Merval Pereira

Merval Pereira: Vivandeiras estão de volta

Mais democracia é a solução para as crises, e não menos. As críticas dos petistas e aliados à utilização das Forças Armadas em situações como essa da greve dos caminhoneiros não valem seu valor de face. No episódio do impeachment da então presidente Dilma Rousseff houve consultas informais ao Exército sobre a possibilidade de decretação do estado de emergência no país, reveladas pelo próprio comandante da corporação, general Eduardo Villas Bôas.

Assim como naquela ocasião o Exército rejeitou a sugestão, que claramente visava impedir o impeachment por meio de uma intervenção militar capitaneada por uma presidente petista, hoje também o general Villas-Boas foi curto e grosso ao comentar a possibilidade de uma intervenção militar no país, reivindicada por grupelhos da direita. Disse ele: (...) “Existem ‘tresloucados’ ou ‘malucos’ civis que, vira e mexe, batem à sua porta (do Exército) cobrando intervenção no caos político. Eu respondo com o artigo 142 da Constituição. Está tudo ali. Ponto”.

O que está ali escrito é que as Forças Armadas são subordinadas ao presidente da República e “(...) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.” Na visão de Villas Bôas, o presidente Temer, “talvez por ser professor de Direito Constitucional, demonstra um respeito às instituições de Estado que os governos anteriores não tinham. A ex-presidente Dilma, por exemplo, tinha apreço pelo trabalho das pessoas da instituição, mas é diferente”.

O general Sergio Etchegoyen, do Gabinete de Segurança Institucional, disse em uma entrevista que “acha ótimo” ser perguntado sobre a possibilidade de intervenção militar. “(...) Meu farol está muito mais potente do que o retrovisor. (...) (Este) é um assunto do século passado. Mas ainda existem algumas pessoas que acham que essa alternativa é possível. Precisamos saber o por que, para sabermos onde erramos.”

O general Joaquim Silva e Luna, ministro da Defesa, admitiu que se incomoda com os apelos de parte dos caminhoneiros: “Porque podem dar a impressão de que as Forças Armadas estão por trás de uma insuflação, o que não é verdade. Além disso, intervenção militar é inconstitucional. O caminho do acesso ao poder é pelo voto. É o único caminho.”

Na sua avaliação, “(...) as Forças Armadas estão vacinadas, não pretendem isso, não buscam isso e de maneira nenhuma trabalham para isso. Posso lhe garantir que os oficiais e generais da ativa afastam essa possibilidade, repudiam esse tipo de manifestação. É lógico que as Forças Armadas se sentem lisonjeadas pela credibilidade que essas faixas demonstram, mas têm plena consciência de que esse não é o caminho. O caminho são as eleições que vão acontecer”.

A ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, abriu a sessão de ontem citando o “grave momento” político e social pelo qual passa o país. Ressaltou que a democracia “é o único caminho legítimo” para buscar as soluções dos problemas. Poderia citar aqui vários outros depoimentos de militares e civis, em entrevistas ou discursos no plenário da Câmara e do Senado, de repúdio à minoria que clama por uma intervenção militar. A crise é séria, a ponto de questões como essa serem debatidas abertamente.

É a volta das “vivandeiras” de que falava o marechal Castelo Branco antes de aceitar a prorrogação de seu mandato na ditadura militar de 1964, referindo-se aos políticos que procuravam militares para incentivar uma intervenção.

Os apelos veem dos dois lados. À direita, os que querem de volta uma ditadura militar, na pressuposição de que os militares são a salvação nacional, o que já sabemos, e pelo visto eles também sabem, que não são.

À esquerda, querem tumulto político, até mesmo com a intervenção militar, na crença nada ingênua de que uma crise política que levasse à renúncia de Temer poderia antecipar a eleição presidencial e, quebrada a institucionalidade, até mesmo a libertação de Lula para candidatar-se.

Mas o fato de os militares responsáveis pela condução das Forças Armadas virem a público rejeitar esses assédios demonstra que, apesar da desmoralização dos políticos e do próprio governo do presidente Temer, prevalece a ideia de que mais democracia é a solução para as crises, e não menos.


Merval Pereira: Mentes analógicas

A pouco menos de cinco meses das eleições, não há no horizonte dos candidatos uma perspectiva de solução para os nossos graves problemas. Ao contrário, candidatos e parlamentares procuram se proteger de previsíveis confrontos com a população, irritada com desgovernos sucessivos no plano federal, estadual e municipal, e com os péssimos serviços que são gerados pela alta carga tributária.

Esse ambiente de revolta permanente, como definiu o cientista político Sérgio Abranches, latente desde as manifestações de 2013, gera movimentos reivindicatórios legítimos e outros meramente políticos, e sem um governo para mediar esses conflitos a instabilidade se instala.

O apoio à greve dos caminhoneiros nos primeiros momentos já vai refluindo, e os que apoiam não entendem que serão eles que pagarão a conta das mudanças negociadas por um governo fraco, que não teve condições de impor limites na ação dos grevistas.

O economista Marcos Lisboa diz que regredimos 20 anos em dois, parafraseando o infeliz mote publicitário do governo Temer: “O país voltou, 20 anos em 2”. A vírgula não impediu que o ato falho freudiano fosse compreendido pela população, um tiro que saiu pela culatra, revelando a verdadeira situação do país.

Vivemos nos últimos seis anos com governos cujos incumbentes, Dilma e Temer, dedicaram a maior parte de seus tempos a salvar a própria pele. A petista não conseguiu, foi impedida pelo Congresso. E até mesmo a aberração que foi feita, com a complacência do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, de fazer uma interpretação casuística da Constituição para permitir que a presidente cassada mantivesse seus direitos políticos intactos não lhe serviu de nada. Até o momento nenhuma direção regional do PT a quer como candidata ao Senado, o que demonstra que a realidade sempre se impõe aos arranjos políticos ilegítimos.

O mesmo aconteceu com seu companheiro de chapa, que se safou de duas tentativas de processos por parte da Procuradoria-Geral da República à custa de desgaste político que o transformou em mais que um pato manco, como a ciência política chama os dirigentes que não têm condições de se reeleger e permanecem no cargo como sombras de si mesmos.

Temer hoje é um fardo para seus antigos aliados, que o querem longe de seus palanques. A mudança radical do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que de aliado irrestrito passou a oposicionista virulento, é exemplar desse estado de espírito oportunista.

O mais grave, porém, é que as eleições não prometem uma reversão de expectativas. A maioria dos partidos está mais preocupada em eleger uma bancada forte para se impor ao próximo presidente da República a ser eleito em outubro, seja ele qual for.

E os candidatos a candidatos abrem mão de fazerem um diagnóstico realista para tentar viabilizar suas ambições políticas, fingindo que terão condições de governar o país promovendo uma campanha que apenas tangencie os graves problemas que terão pela frente para solucionar.

Nenhum presidente eleito terá apoio para fazer as dolorosas medidas que são necessárias para que não nos transformemos em uma nova Grécia, antes de virarmos um Portugal, sonho de consumo das classes abastadas brasileiras. Portugal, antes de virar o que é hoje, passou por graves problemas financeiros e teve que cortar na própria carne para se recuperar, coisa que nos recusamos a fazer.

Com o avanço da tecnologia de informação e comunicação, o próximo presidente não terá o primeiro ano com a graça da população para fazer o que tem que ser feito. Terá que convencê-la a aceitar sacrifícios, que serão muito mais difíceis de serem aceitos se a campanha presidencial for feita como se estivéssemos na ilha da fantasia.

Até o momento, à exceção de Lula que é um fenômeno político — o que não o absolve dos crimes que cometeu —, apenas os que nada têm a dever à Justiça estão na frente: Bolsonaro, Marina e Ciro Gomes. A maioria dos candidatos, com uma ou outra exceção, tem cabeças analógicas num mundo digital.

Os que entenderam os novos mecanismos, como Bolsonaro, os utilizam para defender um programa retrógrado. Marina, a que mais se aproxima de um modelo de fazer política consentâneo com os novos tempos, não tem estrutura partidária e nem tempo de televisão, além de necessitar convencer o eleitorado de que terá capacidade para montar um governo sem apoio partidário. Ciro Gomes tenta herdar os votos do lulismo com seu estilo populista, o que não se coaduna com as necessidades do país.


Merval Pereira: Hora dos aproveitadores

As pesquisas já começam a registrar uma queda no apoio da população à assim chamada greve dos caminhoneiros, que teve uma participação clara das grandes transportadoras, e agora parece estar sendo sequestrada por grupos políticos, tanto da direita quanto da esquerda.

O presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), José da Fonseca Lopes, disse que pessoas “que querem derrubar o governo” continuam a greve, não os caminhoneiros, com “ameaças de forma violenta”. A Polícia Federal também está investigando agentes políticos infiltrados entre os grevistas, que já deveriam ter voltado ao trabalho depois que o governo atendeu todas as reivindicações da classe e mais as dos patrões.

A Medida Provisória 832, que cria a Política de Preços Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas, estabelece a tabela mínima para o frete, que será definida por representantes das cooperativas de transporte de cargas e dos sindicatos de empresas e de transportadores autônomos. Para a fixação dos preços mínimos serão considerados os custos do óleo diesel e dos pedágios.

A MP 831 define que a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) contratará transporte rodoviário de cargas, com dispensa do procedimento licitatório, para até 30% da demanda anual de frete da empresa. Essa medida favorece mais as grandes transportadoras do que os caminhoneiros autônomos. Aos pequenos, sobram os carretos sem grandes distâncias. Eles não participam das grandes operações tipo Conab, dizem especialistas, ficando como meros coadjuvantes.

Assim como a desoneração das folhas de pagamento também não beneficiam os autônomos, que não têm empregados. Na verdade, o que teria que aumentar é o frete, dizem os especialistas, pois como a oferta de caminhões está maior, devido aos incentivos concedidos nos governos Lula e Dilma para a compra dos veículos, há uma natural tendência de baixa do valor dos fretes.

Não há controle de preços no frete. O que os transportadores querem é uma proteção oficial para manter seus lucros. Se o preço for estabelecido pelo governo, a qualidade, a pontualidade, o serviço em si não precisarão melhorar.

Os petroleiros liderados pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), o braço sindical do PT, procuram aproveitar o vácuo da greve dos caminhoneiros que está terminando para politizar a situação com uma greve marcada para o feriadão que se avizinha.

O fato é que se dizia que, se Lula fosse preso, o país pararia. O próprio ex-presidente, no discurso de despedida no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, orientou que as paralisações de estradas com pneus queimados continuassem, assim como invasões pelo MST e MTST.

Não aconteceu nada de mais importante além do acampamento em frente à sede da Polícia Federal em Curitiba, já desmobilizado para alegria dos vizinhos, que não serão mais acordados com um “bom dia” gritado pelo megafone. E talvez até mesmo Lula esteja aliviado.

Durante a greve dos caminhoneiros, que realmente pararam o país, não houve um “Lula Livre” sequer entre os grevistas. Ao contrário, houve, mesmo minoritários, apelos por intervenção militar. À medida que as demandas estão sendo atendidas, a possibilidade de aproveitamento político do movimento vai caindo, e fica mais fácil verificar quem está se aproveitando da situação de fragilidade do governo para fazer ação política.

O governo ficou mais abalado em sua credibilidade do que já estava, é verdade, e errou feio, do início ao fim, mas, a pouco mais de quatro meses da eleição, e como não estamos no parlamentarismo, não tem sentido pedir a renúncia do presidente e eleições antecipadas. Da mesma maneira que não cabia a campanha de eleições já quando Dilma caiu e Lula ainda estava livre. Puro oportunismo político.

A não ser que se queira instalar o caos político no país. Nesse caso, a extrema direita e a extrema esquerda estão unidas, com o mesmo objetivo, a tomada do poder, evidentemente com motivos diferentes.


Merval Pereira: De volta ao começo

Exemplo básico da falência de nosso sistema partidário é a posição atual de PT e PSDB, as duas legendas que predominavam na política brasileira nos últimos 25 anos e hoje correm o risco de não estarem nem no segundo turno. Curiosamente, tanto um partido quanto o outro estão revendo posições que os colocaram na liderança política do país.

O PSDB, embora envergonhado, volta a cobiçar como parceiro o velho MDB, com todos os seus vícios históricos. E o PT une-se ao PSOL, que nasceu da sua costela em 2005 por divergências programáticas e devido às acusações de corrupção.

O partido que havia procurado ampliar seu eleitorado indo da esquerda para o centro, e com isso elegendo Lula presidente em 2002, hoje volta às suas raízes radicais ao ter como uma possibilidade de aliança política o candidato do PSOL à Presidência da República, Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

De quebra, a aliança demonstra também que o PSOL, que se manteve em posição de independência durante os governos Lula e Dilma, não resiste à possibilidade de chegar ao poder central com Lula na cadeia, fora do páreo.

As denúncias de corrupção envolvendo o PT, que levaram vários de seus fundadores a sair do partido, são muito mais graves hoje, com o escândalo da Petrobras sendo desvendado pela Operação Lava-Jato, do que na época do mensalão, que provocaram lágrimas de dissidentes petistas que saíram para entrar no PSOL.

O governo de Michel Temer em substituição ao da petista Dilma, impedida pelo Congresso, foi o detonador das alianças políticas que hoje marcam os dois antigos protagonistas da luta partidária no país.

O PSDB nasceu do PMDB por divergências políticas graves de grupos dissidentes, que não concordavam com a direção fisiológica do partido, liderado então pelo governador de São Paulo Orestes Quércia. Criado em 1988, chegaria ao poder em 1994 a bordo do Plano Real, com Fernando Henrique à frente do Ministério da Fazenda do governo Itamar Franco.

Já o PT, fundado em 1980, começou a ganhar corpo em prefeituras pelo país, chegou ao segundo turno da eleição de 1989 com Lula e ao poder em 2002, substituindo o PSDB.

O impeachment da então presidente Dilma fez com que os tucanos assegurassem a estabilidade política de Michel Temer, que assumiu o governo legitimamente. Mas a vida no poder, de onde estava afastado há 13 anos pelas vitórias sucessivas do PT, não deixou que os tucanos reagissem com firmeza à divulgação do áudio nada republicano da conversa do presidente Temer com o empresário Joesley Batista.

Até hoje está no governo, representado pelo senador Aloysio Nunes Ferreira no Ministério das Relações Exteriores, e o senador Aécio Neves, ex-presidente do partido, acusado de corrupção e obstrução de Justiça no Supremo Tribunal Federal, é interlocutor direto do presidente.

O candidato do PSDB à Presidência, Geraldo Alckmin, busca a todo custo o apoio do MDB à sua candidatura, que não decola. Um apoio envergonhado, é verdade, que não quer se expor à luz do sol, mas é considerado imprescindível.

Já o PT, atordoado pela prisão de Lula e sua inviabilização como candidato à Presidência da República pela Lei da Ficha Limpa — devido à condenação em segunda instância —, busca apoios na esquerda extremista, que sempre foi sua caudatária. Em vez de impor o equilíbrio centrista que o levou ao poder, volta a ser o partido radical que nunca chegou ao poder, embora tivesse o apoio de cerca de 30% do eleitorado, o mesmo índice que hoje tem Lula nas pesquisas.

O PSOL é uma dissidência do PT. Nasceu quando grupos internos se opuseram à Reforma da Previdência proposta pelo governo Lula em 2003. Fundado em julho de 2004, obteve registro no dia 15 de setembro de 2005, mesmo ano em que foi reforçado por outra leva de dissidentes petistas, que saíram do partido, em meio a choros e ranger de dentes, devido às denuncias de corrupção contra o governo Lula, que se transformaram no processo do mensalão.

O impeachment de Dilma aproximou os dois partidos por uma razão contrária à que aproximou novamente PSDB e MDB. Guilherme Boulos é um dos que tenta abocanhar parte da votação de Lula, mostrando-se um de seus mais fervorosos defensores. E Geraldo Alckmin, também à busca de votos do MDB, quer ser o representante do centro político.


Merval Pereira: Decisão atrasada, mas acertada

Em casos como esse, o governo reprime e depois negocia. O governo Temer deu, afinal, as condições legais para a intervenção das Forças Armadas na greve dos caminhoneiros, permitindo inclusive a chamada “requisição de bens", isto é, que os caminhões sejam tomados para garantir o abastecimento. Está começando a ser desmontado o bloqueio das estradas, em situação ainda caótica, mas o governo deveria ter feito essa intervenção antes de qualquer acordo. Teria dado uma demonstração de força e garantido uma perspectiva de solução.

Fazer agora com os ânimos exaltados é muito perigoso, embora o bom senso pareça estar prevalecendo nos primeiros momentos. Nesses casos, o governo reprime e depois negocia, mas antes é preciso demonstrar que tem força para impedir os bloqueios ilegais. Sem isso, é pedir para sofrer mais pressão.

O acordo com o governo não funcionou por duas razões: os caminhoneiros reunidos no Palácio do Planalto não eram completamente representativos da classe, e a Câmara, depois da trapalhada nas contas do deputado Rodrigo Maia, aprovou o fim do tributo PIS/ Confins sobre o frete, e os caminhoneiros colocaram a condição para acabar com a greve, impossível de ser atendida, de aprovação pelo Senado da medida.

Com os ânimos exaltados, a entrada das Forças Armadas no conflito é uma medida temerária, depois de um acordo fracassado. Nas greves anteriores houve negociação, no governo Dilma, por exemplo, uma das greves durou 12 dias. No governo Fernando Henrique, ela acabou em três, quatro dias, depois de o presidente anunciar que desbloquearia as estradas, se necessário, com a ajuda das Forças Armadas.

Era o que o governo Temer deveria ter feito antes de negociar um acordo que não é possível cumprir sem a aderência das lideranças dos caminhoneiros autônomos. O acordo fechado no Palácio do Planalto interessa mais às grandes transportadoras do que aos autônomos. Soube-se no meio do dia de ontem, quando a situação ainda era de tensão máxima, que no acordo firmado os ministros Eliseu Padilha e Carlos Marun prometeram contratar sem licitação as frotas das cooperativas e entidades sindicais que aceitaram suspender a paralisação.

No documento, revelado pelo site O Antagonista, o governo diz que vai editar uma Medida Provisória para “autorizar a Conab a contratar transporte rodoviário de cargas, dispensando-se procedimento licitatório, para até 30% de sua demanda de frete”.

No item K do acordo, autorizado por Michel Temer, os ministros dizem que vão “buscar junto à Petrobras a oportunização aos transportadores autônomos à livre participação nas operações de transporte de cargas, na qualidade de terceirizados das empresas transportadoras contratadas pela estatal”.

Ficou muito claro nesse acordo que as grandes transportadoras estavam por trás da greve e dos termos da rendição do governo. Um dos pontos foi a desoneração da folha de pagamento, e só empresas grandes têm folha de pagamento.

É sabido que uma greve desse tipo terá sempre um final vitorioso para os grevistas, pois é impossível resistir à paralisação literal do país. Hoje eles conseguem paralisar o país com muito mais facilidade. Há muito mais caminhoneiros, pois sucessivos governos financiaram caminhões em condições vantajosas, e a tecnologia ajuda a unir os manifestantes mais rapidamente.

A tecnologia dá também uma característica nova a essa greve, pois o abastecimento das cidades é atingido mais de imediato porque não há mais necessidade de estoques. O processo just in time permite baratear o custo da distribuição à medida que as entregas são feitas de acordo com a demanda, mas também provoca o desabastecimento pela falta de entrega da mercadoria a tempo e hora.

A indústria automobilística parou justamente por esse efeito colateral da greve. Mas, já que o governo vai ter que ceder, que o fizesse em posição de autoridade, exigindo o fim dos bloqueios ilegais antes de qualquer coisa. A população, que no começo apóia os grevistas, com o passar do tempo vai sentir na pele os efeitos dessa paralisação no seu cotidiano, e não é possível sustentar uma greve impopular por muito tempo.

É uma situação delicada, muito difícil mesmo, especialmente para os caminhoneiros autônomos. O aumento diário impede que seja planejado o trabalho, que seja cobrado preço justo, pois nunca se sabe qual será o preço do diesel. Isso não dá, no entanto, o direito aos caminhoneiros de impedir o direito de ir e vir dos cidadãos, e nem a legitimidade de algumas reivindicações permite à categoria fazer exigências absurdas.


Merval Pereira: O governo piscou

O governo piscou ao, pela boca do próprio presidente Michel Temer, pedir “uma trégua” aos grevistas. E a Petrobras piscou também ao aceitar reduzir em 10% o preço do diesel e congelá-lo por 15 dias. As greves de caminhoneiros são freqüentes num país que depende de sua malha rodoviária, cada vez em situação mais precária, para o abastecimento das cidades.

Mas, mesmo as que demoraram mais tempo, não provocaram tantos estragos quanto a atual. O governo está nas mãos dos caminhoneiros, sem capacidade de reação. Não é razoável imaginar que não tivesse informações sobre a movimentação dos grevistas, o mais provável é que tenha menosprezado a capacidade de mobilização da classe. Esquecendo-se de que em diversos governos, anteriores, como o de JK, e mais recentemente, desde Fernando Henrique, passando por Lula e Dilma, houve paralisações como essas, em menor escala graças à ação firme e a capacidade de negociação dos governos naqueles momentos.

"O governo tomou a decisão de manter a livre circulação das estradas e, se preciso, com o uso da força militar", dizia comunicado divulgado do Palácio do Planalto na greve de 1999. Bastaram três dias da paralisação para a greve terminar. Mas os grevistas tiveram ganhos expressivos: congelamento do preço do diesel e das tarifas de pedágio e desativação das balanças que multavam quem estivesse acima do limite de carga.

Ninguém faz um movimento desses, de caráter nacional, sem que lideranças do movimento grevista se reúnam e mantenham contatos entre si. Além do mais o governo perdeu o controle do Congresso, o episódio da aprovação do fim do PIS/Confins não é trágico, apenas é risível, porque dá para consertar no Senado, mas o presidente da Câmara, o pré-candidato à presidência Rodrigo Maia, na ânsia de distanciar-se do governo e agradar aos grevistas, cometeu alegadamente um erro de cálculo de nada menos que R$ 9 bilhões.

O senador Eunício de Oliveira, presidente do Senado, teve que voltar às pressas de Fortaleza para apagar esse incêndio, mas a decisão de se ausentar de Brasília num momento como esse dá bem a mostra de como as principais lideranças políticas do país estão desconectadas da realidade.

Uma prova também de que o governo Temer perdeu o poder de negociação, que gastou para se livrar das duas tentativas da Procuradoria-Geral da República de processá-lo. Na reta final da eleição, um governo impopular, cuja economia não respondeu às expectativas, tende a ver uma debandada de seguidores, especialmente daqueles que se candidatarão em outubro. Cada vez mais se assemelha ao final do governo Sarney em 1989, quando ser da oposição era um trunfo.

Como em outras greves do tipo, os caminhoneiros também têm reivindicações políticas. Mas desta vez se superaram. A União Nacional dos Transportadores Rodoviários e Autônomos de Carga colocou como primeira reivindicação “cumprimento integral da lei do voto impresso em urnas eletrônicas ou adoção do voto impresso em urnas de lona, com apuração a cargo das Forças Armadas”. E arremataram pateticamente: “em caso de descumprimento, nos somaremos ao clamor popular por intervenção militar”.

Na verdade, o clamor popular será atendido quando as Forças Armadas forem utilizadas não para apurar votos, mas para desbloquear as estradas do país e permitir não apenas o direito de ir e vir dos cidadãos, mas garantir o abastecimento das cidades, que já estão sofrendo com quatro dias de paralisações.

Nem mesmo o pré-candidato Jair Bolsonaro apoiou a reivindicação, que parecia cair como uma luva para sua campanha. Disse que apoiava a greve, mas não o bloqueio das estradas. E calou-se sobre a intervenção militar.


Merval Pereira: Ministério de notáveis

O cientista político Octavio Amorim Neto, professor da Fundação Getulio Vargas no Rio, escreveu no Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) de maio um artigo tratando da governabilidade do futuro presidente brasileiro, que, ao que tudo indica, será minoritário no Congresso devido à crescente fragmentação partidária e ao enfraquecimento dos três principais partidos — MDB, PT e PSDB. Sua instigante tese é que o antídoto ao presidencialismo de coalizão, desmoralizado diante da opinião pública, seria a formação de um ministério de notáveis, tal qual tentou em 1992 o então presidente Collor.

Octavio Amorim Neto lembra que, ao longo das nossas duas experiências democráticas (1946-1964 e 1985-2018), “todos os chefes de Executivo que não lograram formar uma maioria legislativa, ou a perderam, não conseguiram terminar suas administrações no prazo constitucionalmente estipulado. São os casos de Getúlio Vargas em 1954, Café Filho em 1955, Jânio Quadros em 1961, João Goulart em 1964, Fernando Collor em 1992, e Dilma Rousseff em 2016”.

Trata-se de um fenômeno muito frequente em nosso país, ressalta o cientista político, que rechaça a ideia de alguns políticos de recorrer a plebiscitos para forçar o Legislativo a acatar as principais propostas do novo governo. Além de “uma afronta às prerrogativas constitucionais de deputados e senadores”, significa também “se valer de um expediente típico do rotundamente falido bolivarianismo venezuelano”.

Além do mais, o Congresso foi fortalecido pelas reformas de 2001 e 2009, ressalta Octavio Amorim Neto, citando diversos estudos, e a partir de 2015 a execução das emendas individuais dos parlamentares ao orçamento da União passou a ser impositiva, fortalecendo mais ainda o Legislativo.

Por mais desmoralizados que se encontrem os parlamentares, sua cooperação continua sendo absolutamente vital para o êxito de qualquer governo, salienta o cientista político. Na impossibilidade, na visão de Octavio Amorim Neto, de se fazer um amplo acordo de união nacional, um eventual presidente minoritário deveria tentar, no começo de 2019, o que o ex-presidente Collor tentou a partir do segundo ano do seu mandato e, sobretudo, no final do seu governo.

Octavio Amorim Neto relembra: em abril de 1992, Collor deu sua última tacada nomeando um gabinete caracterizado pela delegação de poder a líderes partidários de peso (com destaque para Jorge Bornhausen) e a outros “elder statesmen” (Célio Borja, Hélio Jaguaribe e Celso Lafer), tendo como coordenador da economia o ministro Marcílio Marques Moreira, que fora nomeado anteriormente, “grandes homens públicos que combinavam renomada expertise e fortes laços com as elites política, empresarial, cultural e acadêmica”.

Num primeiro momento, esse gabinete tinha plenas condições de estabilizar a situação política do governo. Porém, em maio, Pedro Collor faz graves denúncias contra seu irmão, o presidente, que a partir daí, perdeu as condições de governabilidade, até o impeachment.

A saída, para Octavio Amorim Neto, é formar um governo que tenha “um sólido setor político que se proponha a se articular sempre com o Congresso e que não tenha nas medidas provisórias seu principal instrumento de ação”.

Esse mesmo governo deveria também ter um forte núcleo programático composto por homens e mulheres que mesclem elevada estatura pública, conhecimento técnico e representatividade social. Um ministério dessa qualidade, salienta Octavio Amorim Neto, “emitirá uma forte mensagem à classe política: a de que o Congresso será tratado com respeito, a partir de uma relação eminentemente republicana e institucional”.

Ele acredita que a maioria dos parlamentares responderá à altura, e não será obstáculo às reformas de que tanto carece o país. “Se a fórmula funcionar no primeiro semestre de 2019, no segundo o presidente poderá tentar uma maioria legislativa formal, por meio de um acordo programático com os partidos que tiverem se revelado cooperativos no primeiro momento”.

A aposta de Octavio Amorim Neto é que “o Congresso vai entender a nova mensagem e mudar”.


Merval Pereira: Camisa amarela

À medida que vai desmoronando a tese da esquerda de que a Operação Lava-Jato se dedica apenas a perseguir Lula, vão ficando cada vez mais patéticas as tentativas de criar fatos políticos que não se realizam. É verdade que Lula continua fazendo política de dentro da cadeia, e que o PT demonstra uma capacidade de agitação acima da dos demais partidos políticos brasileiros. Mas isso não quer dizer que os resultados positivos virão. Pelo menos não estão vindo. Lula continua liderando as pesquisas, mas o PT corre o risco de sucumbir devido à estratégia definida por Lula de não indicar seu substituto até o último momento.

Ontem, o ex-governador de Minas e ex-presidente do PSDB Eduardo Azeredo, condenado a 20 anos de prisão por peculato e lavagem dinheiro, em segunda instância, viu os esforços de sua defesa para protelar a decisão se esgotarem, e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) expediu o mandado de prisão.

O episódio ficou conhecido como o mensalão mineiro, numa demonstração da capacidade marqueteira do PT. Azeredo não deu mensalão a ninguém, seu caso é de peculato, isto é, usar o dinheiro público de maneira ilegal para financiar sua campanha eleitoral. O apelido de mensalão mineiro, ou tucano, só serviu para tornar situações distintas em semelhantes, no interesse do PT de dizer que todos os partidos roubam.

É verdade, a Operação Lava-Jato está demonstrando, mas o esquema petista de compra de apoio em troca de propinas geradas por obras superfaturadas em estatais, especialmente a Petrobras, é insuperável. E um ataque ao Estado democrático. Apenas o mentor dos dois “mensalões” é o mesmo, o publicitário Marcos Valério, que está devidamente encarcerado.

O final do caso Azeredo retira do PT o mantra de que os tucanos são protegidos pela Justiça. Outra notícia desanimadora para a defesa do ex-presidente Lula foi a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU de rejeitar o pedido para que ele fosse solto por uma medida cautelar.

A ida à ONU, por si só, faz parte do aparato de marketing político que o PT vem utilizando, aqui e no exterior, para tentar caracterizar uma situação de perseguição política. A tentativa era no sentido de que a ONU seguisse a mesma decisão que atendeu a um pedido similar de políticos catalães. Nesse caso, a Comissão recomendou que o deputado independentista Jordi Sanches fosse liberado para que pudesse participar de eleições. O estado espanhol ignorou a recomendação da ONU, e o mesmo ocorreria no Brasil, mas seria um ganho político para Lula ter essa espécie de aval da ONU.

No caso do ex-presidente Lula, a Comissão não viu “riscos de um dano irreparável”, mas o caso, que começou em 2016, continua sendo analisado, e o resultado deve ser anunciado somente em 2019. Mas aí o valor político de uma improvável decisão a favor de Lula já terá sido esvaziado consideravelmente.

Mas o ponto mais risível do marketing político dos apoiadores de Lula é a tentativa de esvaziar a torcida pela seleção brasileira na Copa do Mundo da Rússia sob a alegação de que a camiseta amarela foi usado pelos “coxinhas golpistas” nas manifestações a favor do impeachment da ex-presidente Dilma.

Também a corrupção na CBF seria uma razão para que a camisa da seleção não esteja animando a torcida. Como se pudéssemos voltar no tempo, tenta-se reviver um sentimento que esteve muito presente em 1970, em plena ditadura militar, quando muitos da esquerda decidiram não torcer pelo time de Pelé, Tostão, Jairzinho e companhia. E como não se soubesse o que aconteceu, segundo o relato bem-humorado de vários exilados e membros da oposição guerrilheira: na hora agá, não resistiram à paixão pelo futebol e comemoraram o tricampeonato mundial.

Provavelmente acontecerá igual desta vez, apesar de que o desânimo com a situação do país e a difícil saída da recessão econômica não deem muito espaço para comemorações antecipadas. Mas, mesmo sendo “o país do futebol”, os resultados das Copas do Mundo nunca influenciaram as eleições para presidente da República, que de quatro em quatro anos coincidem com os campeonatos desde 1994.


Merval Pereira: A verdadeira reforma

Há muitos pré-candidatos a presidente da República, tão diferentes entre si como Ciro Gomes do PDT e Geraldo Alckmin do PSDB, mas com pensamentos comuns no que se refere à economia, talvez uns com tintas mais carregadas que outros, mas todos convencidos de que é preciso usar o primeiro ano de mandato, ou até mesmo os primeiros seis meses, para realizar as reformas necessárias. As mesmas em que nos debatemos há anos: reforma previdenciária, tributária, mas, sobretudo, a fiscal, que garantirá o equilíbrio das contas públicas.

Sem equilíbrio fiscal não há como crescer, afirmam com a mesma convicção os economistas Mauro Benevides Filho, que trabalha para Ciro, quanto Pérsio Arida, coordenador do programa econômico de Alckmin. Não são diferentes dos que assessoram candidatos também distintos entre si como Marina Silva (André Lara Resende e Gianetti da Fonseca) e Bolsonaro (Paulo Guedes).

Uns acham que o equilíbrio fiscal é questão fundamental, mas não suficiente para o crescimento, mas mesmo Benevides, que está no campo da esquerda, discorda da tese, muito em voga entre os petistas, de que o problema fiscal se resolve com crescimento econômico.

Portanto, o teto de gastos tão polêmico será mantido em governos de diferentes tendências, com nuances. O candidato Ciro Gomes disse ontem na sabatina da Folha, UOL e SBT que é preciso ter “uma pedra no coração” para cortar gastos com a educação. Benevides tem declarado que o teto de gastos será flexibilizado para permitir investimentos e dinheiro para a saúde e a educação. Mas haverá cortes em outros setores, para equilibrar as contas.

Tanto ele quanto Pérsio Arida têm defendido em entrevistas mudanças na tributação, para cobrar dos ricos mais do que dos pobres. Privatização é uma palavra comum, mas, para Ciro Gomes, Petrobras e Eletrobras são intocáveis. A reforma da Previdência também encontra eco entre os economistas mais distantes entre si, mas com nuances.

Uma proposta comum, no entanto, é a capitalização privada para as aposentadorias acima de três salários mínimos. Assim como sabemos o que é preciso fazer para atingir o desenvolvimento econômico, não se sabe como enfrentar uma necessidade básica para realizar um programa de governo viável, a tal da governabilidade.

Mudar nossa cultura político-institucional é o desafio de todos os pré-candidatos, pois nenhum partido fará maioria no Congresso, como sempre acontece num modelo político que favorece a pulverização de partidos.

Como, a começar por aí, fazer a reforma política que vai tirar o poder de muitos dos que estão no Congresso e lá pretendem manter-se pelas regras atuais, rejeitadas pela população, mas garantida pelo controle das convenções pelas cúpulas partidárias?

Pior que isso: diante das mudanças que a sociedade está a exigir, do combate à corrupção que se tornou a prioridade para o exercício pleno da cidadania, os líderes partidários começam a dar mais atenção às eleições parlamentares do que à presidencial, em busca de bancadas fortes para tornar mais difícil ao eleito se livrar deles, de seus partidos, muitos deles quase fantasmas a exigir benesses em troca de apoios.

Mesmo nos primeiros meses de um governo eleito diretamente fica difícil prescindir dos partidos. Mas como negociar programas, objetivos, com partidos que há anos estão acostumados ao toma-ládá-cá e se cevam nas regalias do governo central?

Essa será a difícil tarefa de quem chegar ao Palácio do Planalto em 2018 e não quiser favorecer uma aliança do baixo clero para recair nos mesmo erros que estão sendo punidos pela Operação Lava Jato. Ou se ver às voltas com uma crise institucional.


Merval Pereira: Miséria explorada

O desabamento do edifício em São Paulo ocupado por uma dissidência do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) explicitou o descaso das autoridades públicas que, além de não terem programas habitacionais para combater a tragédia da falta de moradia, não fiscalizam os pardieiros invadidos por uma centena de movimentos ditos sociais, mas que, em sua maioria, se transformaram em milícias urbanas, arrancando dinheiro de quem não tem nem para viver.

Por outro lado, o principal movimento, o MTST, que ganhou notoriedade pelo protagonismo de Guilherme Boulos no cenário político nacional, não atua para coibir essas verdadeiras quadrilhas que se aproveitam dos que o candidato à presidência do PSOL alega representar e proteger.

O máximo que Boulos conseguiu fazer foi uma declaração de solidariedade, e garantir, estranhamente, que nunca havia ouvido falar nesse movimento que extorquia dinheiro dos sem teto que ele pretende liderar. E ainda deu-se ao luxo de criticar “os que querem se aproveitar de uma tragédia para fazer política”.

Se não sabe da existência desse e de outros movimentos semelhantes, no mínimo é um relapso, pois deveria ter informações sobre os que atuam no seu terreno, desmoralizando uma campanha que se anuncia como séria e defensora dos direitos humanos dos que não tem casa para morar.

Boulos e seus assessores tinham, na verdade, obrigação de denunciar esse tipo de gente que se aproveita da miséria alheia. Poderiam aproveitar o acesso que têm às autoridades para propor uma campanha conjunta de moralização desses cortiços, ocupados muitas vezes por quadrilhas de bandidos que encontraram neles um novo filão para ganhar dinheiro ilegalmente, da mesma maneira que vendem drogas dentro das ocupações e facilitam instalações clandestinas, os chamados gatos, que acabam provocando tragédias como a do edifício Wilton Paes de Almeida.

Esses grupos, que no limite são ligados a facções criminosas, assemelham-se às milícias que atuam nas comunidades pobres e favelas do Rio, e precisam ser combatidos. A união de milicianos com traficantes, que a polícia paulista está investigando e a intervenção no Rio está combatendo arduamente, é uma ameaça a toda a sociedade.

Guilherme Boulos teria credibilidade para cobrar da prefeitura atitudes mais eficazes para transformar esses prédios invadidos em moradia barata, com direito à fiscalização dos poderes públicos. A prefeitura de São Paulo, em versões recentes ou mais remotas, desde 1997, quando ocorreu a primeira invasão do MTST em um prédio público de São Paulo, têm responsabilidade maior ainda, pois não podem governar apenas para uma parte da população, esquecendo os que são explorados e permanecem vivendo como animais.

Se Guilherme Boulos não se dedicasse tanto à política partidária, e tivesse uma visão mais ampla do que seja uma verdadeira ação política, não permaneceria em Curitiba prestando homenagem a Lula, esperando receber migalhas do espólio do lulismo. E usando os miseráveis que o seguem com fins partidários, colocando-os à disposição da luta política do ex-presidente.

O presidente Michel Temer, já escrevi aqui, não deveria ter ido aos escombros, por ser uma clara ação política indevida, num ambiente hostil. Mas Boulos tinha obrigação de lá estar presente, e de denunciar a extorsão que estava em curso, distorcendo o sentido da ação social que ele alegadamente lidera.

Dizer que nunca ouviu falar desse movimento, e de diversos outros espalhados pelo país, não é suficiente para expiar sua irresponsabilidade. Afinal, um verdadeiro líder tem obrigação de denunciar os que se aproveitam de situações miseráveis para explorar o próximo. Ou basta denunciar as autoridades burguesas e os capitalistas desalmados para justificar sua atuação política?


Merval Pereira: Miséria explorada

Desabamento de prédio explicita exploração da miséria. O desabamento do edifício em São Paulo ocupado por uma dissidência do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) explicitou o descaso das autoridades públicas que, além de não terem programas habitacionais para combater a tragédia da falta de moradia, não fiscalizam os pardieiros invadidos por uma centena de movimentos ditos sociais, mas que, em sua maioria, se transformaram em milícias urbanas, arrancando dinheiro de quem não tem nem para viver.

Por outro lado, o principal movimento, o MTST, que ganhou notoriedade pelo protagonismo de Guilherme Boulos no cenário político nacional, não atua para coibir essas verdadeiras quadrilhas que se aproveitam dos que o candidato à presidência do PSOL alega representar e proteger.

O máximo que Boulos conseguiu fazer foi uma declaração de solidariedade, e garantir, estranhamente, que nunca havia ouvido falar nesse movimento que extorquia dinheiro dos sem teto que ele pretende liderar. E ainda deu-se ao luxo de criticar “os que querem se aproveitar de uma tragédia para fazer política”.

Se não sabe da existência desse e de outros movimentos semelhantes, no mínimo é um relapso, pois deveria ter informações sobre os que atuam no seu terreno, desmoralizando uma campanha que se anuncia como séria e defensora dos direitos humanos dos que não têm casa para morar.

Boulos e seus assessores tinham, na verdade, obrigação de denunciar esse tipo de gente que se aproveita da miséria alheia. Poderiam aproveitar o acesso que têm às autoridades para propor uma campanha conjunta de moralização desses cortiços, ocupados muitas vezes por quadrilhas de bandidos que encontraram neles um novo filão para ganhar dinheiro ilegalmente, da mesma maneira que vendem drogas dentro das ocupações e facilitam instalações clandestinas, os chamados gatos, que acabam provocando tragédias como a do edifício Wilton Paes de Almeida.

Esses grupos, que no limite são ligados a facções criminosas, assemelham-se às milícias que atuam nas comunidades pobres e favelas do Rio, e precisam ser combatidos. A união de milicianos com traficantes, que a polícia paulista está investigando e a intervenção no Rio está combatendo arduamente, é uma ameaça a toda a sociedade.

Guilherme Boulos teria credibilidade para cobrar da prefeitura atitudes mais eficazes para transformar esses prédios invadidos em moradia barata, com direito à fiscalização dos poderes públicos. A prefeitura de São Paulo, em versões recentes ou mais remotas, desde 1997, quando ocorreu a primeira invasão do MTST em um prédio público de São Paulo, têm responsabilidade maior ainda, pois não podem governar apenas para uma parte da população, esquecendo os que são explorados e permanecem vivendo como animais.

Se Guilherme Boulos não se dedicasse tanto à política partidária, e tivesse uma visão mais ampla do que seja uma verdadeira ação política, não permaneceria em Curitiba prestando homenagem a Lula, esperando receber migalhas do espólio do lulismo. E usando os miseráveis que o seguem com fins partidários, colocando-os à disposição da luta política do ex-presidente.

O presidente Michel Temer, já escrevi aqui, não deveria ter ido aos escombros, por ser uma clara ação política indevida, num ambiente hostil. Mas Boulos tinha obrigação de lá estar presente, e de denunciar a extorsão que estava em curso, distorcendo o sentido da ação social que ele alegadamente lidera.

Dizer que nunca ouviu falar desse movimento, e de diversos outros espalhados pelo país, não é suficiente para expiar sua irresponsabilidade. Afinal, um verdadeiro líder tem obrigação de denunciar os que se aproveitam de situações miseráveis para explorar o próximo. Ou basta denunciar as autoridades burguesas e os capitalistas desalmados para justificar sua atuação política?
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Dou um descanso aos leitores, e a coluna volta a ser publicada no dia 22


Merval Pereira: Avanço republicano

O fim do foro privilegiado de deputados e senadores por unanimidade mostra que, apesar das diferenças de visão, o Supremo Tribunal Federal tem uma posição firme sobre o assunto, variando apenas a maneira de aplicar a decisão. Mesmo que os ministros que eram contra a proposta tenham aderido a ela apenas diante do fato consumado.

Quatro dos onze ministros ficaram vencidos na proposta de Alexandre de Moraes, que previa que o foro privilegiado seria mantido para os parlamentares durante o mandato, não importando que o crime tivesse sido cometido sem ligação com sua atuação parlamentar.

Mesmo assim, a proposta era um avanço, pois os parlamentares poderiam ser julgados por crimes passados, o que hoje não acontece. A maioria do Supremo decidiu, no entanto, avançar mais, e o foro só valerá para crimes cometidos no mandato e em função dele.

O recebimento de propina na campanha eleitoral, por exemplo, será julgado na primeira instância, pois o candidato não tem foro privilegiado. O interessante é que essa maioria de 7 a 4 está prevalecendo nas recentes decisões do STF, mas a composição da maioria não se repete.

Os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes têm votado em bloco, enquanto os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux e Cármen Lúcia votam geralmente com a mesma posição. Os ministros Alexandre de Moraes, Celso de Mello e Rosa Weber são os swing votes, isto é, votos que podem ajudar a formar a maioria, sem tendência fixa.

Mas os ministros que hoje fazem a maioria na Segunda Turma, deixando quase sempre em minoria o relator da Lava-Jato, Edson Fachin, e, em alguns casos, o decano Celso de Mello, raramente têm tido a maioria no plenário.

Nesse caso, vai ser mais difícil para os ministros derrotados decidirem os casos que devem ir para a primeira instância baseados no critério que foi rejeitado pela maioria, como alguns ministros fazem no caso da prisão em segunda instância.

Os quatro que votaram para que a Corte julgue crimes cometidos durante o mandato, independentemente se o delito tem relação com a função parlamentar, foram Alexandre de Moraes, que abriu a divergência, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

Dos cinco ministros que votaram contra a prisão em segunda instância, apenas a ministra Rosa Weber acata a maioria, mesmo contra sua opinião. O ministro Dias Toffoli também se pauta pelo respeito à maioria, em que ele formava no julgamento de 2016, mas mudou de ideia e hoje propõe que a prisão se dê após a decisão do STJ.

O ministro Gilmar Mendes, que também formou a maioria naquela ocasião, anunciou mudança de posição e vem concedendo habeas corpus, assim como Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Fazem isso porque a decisão foi em caráter liminar, permitindo, mas não obrigando a decretação da prisão.

No caso do fim do foro privilegiado, a decisão é terminativa, e provavelmente as dúvidas que surgirem sobre se o crime foi cometido em razão do cargo deverão ser definidas pelo relator, com recurso nas Turmas.

Outro avanço alcançado ontem impede, pelo menos em parte, a chamada “gangorra processual”, em que o político aguarda até perto da decisão final do STF e renuncia ao mandato, levando seu processo à estaca zero para a primeira instância. Os ministros decidiram que o processo não mudará de instância nos casos envolvendo a fase de intimação para as alegações finais, isto é, após a colheita de provas.

A consequência da decisão do Supremo, a médio prazo, será sua extensão para as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais. Mas a proposta de emenda constitucional que está em tramitação no Congresso é mais radical ainda, acabando com o foro privilegiado para todos, com exceção de presidentes de Poderes: Presidência da República, do Congresso (Câmara e Senado) e do Supremo.

Foi arquitetado como uma reação à decisão do Supremo, e na próxima legislatura deve tornar-se pauta prioritária. Dependendo da nova formação do futuro Congresso, a mudança constitucional pode manter os avanços agora feitos pelo Supremo.

Se, ao contrário, o espírito vigente for o mesmo que hoje impera no Congresso, teremos mais uma crise institucional, com forte reação da opinião pública contra um eventual retrocesso.