-la, esse tempo viria. O que permite a ele enfrentá-la sobriamente? Estratégia e certeza da profecia. Também para o Hitler da ficção a história é medida por uma concepção de tempo fatalista e teleológica. É esta concepção – a mesma que sustentou a ideologia totalitária – a que o Hitler do filme recorre, quando diz à Bellini, sua musa, uma mistura perfeita de Goebbels e Riefenstahl: “a essência da minha visão de mundo me permite sempre tomar a decisão certa”.

Contudo, importante não é apenas a conclusão de que o Führer está vivo ou de que cada um de nós guarda, em potência, um Hitler, um Stalin, um Mao. Fundamental mesmo é como, por meio de quais recursos, um processo profundo de identificação entre coletivos e lideranças se viabiliza. Ainda melhor: como uma “ideia” se torna tão poderosa ao ponto de acreditarmos ser ela o pilar que sustenta e integra nossa vida psíquica? Evidente que, para tratar dessas questões, o filme dialoga com a história. A frase final de Bellini, dirigida a um repórter, é a seguinte: “Tivemos 70 anos para digerir nossa história. As crianças estão cansadas de aprender sobre o Terceiro Reich. Vamos parar de subestimar as pessoas”.

Há um filme dentro do filme. Uma comédia estava sendo filmada e, nela, o Hitler da ficção é protagonista. Por isso, pouco antes de mencionar o cansaço das crianças alemãs com o Terceiro Reich, Bellini, ao ser perguntada se “comédia com Hitler pode dar certo”, diz: “Há comédia alemã pré-Hitler e pós-Hitler”. A inferência propositada à Educação após Auschwitz[1] desvela que o filme nos coloca na posição de aprendizes. Interessante, então, é nos darmos conta de como a montagem cinematográfica atua para alcançar tal propósito. Duas estratégias chamam a atenção. 

Cena do filme “Ele está de volta”

A primeira delas, a mistura entre ficção e realidade. O personagem Hitler viaja pela Alemanha e conversa com pessoas comuns, há diversas cenas em que interage com a população. Além desses diálogos, integram o filme entrevistas realizadas no decorrer de 2014. Dessa maneira, a história ficcional convive com elementos próprios ao documentário. O encontro das pessoas com o ator paramentado provoca reações de empatia e asco visibilizadas pela câmera.

A segunda estratégia tem a ver com os tempos da comédia e do drama no filme. Intercalando esses tempos, somos encaminhados à experiência com o sombrio – vigoroso elemento da aprendizagem. Iniciada em tom de comédia, a narrativa fílmica nos diverte, nos faz esquecer da gravidade do tema e da situação. Faz mais: com Hitler, rimos. Para ficar claro: não rimos dele, mas com ele. Sentimos empatia por aquele homem perdido que, ao se colocar em situações cômicas, expressa preocupação, atenção e educação. É fato: um Hitler anacrônico e confuso nos diverte. O filme nos mobiliza profundamente, muito mais do que se fosse um documentário ou um drama, fórmulas testadas à exaustão, especialmente no caso do nazismo. Mobiliza porque choca. E choca porque dialoga com o nosso presente. Somos colocados na posição de quem experimenta rir com Hitler e se inebria com a sua capacidade de comunicação.

Ao criticar as mídias e expor as estratégias contemporâneas de comunicação, o filme obriga o espectador a refletir sobre seu lugar e responsabilidade na cadeia de eventos que corroem a convivência democrática. Afinal, não é o dissenso ou o conservadorismo que colocam em xeque a democracia. As democracias morrem pela intolerância e por nossa alienação da política, compreendida como atividade que conecta pessoas no espaço público, em busca do bem-estar coletivo. A política reduzida ao algoritmo é o que torna central o debate sobre a simbiose entre ficção e realidade, com o objetivo de desalojar o negacionismo e as fake-news. Exatamente por isso, inseridas ao longo do filme, as entrevistas impactam mormente. Por meio delas, descobrimos racistas, nacionalistas e neonazistas acomodados à lógica da violência. Em contraponto, também capturamos o eficaz poder da ficção, que ativa a linguagem dos grupos que não se abstêm de colocar-se às câmeras. A ficção não está fora da vida, antes, é o que nos permite enxergar melhor o real, por isso este filme merece atenção. A propósito de uma trama cinematográfica e tendo à frente um “Hitler de mentira”, as pessoas expõem desejos bem reais, em sua maioria relacionados ao desconforto com a imigração. A inserção das entrevistas funciona porque essas reforçam o jogo entre o real e o ficcional, obrigando-nos a ver a presença do passado como trauma. Não por acaso, um dos entrevistados confessa: “não podemos dizer nada porque somos alemães, há o estigma do passado”.

Cena do filme “Ele está de volta”

Resta responder, a propósito do filme, o que une cultura, política e mídias. Catapultado à celebridade, o Hitler do filme encanta as pessoas que o cercam, sem dispensar a linguagem e a estética violentas. Para viabilizar e visibilizar esse personagem, a mídia se movimenta compartimentando o fato e a exploração do fato, tendo conhecimento da cultura política com a qual interage e buscando tornar efêmera a memória coletiva. Assim, o espetáculo midiático unifica o diverso, impõe “uma verdade” e afirma a aparência. Isso não é exatamente novo; a novidade é como as novas tecnologias ampliaram o poder midiático de cultivar versões e pontos de vista, a despeito da verdade. Em um universo assim constituído, a liderança escolhida pode ser um “zé-ninguém”, que não tem o que dizer, embora pareça ter. Assustadoramente, Hitler tinha mais a formular, se comparado à liderança autoritária brasileira, que se sustenta pelo esvaziamento das instituições, pela perversão da política e por uma defesa antissistêmica, cuja máxima é “destruir tudo o que aí está”.

Longe de mim insinuar que nosso país é dirigido por um nazista – a história e a nossa cultura política não permitem tal linearidade. Interessa-me, de fato, apontar o uso certeiro da mídia digital para produzir uma realidade que encerra convertidos sem escrúpulos ao uso da violência. Por esse motivo, retornar à polis se faz urgente. A repetição traumática assim o exige. Ora ou outra, a conta chega. Um coletivo emancipado exige alteridade tanto quanto dissenso. O eu é um outro: é isso que a história nos ensina, do ponto de vista ético-político.


[1]Trata-se de uma palestra de Adorno transmitida na rádio de Hessen, em 18 de abril em 1965, publicada em Frankfurt, no ano de 1967. 

Fonte: Blog Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/ele-nao-pode-estar-de-volta-se-nunca-foi-embora/


Nomadland encanta pelas contradições e se consagra como vencedor do Oscar 2021

Análise é da crítica de cinema Lilia Lustosa, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de abril

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), a crítica de cinema Lilia Lustosa acredita que o ano de 2021 pode representar um grande avanço para a conquista feminina no cinema.

“Ao que tudo indica, o ano de 2021, apesar de seu roteiro mais para cyberpunk ou filme-catástrofe, parece que vem para marcar positivamente a história do cinema. Pelo menos no quesito conquista feminina”, afirma Lilia, em artigo que publicou na revista mensal Política Democrática Online de abril (30ª edição).

Veja versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021

A publicação é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. O acesso a todos os conteúdos da revista é gratuito no site da entidade.

Dirigido, roteirizado, montado e produzido por Chloé Zhao, uma chinesa radicada nos Estados Unidos, Nomadland vem roubando todas as atenções e levando os prêmios mais importantes da temporada, na avaliação de Lilia Lustosa. O filme se tornou o segundo dirigido por uma mulher a receber a estatueta maior da grande premiação hollywoodiana (Melhor Filme) – e Chloé Zhao também repetiu o feito no prêmio de direção (Melhor Diretor).

Roadmovie

“Um roadmovie que mistura realidade e ficção, ao percorrer o oeste dos EUA retratando a vida dos novos nômades do país, tendo como protagonista a já oscarizada Frances McDormand”, conta a crítica de cinema, em seu artigo publicado na revista Política Democrática Online.

A origem asiática da diretora chama também a atenção, já que, conforme ressalta Lilia, a sociedade está assistindo, na vida real, a um aumento da violência contra pessoas nascidas naquela região, “a quem muitas vezes tem sido atribuída a culpa pelo surgimento do coronavírus”.

“Um cenário macabro de uma ficção científica rasa e injusta!”, critica Lilia. “Mas, enquanto o movimento Stop Asian Hate ganha forças nas ruas, Cloé Zhao brilha absoluta nos palcos dos festivais e nas telas de cinema, televisores, computadores, tablets ou smartphones de todo o mundo”, destaca o artigo da revista online da FAP.

Globo de Ouro

Em fevereiro último, como lembra Lilia, Cloé Zhao se tornou a primeira diretora a ter uma produção premiada com o Globo de Ouro de melhor filme, além de ser a segunda a levar a estatueta de melhor direção e a primeira asiática a conseguir esse feito.

“No Critics Choice Award, Zhao também saiu com o prêmio de direção, e Nomadland, com o de melhor filme. Fato que se repetiu no PGA Awards, premiação do Sindicato dos Produtores de Hollywood, em que seu filme foi laureado mais uma vez como o melhor do ano”, diz.

Para saber todos os detalhes da crítica de cinema produzida por Lilia, acesse diretamente a versão flip da revista Política Democrática Online de abril. A publicação também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, artigos de política nacional, política externa, cultura, entre outros, e reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos.

Veja todos os autores da 30ª edição da revista Política Democrática Online

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.

Druk: o filme que “passa ao largo do moralismo” e “não demoniza a bebida”

Morto há 50 anos, Anísio Teixeira deixou vivo legado para a educação brasileira

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Druk: O filme que "passa ao largo do moralismo” e “não demoniza a bebida”

Confira crítica de cinema do jornalista Henrique Brandão sobre filme dinamarquês com indicação ao Oscar de melhor diretor

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Autodefinido amante de cinema, o jornalista Henrique Brandão diz que o filme dinamarquês “Druk – Mais uma rodada”, do diretor Thomas Vinterberg e estreado há menos de um mês no circuito de cinemas brasileiros, “passa ao largo do moralismo habitual” que cerca a relação do ser humano com o álcool.

Brandão publicou sua crítica de cinema na revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. O acesso a todos os conteúdos da revista é gratuito no site da entidade.

Veja versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021

O filme estreou no país no dia 25 de março e, por conta da pandemia que afastou o público das salas, também está disponível nas plataformas digitais (Now, iTunes, Apple TV, Google Play e YouTube Filmes). “É o representante da Dinamarca na disputa do Oscar de filme estrangeiro. Seu autor, Thomas Vinterberg, foi indicado para a categoria de melhor direção”, ressalta.

“Bebida não demonizada”

Embora aborde um tema explorado exaustivamente pelo audiovisual, que é a relação do ser humano com o álcool, o filme não cai no moralismo. “A bebida não é demonizada, nem idolatrada. É mais um elemento com que todos convivem”, diz o jornalista, em seu artigo publicado na revista Política Democrática Online de abril.

“Na verdade, o filme é uma ode à vida. Sem maniqueísmo. Não há heróis, nem bandidos. Apenas pessoas tentando seguir adiante, em busca de algumas doses de felicidade”, observa o autor da crítica de cinema.

Brandão observa que Hollywood, a maior indústria de cinema do mundo, “é pródiga em obras que condenam o consumo excessivo de álcool”. “Farrapo Humano (The Lost Weekend, 1945) talvez seja a mais famosa delas. Dirigida pelo genial Billy Wilder, foi indicada em sete categorias e arrebatou os principais prêmios (filme, direção, ator e roteiro adaptado)”, lembra.

Mais exemplo

Outro clássico hollywoodiano em que a bebida é apresentada como destruidora de lares, conforme lembra o artigo da revista da FAP, é Nasce uma Estrela (A Start is Born), que teve, até agora, quatro versões. A mais celebrada delas é a que teve Judy Garland (1922-1969) no papel principal, em 1954. A lista é enorme.

Mais detalhes da crítica produzida por Brandão podem ser conferidos diretamente na versão flip da revista Política Democrática Online de abril. A publicação também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, artigos de política nacional, política externa, cultura, entre outros, e reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos.

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O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.

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Jairo Malta: 'Dois Estranhos' mostra que negros são alvos não importa o que façam

Curta indicado ao Oscar homenageia George Floyd com trama de homem que é assassinado repetidas vezes por um policial

“Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte/ Porque apesar de muito moço, me sinto são e salvo e forte.” Já se sentiu assim como Belchior em “Sujeito de Sorte”?

Eu não. Sou preto de quebrada, e sorte é um produto que, quando compramos no AliExpress, sempre fica preso em algum país racista.

Baleado com uma furadeira na mão. Baleado voltando da escola. Baleado por brincar no quintal de casa. E 80 balas por estacionar o carro em frente a um grupo de soldados. A gente é público-alvo, alvo de bala.

Em "Dois Estranhos", curta indicado ao Oscar e disponível na Netflix, Carter James acorda depois de uma noite aparentemente romântica com a linda Perri. Ele está na casa dela e precisa voltar para dar comida a seu cachorro. Ao descer as escadas do prédio, é abordado pelo oficial Merk. A partir dali, é bala, bala e bala.

São 30 minutos de um único homem negro morrendo porque correu, porque fumou, porque deixou cair o dinheiro no chão ou porque disse algo que o policial não entendeu. O ditado “basta estar vivo para morrer” deveria ser “basta ser preto para não viver”. Viver com medo de morrer não é viver.

Se o filme fosse filmado no Brasil, duraria 23 minutos.

O curta é uma clara homenagem dos diretores Travon Free e Martin Desmond Roe a George Floyd, assassinado por asfixia depois de falar mais de 20 vezes “eu não consigo respirar".

Interessante que, em todas essas tantas mortes a que Carter é submetido, ele sempre faz o papel do mocinho. É educado ao descer as escadas, elogiando as pessoas, cumprimentando todos e abrindo a porta para um estranho. Até que é visto por Merk. E bala.

Se você é negro, sabe que isso é normal. Se vai ao mercado, por exemplo, o segurança vai seguir você, surgir nos corredores, aparecer no campo de visão de longe, olhando. A dica é faça amizade com o segurança, cumprimente sempre que entrar no mercado, isso ameniza a relação. Mas, para ele, você ainda é um suspeito.

Em dado momento, Carter reflete sobre isso –eu sou mais inteligente que ele, sou provavelmente mais rico que ele, mais bonito. Vou tentar conversar. Já os argumentos de Merk vão na linha de “sou do interior", "sou xucro", "não tenho muito estudo” até ele matar Carter mais uma vez.

Adam Rutherford, geneticista e comunicador britânico, lançou em fevereiro do ano passado o livro “How To Argue With a Racist”, ou como discutir com um racista, ainda sem edição no Brasil. Nele, diz “este livro é uma arma!”. Assim como o cantor Belchior, Rutherford é branco.

Carter tenta de tudo para voltar para casa e alimentar o cachorro. Se veste bem, arruma o óculos, penteia os cabelos. Mas, para Merk, seria melhor ele guardar a sua melhor roupa para o caixão.

Todos são culpados, quem mata e quem assiste. Nem o nosso nome é lembrado. No “caso Henry”, Henry é um menino branco cruelmente assassinado. No dos três meninos de Belford Roxo, eles são crianças que desapareceram. Em um, a mídia faz especial, fala com pais, mãe, babá, avó e o cachorro de estimação. No outro, a mídia cobriu uma manifestação que “terminou em baderna”.

Tentamos de tudo para não morrer. Política, Marielle Franco. Música, Evaldo dos Santos. Esporte, Mário Sabino. Estudos, Emily VictóriaÁgatha Félix, Jenifer Gomes. Mas continuamos morrendo. Qual é a solução?

Imagina que em um quarto tem muito dinheiro, comida, todos vivendo bem e seguros, mas você está do lado de fora dele com fome, vendo a sua família morrer. Todos os dias você bate na porta, eles abrem e deixam você ver tudo —festas, risadas, comida e segurança. Não deixam você entrar.

Todos os dias, você canta. “Temos fome, estamos morrendo, por favor! Nos deixem entrar.” Mais uma semana e a música muda. “Estamos morrendo, preciso entrar.” No mês seguinte, “estou morrendo, vou arrombar a porta”. Um ano depois, você quebra a maçaneta e entra.

Pedimos de todas as formas. Panteras Negras, Movimento Negro Unificado, Marielle Franco. A maioria deles está morta ou na cadeia. Então, agora, o que acha que vamos fazer?

DOIS ESTRANHOS

  • Onde Na Netflix
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Joey Bada$$, Andrew Howard, Zaria
  • Direção Martin Desmond Roe, Travon Free

RPD || Lilia Lustosa: Cinema feminino e plural

Apesar da tragédia da pandemia do novo coronavírus,  2021 marca positivamente a história do cinema ao destacar a presença feminina, com duas mulheres concorrendo à categoria de Melhor Direção

Quantas diretoras de cinema você conhece? Dá para encher uma mão? E diretores? Muito mais fácil de lembrar, não? Eles são tantos! 

A verdade é que a indústria cinematográfica sempre foi dominada pelos homens, embora as mulheres tenham tido participação fundamental em sua consolidação. No entanto, como costuma acontecer em outras áreas, muitas dessas personagens femininas foram apagadas, esquecidas, editadas ou simplesmente cortadas da História. Ora, todos já ouvimos falar dos Irmãos Lumière, de Méliès, de Edison, certo? Mas quem conhece Alice Guy ou Lois Weber? Mulheres que, desde os primórdios do cinema, já atuavam por detrás das câmeras, mas cuja passagem pelos estúdios e salas escuras ficou perdida lá no passado! 

No Brasil, também foram muitas as que atuaram na construção do nosso cinema, como Carmem Santos, atriz, roteirista, diretora e produtora, que, já nos anos 20, criou a Film Artistico Brasileiro (F.A.B.) e, nos anos 30, com a chegada do sonoro, a Brasil Vita Filmes. Ou ainda Cléo de Verberena, atriz e produtora, primeira mulher a dirigir um longa de ficção no país, o desaparecido O Mistério do Dominó Preto (1931).  Isso sem falar de Adélia Sampaio, Helena Solberg, Helena Ignez… Tantas, mas das quais sabemos tão pouco! 

Ao que tudo indica, porém, o ano de 2021, apesar de seu roteiro mais para cyberpunk ou filme-catástrofe, parece que vem para marcar positivamente a história do cinema. Pelo menos no quesito conquista feminina! Isso porque o filme que vem roubando todas as atenções e levando os prêmios mais importantes da temporada é Nomadland, dirigido, roteirizado, montado e produzido por Chloé Zhao, uma chinesa radicada nos Estados Unidos. Um roadmovie que mistura realidade e ficção, ao percorrer o oeste dos EUA retratando a vida dos novos nômades do país, tendo como protagonista a já oscarizada Frances McDormand. 

A origem asiática da diretora chama também a atenção, já que estamos assistindo, na vida real, a um aumento da violência contra essa gente, a quem muitas vezes tem sido atribuída a culpa pelo surgimento do coronavírus. Um cenário macabro de uma ficção científica rasa e injusta! Mas enquanto o movimento Stop Asian Hate ganha forças nas ruas, Cloé Zhao brilha absoluta nos palcos dos festivais e nas telas de cinema, televisores, computadores, tablets ou smartphones de todo o mundo. Em fevereiro último, ela se tornou a primeira diretora a ter uma produção premiada com o Globo de Ouro de melhor filme, além de ser a segunda a levar a estatueta de melhor direção e a primeira asiática a conseguir esse feito. No Critics Choice Award, Zhao também saiu com o prêmio de direção, e Nomadland, com o de melhor filme. Fato que se repetiu no PGA Awards, premiação do Sindicato dos Produtores de Hollywood, em que seu filmefoi laureado mais uma vez como o melhor do ano.  



Resta agora o prêmio mais badalado da terra do tio Sam: o Oscar. No dia 25 deste mês, Nomadland concorrerá ali em seis categorias: melhor longa, direção, roteiro adaptado, montagem, fotografia e atriz. Dessas indicações, quatro levam a assinatura de Zhao. Uma proeza e tanto para tempos em que a desigualdade de gênero ainda é a regra do mercado! 

E o melhor de tudo é que a diretora nascida em Pequim não está sozinha nessa empreitada, já que a britânica Emerald Fennell também concorre ao prêmio de direção por seu inusitado Bela Vingança (2020), sendo este o primeiro Oscar a ter duas mulheres disputando essa categoria. Até então, em suas 93 edições, apenas cinco haviam sido indicadas por direção, mas nunca duas ao mesmo tempo. Fennell concorre ainda por roteiro original, e Bela Vingança, que tem a violência contra mulher como tema central, por melhor filme e montagem. Uma trama cheia de dores, cores e dissabores, e que traz uma Carey Mulligan esbanjando talento no papel da vingativa Cassandra, o que lhe rendeu, aliás, a indicação ao Oscar de melhor atriz. 

Fora Zhao e Fennell, outras tantas profissionais estão concorrendo nas mais diversas categorias. Sem dúvida, um grande passo para a tão almejada igualdade, mas que não deixa de sublinhar o triste fato de que, em pleno século 21, ainda tenhamos que aplaudir de pé a indicação de duas mulheres às categorias principais do Oscar. Pergunto-me então o que teria gerado essa “evolução”? A luta de tantos anos? Mudanças na composição dos boards dos prêmios? Ou será que o confinamento levou à reflexão, fazendo-nos entender de uma vez por todas que há espaço para talentos de todos os gêneros e raças nos sets de filmagem?  

Que venham as estatuetas! 

*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD || Henrique Brandão: Doses de felicidade

Thomas Vinterberg e Mads Mikkelsen emplacaram indicações ao Oscar (melhor diretor e melhor filme estrangeiro) e Bafta (melhor ator) com uma comédia dramática apoiada no existencialismo, refletindo sobre as relações humanas e sobre viver

Druk – Mais uma rodada, estreou no circuito de cinemas brasileiros no dia 25 de março e, por conta da pandemia que afastou o público das salas, também está disponível nas plataformas digitais (Now, iTunes, Apple TV, Google Play e YouTube Filmes). É o representante da Dinamarca na disputa do Oscar de filme estrangeiro. Seu autor, Thomas Vinterberg, foi indicado para a categoria de melhor direção.  

O filme aborda tema explorado exaustivamente pelo audiovisual: a relação do ser humano com o álcool.  

Hollywood, a maior indústria de cinema do mundo, é pródiga em obras que condenam o consumo excessivo de álcool. Farrapo Humano (The Lost Weekend, 1945) talvez seja a mais famosa delas. Dirigida pelo genial Billy Wilder, foi indicada em sete categorias e arrebatou os principais prêmios (filme, direção, ator e roteiro adaptado).  

Outro clássico hollywoodiano em a que a bebida é apresentada como destruidora de lares é Nasce uma Estrela (A Start is Born) que teve, até agora, quatro versões, sendo a mais celebrada a que teve Judy Garland (1922-1969) no papel principal, em 1954. A lista é enorme. 

Em muitos casos, a vida imitou a arte. Se a bebida era a principal vilã pela ruína dos personagens interpretados pelos astros e estrelas da indústria cinematográfica, por trás das câmeras a coisa não ficava muito longe da ficção. Judy Garland, por exemplo, não aguentou as pressões a que os estúdios e sua mãe dominadora a submetiam desde a adolescência e acabou tornando-se alcoólatra e dependente de barbitúricos, causa de sua morte, aos 47 anos. 

Foram muitos os astros bons de copo em Hollywood. Humphrey Bogart (1899 -1957), o lendário dono do Rick’s Café no filme Casablanca (1942), possivelmente é o mais conhecido deles. Certa feita, quando perguntado se estava bêbado ao depor em um tribunal, declarou: “e quem não está bêbado às três da manhã?” Outra tirada famosa atribuída a ele: “a humanidade está três uísques atrasada.” 

Vários diretores de cinema também gostavam de dar seus goles. Que o digam John Houston (1906-1987), com quem Bogart estrelou Relíquia Macabra (Maltese Falcon, 1941), O Tesouro de Sierra Madre (The Treasure of the Sierra Madre, 1948) e Uma Aventura na África (The African Queen, 1951), e Orson Welles (1915-1985), o diretor de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), considerado pela crítica até hoje um dos melhores filmes de todos os tempos.  

(Welles é conhecido dos brasileiros: em 1942 esteve no Rio para filmar o carnaval carioca como parte de It’s All True. O filme nunca foi concluído, mas o diretor se acabou na folia, regada a bebida e lança-perfume.)  

Por aqui, abaixo do Equador, na mesma linha melodramática da desgraça alcoólica, O Ébrio (1946), estrelado por Vicente Celestino (1894-1968), foi um estouro de bilheteria. O nome fala por si.  

Nem tudo, porém, foi tratado como tragédia. Bar Esperança (1983), de Hugo Carvana (1937-2014), é uma deliciosa comédia. A cena em que dois amigos acordam com um cachorro ao lado e indagam um ao outro se o animal é real ou fruto de delirium tremens é antológica.  

Em tom de comédia dramática, Druk – Mais uma rodada, traz abordagem mais humanitária do tema. Ao contrário de grande parte dos filmes norte-americanos, não mostra visão puritana do consumo de álcool.  

Seus personagens são quatro professores de Copenhague em crise de meia idade. O marasmo de suas vidas afetiva e profissional é evidente. Durante um encontro, surge a ideia de testarem a hipótese levantada pelo psicoterapeuta norueguês Finn Skarderud de que o ser humano nasce com 0,05% de déficit alcoólico e que repor essa quantidade diariamente deixaria a todos mais felizes e dinâmicos.  

Usando bafômetros e um diário onde registram suas impressões, o quarteto cai de boca na bebida para comprovar a tese. Os efeitos positivos são logo vislumbrados. Os alunos de Martin, o personagem interpretado com maestria por Mats Milkkelsen, são os primeiros a enxergarem a mudança: as tediosas aulas de história dão lugar a lições que atraem o interesse de todos. Em casa, a relação com a esposa e os filhos reaquece. 

Os outros amigos-professores, cada qual à sua maneira, também percebem as alterações nas suas rotinas. Diante dos efeitos positivos, os amigos resolvem ampliar o consumo de bebidas. Nem todos, no entanto, reagem bem ao aumento da ingestão alcoólica.  

Druk – Mais uma rodada passa ao largo do moralismo habitual que cerca o assunto. A bebida não é demonizada, nem idolatrada. É mais um elemento com que todos convivem. Na verdade, o filme é uma ode à vida. Sem maniqueísmo. Não há heróis, nem bandidos. Apenas pessoas tentando seguir adiante, em busca de algumas doses de felicidade. 

*Henrique Brandão é jornalista e amante de cinema 

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD || Henrique Brandão: Os 7 de Chicago, mais atual do que nunca

Filme de Aaron Sorkin, disponível na Netflix, aproveita elenco estelar em poderoso drama que recria o famoso julgamento de um grupo de ativistas acusado de conspiração e incitação à violência durante a Convenção do Partido Democrata, em Chicago, no ano de 1968

Desde 16 de outubro, encontra-se disponível na Netflix Os 7 de Chicago (The Trial of the Chicago 7).  O filme era aguardado pela crítica norte-americana e está cotado para concorrer ao Oscar. A expectativa pela estreia do longa de Aaron Sorkin – diretor de A Grande Jogada, (2017) e roteirista de A Rede Social (2010) e da série The Newsroom (2011-13), entre outros –  se explica: Os 7 de Chicago recria o famoso julgamento de um grupo de ativistas acusado pelo governo norte-americano de conspiração e incitação à violência durante a Convenção do Partido Democrata, em Chicago. 

O ano em que isso ocorreu? O indefectível 1968, é claro. Sem que ninguém tivesse combinado, em 1968 o mundo girou uma volta e protestou às pencas – em tal velocidade que nem a Lusitana daria conta de registrar todos os acontecimentos. Se fosse para gritar por liberdade, cabiam todos no caminhão das mudanças. O mundo fervia. 

Os EUA não ficaram de fora dessa roda viva. No ano, os assassinatos de Martin Luther King (abril) e Robert Kennedy (junho) chocaram o mundo. O movimento contra a Guerra do Vietnam ganhava corpo, dividindo o país, e os negros cada vez mais afirmavam sua identidade. Em paralelo, o movimento Hippie, com sua pregação de paz e amor, corria como rastilho de pólvora ameaçando a moral e os bons costumes estabelecidos. 

É nesse contexto que, em agosto, o Partido Democrata se reuniu para escolher seu candidato às eleições em novembro. Chicago tornou-se o epicentro dos protestos: milhares de manifestantes convergiram para a cidade, com suas bandeiras e palavras de ordem.  

Um big aparato de repressão os esperava: 12 mil policiais, 6 mil soldados da Guarda Nacional e 5 mil do Exército. A ordem do prefeito era não deixar ninguém se aproximar do Anfiteatro da cidade, local da Convenção. Nenhum protesto seria tolerado.  

O confronto era inevitável. No último dia da Convenção, cansados de apanhar, os manifestantes enfrentaram a polícia que, descontrolada, distribuiu cacetadas a rodo. Sobrou para todo mundo, além dos que protestavam: repórteres, delegados partidários, observadores. A cidade virou uma praça de guerra. O “Massacre de Chicago”, como ficou conhecido o episódio, foi transmitido pela TV para todo os EUA num filme de 17 minutos, sem cortes – um marco no jornalismo norte-americano. 

No ano seguinte, já com o republicano Richard Nixon na Casa Branca, a Comissão da Câmara sobre Atividades Antiamericanas abriu um inquérito por conspiração contra Tom Hayden e Rennie Davies (SDS – Estudantes para uma Sociedade Democrática); David Dellinger ( MOBE – Comitê de Mobilização contra a Guerra do Vietnam); Abbie Hoffman e Jerry Rubin (Yippie – Partido Internacional da Juventude); Lee Wainer e John Froines, professores; e Bobby Seale (Panteras Negras), considerados os líderes dos protestos. O julgamento começou em setembro de 1969 e se arrastou por cinco meses. 

Os 7 de Chicago revisita esse julgamento, que mobilizou ampla rede de solidariedade e ganhou vasta cobertura de imprensa. Trata-se de um filme de tribunal, na melhor tradição de Hollywood. É da sala do júri que, por meio de flashbacks, o quebra-cabeças (sem trocadilho) vai sendo mostrado ao espectador.   

Com um juiz controverso à frente do inquérito, Abbie Hoffman e seu parceiro, Jerry Rubin (ótimas atuações de Sacha Baron Cohen e Jeremy Strong), aproveitam a ocasião para desmoralizar o julgamento com performances hilárias, repetindo a postura iconoclasta que haviam adotado nos protestos de Chicago (dentre outras pilhérias, espalharam o boato de que iriam colocar LSD nos reservatórios de água da cidade, para todos entrarem numa viagem lisérgica. Muitos levaram a sério a piada, como o jornal conservador Chicago Tribune, e o consumo de água mineral disparou).  

O auge do confronto no Tribunal é quando o juiz (magnificamente interpretado por Frank Langella) manda amarrar na cadeira e amordaçar Bob Seale, por tentativa de obstrução dos trabalhos. Seale acusava o juiz de fascista e racista. Após este ato, o líder dos Panteras Negras foi julgado em separado. Com sua saída, o inquérito passou a ser conhecido como Os 7 de Chicago

Passados mais de 40 anos, o filme mostra que os avanços na sociedade norte-americana andam a passos lentos. Um estudo da ONG Mapping Police Violence aponta que negros têm quase três vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que brancos. A brutalidade policial inspirou o surgimento do movimento #BlackLivesMatter (Vidas Negras Importam). O filme é mais atual do que nunca. 


Marcos Sorrilha: Relatos do mundo atual

Marc Bloch, um dos mais famosos historiadores do século XX, dizia que “os homens se parecem mais com o seu tempo do que com seus pais”. O mesmo serve para os produtos culturais. Elaborações humanas, tais criações trazem impressas as inquietações dos sujeitos que as concebem, bem como a influência do tempo que os move. Relatos do Mundo, filme lançado no final de 2020 e protagonizado por Tom Hanks é um exemplo disso.

Jefferson Kidd lê noticias a um público popular em uma cidade no Texas

Neste western, vemos Jefferson Kyle Kidd, um ex-capitão na Guerra Civil, em sua tentativa de reconstruir sua vida arrasada pelo conflito entre o Norte e o Sul. Diante da impossibilidade de seguir com sua antiga profissão de tipógrafo, o veterano assume um novo papel na sociedade: o de levar as notícias de jornais aos rincões do Texas, por meio de leituras feitas a um público formado majoritariamente por fazendeiros analfabetos.

Em suas andanças pelo interior do estado da estrela solitária, Jefferson Kidd encontra Johanna, uma menina órfã, filha de alemães, mas criada por indígenas da etnia Kiowa. A tragédia marca a história da pequena que, além de ter seus pais mortos pelos nativos, também viu sua família adotiva ser dizimada. Neste encontro, Kidd toma para si o desafio de reconduzi-la a um novo lar, fato que rapidamente se converte no gatilho para o desenrolar da trama do filme.

Ambientado no ano de 1870, o filme tem todos os elementos de um western e dialoga com noções clássicas de uma tradição de produções do gênero, como bem observou Luiz Gonzaga Marchezan em sua crítica ao longa-metragemPorém, Relatos do Mundo não é um bang-bang qualquer. Ainda que, à sua maneira, todos os elementos estejam lá – seja pelo ambiente social hostil, na paisagem árida ou no conflito entre civilização e barbárie – , o filme tem mais a falar sobre 2020 do que sobre o passado narrado em seu roteiro. Trata-se de uma leitura sobre o desafio de unir uma América cindida pelo recrudescimento da polarização política das últimas décadas e que teve seu ápice durante os anos em que Donald Trump foi presidente dos EUA.

Os primeiros quinze minutos de tela são cruciais para entendermos essa questão. Neles, somos apresentados ao contexto histórico em que o filme se passa: a Reconstrução do Sul (1865 – 1877). Em uma cena repleta de tensão, Jefferson Kidd transmitia notícias do Governo Federal quando menciona o nome de Ulysses Grant. Imediatamente, o ex-General do Exército da União e então presidente dos EUA é chamado de “facínora” pelo público que assistia ao “noticiário”. O tumulto torna-se inevitável quando o personagem de Tom Hanks menciona que, para que o retorno do Texas aos EUA fosse concretizado, o estado deveria aderir integralmente às novas emendas da Constituição que previam o fim da escravidão e a extensão da cidadania aos afro-americanos, incluindo o direito ao voto a todos os homens maiores de vinte e um anos.

Jefferson Kidd e Johanna refletem sobre a vida

O público, então, aos gritos, volta-se contra um grupo de soldados federais que acompanhava a reunião, questionando não apenas a sua presença no recinto, mas em suas terras. Afinal, o trabalho do exército não era o de protegê-los dos índios e dos mexicanos ao invés de tratá-los como inimigos? Qual o papel do governo federal senão o de explorá-los e roubar suas liberdades? Em boa medida, a cena ecoa o discurso de uma classe média branca e que se sentiu preterida pelo Estado durante o processo de globalização nos tempos atuais.

Porém, é preciso que se diga que, para muitos historiadores estadunidenses, o período da reconstrução é essencial para se entender a divisão política que se tornou ainda mais evidente na última década. Uma espécie de ressurgimento de um orgulho branco, seja na defesa pelos monumentos da Guerra Civil ou da bandeira confederada demonstra que o ressentimento apresentado nas primeiras cenas do filme ainda encontra respaldo na atualidade. Ao contrário de sua proposta inicial, a Reconstrução não conseguiu cumprir seus objetivos: não garantiu a extensão de direitos aos afro-americanos, tampouco garantiu uma reintegração pacífica do Sul à União.

Naquela oportunidade, exibida no western, Jefferson Kidd interveio dissipando a confusão. Sem deixar de demonstrar compaixão por sua audiência, ele discursou sobre os tempos difíceis pelo qual passava o país e da necessidade de que todos fizessem sua parte para a sua superação. E tal superação passa pelo acerto de contas com o passado. Não em forma de vingança, mas na reconciliação de um povo com seus traumas, suas feridas.

Donald Trump em campanha com a bandeira do Texas

De maneira geral, essa é a mensagem do filme trazida a nós pelo diálogo dos principais protagonistas: Kidd e Johanna. Em dado momento, ao lembrar-se da morte dos pais, a menina se entristece. Para poupá-la da dor, seu companheiro de jornada sugere que ela esqueça o que aconteceu e siga adiante, pois assim, afastar-se-ia mais rápido do sofrimento. No entanto, ela se recusa a aceitar a proposta e devolve dizendo: “para seguir em frente é preciso se lembrar”, aceitar a dor e torná-la parte da narrativa. Eis o desafio da América pós-Trump.

Finalmente, existe ainda uma última passagem na qual o presente salta às telas misturada à paisagem rude do século XIX. É quando Kidd se levanta contra a disseminação de notícias falsas em nome da democracia e do livre arbítrio. Ao se negar a ser o locutor de uma “verdade alternativa” – completamente distante da verdade factual – , Jefferson Kidd confronta o potentado local narrando os fatos do mundo real. E, naquele momento, ele se dirige a todos nós: são relatos de um mundo extremamente atual.

(Uma versão ampliada do argumento do artigo está disponível em formato de vídeo no canal do Professor Marcos Sorrilha no YouTube. Confira:
https://youtu.be/RtxVWH569-w )


RPD || Lilia Lustosa: É tudo pra ontem, tá ligado?

Dividido em três atos, AmarElo - é tudo pra ontem é uma aula de história da cultura brasileira que é também a própria história da cultura negra, herdeira da escravidão e dos maus-tratos, avalia Lilia Lustosa

O palco é o Theatro Municipal de São Paulo. O ano, 2019. Na programação, nada de óperas, orquestras sinfônicas ou coros líricos … A estrela hoje é o rapper Emicida em seu show de lançamento do disco AmarElo, premiado com o Grammy Latino de melhor disco de rock ou música alternativa em língua portuguesa. Show que virou filme pelas mãos do estreante Fred Ouro Preto e foi lançado recentemente em outro palco de elite: a Netflix.
Dividido em três atos, AmarElo - é tudo pra ontem é uma verdadeira aula de história da cultura brasileira que, como bem deveríamos saber (e não sabemos), é também a própria história da cultura negra, herdeira da escravidão e dos maus-tratos. História de um povo (nosso povo!) que foi apagada de nossos livros didáticos. História de personagens invisibilizados por tantos líderes brancos que ocuparam nossos tronos.

Impossível não nos sentirmos envergonhados de nossas ignorância, impotência e aquiescência diante do que vemos. Sentimentos que se misturam também ao da indignação: como não nos ensinaram tudo isso na escola? Por que não fomos incentivados a ler Lélia Gonzalez? Por que não aprendemos sobre Tebas – escravo que virou arquiteto e que tanto fez pela cidade de São Paulo? Por que não tivemos capítulos em nossos livros dedicados ao Movimento Negro Unificado (MNU) e à sua marcha de 1978? Por que não aprendemos sobre a força dessa gente de pele escura que, em plena ditadura, ousou subir as escadarias desse mesmo Theatro Municipal e fazer dali a tribuna de seu protesto?

AmarElo joga tudo na nossa cara! Mais que isso, esse filme-show-aula-de-história abre as portas do teatro mais importante de São Paulo para o brasileiro comum, para a gente pobre, de classe média baixa, vestida de jeans e camiseta. Gente de cabelo enrolado, liso ou afro, de pele escura, parda, branca, amarela. Uma amostra verdadeira de nosso povo que pode se ver ali enfim representado. Gente que nunca ousou pisar naquele palco, nem ocupar aquele espaço!

O filme ensina, toca, embala, enche nossa alma. Apresenta-nos músicas novas e antigas repaginadas, como a que dá nome ao disco (e ao filme), que tem como sample-base a Sujeito de Sorte (1976), de Belchior, e seu refrão mais que apropriado: “Ano passado eu morri, mas esse ano não morro!” AmarElo mostra-nos ainda variações do rap, gênero de protesto já consolidado no Brasil, mas que segue em eterna (r)evolução. Um rap menos masculizado, híbrido, fluido, que amplia sua área de atuação, fugindo dos padrões de uma arte feita por “machos”, ao incluir as artistas Majur e Pabllo Vittar em seu número principal. O resultado é de arrepiar! A música cola na cabeça, liberta a alma e instiga a criar coragem para fazer a diferença. Emicida impressiona por sua lucidez, seu pensamento filosófico e grandeza de sua arte.

Sem jamais cair no piegas, o filme, conduzido pela voz firme do rapper paulistano, navega por várias cores e texturas, formando uma espécie de colagem com imagens granuladas em preto e branco justapostas a imagens coloridas em alta definição, entremeadas por belas lustrações que se animam e dão cor e leveza à história ali apresentada. Emicida vai mostrando de forma não linear o caminho que o levou até ali, desde sua infância na periferia, passando pela confecção do disco, pelos encontros com personalidades artísticas, até a explosão do show no Municipal. Um caminho alimentado pelo resgate da verdadeira História do Brasil. Dá vontade de continuar assistindo, de descobrir um pouco mais, de puxar aquele novelo e desenrolá-lo por completo.

Só não entendi a menção ao filme Orfeu do Carnaval (1959), do francês Marcel Camus, que, apesar de ter levado a música brasileira mundo afora, mostra uma realidade caricata do Brasil e de suas favelas, pintando nossos negros como os “bons selvagens” de uma terra exótica e feliz. Melhor seria ter citado algum filme de Adélia Sampaio, primeira mulher negra a dirigir um longa em nosso país. Ou obras como Ganza Zumba (1964), de Cacá Diegues, e Barravento(1962), de Glauber Rocha, que inovaram ao dar protagonismo a personagens negros até então relegados à subalternidade.

De toda maneira, o AmarElo de Emicida é um filme urgente para estes tempos tão sombrios, já que traz à tona e põe em xeque temas da ordem do dia: gentrificação, apagamento histórico, masculinidade, racismo estrutural, genocídio negro… Seus densos 89 minutos de duração nos obrigam a olhar para trás e entender que é preciso reescrever nossa história, reparando injustiças e erros cometidos. E é pra ontem!

*Lilia Lustosa é crítica de cinema. Doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).


RPD || Henrique Brandão: Exclusão e preconceito unem Samba e Rap

Forte na construção do mito, documentário do show que o rapper fez, em novembro de 2019, no Theatro Municipal de São Paulo, reivindica para si os lugares da história cultural do país

O documentário “Emicida: AmarElo – É tudo pra ontem” tem recebido rasgados elogios na imprensa e nas redes sociais, desde que estreou na Netflix, em 8 de dezembro. O filme é o registro do show de lançamento do álbum homônimo do rapper paulista. Assisti-lo vale o ingresso, ou, mais apropriado para os tempos pandêmicos atuais, o clique no canal de streaming.

O local da apresentação é o palco do tradicional Theatro Municipal de São Paulo. Noite histórica. Teatro lotado, não pela costumeira plateia de melômanos de música clássica, mas por pessoas que sabiam na ponta da língua as rimas carregadas de contundência do rapper paulista. O público estava à vontade.

O que poderia vir a ser apenas o registro de um momento de ocupação de um espaço elitista por natureza, nas mãos de Emicida, do roteirista Toni C. e do diretor Fred Ouro Preto, transformou-se em um filme-manifesto muito original. Ao mesmo tempo em que carrega a visão particular de um artista oriundo da periferia de São Paulo, o documentário vai além e procura traçar um panorama da música brasileira de matriz africana e suas ligações com o rap.

Sem pretensões sociológicas, mas com críticas incisivas ao caráter excludente da formação social brasileira, Emicida é o condutor da história. No palco, divide músicas com convidados. O making off revela artistas que participaram da gravação do disco: (Zeca Pagodinho, Marcos Valle, Fabiana Cozza e Fernanda Montenegro). Em off, sua voz costura imagens atuais com cenas do passado, narrando a história do Brasil à sua maneira. Não a história triunfalista, mas o outro lado da moeda, em que a cara impressa é a dos pobres e negros que viveram – vivem – no país que foi o último das Américas a abolir a escravidão.

Emicida comenta: “de alguma forma meus sonhos e minhas lutas começaram muito tempo antes da minha chegada”. É a deixa para o início do passeio pela trajetória musical do país, estabelecendo conexão com o samba, outro gênero que enfrentou preconceitos e dificuldades para ser reconhecido.

Do início do século XX, quando o samba surgiu no Rio de Janeiro, até os dias atuais, muito aconteceu no panorama musical, mas pouca coisa mudou no que diz respeito à criminalização do pobre. “Os artistas de morro foram perseguidos por todos os meios. O Estado Brasileiro [criou] um instrumento jurídico conhecido como Lei da Vadiagem que, ao longo dos anos, aprisionou sambistas. O bizarro é que essa lei segue em vigor até hoje”, diz Emicida. Para comprovar a tese, imagens mostram a polícia reprimindo a gravação de um clipe do artista em uma comunidade da Zona Norte paulistana. É o presente repetindo o passado.

“O samba é o Brasil que deu certo”, exalta o rapper. “Não tem vitória possível para este país distante do samba”, enfatiza. Na tela, vão desfilando personagens que tiveram papel decisivo no gênero: Pixinguinha, Donga e os “Oito Batutas”, Ismael Silva, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Lecy Brandão, Riachão, Nelson Cavaquinho, entre outros.

Para Emicida, o rap e o samba são da mesma cepa. Jovelina, Jackson do Pandeiro, Jair Rodrigues e Wilson Batista “já eram hip-hop antes de nós existirmos”, defende. “Este fruto, ora azedo, ora adocicado que conhecemos como rap, hoje vem de uma grande árvore, e, se você for buscar as suas raízes, vai encontrar o samba.”

Não à toa, Emicida aproxima o rap ao samba. Traz para junto de si Wilson das Neves, ídolo confesso, descoberto em suas garimpagens discográficas pelos sebos, que vira seu parceiro em uma faixa do disco. O lendário baterista, com seu swing peculiar, elegante por natureza, faleceu antes da apresentação no Municipal paulista, para tristeza do rapper.

Em uma conversa com Marcos Vale, Emicida revela sua ambição: fundar um novo ritmo, uma nova linguagem artística: “com o AmarElo, eu tenho chamado de neosamba”.

Pelo sucesso que o disco vem fazendo, (conquistou o Grammy Latino na categoria “Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa”) e com esse poderoso inventário audiovisual, o rapper, com sua postura ao mesmo tempo altiva e serena, é hoje uma figura relevante da música brasileira.

Como mostra com cristalina evidência no documentário, Emicida sabe que, para mudar as coisas que se perpetuam há anos, é necessário juntar forças. “A única coisa que nós temos é uns aos outros”. Este é um mantra que perpassa o filme.

O rap está assentado no sampler, no uso da contribuição de “amostras” de outros artistas. Emicida resgatou versos de Belchior e criou a trilha sonora da pandemia: “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.

Que assim seja.

*Henrique Brandão é jornalista e escritor


Marcus Pestana: O Gambito da Rainha

As séries veiculadas pelas plataformas de streaming viraram verdadeira febre. Entre tantas opções de sucesso como “A Casa de Papel” ou “The Crown”, uma recentemente se destacou: “O Gambito da Rainha”. Já se tornou a série mais assistida da história da Netflix. Ao mergulhar no milenar e complexo universo do xadrez, através da trajetória de Elizabeth Harmon, a jovem órfã e brilhante enxadrista, evoca a arte de traçar estratégias, ativar manobras, montar artimanhas para vencer o adversário. Às vezes entregando uma de suas próprias peças.  

Sempre associei a política ao xadrez. A verdadeira política deve ter a sutileza, a astúcia e a inteligência do xadrez. Infelizmente, ela tem se assemelhado mais a uma luta de UFC ou a uma partida de rúgbi.

Entramos em 2021 com a política brasileira dividida entre quatro grandes campos: o bolsonarista, o do “centrão”, o polo democrático e a esquerda.

O bolsonarismo galvanizou nas últimas eleições presidenciais a rejeição à chamada “velha política” tradicional. Cacifado pelo voto popular, abriu mão do “presidencialismo de coalização” e tentou governar sem maioria parlamentar e através de uma política de confrontação com o Congresso e o STF. Agora, tendo jogado o lavajatismo ao mar, e preocupado com a instabilidade política excessiva, o bolsonarismo tenta dar um freio de arrumação tecendo aliança política com o que há de mais representativo da mesma “velha política” tão condenada em 2018. O gambito da rainha de Bolsonaro seria sacrificar o discurso renovador para derrotar a oposição democrática e de esquerda.

O “centrão” é formado por um conjunto de partidos que têm historicamente postura pragmática, patrimonialista e não ideológica. Funcionam como um pêndulo de governabilidade. Podem servir a governos díspares como os de Sarney, FHC, Lula, Dilma, Temer ou Bolsonaro, desde de que tenham acesso a verbas, cargos e espaços políticos. Aproveitam a fragilidade do governo Bolsonaro para recuperar espaços perdidos.

O polo democrático formado pelo DEM, PSDB, MDB, Cidadania, entre outros, defende a agenda econômica modernizante, mas não se alinha aos arroubos autoritários do governo e defende radicalmente a democracia, suas instituições, o combate às desigualdades e políticas alternativas nas relações exteriores, no meio ambiente, na educação, segurança e saúde. Liderado por Rodrigo Maia, tem sido o grande pilar da defesa da ordem constitucional e das reformas necessários. O seu gambito da rainha é a abertura de diálogo com a esquerda, sacrificando parte de sua base social, para manter a autonomia e o protagonismo do Congresso e seu papel de freio e contrapeso às tentativas “iliberais” de retrocesso.

A esquerda, em rota descendente desde 2015, reaparece no vácuo deixado pelo governo. Tenta se reposicionar e ampliar seu campo de diálogo. O gambito da rainha das esquerdas é sacrificar um pouco de sua identidade e da narrativa do “golpe” de 2016 para reconstruir pontes e quem sabe angariar o apoio do centro democrático num possível segundo turno de 2022.

Como os enxadristas sabem o gambito pode ser aceito ou recusado e os cenários de jogo são imprevisíveis. Que o desfecho do xadrez político, que terá seu próximo lance nas eleições das Mesas da Câmara e do Senado, reafirme a vitória dos valores da liberdade, da democracia e do desenvolvimento social.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)