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Ciro Nogueira aceita convite de Bolsonaro para ocupar a Casa Civil

Anúncio foi feito nas redes sociais pelo parlamentar, que falou em 'dedicação em busca do equilíbrio'

Ricardo Della Coletta, da Folha de S. Paulo

Presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PI) aceitou o convite de Jair Bolsonaro para ser o novo ministro da Casa Civil.

O anúncio foi feito pelo parlamentar no Twitter. "Acabo de aceitar o honroso convite para assumir a chefia da Casa Civil, feito pelo presidente Jair Bolsonaro", escreveu Ciro. "Peço a proteção de Deus para cumprir esse desafio da melhor forma que eu puder, com empenho e dedicação em busca do equilíbrio e dos avanços de que nosso país necessita.


Na manhã desta terça-feira (27), o senador esteve no Palácio do Planalto por cerca de duas horas, para uma reunião com Bolsonaro.

A chegada de Ciro ao Planalto não deve ser a única mudança no primeiro escalão.

Pelo desenho definido, a reforma ministerial envolve trocas em três pastas: o senador pelo Piauí vai para a Casa Civil no lugar do general Luiz Eduardo Ramos Ramos, que deve passar para a Secretaria-Geral da Presidência —ocupada hoje por Onyx Lorenzoni.

Já Onyx deve ser titular do Ministério do Emprego e Previdência, a ser recriado com o desmembramento do Ministério da Economia.

Após o encontro no Planalto, Ciro compartilhou uma foto em que, além de Bolsonaro, também aparecem o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e os ministros Ramos, Fábio Faria (Comunicações) e Flávia Arruda (Secretaria de Governo). "Tenho certeza também de que contaremos com o apoio do meu querido amigo Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, nessa honrosa missão", disse o senador, na publicação.

Ao deixar o Planalto, Ciro apenas afirmou que a posse deve ser "o mais rápido possível" e confirmou a recriação do ministério do Emprego.

Também nesta terça, Ramos confirmou sua transferência para a Secretaria-Geral.

"Seja bem-vindo Ciro Nogueira ao time Jair Bolsonaro. Desejo muito sucesso na Casa Civil. Agradeço aos servidores que estiveram comigo nessa jornada e sigo em nova missão determinada pelo Presidente da República na Secretaria-Geral. Tenham certeza que mais uma vez darei o meu melhor em defesa do Brasil", escreveu Ramos em uma rede social.

O convite de Bolsonaro para que Ciro Nogueira vá para a principal pasta do Palácio do Planalto é a jogada mais robusta que o presidente fez até aqui para assegurar o apoio de partidos e da base de congressistas ao seu governo.

Parlamentares, sobretudo os do centrão, vinham pressionando pela saída de Ramos da Casa Civil.
A avaliação é que o general não tem traquejo político, falha na articulação com o Legislativo e breca demandas de senadores e deputados, como a liberação de emendas.

Há ainda a constatação de que, com a proximidade das eleições de 2022, é preciso ter alguém na Casa Civil que saiba dar visibilidade aos feitos do governo.

Aliados também esperam que Ciro Nogueira costure as alianças políticas necessárias para a campanha de reeleição de Bolsonaro.

A prioridade para articuladores políticos e dirigentes de siglas que hoje pretendem apoiar a campanha à reeleição de Bolsonaro é a reformulação do Bolsa Família e outras medidas que impulsionem a recuperação da economia em 2022, após a vacinação da população contra a Covid-19.

A aposta é que, com um programa de forte apelo popular e uma economia aquecida, o presidente deve conseguir recuperar a popularidade.

Atualmente, pesquisas indicam aumento na reprovação do governo e favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para o pleito do próximo ano.

Ao trazer o senador para o coração do governo, Bolsonaro sela seu casamento com o centrão —grupo de legendas fisiológicas que, na campanha de 2018, era frequentemente criticado pelo então presidenciável.

O episódio que marcou o discurso contra a velha política na campanha foi protagonizado pelo atual ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), Augusto Heleno. "Se gritar pega centrão, não fica um, meu irmão", cantou o general num ato partidário de 2018. Em sua versão, ele canta “centrão” no lugar de “ladrão”, que consta na letra original composta por Ary do Cavaco e Bebeto Di São João.

Pouco mais de dois anos depois, o discurso mudou radicalmente. "Eu nasci de lá [do centrão]", afirmou Bolsonaro nesta quinta-feira (22), também em entrevista. "Eu sou do centrão."

A aproximação do chefe do Executivo com o centrão ocorre em um momento de extrema fragilidade do governo, quando Bolsonaro se vê ameaçado por mais de cem pedidos de impeachment e pelo avanço da CPI da Covid, que tem jogado luz sobre supostos casos de corrupção na gestão.

​Hoje o governo Bolsonaro tem 22 ministérios, 7 a mais do que os 15 prometidos na campanha eleitoral de 2018. Sob a gestão de Michel Temer (MDB), seu antecessor, eram 29 pastas.

A administração atual chegou a ter 23 órgãos com status de ministério. Porém, o Banco Central perdeu este status com a aprovação de sua autonomia.


Crescimento cíclico ou retomada sustentada - parte 2

A última década foi terrivelmente frustrante em termos de crescimento econômico

José Roberto Mendonça de Barros / O Estado de S. Paulo
Foto: Agência Brasil

O crescimento econômico é uma construção de longo prazo. O Brasil tem crescido pouco desde 1980. Imaginamos que o controle da inflação, desde o Plano Real, pudesse abrir as portas para uma nova era. Entretanto, a última década foi terrivelmente frustrante. Paramos de vez. 

Para sair de um buraco, primeiro é preciso parar de cavar. Por isso, para voltar a crescer, antes de tudo precisamos deixar de apostar em ações fracassadas.

Não é possível crescer com base em recursos derivados de atividades ilegais. O maior exemplo atual é o que ocorre na Amazônia: grilagem de terras, extração e exportação de madeira vinda de áreas públicas ou com documentos ilegais ou garimpos em áreas invadidas. A Região Norte não crescerá com essa base. 

Transferências para segmentos e regiões mais pobres têm mesmo de ocorrer, mas têm de ter propósito: bolsa-escola, médico de família, desenvolvimento da bioeconomia, recuperação florestal, pagamentos por serviços ambientais, pagamentos por serviços comunitários e tantos outros. 

Não é possível crescer com projetos inviáveis técnica e economicamente. A lista aqui é enorme. Um exemplo é a indústria naval. Outra é a obrigatoriedade de construir gasodutos e térmicas a gás em regiões sem o gás e sem grande consumo de energia (como está na atual lei sobre a Eletrobrás). Os experimentos fracassados de Ceitec e Unitec, que deveriam fabricar chips, são ilustrativos também. 

Também é evidente que projetos decorrentes de voluntarismo político e corrupção emperram o crescimento. As refinarias Abreu e Lima e Comperj torraram mais de US$ 30 bilhões sem retorno. Ao mesmo tempo, o Tribunal de Contas da União apontou a existência de algumas milhares de obras públicas federais inacabadas. O atual sistema de “emendas do relator” é mais um passo para gastar recursos em projetos paroquiais, no mais das vezes sem contribuição relevante para o crescimento ou com retornos sociais modestos. O processo de construção de um Orçamento com propósitos sensatos foi totalmente destruído na atual gestão. 

Não se cresce com instituições fracas e capturadas por lobbies e outros grupos de interesse, como é largamente comprovado na literatura econômica. O nome da Codevasf, que agora cuida até do Amapá, vem imediatamente à mente. 

Na mesma direção, inúmeras representações empresariais acabaram por se transformar em instrumentos de obtenção de vantagens do governo federal e do Congresso, com pouca preocupação com a evolução da inovação, produtividade e competitividade das empresas. 

Precisamos nos concentrar em desenvolvimento, reformas e ações que possam, de fato, trazer de volta o crescimento econômico.

Infelizmente, a política econômica atual pouco avança nesses quesitos, e é por isso que as projeções de crescimento para 2022 e adiante não passam de medíocres 2%. 

A desarticulada proposta da atual reforma tributária é mais um exemplo do que não deve ser feito: foi jogada no Congresso, e é seguro que sairá algo desfigurado, mantendo nosso sistema tributário complexo, caro e confuso.

A competitividade e viabilidade da economia têm de ser construídas passo a passo, numa perspectiva de longo prazo, partindo da criação de conhecimento, instituições e desenvolvimento tecnológico. O exemplo do agronegócio é o mais evidente à mão. Já está largamente comprovado que o setor vai adiante com duas bases muito sólidas: constante desenvolvimento tecnológico, base de sua competitividade, e uma participação intensa nas cadeias internacionais de suprimento agrícola. O investimento em educação especializada, técnica e superior, a força do sistema cooperativo e do crédito especializado também têm sido fatores relevantes. 

Por outro lado, nossa indústria está encolhendo, fechada em seu protecionismo e é cada vez menos competitiva. Ao mesmo tempo, é possível conhecer muitas empresas bem-sucedidas nestes últimos anos. Na maioria dos casos que conheço ocorreu algo muito semelhante ao já observado sobre o agronegócio: são empresas antes de tudo preocupadas com inovação e produtividade e, ao mesmo tempo, que buscam se colocar no mundo, participando das cadeias globais, criando músculos para superar as deficiências do custo Brasil. 

Só voltaremos a crescer de forma sustentada se esses sucessos forem mais generalizados.

*Economista e sócio da MB Associados.


Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,crescimento-ciclico-ou-retomada-sustentada-parte-2,70003788828


Foto: Beto Barata\PR

Para onde queremos ir?

Além de zelar pela democracia, é preciso fazer com que ela funcione melhor

Armínio Fraga
Foto: Beto Barata\PR

Neném Prancha foi um olheiro e treinador de futebol no Rio de Janeiro, famoso por suas frases: “pênalti é uma coisa tão importante que quem devia bater é o presidente do clube”; “quem pede, tem preferência; quem se desloca, recebe”; “o importante é o principal; o resto é secundário”.

Yogi Berra foi o seu equivalente norte-americano, do mundo do baseball. Falando sobre um restaurante em Nova York, disse: “ninguém mais vai lá, está sempre muito cheio”. Minha favorita é: “se você não sabe para onde vai, em geral não chega lá”.

Essa última lição tem tudo a ver com o momento de grande incerteza e ansiedade que vivemos no Brasil. O quadro geral não é bom. Cenários os mais variados se descortinam, muitos a evitar. Faz falta uma visão de longo prazo que sirva de bússola para cada passo do caminho.

Que visão? No topo da lista, preservar a democracia, hoje ameaçada. Me refiro sobretudo à preservação do Estado de Direito, o Império da Lei. Alguns ainda preferem tapar o sol com a peneira. Ignoram que estamos vivendo um momento de estresse nessa área. Manifestações públicas do Executivo contra o Congresso.

Acusações não comprovadas de fraude em eleições. Ameaças de cancelamento de eleições ou de não aceitação do resultado. Tensões crescentes entre Executivo e Judiciário. Participação de militares da ativa no governo. Fake news para todo lado. São sinais assustadores, especialmente quando se leva em conta que em nossos tempos é exatamente assim que as democracias morrem.

Além de zelar pela democracia, é preciso fazer com que ela funcione melhor. A despeito dos inegáveis avanços ocorridos desde 1985, há bastante espaço para acelerar o ritmo de desenvolvimento do país.

Temos tido dificuldade em avançar. Deixo de lado hoje os detalhes ligados ao necessário aumento da produtividade da economia para focar na importância de uma estratégia responsável e sustentável. Penso na noção de responsabilidade de forma ampla: social, ambiental e fiscal.

Responsabilidade social significa compartilhamento dos frutos e dos riscos do crescimento. Não há desenvolvimento digno do nome sem sucesso nessa área. Vou além: na ausência de políticas inclusivas, não há desenvolvimento possível, posto que a desigualdade compromete a democracia e oferece campo fértil ao populismo e à demagogia.

O Brasil segue imensamente desigual, não apenas sob a ótica da renda, mas também pela reduzida mobilidade social. Temos um longo caminho a percorrer para chegar perto de qualquer noção decente de igualdade de oportunidades. Sem me alongar muito, menciono apenas que nos faltam educação e saúde públicas de qualidade. Temos que reduzir a informalidade (e precariedade) do trabalho e repensar a rede de proteção social. Aspectos regressivos do regime tributário também requerem correção. Uma boa reforma do Estado me parece imprescindível.

No campo ambiental, nos defrontamos com uma questão existencial. O planeta não aguenta o tratamento que vem recebendo da humanidade. Crescimento sem responsabilidade ambiental é uma ilusão. A conta está chegando. Só não vê quem não presta atenção (ou é negacionista).

O Brasil é relevante nessa área. O governo precisa urgentemente dar um cavalo de pau em sua atuação. Somos infelizmente vistos como predadores do planeta, quando deveríamos ser seus defensores. Além do mais, os benefícios de uma mudança de rumo vão além da contribuição para o combate ao aquecimento global: incluiriam melhorias na qualidade de vida da população, tais como águas e ar limpos e saneamento adequado. Temos tudo para ser um paraíso verde, o que elevaria em muito a nossa autoestima.

No campo fiscal, a questão vai muito além da estabilidade macroeconômica que tanta falta nos faz. Uma estratégia de desenvolvimento requer a definição de prioridades para o gasto público. Trata-se de uma questão política e econômica de primeira ordem de grandeza. Um orçamento confuso, opaco, curto-prazista e cronicamente desequilibrado não funciona.


Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/arminio-fraga/2021/07/para-onde-queremos-ir.shtml


A democracia morre no fim deste enredo

Míriam Leitão / O Globo
Foto: Marcos Corrêa/PR

O agressor da democracia não vai parar. É como o agressor da mulher que, após perdoado, volta a atacar e muitas vezes o fim é a morte da vítima. Quem me fez esse raciocínio foi uma autoridade da República. Todos os dias a democracia apanha do presidente Jair Bolsonaro. Os generais e os civis que o cercam reforçam suas atitudes ou tentam justificá-lo. Essa violência só vai parar no fim deste governo, mas deixará cicatrizes. Quando as instituições estão funcionando, ninguém precisa dizer em notas e declarações.

— O presidente fala uma coisa e na hora que aperta ele recua, igualzinho ao homem que agride mulher. O agressor recua, garante que a ama, algumas pessoas asseguram que ele vai mudar e a violência cresce. Um dia ele chegará com um revólver e vai matar a mulher. É dessa certeza que surgiu a Lei Maria da Penha — explicou a pessoa com quem eu conversei sobre as crescentes ameaças do presidente e dos generais que o seguem, da reserva ou da ativa, nessa mesma lógica de agredir e negar que agrediu, prenunciando outro ato que seja ainda mais forte.

Nesse último episódio, revelado pelo “Estadão”, o ministro da Defesa, Braga Netto, enviou um recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira, com o seguinte teor: “a quem interessar, se não tiver eleição auditável não terá eleição.” Foi dentro de uma escalada de agressões. Tudo se passou entre os dias 7 e 8 de julho. A nota do ministro da Defesa e dos comandantes militares tentando coagir a CPI do Senado foi no dia 7. No dia 8, Bolsonaro afirmou que ou vai ter o voto impresso ou não vai ter eleição, o general Braga Netto mandou o mesmo recado golpista, e o comandante da Força Aérea deu uma entrevista ao GLOBO elevando o tom da ameaça contida na nota, sendo em seguida apoiado pelo comandante da Marinha. O atentado foi combinado. Eram instituições funcionando. Com o objetivo de destruir a democracia.

O roteiro que se seguiu era previsível. Vieram os desmentidos com palavras ambíguas, as afirmações de que a democracia vai bem, e novo ataque do presidente. A nota de Braga Netto repetiu a ingerência em assuntos sobre os quais as Forças Armadas não têm que se pronunciar, ao defender o voto impresso que eles apelidaram de “auditável”. A quem disse que o ministro da Defesa estava invadindo a esfera política, Bolsonaro respondeu. “Quando vejo algumas autoridades tuitarem que isso é uma questão política, que certas pessoas não devem se meter nisso, quero dizer a vocês que isso é uma questão de segurança nacional. Eleições são uma questão de segurança nacional”, disse o presidente fechando aquele dia de debate sobre o recado do general. Isso autoriza as intervenções militares no tema que o presidente elegeu como pretexto. Todo golpe autoritário inventa seu pretexto. Esse é o de Bolsonaro. O de Donald Trump foram as acusações mentirosas de fraude. Ao fim, os trumpistas invadiram o Capitólio.

O agressor da democracia brasileira instalou cúmplices em postos estratégicos. Braga Netto é da reserva, mas a carreira militar é usada para ele sempre falar escudado nas Forças Armadas. Os atuais comandantes assumiram com o mandato de mostrar que os militares defendem o projeto político de Bolsonaro. Foram escolhidos para apoiar o agressor. O general Luiz Eduardo Ramos quando foi para o governo era da ativa e estava no comando do II Exército. Ele fez parte do canal dessa bolsonarização dos militares. O Almirante Flavio Rocha, da SAE, está ainda na ativa. O projeto é deixar sempre a impressão de que as Forças Armadas vão agir para proteger Bolsonaro.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, e seus auxiliares diretos agiram várias vezes de forma contrária ao papel constitucional da PGR. O ministro André Mendonça teve atitudes e defendeu teses que feriam a Constituição. A Polícia Federal colocou seus documentos sob sigilo quando a publicidade tem que ser a regra numa República. Aras foi reconduzido, Mendonça foi indicado para a corte constitucional, um delegado da Polícia Federal é o ministro da Justiça. As agressões à democracia deixam cicatrizes. Algumas delas podem ser permanentes.

A democracia está sendo agredida. O agressor é o presidente da República. Ele tem ajudantes militares e civis. O maior risco é não ver o perigo, porque, como nos casos de violência contra a mulher, o fim pode ser a morte.


Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/democracia-morre-no-fim-deste-enredo.html


Instituições funcionando

Bernardo Mello Franco / O Globo
Foto: Alan Santos/PR

Millôr Fernandes tinha uma boa frase para ilustrar os perigos do otimismo em excesso. Para ele, o otimista era o sujeito que se atirava do décimo andar e, ao passar pelo oitavo, comemorava: “Até aqui, tudo bem!”. A imagem parece descrever os brasileiros que não veem ou fingem não ver as ameaças de golpe contra a democracia.

Há duas semanas, Jair Bolsonaro deu um ultimato: ou o Congresso ressuscita o voto impresso ou “corremos o risco de não ter eleição no ano que vem”. A chantagem foi tratada com condescendência. Em vez de ser processado por crime de responsabilidade, o capitão foi convidado para um cafezinho no Supremo.

Nesta quinta, o jornal O Estado de S. Paulo informou que o ministro da Defesa aderiu ao complô para tumultuar a sucessão presidencial. Braga Netto mandou dizer ao presidente da Câmara, Arthur Lira, que só haverá eleição com as regras impostas pelo governo. Usou o coturno de general para intimidar o poder civil.

Seguiram-se negativas pouco convincentes. O deputado Lira desconversou sobre o assunto. “A despeito do que sai ou não sai na imprensa”, disse, vamos todos à urnas em 2022. O general bolsonarista optou pelo cinismo. Tentou desqualificar a reportagem, mas reforçou, em papel timbrado, a pressão indevida pelo voto impresso.

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, limitou sua reação a um tuíte. Disse que conversou com os envolvidos, e os dois “desmentiram, enfaticamente, qualquer episódio de ameaça às eleições”. O ministro acrescentou que o país tem “instituições funcionando”. Lembrou o otimista de Millôr antes de se esborrachar na calçada.

Desde que assumiu a chefia do Executivo, Bolsonaro submete os outros Poderes a uma rotina de intimidações e chantagens. Até aqui, a tática tem funcionado. O Supremo impede o avanço das investigações sobre o primeiro-filho, acusado de desviar verba de gabinete. A Câmara não toca na pilha de pedidos de impeachment do presidente, recordista de crimes de responsabilidade. Agora a impunidade se estende a Braga Netto, que se comporta como chefe de guarda pretoriana.

O general é reincidente em ameaças golpistas. Há pouco mais de duas semanas, atacou o presidente da CPI da Covid, Omar Aziz. Queria interromper as investigações sobre corrupção na compra de vacinas, que atingem militares aboletados no Ministério da Saúde. Em nota assinada com os comandantes das três armas, o ministro insinuou uma quartelada contra o Senado. Como o arreganho não foi punido, ele se sentiu à vontade para repetir a dose.

Num país com instituições funcionando, militar não intimida o Congresso e não opina sobre o sistema eleitoral. Na hipótese mais branda, quem age dessa forma é afastado do cargo que ocupa. No Brasil de 2021, general que afronta a Constituição só corre o risco de ser promovido. E os otimistas continuam a repetir que tudo está sob controle — pelo menos até a próxima ameaça de ruptura.


Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/instituicoes-funcionando.html


A política da destruição

Merval Pereira / O Globo
Foto: Isac Nóbrega/PR

Ao admitir que sempre fez parte do Centrão nos seus anos de Congresso, o presidente Bolsonaro desnuda mais uma das  muitas manobras políticas que engabelaram boa parte de seus eleitores em 2018, em busca de um salvador contra a corrupção dos hábitos políticos. Muitos outros votaram nele sabendo exatamente de quem se tratava, mas interesses pessoais de toda sorte levaram a que aderissem a uma candidatura que só poderia dar no que deu, um governo disfuncional e absolutamente sem rumo. Que tem o único objetivo de destruir o que foi construído desde a redemocratização do país, transformando-o em uma arena  regressiva guiada pela incitação ao ódio.

Acontece que Bolsonaro não tem outra escolha, a não ser se entregar ao Centrão, e a partir daí, corre o risco de perder boa parte do eleitorado. Ele joga com a possibilidade de que o candidato adversário seja o ex-presidente Lula, que não será o escolhido pelo eleitor arrependido ou decepcionado, e nesse ponto tem razão. Vejo aí um caminho aberto para a terceira via, um candidato que não seja do Centrão, nem um governante que desista de combater a corrupção por causa dos apoios eleitorais e da família.

Bolsonaro pode ganhar apoio no Legislativo, mas não entre os eleitores. É verdade que os políticos do Centrão são profissionais, sabem espalhar prefeitos e vereadores pelo país, fazem uma política eficiente de clientelismo à qual Bolsonaro vai aderir, aumentando a abrangência do Bolsa Família, por exemplo. Temos que ver como o eleitorado irá se comportar diante das outras opções. Acossado pela realidade, pode ser que algum dos candidatos já apresentados, ou um nome que surja no decorrer deste ano, se transforme numa saída de emergência para esse eleitorado que está decepcionado com Bolsonaro, e não quer a volta de Lula.
O fato é que o governo Bolsonaro vem se mostrando tão profundamente regressivo, tem feito com que o país retroceda tanto em termos civilizacionais, que se mostrou mais danoso do que qualquer outra experiência na democracia brasileira. Nascido da democracia, o bolsonarismo representa a destruição da própria democracia, e a aula inaugural do Instituto de Pesquisa de Planejamento Urbano e Regional da UFRJ (IPPUR), com um ensaio sobre a destruição na era bolsonarista, pelo cientista político Renato Lessa, se debruçou sobre esse fenômeno.

No campo da língua, ele cunha o conceito “palavra podre” para definir a linguagem como espaço de intervenção política. O indizível da véspera “passa a ser a dicção regular e quase obrigatória”. Exemplo execrável dessa intervenção destruidora na língua é a definição de uma bolsonarista nas redes sociais: “Nós não conhecemos limites”. Não é uma frase ofensiva, mas destrói uma premissa fundamental que nos conecta na sociedade. A palavra podre, define Lessa, infecta o espaço semântico, e a República passa a usar essa linguagem. A palavra, lembra Lessa, é premissa do ato.

Daí a destruição dos espaços culturais, do arcabouço da educação brasileira. Segundo Hobbes, citado por Renato Lessa, o reconhecimento da centralidade da vida é a justificativa para a existência do Estado, a vida passa a ser uma figura de direito público. “Mortes violentas e precoces são evitáveis”. O que o leva a falar da performance do governo Bolsonaro no combate à pandemia da COVID-19.

A ideia de que o indivíduo tem o direito de não usar máscara, de contaminar os outros, de se contaminar, é uma ressignificação da ideia de liberdade, denotando a impossibilidade de ver a liberdade como um direito público. “Análogo ao direito de desmatar, de expulsar as populações originárias, de tratar homossexuais, mulheres e negros da maneira “como sempre foram tratados”, naturalmente. Seria a “expressão da alma brasileira expontânea”. A mesma lógica, segundo Renato Lessa, se aplica sobre o direito de território, a possibilidade de lidar com a terra fora do direito público, o desmonte dos regramentos legais existentes. Por último, Renato Lessa destaca como um aspecto grave a desfiguração da democracia na desconstituição dos direitos básicos ao trabalho, à educação e à cultura.


Fonte:

O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/


Protestos resgatam bandeira e camisa da seleção, símbolos bolsonaristas

Em SP, no sábado (24), integrantes do grupo chamado Bloco Democrático foram orientados a usar o verde-amarelo com o intuito de ofuscar a prevalência vermelha, cor ligada à esquerda

Roberto de Oliveira, da Folha de S. Paulo

Antes predominantemente vermelha, a quarta rodada de manifestações contra o governo de Jair Bolsonaro ganhou novas cores na tarde de sábado (24), na avenida Paulista. Faixas, bandeiras do Brasil e camisas da seleção, espécie de uniforme bolsonarista, foram resgatadas pelos participantes.

Com duas faixas verdes nas laterais e uma amarela no centro, uma bandeira ocupava meio quarteirão da avenida, via que vem concentrando os atos pró-impeachment.


PROTESTOS CONTRA BOLSONARO EM BRASÍLIA


Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
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Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
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Ela foi estendida logo atrás de um caminhão, estacionado em frente ao Shopping Center 3, que reuniu integrantes de um grupo que se apresenta como Bloco Democrático.

Participam desse grupo representantes de partidos como PSDB, PC do B, Cidadania, PSB, PDT, Rede e Solidariedade, além de organizações estudantis e sindicais assim como movimentos liderados pelo Acredito e pelo Agora!.

Estiveram por lá o deputado federal Orlando Silva (PC do B-SP) e Bruna Brelaz, primeira presidente negra eleita da UNE (União Nacional dos Estudantes), entre outros.

Vice-presidente municipal do PSB, Helvio Moisés, 66, explica que o uso do verde-amarelo foi uma estratégia para contrapor à predominância vermelha nas manifestações.

“Quem subtraiu a bandeira para si foi a direita durante as manifestações pró-impeachment da ex-presidente Dilma [que ocorreram em 2016]. Nós precisamos retomá-la já.”

Vestindo a camisa da seleção, Rodrigo Marques, 40, do diretório municipal do PSDB, afirmou que a camisa é do povo brasileiro. “Nem a bandeira nem a camisa da seleção pertencem ao bolsonarismo. Essa manifestação é prova disso. Todos aqui somos contra Bolsonaro, em defesa da vacinação e da vida”, disse ele.

Tanto manifestantes ligados a partidos de centro quanto de esquerda ostentavam a bandeira brasileira. Vale registrar, todavia, que a presença da camisa da seleção era mais vista entre integrantes do centro no chamado Bloco Democrático.

“A pauta é a mesma”, disse o analista de sistemas Adriano da Silva, 35. “Não importa a bandeira partidária, mas, sim, a do Brasil”, afirmou.


PROTESTO CONTRA BOLSONARO NA AVENIDA PAULISTA (SÃO PAULO)


Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
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Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Alexandre Linares/Fotos Públicas
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
Protestos contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo (24/07/2021). Foto: Roberto Parizotti
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Filiado ao PT, Silva disse que era a primeira vez que participava de um ato em defesa do impeachment de Bolsonaro. Ele acompanhou o caminhão do Bloco Democrático. “Mesmo porque com ele tem muitos partidos de esquerda.”

Com a bandeira brasileira nas costas, Ana Maria Rodrigues, 74, diretora da CMB (Confederação das Mulheres do Brasil), apostou no uso da peça com o propósito de agregar “uma ampla frente para derrotar Bolsonaro”.

“O uso da bandeira é um resgate dos símbolos nacionais. Precisamos dialogar com todos os setores da sociedade. A bandeira e a camisa podem somar. A luta é uma só: derrubar Bolsonoro e salvar a democracia.”

De camiseta, máscara e bandeira vermelha do CMP (Central de Movimentos Populares), Genilce Gomes, 50, ainda encontrou espaço para encaixar a bandeira brasileira no topo do mastro que carregava.

“A bandeira, a camisa da seleção e o hino são símbolos nacionais que foram sequestrados pela direita radical”, disse.

Simpatizante do PT, Genilce falou que é hora de recuperar esses símbolos, “sequestrados pelo bolsonarismo”, por meio de um gesto democrático “contra a barbárie”.

Mesmo se dizendo “vermelha de corpo e alma”, ela defende a presença da bandeira brasileira em manifestações contra o governo Bolsonaro para “fortalecer outras colorações”.

“Nossa bandeira representa a população. Sua exibição em atos democráticos tem como principal intuito resgatar o país como uma só nação.”

Para Claudia Rodrigues, 49, presidente da UBM (União Brasileira de Mulheres), movimento, segundo ela, apartidário, emancipacionista e não sexista, a esquerda teve papel muito importante nas primeiras manifestações —e segue tendo.

Mas os protestos precisam conquistar “a mente e o coração dos trabalhadores”. Na visão dela, o uso do verde-amarelo pode fortalecer o que ela chama de “alianças táticas.”


FONTE:

Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/07/ato-contra-o-presidente-resgata-bandeira-brasileira-e-camisa-da-selecao-simbolos-bolsonaristas.shtml


Vitórias parciais e novos desafios ao sistema político

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia Política e novo Reformismo
Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil

Prossigo, como fiz na semana passada, batendo na tecla de que, ao reverso do que ocorreu em 2018, dessa vez a caravana da política precisa passar. A defesa do sistema político que temos é das mais elementares condições para que se produza um desfecho democrático da crise de múltiplas faces que a política brasileira vem enfrentando há quase uma década e se exorcize os fantasmas de metástase que passaram a ameaçar nossa república, desde que, naquele ano, um autocrata extremado chegou, pelas urnas, à sua presidência.

Essa reflexão é institucional e, também, política. O sistema de governo, o sistema eleitoral e o sistema partidário são partes solidárias de um todo que, bem além de reproduzir um modelo formal de democracia representativa tendente à tolerância e à produção de consensos, pelos freios e contrapesos de poder que o constituem, tem sido, de fato, um ambiente interativo de negociação política refratário às intenções do autocrata de forjar sua autocracia, por meio de uma polarização radical. Nossa ordem política funda-se em boa doutrina e num saldo positivo quanto aos resultados políticos de suas virtudes e mazelas. As primeiras facilitam que, ao lado desse sistema, atue, com razoável autonomia, uma sociedade civil cada vez mais vigilante. Soma-se, então, aos próprios freios e contrapesos formais do sistema, uma opinião pública nada indulgente com as segundas.

Em artigo atual (“Dribles na tirania” – Revista Veja, edição em circulação), a jornalista Dora Kramer apresentou evidências recentes da dinâmica política que produz o saldo positivo. Elas revelam um padrão de conduta, do Congresso e de partidos em geral, em que, ao lado do sempre lembrado “toma-lá-dá-cá”, vigora um geralmente subestimado “chega pra lá”. Desenham-se, assim - lembra Kramer –, a frustração da manobra golpista da exumação do voto impresso para deslegitimar as eleições, bem como contenções legais , tardias e bem vindas, à militarização desmedida do Poder Executivo e da administração pública e ao uso autoritário da LSN, em si mesma entulho autocrático cujos dias parecem estar contados.

Por outro lado, é por esse mesmo Congresso – mais exatamente pela Câmara dos Deputados – que tem encontrado passagem uma boiada reacionária, subversiva de direitos, que emana da agenda do governo. A operação passa graças a espaços pródigos abertos a partidos e parlamentares fisiológicos na composição ministerial, sendo dessa mesma natureza a mudança em curso, nessa composição, cujo sentido é fazer prevalecer, no Senado Federal, a mesma atitude de prevaricação política. Que é do jogo, não se pode negar. Mas não se pode deixar de apontar que, nesses casos, os efeitos são nefastos.

O reconhecimento concomitante das virtudes e das mazelas é indispensável para se avaliar com realismo e a devida ponderação a presente conduta de diferentes facções da elite política no âmbito dos partidos e dos poderes Executivo e Legislativo. Os limites que a política real tem mostrado, no enfrentamento das ameaças à democracia, por omissão ou por ações na contramão da república, precisam ser investigados e iluminados, assim como é necessário considerar como ameaças poderiam ter sucesso se estivesse ausente o muro de contenção que, com seu barro impuro, a política institucional tem erguido à barbárie.  

Essa complexidade exige condução cuidadosa. Daí precisar ser tratada de modo sério e responsável por quem faz e por quem toca a agenda de partidos e de poderes da República. É mesmo uma orientação, digamos, metodológica inescapável da ordem do dia de atores institucionalmente poderosos. Frequentemente a afinação dos instrumentos da orquestra sistêmica soa mal aos ouvidos de uma sociedade que não tem gosto pela partitura da política. Gera-se um contencioso entre estado e sociedade que, se não se contiver em limites razoáveis, por ambas as partes, compromete pacto e consensos que são necessários, entre elas, para defender a república e a democracia dos inimigos comuns.

Veja-se, por exemplo, a questão do fundo financiador da atividade eleitoral dos partidos.   Essa questão é mais complexa e delicada do que parece. A opinião pública reage a todo dispêndio público com partidos e eleições. Mas não podemos esquecer que desde 2018 proibiu-se o financiamento empresarial e por demais pessoas jurídicas, por conta do clima de escândalo reinante sob a operação Lava-Jato. De fato, o financiamento empresarial gerava custos de campanha absurdos e elitizavam a representação. Era preciso conter a farra, parteira de uma promiscuidade entre setor público e empresas privadas. Mas se o STF foi aplaudido quando resolveu dar freio radical naquilo (poderia ter havido fixação de limites, mas sob pressão do clima de faxina, optou-se pela proibição) de algum lugar haverá de sair o dinheiro. Para haver competição democrática não apenas é necessário, mas também desejável, que advenha de recursos públicos. Senão, será candidato com chance real de competir apenas quem tiver recursos próprios para financiar sua campanha, ou – ao se vedar também, ou limitar fortemente, o uso desse tipo de recurso - quem possa dispor de apoiadores individuais abastados, ou quem já tenha mandato e, através dele, acesso privilegiado a meios de comunicação. Seria uma oligarquização ainda maior do que aquela, propiciada pelo financiamento empresarial.   Portanto, é preciso ter como premissa que o fundo público para financiar eleições via partidos não tem nada de espúrio. É legitimo, necessário, democrático, o que se pode e deve discutir é seu montante.

Chega-se aí a outro ponto: é intuitivo e, também, induzido pela experiência da sociedade brasileira em lidar com a ambição e ousadia de interesses corporativos (inclusive, mas não apenas, de agentes estatais e da elite política), que o montante previsto é exagerado. Isso tem de ser avaliado e comprovado com critérios objetivos e comparativos com a eleição de 2018, que foi a mais recente eleição do porte da próxima, que envolverá Presidência da República, Senado, Câmara dos Deputados, governos estaduais e assembleias legislativas. É razoável tomar aquela eleição como parâmetro e fazer naquele valor correções mínimas, tendo em conta o contexto crítico que se atravessa. Mas não é razoável dizer que o fundo é ilegítimo, nem que deva ser depreciado, pois é do financiamento da democracia que se trata. De uma democracia ameaçada, sob fogo cerrado. Se a sociedade não quiser financiar eleições e o setor privado está proibido de fazê-lo legalmente, o dinheiro virá de alguma fonte do submundo. O preço a pagar será maior.

Em resumo: democracia não sai grátis, nem barato. Ela é vital para tudo o mais e o discurso de opor gastos com eleições a, por exemplo, com o auxílio emergencial é de um populismo politicamente esperto, porém, raso e vizinho da demagogia. As duas coisas são essenciais nesse momento. O que falta para o auxílio emergencial e outras políticas sociais inadiáveis precisa ser buscado em rubricas que alimentam posições plutocráticas e não nas que financiam a democracia, desde que estejam razoavelmente dimensionadas.

Enquanto os olhares da sociedade são desfocados para uma cruzada contra o fundo de financiamento das eleições, nova boiada – essa sim, espúria - está prestes a passar no Congresso sem que até mesmo os canais de comunicação estejam lhe dando o merecido destaque. Políticos individuais (negam-se como elite política pela simples razão de que operam para destruí-la) sem outro mister senão a contemplação grosseira e politicamente malsã do auto-interesse, organizam-se para liquidar, de um só golpe, o sistema eleitoral e o sistema partidário, através de o chamado “distritão”, pelo qual se consagra o candidato de si mesmo, mandando às favas o sentido institucional da política.

Os pormenores desse projeto e seus previsíveis efeitos requerem nova coluna.  Mas o mais evidente deles será imediato (os de longo prazo ainda são incomensuráveis) Anulará, na prática, os efeitos do fim das coligações partidárias em eleições proporcionais (para deputados e vereadores), a melhor medida de reforma política que o Congresso anterior aprovou, em 2017. Em vez de fortalecer os partidos e dar consistência maior ao sistema partidário – possibilidades que não são quimeras, como mostraram os resultados eleitorais de 2020, já sob efeito da reforma anterior - a destruição institucional de agora, autonomeada de reforma, pode converter os partidos em entidades fantasma e revogar qualquer traço de sistema partidário digno desse nome, no Brasil.

A aprovação dessa matéria, tida como provável, dá uma medida das sequelas da eleição de 2018, do retrocesso político que o seu resultado causou, ao alterar de modo radical a composição das Casas legislativas entronizando ali contingentes expressivos de pregadores e praticantes de antipolítica. Convém recordar que o Congresso anterior recebeu as críticas moralistas de sempre, de ter aprovado a reforma de 2017 exclusivamente movido pelo interesse de reeleição dos então parlamentares. Essa obviedade foi guindada à condição de descoberta e assim denunciada, sem se considerar que, naquele momento, auto-interesse e aperfeiçoamento do sistema estavam sendo, simultaneamente, contemplados.

Mas havia uma cobrança de dimensão eleitoralmente relevante por parte de um sentimento público, alimentado por uma direita voluntarista, que clamava por "renovação", eufemismo que traduzia o desejo de exterminar a classe política, suposta responsável pelas mazelas da hora e pelas de sempre. A força desse senso comum de inspiração demagógica cegava a maioria das análises para os fatores institucionais e a isso se somava o ressentimento da esquerda para com o então Congresso, que havia votado o impeachment de Dilma Rousseff.  Então, tome pedras, vindas de todos os lados. Mas, na verdade, aquela reforma preservava e aperfeiçoava o sistema no mérito e no modo incremental que, há anos, vinham sendo cobrados pelas mesmas consciências críticas que seguiam, naquele contexto perigoso, apontando o dedo acusador para o "corporativismo" de uma elite parlamentar que apenas lutava para não ser varrida do mapa, a jatos de demagogia. Aí está agora, para que comparemos com a reforma de 2017, essa mixórdia do distritão, que reforçará, exponencialmente, tudo contra o que se batia a lógica da faxina.  Se passar, será a mais nova cria com digitais e DNA da "nova política" vencedora em 2018.

O sistema político brasileiro - em sua ambiguidade tradutora da ambiguidade da própria política que processa - tem diante de si duas possibilidades de afirmação permitidas pela pauta atual do Congresso. A de revisar, sem capitular, os termos em que está posto o fundo eleitoral e a de se recusar a cometer, com o distritão, um haraquiri político num instante em que a democracia da Carta de 88 precisa que seu hardware político sobreviva íntegro a essa crise, para retomar, com reformulações incrementais típicas de democracia em modo gerúndio, a trajetória ascendente e socialmente inclusiva de suas duas primeiras décadas.

*Cientista político e professor da UFBa.


Fonte:
Democracia Política e novo Reformismo

https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/07/paulo-fabio-dantas-neto-vitorias.html


A invisibilidade do racismo nos dados da Covid-19

“O não preenchimento do campo “raça/cor da pele” relacionado às internações afeta gravemente, por exemplo, a comparação da letalidade entre pessoas brancas, pretas, pardas, amarelas e indígenas”, escrevem Edna Maria de Araújo, docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Ana Paula Nunes, professora de epidemiologia e bioestatística da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e Vitor Nisida, urbanista e pesquisador do Instituto Pólis, em artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, 20-07-2021 e reproduzido por Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, 20-07-2021.

Confira o artigo:

As respostas às desigualdades em saúde só podem ser adequadas quando a produção de dados é completa e dialoga com a realidade que visam transformar. Nesse sentido, não é possível planejar intervenções visando diminuir as iniquidades raciais sem conhecer sua verdadeira extensão.

Para isso, é fundamental organizar informações oficiais desagregadas por raça/cor da pele. É de interesse público, portanto, conhecer e reivindicar a qualidade dos dados sobre saúde quanto ao preenchimento do campo “raça/cor da pele” nos sistemas de informação oficiais.

Com o intuito de elaborar um diagnóstico sobre o impacto da pandemia de Covid-19 nas populações em situação de vulnerabilidade, sobretudo na população negra, o GT Racismo e Saúde da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e o Instituto Pólis vêm investigando a qualidade dessas informações nesses sistemas.

Dados do DataSUS relacionados à Covid registrados no SIVEP Gripe (Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica), no SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade), no SI-PNI (Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações) e no eSUS Notifica (que monitora casos suspeitos de Covid19) foram selecionados e sistematizados para analisar a qualidade do preenchimento do campo “raça/cor da pele” ao longo da pandemia. Preocupa que alguns sistemas ainda não apresentem o preenchimento desse campo em nível satisfatório

SIVEP Gripe, que trata das internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), incluindo a Covid, apresenta uma notificação do quesito “raça/cor da pele” em 80% das internações no Brasil. O preenchimento ideal seria de, ao menos, 90%.

Além disso, a variação entre as Unidades da Federação é grande e prejudica algumas análises. Enquanto SC, RR e TO preenchem acima de 95%, CE e RJ notificaram a “raça/cor da pele” em apenas 67% das internações. No DF, o dado foi preenchido somente em 53% dos casos.

SIM, por outro lado, se destaca por apresentar taxas de notificação adequadas. Quase 97% dos óbitos nacionais por Covid registrados no sistema tiveram o campo raça/cor da pele preenchido. AL e ES são exceções, com preenchimento em apenas 77% e 84% dos óbitos, respectivamente.

O SI-PNI, que trata dos dados de vacinação contra Covid, tem uma taxa nacional de preenchimento do campo “raça/cor da pele” de 74%, percentual muito aquém do necessário para garantir um monitoramento apropriado do processo de imunização.

Além de insuficiente, o padrão de registro varia entre as unidades: TO tem o melhor preenchimento do campo, com 90%, e o DF tem o pior, com apenas 56,5%. A diferença não se resume às Unidades da Federação.

Um estudo feito no Município de São Paulo mostra que a notificação deste dado também é heterogênea na cidade. Bairros mais ricos e com população proporcionalmente mais branca registram o dado “raça/cor da pele” de apenas 7% da sua população vacinada.

É como se “branca” não fosse “raça/cor da pele”, já que em outras áreas da cidade, proporcionalmente mais negras, a mesma taxa de preenchimento chega a quase 81%.

Quanto às informações de casos suspeitos de Covid, cabe destacar que o e-SUS Notifica não disponibiliza o dado “raça/cor da pele” no DataSUS, embora este campo seja de preenchimento obrigatório na ficha de notificação.

Por um lado, é importante reconhecer que os dados de mortalidade apresentam notificação adequada, quanto ao campo “raça/cor da pele” –só dois estados registraram um preenchimento abaixo do ideal. Entretanto, em muitas Unidades da Federação, o preenchimento dos bancos sobre internações e sobre a vacinação esteve muito aquém do desejável.

O não preenchimento do campo “raça/cor da pele” relacionado às internações afeta gravemente, por exemplo, a comparação da letalidade entre pessoas brancas, pretas, pardas, amarelas e indígenas. A situação é mais preocupante quanto aos dados sobre infecção de Covid, já que o preenchimento deste campo nos registros de casos suspeitos não pode ser analisado, dada a sua completa ausência nas bases nacionais de acesso público.

Apesar do quesito “raça/cor da pele” ser obrigatório e considerado como indicativo de qualidade nos sistemas de informação do SUS desde 2017, por meio de portaria do Ministério da Saúde e da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), portanto, quando o preenchimento de fato deste campo é analisado nos sistemas de informação oficiais, os números mostram que ainda é necessário avançar muito para que cheguemos ao adequado monitoramento das iniquidades raciais de saúde, dentro e fora da pandemia.

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BBC Brasil: Cidades brasileiras com prefeita, em vez de prefeito, tiveram 43% menos vítimas de Covid

Mariana Sanches, BBC News Brasil

O desempenho notável de Jacinda e de outras governantes mulheres durante a pandemia, como as líderes de Bangladesh e Taiwan, instalou uma dúvida na cabeça de quatro economistas brasileiros. “A gente decidiu investigar se ter uma mulher na gestão da crise sanitária poderia levar a uma diferença das políticas públicas adotadas e causar desfechos melhores do que ter um homem nessa mesma função”, explica o economista Raphael Bruce, do Insper.

Junto com colegas da Universidade de São Paulo e da Universidade de Barcelona, Bruce assina o recém-publicado estudo “Sob pressão: a liderança das mulheres durante a crise da covid-19”, ainda sem revisão por outros cientistas. A pesquisa oferece a primeira evidência de que ter mulheres no poder durante uma pandemia ajuda a salvar mais vidas do que ter um homem na cadeira.

Onde elas mandam: 44% menos mortes, 30% menos internações

No trabalho, Bruce e seus colegas usam os mais de 5.000 municípios do Brasil como uma espécie de laboratório. Primeiro, os pesquisadores selecionaram apenas os 1.222 municípios que, nas eleições de 2016, tiveram eleição à prefeitura realizada em turno único e em que o primeiro e o segundo colocados fossem de gênero diferente. Assim, limitaram a análise a municípios de até 200 mil habitantes.

Depois refinaram ainda mais a amostra, de modo a considerar apenas aqueles em que a corrida eleitoral foi acirrada — e a margem de vitória menor do que 10% do número de votos para a candidata ou para o candidato —, algo que ocorreu em cerca de 700 localidades.

Assim, conseguiram chegar o mais próximo possível da reprodução das condições de um experimento controlado: em pesquisas de vacinas, por exemplo, a definição de quais participantes receberão uma dose do imunizante a ser testado ou uma dose de placebo é feita por sorteio. Isso evita a possibilidade de que o viés de algum pesquisador na seleção das pessoas e distribuição das doses possa influenciar no efeito causado pelo placebo ou pela vacina.

Do mesmo modo, os economistas olharam para um dado grupo de municípios pequenos e médios, comparáveis entre si econômica e demograficamente, em que a chance de haver um homem ou uma mulher na cadeira de prefeito era praticamente aleatória, quase um acaso.

O passo seguinte foi verificar os dados de mortes e internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) de cada um desses 700 municípios, em 2020, no Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), do Ministério da Saúde. Como a distribuição e aplicação de testes para o novo coronavírus variou muito pelo Brasil, os dados de SRAG têm sido adotados como forma de driblar eventuais distorções por subnotificação de casos e óbitos de covid-19.

A conclusão foi que municípios com prefeita tiveram, em média, 25,5 mortes por 100 mil habitantes a menos do que aqueles em que os chefes do Executivo local eram homens — uma diferença de 43,7% na mortalidade.

Em relação às hospitalizações, os registros mostram uma redução média de 30,4% em internações por 100 mil habitantes nos municípios com prefeitas em relação ao mesmo dado de cidades com prefeitos.

Elas obrigam mais o uso de máscara
Em uma extrapolação dos resultados, os autores afirmam que se metade dos 5.568 municípios do Brasil fossem liderados por mulheres, seria possível esperar que o país tivesse nesse momento 15% menos mortes do que o total acumulado, de mais de 540 mil. Ou, dito de outra forma, mais de 75 mil pessoas ainda estariam vivas agora. Hoje, menos de 13% das prefeituras do Brasil são comandadas por mulheres.

“É preciso sempre lembrar que esses dados são válidos para esses municípios pequenos e médios que foram analisados, mas fizemos esse cálculo para mostrar o tamanho da relevância do fenômeno quando a gente pensa em definição de políticas públicas”, afirma o pesquisador Alexsandros Cavgias, da Universidade de Barcelona.

Mas, afinal, o que essas mulheres fizeram de diferente dos seus pares homens que poderia explicar a menor gravidade da pandemia nas cidades delas? Como o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou, ainda no começo da pandemia, em 2020, que os gestores municipais tinham autonomia para adotar medidas em suas cidades, a resposta deveria estar em como prefeitos e prefeitas administraram a crise. Por isso, os pesquisadores verificaram se as prefeituras ordenaram o uso de máscaras no município, limitaram a circulação em transporte público, proibiram aglomerações, adotaram exigência de cordão sanitário e limitaram o funcionamento de negócios não essenciais.

E descobriram que, de modo geral, municípios com mulheres no comando adotaram em uma frequência 10% maior esse tipo de medidas não farmacológicas de combate à pandemia. No caso das máscaras, o número de prefeitas que determinou seu uso obrigatório superou em oito pontos percentuais o dos pares homens. Na obrigatoriedade de testes para entrar na cidade, mulheres superaram homens em 14 pontos percentuais. E na proibição de aglomeração, em cinco e meio pontos percentuais.

O que explica a diferença entre a gestão delas e deles?

No estudo, os pesquisadores contemplam as possibilidades de que as mulheres tenham tomado decisões diferentes — e obtido resultados melhores na pandemia — por alguns motivos. Avaliam, por exemplo, se a idade menor ou maior de homens e mulheres no cargo poderia ser uma determinante. Não houve, no entanto, diferença significativa quando se comparou os perfis das prefeitas e de seus pares homens.

Outra hipótese era de que a diferença fosse resultado de um perfil ideológico das mulheres. As soluções para a pandemia tornaram-se bandeiras políticas de determinados grupos. A direita conservadora, liderada por Bolsonaro, condenou reiteradamente a adoção de medidas como uso de máscara e restrição do comércio e de aglomerações. “Mas a verdade é que quando olhamos para os dados sobre posicionamento político-partidário, as mulheres prefeitas tendiam a ser até um pouco mais conservadoras do que seus pares homens”, afirma Bruce.

O estudo ainda analisa se as prefeitas poderiam ser, com mais frequência, profissionais da saúde, o que poderia impactar suas decisões políticas nessa área. Isso também não se comprovou verdadeiro. Tampouco as prefeitas tomaram medidas nos anos anteriores que as tivessem deixado em melhor situação que os governantes homens quando a pandemia chegasse, como o aumento de leitos ou de investimento na saúde.

Do mesmo modo, embora as mulheres prefeitas tivessem, em média, escolaridade mais alta do que os homens prefeitos, a pesquisa mostrou que a adoção de medidas mais rígidas e a redução de mortes e internações não variava conforme o nível educacional, o que também levou ao descarte do fator como possível explicação.

“A verdade é que por enquanto apenas sabemos o que não causa a diferença, mas não conseguimos determinar o que está por trás do fenômeno”, afirma Bruce.

Para Jessica Gagete-Miranda, pesquisadora de políticas públicas da Università’ degli Studi di Milano Bicocca, na Itália, que leu o estudo a pedido da BBC News Brasil, a explicação para o fenômeno pode estar em uma característica frequentemente associada ao gênero feminino na literatura científica: a maior aversão ao risco.

“Já existem pesquisas mostrando que mulheres, de forma geral, aderiram mais a medidas não farmacológicas de combate à covid-19, como distanciamento social e uso de máscara. Se mulheres de forma geral fazem isso, mulheres prefeitas também devem fazer e essas últimas têm poder político para exigir que a população também o faça”, diz Gagete-Miranda.

Sem espaço no jogo político
Segundo o economista Sergio Firpo, do Insper, que leu o artigo de Bruce, Cavgias e seus colegas, o mérito da pesquisa está em estabelecer a causalidade entre haver mulheres no poder e haver menos mortes naquela cidade em decorrência da pandemia — o que pode pautar a ação de eleitores e agremiações políticas no futuro.

“É uma falha não ter uma explicação para o fenômeno no trabalho. Mas mesmo que não saibamos o que provoca essa diferença, seria interessante que os partidos e os eleitores observassem esse tipo de coisa para escolher suas apostas, seus candidatos. O ponto é que existem diferenças na gestão entre homens e mulheres e isso é estratégico”, diz Firpo.

Ele cita um trabalho feito pela economista brasileira Fernanda Brollo que concluiu que as mulheres tendem a se envolver em menos casos de corrupção do que os homens. Usando metodologia semelhante à de Bruce e Cavgias, ela cruzou os resultados de eleições de 400 municípios em 2000 e 2004 com as auditorias federais nessas mesmas cidades. Brollo descobriu que os municípios governados por prefeitas apresentavam entre 29% e 35% menos chances de se envolverem em condutas corruptas do que as de seus pares homens.

Isso, no entanto, não garantiu a elas qualquer vantagem competitiva no sistema político. Durante os períodos analisados, as prefeitas receberam entre 30% e 55% menos aportes de recursos eleitorais para suas campanhas. A probabilidade de serem reeleitas ficou cerca de 20% abaixo da dos candidatos do sexo masculino.

No Brasil, um sistema de cotas foi criado em 1995 para garantir que os partidos políticos destinem um percentual de candidaturas a mulheres em eleições parlamentares proporcionais. Ou seja, não existe qualquer previsão de reserva de vagas para mulheres na disputa para o Executivo — e o funcionamento do sistema de cotas atual tem se mostrado pouco eficiente para aumentar a presença delas em cargos eletivos.

Brollo questiona se, caso as mulheres tivessem condições competitivas semelhantes às dos homens na política, ou se um sistema de cotas fosse adotado no Executivo para assegurar maior espaço político a elas, tais diferenças em relação à corrupção ou à qualidade da gestão de crise ainda se manteriam. “Sabemos que a política brasileira ainda é bastante dominada por homens. Isso pode fazer com que as exigências para se eleger uma mulher sejam mais altas do que aquelas para eleger um homem e que apenas mulheres mais qualificadas acabem ganhando as eleições (ou chegando perto de ganhar)”, diz Gagete-Miranda.

Essa é uma possibilidade que os próprios autores do trabalho dizem ser plausível. De outra forma, Bruce também coloca a questão.

“Talvez as mulheres prefeitas acabem tomando melhores decisões sob pressão porque já enfrentam mais pressão e desafios adicionais na carreira política. Mas esse é um aspecto não observável da realidade”, conclui.

Fonte:

BBC Brasil

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57883203

Renata Giannini e Maria Eduarda Pessoa: Para construção de uma democracia sólida, uma limpa em entulhos autoritários

Uma espécie de entulho autoritário resistiu por anos esquecido em um canto, até voltar aos holofotes, em mais uma demonstração de que nossa democracia, em constante processo de construção, anda com as estruturas abaladas. Criada em 1983, a Lei de Segurança Nacional é problemática desde a sua concepção, pautada na lógica do inimigo interno. Apesar de sua raiz autoritária, ela continuou vigente no regime democrático, após a promulgação da Constituição de 1988.

Seus contornos de inconstitucionalidade, porém, só voltaram a chamar atenção com denúncias recentes de uso indiscriminado e as consequentes reações e debates protagonizados pela sociedade civil, Congresso e Supremo Tribunal Federal. As respostas das instituições e reações da sociedade civil já começaram a ser dadas, mas muitos pontos demandam a nossa atenção.

De acordo com levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, o número de procedimentos abertos pela Polícia Federal para apurar supostos delitos tipificados na Lei de Segurança Nacional aumentou 285% nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro. A segunda edição do monitoramento periódico GPS do Espaço Cívico, lançada esta semana pelo Instituto Igarapé, também indica uma intensificação nas notícias sobre a utilização abusiva da norma.

A legislação anacrônica passou a ser utilizada para fundamentar investigações contra vozes dissidentes e críticos ao governo, o que pode figurar, no mínimo, como intimidação e assédio. Neste cenário, a revisão da LSN tornou-se imperativa para a garantia do espaço cívico e da democracia brasileira.

O uso abusivo da LSN mobilizou o chamado sistema de freios e contrapesos. Antigos projetos de lei sobre o tema, que já tramitavam no Congresso, ganharam fôlego. Além disso, o Supremo Tribunal Federal foi acionado numa tentativa de revogar dispositivos específicos, ou derrubar a norma em sua integralidade. No dia 4 de maio, a Câmara, em regime de urgência, aprovou o Projeto de Lei 6.764 de 2002, que revoga a LSN e tipifica crimes contra o Estado Democrático de Direito.

O processo legislativo foi acelerado e prejudicou a realização de um amplo debate com a sociedade. Apesar disso, organizações da sociedade civil, juristas e acadêmicos conseguiram encontrar espaços para debater de forma intensa e transparente e, assim, contribuir com o texto-base. Foram realizadas duas audiências públicas e, parte relevante das recomendações e preocupações foram acatadas pela relatora, a deputada Margarete Coelho, com avanços relevantes alcançados.

Um exemplo foi a maior precisão em relação aos tipos penais, na tentativa de impedir que movimentos sociais sejam criminalizados e liberdades fundamentais dos cidadãos, cerceadas. Também passou-se a exigir a chamada “lesividade concreta das condutas”. Esse princípio da lesividade estabelece que só são passíveis de punição por parte do Estado as condutas que lesionem ou coloquem em perigo um bem jurídico penalmente tutelado, ou seja, um valor ou interesse protegido por lei em razão de sua relevância para a sociedade.

Outro componente importante incluído foi a previsão de elementos subjetivos, nos quais é analisada a intenção do agente praticar aquele delito determinado. Esses aspectos jurídicos são importantes para delimitar com clareza quem deve ou não ser alvo da lei. O crime de “sabotagem”, por exemplo, determina que as condutas previstas devem ser praticadas “com o fim de abolir o Estado Democrático de Direito”, reduzindo as chances de a norma ser usada para criminalizar manifestações e protestos legítimos.

Por outro lado, ainda há pontos que preocupam. Um deles é o grau de subjetividade do que a lei chama de disseminação de “fatos que sabe inverídicos”, que pode dar margem a eventuais censuras. E, ainda, a referência à incitação à “animosidade” – expressão excessivamente ampla, que, a depender da interpretação, pode incluir restrições a eventuais críticas contra as Forças Armadas. Seria importante indicar expressamente que só é criminalizada a incitação das Forças Armadas contra a sociedade, e não o contrário.

O texto-base aprovado, portanto, não é um projeto ideal. Porém, há de se reconhecer que está consideravelmente à frente da atual legislação, que coloca em risco o debate crítico e a liberdade de expressão. O movimento na Câmara sinaliza um progresso, especialmente no momento histórico de ameaças à democracia que enfrentamos. O texto agora segue para o Senado, que deve zelar pelos avanços até agora conquistados, e aprimorar trechos que ainda despertam preocupação. Como demonstra esse processo, a sociedade civil brasileira continuará trabalhando arduamente, tijolo por tijolo, na construção de uma democracia sólida, segura e plural.

RENATA GIANNINI é pesquisadora sênior do Instituto Igarapé. 

MARIA EDUARDA PESSOA de Assis é assessora jurídica do Instituto Igarapé.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-16/para-construcao-de-uma-democracia-solida-uma-limpa-em-entulhos-autoritarios.html


O Globo: Ministério da Saúde encomendou manual para ‘tratamento precoce’

Leandro Prazeres, O Globo

BRASÍLIA — O Ministério da Saúde encomendou, em novembro do ano passado, à Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) a produção de um manual para o suposto “tratamento precoce” contra a Covid-19. Por indicação da pasta, o escolhido para fazer o manual foi o médico Ricardo Zimerman, conhecido nas redes sociais por ser a favor do uso de medicamentos sem eficácia contra a Covid-19. Ele participou da equipe de profissionais que foi mandada para Manaus em janeiro deste ano pelo governo federal, durante o caos na área da Saúde no Amazonas.

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O manual, que nunca foi divulgado, vai na contramão de pesquisas e até da própria Organização Mundial de Saúde (OMS), à qual a Opas é ligada. O texto recomenda abertamente o uso de cloroquina, ivermectina e azitromicina em pacientes com Covid-19. As informações constam de documentos sobre a contratação aos quais o GLOBO teve acesso.

A aposta do governo no chamado “tratamento precoce” é um dos pontos que são alvo da CPI da Covid no Senado. O pedido para a contratação do manual foi feito pelo secretário de Ciência e Tecnologia, Inovações e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde, Helio Angotti Neto. No dia 9 de novembro do ano passado, ele enviou um ofício à representante da Opas no Brasil, Socorro Gross, pedindo que a organização fizesse a contratação de uma consultoria técnica para a elaboração de três produtos, entre eles um manual de orientações sobre a aplicação do suposto tratamento precoce para a Covid-19.

A Opas acatou o pedido e deu início à contratação de Ricardo Zimerman. O valor do contrato com o médico é de R$ 30 mil. Zimerman é conhecido por suas postagens favoráveis ao presidente Jair Bolsonaro, sua ligação com parlamentares governistas, e por defender veementemente o uso de drogas como cloroquina contra a Covid-19.

Apesar de ter sido aceita pela cúpula da Opas, a contratação do médico causou desconforto entre funcionários da entidade. O manual foi entregue tanto à Opas quanto ao Ministério da Saúde em janeiro deste ano. Com 87 páginas, o manual produzido pelo médico recomenda abertamente o uso de cloroquina e hidroxicloroquina e também defende o uso da ivermectina e azitromicina no “tratamento precoce” da Covid-19. Os quatro medicamentos fazem parte do chamado “kit covid” enviado pelo Ministério da Saúde a estados e municípios. Em seu manual, Zimerman propõe uma série de combinações de drogas para o “tratamento precoce” da Covid-19. Há casos em que ele recomenda o uso de uma mistura contendo sulfato de hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, dutasterida e bromexina.

Zimerman também recomenda o uso de um método de diagnóstico clínico baseado em uma pontuação para determinar se um paciente tem ou não Covid-19. Normalmente, o diagnóstico para a doença só é confirmado por meio de exames como o sorológico ou o RT-PCR.

O método defendido por Zimerman é o mesmo utilizado no aplicativo TrateCov, que chegou a ser liberado pelo Ministério da Saúde em janeiro deste ano, mas foi retirado do ar após críticas de entidades médicas. O aplicativo fazia recomendações sobre medicamentos a serem tomados em caso de sintomas de Covid-19. Atualmente, o Ministério da Saúde é investigado pelo Ministério Público Federal (MPF) em razão do TrateCov.

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A contratação do médico pró-cloroquina pela Opas aconteceu a partir de novembro. Na época, porém, as evidências científicas divulgadas pela OMS eram contra o uso da hidroxicloroquina e da cloroquina no tratamento da Covid-19. Em 30 de outubro, a própria Opas divulgou uma revisão de estudos realizados em todo o mundo que apontava que o uso de cloroquina e hidroxicloroquina não mostrava benefícios na redução das taxas de mortalidade, tempo de internação ou necessidade de intubação.

Procurado, o Ministério da Saúde disse que “procede constante levantamento de evidências científicas” e que pode contar com o “aporte de consultores externos ad hoc para eventuais avaliações de expertise técnica”. Quanto ao critério de escolha de Zimerman, o ministério não se manifestou. A Opas, por sua vez, disse que se “resguarda o direito de manter a privacidade das pessoas contratadas para fazer parte de sua equipe e daquelas que prestam serviços pontuais”. Zimerman foi procurado por telefone e por mensagens de texto, mas, até o fechamento desta edição, não respondeu aos contatos e bloqueou o contato com seu celular.

Fonte:

O Globo

https://oglobo.globo.com/brasil/ministerio-da-saude-encomendou-manual-para-tratamento-precoce-25020918