Cidadão digital terá agenda própria, não precisará da mídia para se informar

Foto: Reprodução
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Aylê-Salassié Filgueiras Quintão / Democracia Política e novo Reformismo

A perda da exclusividade para construir a agenda diária da sociedade pode ser um dos próximos desafios da mídia. Os cidadãos parecem recorrer cada vez mais à informação digital para conhecer o estágio da pandemia, saber o que está acontecendo nos Jogos Olímpicos, ou sobre o funcionamento da Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso. A informação digital é imediata e franca, sem a interferência de empresas de marketing, de correntes ideológicas ou de manuais de redação orientando a produção da notícia.

A prerrogativa de privatização da informação sobre eventos públicos, inclusive de imagens, apropriada empresarialmente, tem sido silenciosamente desqualificada pela ação do cidadão comum. A televisão vem resistindo por causa do confinamento generalizado. As tiragens dos jornais caem sistematicamente e o rádio parece até que deixou de existir.

O novo concorrente desse jornalismo batizado como profissional é a “cobertura alternativa digital” –  o cidadão comum transmitindo direta e naturalmente a informação pelos meios domésticos (celular), como se estivesse contando um caso numa roda de amigos. É mais que isso: é o acesso livre à informação. Entende-se que a informação jornalística é cheia de vícios. 

Até os Jogos Olímpicos de Atenas (2004), a cobertura jornalística era feita única e exclusivamente pelos meios de comunicação convencionais que, monopolisticamente, adquiriam os direitos de transmissão e os revendiam para outras empresas de mídia. O credenciamento de um repórter custava US$ 1.000. Na Grécia, o Comitê Olímpico Internacional (COI) aceitou credenciar, pela primeira vez, a mídia digital, sob intensa resistência da mídia convencional. Na esteira da flexibilização, a Universidade Católica de Brasília (UCB) inaugurou, com estudantes de jornalismo, uma cobertura jornalística alternativa, puramente pedagógica.

Como os estudantes da Católica não tinham aquele dinheiro, nem a sua cobertura ameaçava a hegemonia da grande mídia, os projetos ganharam credenciamentos para a cobertura alternativa.  A experiência ainda foi analógica. Contava com o apoio do jornal Correio Braziliense, da TV Record, da Radiobras   e de mais onze jornais de sete Estados. Mas, na Grécia, os irmãos maristas, que acolheram o grupo de Brasília, haviam montado, no colégio Lyceé Patyssia, para os estudantes da Católica, um laboratório digital. Ali foram editadas matérias exclusivas que chegaram a ser reproduzidas pelas grandes empresas de mídia do Brasil. A experiência mereceu atenção da própria mídia helênica.

Os feitos foram repetidos em Pequim (2008), com o Jornal de Brasília e uma janela aberta pela Radiobras na sua página para a informação alternativa digital. Já nos Jogos de Londres (2012), os estudantes, ligados ao projeto LondonBridge, fizeram uma cobertura totalmente digitalizada. A reprodução do material foi ampla, e perdeu-se o controle.

Agora, nos Jogos de Tóquio os alternativos estão na rua, nas redes, dentro dos estádios, nos alojamentos dos atletas, nos restaurantes, nos bares e até, clandestinos, nos vestiários captando imagens prévias, descrevendo o ambiente e a tensão dos atletas antes das provas. O aparato de segurança não consegue controlar a ação do que chamaria de “repórteres cidadãos digitais” (RCD), cujas matérias não entram na televisão das grandes empresas, mas alcançam os telefones celulares de milhares e milhões mesmo em qualquer lugar no mundo.

Na cerimônia de abertura da Olimpíada de Tóquio, no dia 23 de julho, no Estádio Olímpico de Tóquio, apareceu por lá um jovem dos seus 20 a 25 anos, munido de um equipamento mínimo, propondo-se a fazer uma cobertura alternativa para ele mesmo, como se fosse um profissional. Não teve polícia que o interrompesse. Logo alcançou uma  audiência de 20 mil seguidores. Era um brasileiro.

Ele registrou os protestos comunitários contra a realização dos Jogos no Japão por causa da pandemia, reprimidos como se fosse uma rebelião. A mídia estava do lado de dentro do estádio, assistindo ao desfile das delegações.  A cobertura alternativa externa era transmitida via internet e se reproduzia  naturalmente em rede. Os compartilhamentos traziam também informações fornecidas pela audiência presente aos eventos.

Eu e meu colega, professor Paulo Trindade, cobrimos os Jogos de Atenas, Pequim e Londres. Neste último a cobertura já era totalmente digital. Conseguir o credenciamento em Londres foi muito difícil, porque, renitentes, os coordenadores de mídia exigiam nomes de empresas, equipamentos à mostra e registros profissionais. Eram todos universitários. Faziam parte de um projeto pedagógico. O COI não reconhece a categoria. Mas o grupo era de alto nível: dominava não apenas  as novas tecnologias, como falava línguas, alguns com a precisão dos nativos.

 Em Atenas, chegamos ao cúmulo de ter uma âncora digital, holográfica (Atena Politeia), que falava dezenas de idiomas. Descobrimos, ainda aqui, na Universidade, que o domínio das novas  tecnologias, o conhecimento da cultura olímpica e o falar línguas estrangeiras eram fundamentais para o relacionamento olímpico. Nosso grupo falava e escrevia em seis idiomas. Para ir a Atenas, passou-se um ano estudando grego moderno, francês e inglês. O mesmo aconteceu  em relação a Pequim. Estudamos o mandarim.  Em Tóquio, assisti, semana passada, pela internet, um rapaz noticiando sozinho, em seis línguas, para canais de tv estrangeiros.

As grandes empresas de mídia que vivem de privatizar a informação pública estão preocupadas. Ambiguamente, a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) realiza, neste momento, um congresso nacional, no qual pede a taxação das grandes plataformas digitais e a criação de um Fundo de Apoio para a atividade jornalística, mantido por  um imposto especial. Ao mesmo tempo, preocupa-se em configurar uma Plataforma Mundial de Jornalismo de Qualidade.

A resposta às verdades atravessadas no jornalismo pelas fake news, pelos interesses privados e políticos sobre questões essencialmente públicas, está sendo dada pela cobertura alternativa digital. Difícil interromper este processo. Já foi dada a largada. Construído pela população, no pós-Covid, o mundo poderá ter outra configuração cultural a partir desta cidadania.

*Jornalista e professor


Fonte: Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/08/ayle-salassie-filgueiras-quintao.html

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