mundo digital

Cidades pré-inteligentes vivem os avanços e os problemas do mundo digital

Amazon escolheu Nova York como sua segunda sede, mas, para surpresa, iniciou-se na cidade uma rejeição à empresa

Evandro Milet / A Gazeta

Quando decidiu criar uma segunda sede, agora fora de Seattle, onde começou, a Amazon provocou uma disputa nacional entre cidades, interessadas no potencial da empresa de gerar empregos e de atrair outras iniciativas.

Acabou escolhendo Nova York pela quantidade de técnicos disponíveis e pela oferta de 3 bilhões de dólares em incentivos. Para surpresa quase geral, iniciou-se na cidade uma rejeição à empresa, como parte talvez de um movimento mais amplo de rejeição às grandes empresas de tecnologia, já denominado de techlash - junção das palavras “technology” e “backlash” (rejeição a um evento recente na sociedade ou na política).

Alegações de gentrificação (expulsão de pessoas nos arredores onde a empresa se instalaria), pelo encarecimento automático das moradias, se juntaram à antipatia dos sindicatos pela postura reativa da Amazon à sindicalização de empregados, ao volume de incentivos e a uma certa arrogância da empresa no diálogo com políticos locais. O fato é que simplesmente “não rolou” e a Amazon teve de se conformar que seu poder é grande mas não é ilimitado, apesar de empregar mais de um milhão de pessoas e prometer 40 mil empregos para a cidade.

Antigamente, as grandes empresas, normalmente da indústria, se localizavam perto de rios ou nos arredores das grandes cidades por problemas de poluição ou de manipulação de grandes equipamentos e cargas. Hoje, as grandes empresas de tecnologia desbancaram em tamanho e valor as empresas industriais e de petróleo e procuram se localizar onde exista pessoal técnico para contratar e onde a carga se mova nas redes e na nuvem. No caso da Amazon, claro, seus depósitos devem ficar em sua maioria nos arredores de estradas e aeroportos, mas o seu núcleo técnico quer morar e trabalhar nos grandes centros.

O problema da gentrificação atinge outro grande player, o Airbnb, que enfrenta reações com a fuga de moradores dos centros para alugar seus imóveis para turistas, por prazo curto, reduzindo a oferta para moradores com interesse em prazos mais longos, provocando mudanças na dinâmica da vida das cidades, bem como dos condôminos, obrigados a conviver com desconhecidos, muitas vezes com hábitos diferentes.

O mundo digital provoca outras situações-problema. O home-office, que explodiu com a pandemia, e os lockdowns, disseminaram um infindável número de entregadores de comida e e-commerce em geral, criaram as novas figuras das dark kitchens e dark markets que, de um lado, criaram conforto, mas também infernizam o trânsito.

Trânsito, aliás, que já provocava polêmicas trabalhistas e tributárias entre motoristas de aplicativos, taxistas e prefeituras. Se, no início, os aplicativos trouxeram melhores serviços, agora são criticados pelos cancelamentos arbitrários de corridas e pela escolha de destinos. E tem patinetes compartilhadas, scooters pelas calçadas, motoristas digitando no celular no trânsito ou distraídos nos semáforos. Com a nossa vida migrando para o smartphone, o seu valor cresceu e passou a ser o objeto de desejo da bandidagem.

Algumas coisas interessantes traz o mundo digital. Reconhecimento facial nas ruas, embora ameaçando a privacidade, câmeras ajudando a elucidar crimes e cidadãos fotografando e filmando tudo de errado e mandando para a imprensa e para as redes sociais.

Ainda seremos muito afetados pelo digital com as promessas de drones entregadores, robôs e veículos autônomos, mas falta a infraestrutura digital decente, mesmo ainda pré-5G, principalmente para estudantes nas escolas e nas residências de baixa renda.

Enquanto as maravilhas das cidades inteligentes não se apresentam em sua plenitude, o mundo digital vai impactando o ambiente, aos trancos e barrancos.

Publicado em A Gazeta em 09/10/2021

Fonte: A Gazeta
https://www.agazeta.com.br/colunas/evandro-milet/cidades-pre-inteligentes-vivem-os-avancos-e-os-problemas-do-mundo-digital-1021


Cidadão digital terá agenda própria, não precisará da mídia para se informar

Aylê-Salassié Filgueiras Quintão / Democracia Política e novo Reformismo

A perda da exclusividade para construir a agenda diária da sociedade pode ser um dos próximos desafios da mídia. Os cidadãos parecem recorrer cada vez mais à informação digital para conhecer o estágio da pandemia, saber o que está acontecendo nos Jogos Olímpicos, ou sobre o funcionamento da Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso. A informação digital é imediata e franca, sem a interferência de empresas de marketing, de correntes ideológicas ou de manuais de redação orientando a produção da notícia.

A prerrogativa de privatização da informação sobre eventos públicos, inclusive de imagens, apropriada empresarialmente, tem sido silenciosamente desqualificada pela ação do cidadão comum. A televisão vem resistindo por causa do confinamento generalizado. As tiragens dos jornais caem sistematicamente e o rádio parece até que deixou de existir.

O novo concorrente desse jornalismo batizado como profissional é a "cobertura alternativa digital” -  o cidadão comum transmitindo direta e naturalmente a informação pelos meios domésticos (celular), como se estivesse contando um caso numa roda de amigos. É mais que isso: é o acesso livre à informação. Entende-se que a informação jornalística é cheia de vícios. 

Até os Jogos Olímpicos de Atenas (2004), a cobertura jornalística era feita única e exclusivamente pelos meios de comunicação convencionais que, monopolisticamente, adquiriam os direitos de transmissão e os revendiam para outras empresas de mídia. O credenciamento de um repórter custava US$ 1.000. Na Grécia, o Comitê Olímpico Internacional (COI) aceitou credenciar, pela primeira vez, a mídia digital, sob intensa resistência da mídia convencional. Na esteira da flexibilização, a Universidade Católica de Brasília (UCB) inaugurou, com estudantes de jornalismo, uma cobertura jornalística alternativa, puramente pedagógica.

Como os estudantes da Católica não tinham aquele dinheiro, nem a sua cobertura ameaçava a hegemonia da grande mídia, os projetos ganharam credenciamentos para a cobertura alternativa.  A experiência ainda foi analógica. Contava com o apoio do jornal Correio Braziliense, da TV Record, da Radiobras   e de mais onze jornais de sete Estados. Mas, na Grécia, os irmãos maristas, que acolheram o grupo de Brasília, haviam montado, no colégio Lyceé Patyssia, para os estudantes da Católica, um laboratório digital. Ali foram editadas matérias exclusivas que chegaram a ser reproduzidas pelas grandes empresas de mídia do Brasil. A experiência mereceu atenção da própria mídia helênica.

Os feitos foram repetidos em Pequim (2008), com o Jornal de Brasília e uma janela aberta pela Radiobras na sua página para a informação alternativa digital. Já nos Jogos de Londres (2012), os estudantes, ligados ao projeto LondonBridge, fizeram uma cobertura totalmente digitalizada. A reprodução do material foi ampla, e perdeu-se o controle.

Agora, nos Jogos de Tóquio os alternativos estão na rua, nas redes, dentro dos estádios, nos alojamentos dos atletas, nos restaurantes, nos bares e até, clandestinos, nos vestiários captando imagens prévias, descrevendo o ambiente e a tensão dos atletas antes das provas. O aparato de segurança não consegue controlar a ação do que chamaria de “repórteres cidadãos digitais” (RCD), cujas matérias não entram na televisão das grandes empresas, mas alcançam os telefones celulares de milhares e milhões mesmo em qualquer lugar no mundo.

Na cerimônia de abertura da Olimpíada de Tóquio, no dia 23 de julho, no Estádio Olímpico de Tóquio, apareceu por lá um jovem dos seus 20 a 25 anos, munido de um equipamento mínimo, propondo-se a fazer uma cobertura alternativa para ele mesmo, como se fosse um profissional. Não teve polícia que o interrompesse. Logo alcançou uma  audiência de 20 mil seguidores. Era um brasileiro.

Ele registrou os protestos comunitários contra a realização dos Jogos no Japão por causa da pandemia, reprimidos como se fosse uma rebelião. A mídia estava do lado de dentro do estádio, assistindo ao desfile das delegações.  A cobertura alternativa externa era transmitida via internet e se reproduzia  naturalmente em rede. Os compartilhamentos traziam também informações fornecidas pela audiência presente aos eventos.

Eu e meu colega, professor Paulo Trindade, cobrimos os Jogos de Atenas, Pequim e Londres. Neste último a cobertura já era totalmente digital. Conseguir o credenciamento em Londres foi muito difícil, porque, renitentes, os coordenadores de mídia exigiam nomes de empresas, equipamentos à mostra e registros profissionais. Eram todos universitários. Faziam parte de um projeto pedagógico. O COI não reconhece a categoria. Mas o grupo era de alto nível: dominava não apenas  as novas tecnologias, como falava línguas, alguns com a precisão dos nativos.

 Em Atenas, chegamos ao cúmulo de ter uma âncora digital, holográfica (Atena Politeia), que falava dezenas de idiomas. Descobrimos, ainda aqui, na Universidade, que o domínio das novas  tecnologias, o conhecimento da cultura olímpica e o falar línguas estrangeiras eram fundamentais para o relacionamento olímpico. Nosso grupo falava e escrevia em seis idiomas. Para ir a Atenas, passou-se um ano estudando grego moderno, francês e inglês. O mesmo aconteceu  em relação a Pequim. Estudamos o mandarim.  Em Tóquio, assisti, semana passada, pela internet, um rapaz noticiando sozinho, em seis línguas, para canais de tv estrangeiros.

As grandes empresas de mídia que vivem de privatizar a informação pública estão preocupadas. Ambiguamente, a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) realiza, neste momento, um congresso nacional, no qual pede a taxação das grandes plataformas digitais e a criação de um Fundo de Apoio para a atividade jornalística, mantido por  um imposto especial. Ao mesmo tempo, preocupa-se em configurar uma Plataforma Mundial de Jornalismo de Qualidade.

A resposta às verdades atravessadas no jornalismo pelas fake news, pelos interesses privados e políticos sobre questões essencialmente públicas, está sendo dada pela cobertura alternativa digital. Difícil interromper este processo. Já foi dada a largada. Construído pela população, no pós-Covid, o mundo poderá ter outra configuração cultural a partir desta cidadania.

*Jornalista e professor


Fonte: Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/08/ayle-salassie-filgueiras-quintao.html


Roberto Freire: Por uma esquerda contemporânea do futuro

Em um mundo que enfrenta um revolucionário processo de transformação, não é das tarefas mais simples para as forças políticas e agremiações partidárias se adaptarem à nova realidade. Instituições datadas do período da Revolução Industrial, ainda no século XIX, os partidos políticos perderam muito de sua interlocução junto à população e hoje têm enorme dificuldade de se estabelecer nas sociedades plenamente interconectadas em rede. As esquerdas, em especial, praticamente todas em crise em grande parte do mundo, só retomarão o diálogo com os demais atores sociais se tiverem a capacidade de interpretar as mudanças em curso.

Essa revolução social já é um dado da realidade que está bem diante dos nossos olhos e contra o qual não se pode lutar. Tal processo envolve não apenas o avanço das novas tecnologias ou das ferramentas de comunicação, mas se trata, fundamentalmente, de uma transformação radical na forma como nos relacionamos uns com os outros. É evidente que as sociedades atuais não têm praticamente nenhuma similitude com aquelas de décadas passadas. Este é um movimento irrefreável que só se intensificará.

Novas questões estão na ordem do dia no mundo moderno, entre as quais a inteligência artificial e a robotização. Os “Tempos Modernos”, retratados como obra-prima no cinema pela genialidade de Charles Chaplin são coisa do passado. Hoje, a linha de montagem é ocupada por robôs e por todo um processo de automação. Essa verdadeira revolução está transformando profundamente tudo o que está à nossa volta: o mundo do trabalho, a cultura, as relações sociais, os costumes e as instituições – entre elas, inclusive, até mesmo a própria família.

Este novo mundo digital que se descortina nos afeta a todos, em todos os segmentos de atividade, proporcionando o surgimento de novas ferramentas e organizações que substituirão as velhas estruturas – que podem ser simbolizadas, no mundo do trabalho, pelos atuais sindicatos. Para todas essas questões, é fundamental que tenhamos uma visão conectada com o futuro e abdiquemos de vícios e valores ultrapassados de um mundo que ficou para trás e não mais voltará.

Lamentavelmente, o que temos observado com certo estarrecimento, especialmente no Brasil, é um comportamento retrógrado e totalmente refratário às mudanças justamente por parte daqueles movimentos que se dizem progressistas e de vanguarda. Muitos deles, notadamente alguns grupos políticos de esquerda liderados pelo PT e seus aliados PCdoB, PDT e PSOL, têm se comportado como forças da reação, pois se insurgem contra toda e qualquer mudança. Basta haver uma proposta de reforma para que esses setores prontamente se posicionem em oposição a ela, como se o Brasil vivesse um nirvana que não justificasse qualquer iniciativa de transformação.

Provavelmente, não leram com atenção Karl Marx, autor do célebre panfleto “O Manifesto Comunista”, que escreveu: “tudo o que era sólido se desmancha no ar”. Ou devem ter lido essa frase como se fosse algo meramente poético. Na realidade, se trata de uma mudança muito mais profunda que, infelizmente, certa esquerda não consegue perceber. É justamente essa capacidade de interpretação da realidade e de projeção do futuro que esses grupos vêm perdendo paulatinamente.

Durante a Revolução Industrial, houve um movimento que se voltou contra a chamada “mecanização do trabalho” – o ludismo, inspirado e liderado por Ned Ludd, cujos seguidores se revoltaram contra a utilização das máquinas em substituição à mão-de-obra humana nas fábricas. Se naquele momento os ludistas destruíam a maquinaria, hoje temos uma espécie de “ludista digital”, aquele que se posiciona, inequivocamente, contra o avanço das inovações tecnológicas e o mundo digital.

Para citarmos outro exemplo, na área científica também há forte resistência a qualquer debate sobre avanços das pesquisas e o uso da tecnologia de ponta para novas descobertas. Recentemente, em meio aos debates a respeito do desenvolvimento da biotecnologia no Brasil – cujo avanço alguns tentaram impedir, sobretudo em relação às pesquisas sobre o uso de alimentos geneticamente modificados –, não foram poucos os setores mais atrasados e obscurantistas da esquerda que simplesmente não toleravam sequer debater o tema.

Comecei a minha militância política no velho Partido Comunista Brasileiro, o PCB, lutando pelas reformas de base. Já naquela época, éramos de uma esquerda que defendia e buscava as mudanças. O que se vê nos dias de hoje, infelizmente, é um comportamento agressivo, intolerante, anacrônico e até mesmo reacionário de certos setores do pensamento dito progressista que não aceitam nenhum tipo de reforma.

É necessário e urgente interpretar todo esse processo de transformação e estabelecer um canal direto de comunicação com os novos atores políticos e sociais – por meio das redes e rodas democráticas e dos mais diversos movimentos da cidadania. Temos de ser contemporâneos do futuro, que já começou. Ou seremos atropelados por ele. (Poder 360 – 05/11/2017)