Merval Pereira

Merval Pereira: Lula alimenta Bolsonaro

Radicalização da disputa política é decisão do ex-presidente que só faz acirrar os ânimos e dar gás ao antilula

O maior estímulo à candidatura à Presidência da República de Bolsonaro é a tentativa de Lula de se manter na disputa. A estratégia do ex-presidente é clara, embora seja uma missão quase impossível colocar sua fotografia na urna eletrônica para que seja real o slogan já escolhido: Fulano é Lula, Lula é Fulano.

Se sua foto aparecesse na urna, seu eleitorado teria a sensação de que estaria votando nele, e pouco importaria o nome que estivesse por trás daquela fotografia. Seria a indicação de que Lula é que governaria e, mais que isso, a possibilidade de o futuro presidente petista conseguir alguma maneira de tirá-lo da cadeia.

Para Bolsonaro, a pior coisa seria Lula ter um acesso de bom senso e organizar a campanha presidencial do PT, ou das esquerdas unidas, em torno de um dos nomes que estão na disputa, possivelmente o candidato do PDT, Ciro Gomes, bem cotado nas pesquisas eleitorais, embora seja suplantado sistematicamente pela candidata da Rede, Marina Silva.

Outra decisão do ex-presidente que só faz acirrar os ânimos e dar mais gás ao antilula que Bolsonaro encarna é a radicalização da disputa política, que ontem teve mais um episódio esdrúxulo: seis pobres coitados selecionados por João Pedro Stédile para fazer greve de fome em favor de Lula criaram uma balbúrdia em frente ao Supremo Tribunal Federal.

Ao assumirem, pela boca de Stédile, que não se fechará para a comida, que fazem a greve de fome para pressionar o STF a permitir que Lula — que também não adere à greve de fome — seja candidato à Presidência da República, levam a disputa para o campo em que Bolsonaro se dá melhor.

Assim como Lula espera ganhar politicamente ficando em evidência até o dia 20 de setembro, quando as urnas eletrônicas são “inseminadas”, processo de instalação dos programas nas urnas, com os nomes, números, fotos de candidatos, dados dos partidos e coligações, e a ordem de votação, também Bolsonaro ganha com a ampliação do prazo para se vender como o antilula.

O PT terá que tomar uma decisão durante esse processo, se o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não agir com firmeza e rapidez. Manter a candidatura de Lula até o final, mesmo correndo o risco de impugnação dos votos dados a ele, significa uma jogada de confrontação máxima da Justiça, criando uma instabilidade política perigosa.

Caso, por hipótese, Lula venha a ser um dos dois mais votados no primeiro turno, e o recurso contra sua inelegibilidade continuar em processo no STJ ou no STF, iria para o segundo turno ainda sub judice.

Se a inelegibilidade for confirmada antes da votação em 7 de outubro, os votos dados a ele serão considerados nulos, e seriam classificados os dois candidatos que terminassem o primeiro turno mais votados, além de Lula: ou o primeiro e o terceiro colocados, caso Lula termine em segundo, ou o segundo e terceiro, caso Lula chegue em primeiro.

Também os partidos coligados ao PT teriam que ir para uma candidatura “a todo risco”, sabendo que seus votos poderão ser anulados caso se confirme a inelegibilidade de Lula. Pela Lei da Ficha Limpa, o candidato pode perder o mandato até mesmo depois de eleito. Por isso, os partidos de esquerda têm cada um seu candidato próprio, e ninguém quer abrir mão dele para se coligar com um candidato que pode provocar a anulação de todos os votos dados à coligação.

Se o PT decidir não forçar uma crise institucional e trocar de candidato, pode fazê-lo até o dia 17 de setembro, 20 dias antes da eleição. Nesse caso, a foto e o nome do substituto estarão na urna eletrônica, obedecendo à legislação. A hipótese de Lula poder participar da campanha eleitoral é próxima de zero.

Em 15 de agosto termina o prazo para os partidos políticos e coligações registrarem seus candidatos. A propaganda eleitoral começa no dia seguinte, e 15 dias depois, a 31 de agosto, começa a propaganda eleitoral gratuita através do rádio e da televisão.

Tudo indica que Lula vai tentar manter a candidatura até a data limite, dando a seu substituto apenas 20 dias para fazer campanha. Para sorte do substituto, porém, esse timing imaginado pela cúpula petista vai ser atropelado pela Justiça Eleitoral, que deve não aceitar o registro de um candidato previamente inelegível devido à Lei da Ficha Limpa, incorporada à lei eleitoral.


Merval Pereira: Sobre inelegibilidade

O mais provável é que a candidatura de Lula a presidente nem mesmo seja registrada pelo Tribunal Eleitoral

Com a decisão da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, de orientar o Ministério Público Eleitoral a atuar no sentido de que sejam respeitadas as condições de elegibilidade definidas em leis como a da Ficha Limpa, a movimentação da militância petista (ou será lulista?) para pressionar o Judiciário está preocupando os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), alguns deles também membros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Depois que vândalos atacaram o prédio do STF, estão programadas diversas manifestações para o último prazo legal, dia 15 de agosto, quando o pedido de registro da candidatura do ex-presidente deve ser requerido ao TSE. Prometem levar milhares de pessoas para a frente do tribunal, como se manifestações assim ainda fossem possíveis em defesa de Lula ou, mais incompreensível ainda, pretender que os ministros se sentirão obrigados a aceitar uma candidatura de alguém que está claramente incluído entre os que são inelegíveis.

Diz a Lei Complementar 135, de 2010, que são inelegíveis, entre outros, “os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena pelos crimes (...) de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores”. É o caso de Lula, condenado a 12 anos por lavagem de dinheiro e corrupção, por unanimidade, pela 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que confirmou a condenação definida pelo juiz Sergio Moro, e ainda aumentou a pena.

As reações dos militantes são desesperadas diante da evidência de que não haverá condições de Lula participar da disputa presidencial. Há também a proposta de que militantes façam greve de fome em solidariedade a Lula, já que o próprio ex-presidente não aderiu à ideia de que ele mesmo fizesse uma greve de fome em protesto. Os que tiveram a ideia não sabem que essa questão sempre foi problemática para Lula.

Quando foi preso em 1980 durante a ditadura militar, devido à greve dos metalúrgicos, os sindicalistas resolveram fazer uma greve de fome. Já contei aqui que o líder Zé Maria, um dos fundadores do PT e hoje candidato permanente à Presidência da República pelo PSTU, relatou, em declaração publicada no blog do sociólogo Ricarte Almeida Santos, nunca desmentida, que houve “uma grande decepção” quando descobriram que “Lula estava furando a greve de fome, recebendo barras de chocolate e comendo às escondidas”.

Ainda presidente, Lula fez uma visita oficial a Cuba em meio a uma greve de fome de um preso político conhecido por Zapata. Lula deu declarações dizendo que “(...) Temos de respeitar a determinação da Justiça e do governo cubanos. A greve de fome não pode ser um pretexto de direitos humanos para liberar as pessoas. Imagine se todos os bandidos presos em São Paulo entrarem em greve de fome e pedirem liberdade”. Zapata morreu com Lula ainda em solo cubano, e a comparação de presos políticos com presos comuns levou a críticas severas contra ele.

Mas, de qualquer maneira, a questão é jurídica, não política, como querem os militantes petistas. O mais provável é que a candidatura de Lula nem mesmo seja registrada pelo Tribunal Eleitoral. É como, comparou um ministro do próprio tribunal, se um americano quisesse se registrar para disputar a Presidência da República. Somente brasileiros natos podem se candidatar, assim como apenas os que não foram condenados em segunda instância ou não tiveram a condenação transitada em julgado.

A procuradora-geral, Raquel Dodge, que é também a procuradora-geral eleitoral, admitiu em sua fala que há casos em que o candidato pode concorrer sub judice, como define o artigo 16 A da Lei Eleitoral, e é nisso que se fiam os advogados de Lula. Para acabar com as dúvidas, porém, pode ser que o próprio Ministério Público Federal, ou um partido, faça uma consulta ao STF sobre o alcance do artigo 16 A.

O registro da candidatura de Lula deve ser negado pelo TSE e, mesmo que ele recorra ao Supremo Tribunal Federal, não estará sub judice, mas lutando para poder se inscrever como candidato. A única chance de Lula poder participar da eleição é o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anular a condenação por um erro de fato no julgamento do TRF-4, ou o ex-presidente conseguir uma liminar no STF.


Merval Pereira: Rapidez e rigor

A decisão de Raquel Dodge, na qualidade de procuradora-geral eleitoral, de divulgar instrução normativa orientando todos os procuradores a ingressarem com ações para impugnar candidaturas de políticos condenados em segunda instância, conforme prevê a Lei da Ficha Limpa, é mais uma sinalização da Justiça de que não permitirá que a insegurança jurídica embaralhe o resultado das eleições de outubro.

Mesmo que tenha ressaltado que a legislação admite candidaturas sub judice, quando ainda há possibilidades de recursos, a decisão, acrescentada da advertência do atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro do STF Luiz Fux, de que a Justiça Eleitoral será rigorosa contra os candidatos fichas-suja, indica que a tentativa do PT de tentar ganhar tempo através de recursos protelatórios para conseguir colocar o nome de Lula na urna eletrônica tem tudo para dar errado.

Rapidez e rigor são as palavras que acompanham sempre as declarações das autoridades encarregadas de zelar pela lisura das eleições presidenciais. Nossa expectativa é fazer prevalecer a Lei da Ficha Limpa, garantiu a procuradora-geral da República. Ontem o futuro presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, no plantão judiciário, confirmou à Justiça Eleitoral de Goiás que o ex-senador Demóstenes Torres pode se candidatar ao senado nas próximas eleições.

A decisão fora tomada por 3 votos a 2 na Segunda Turma do Supremo, e foi confirmada ontem por Toffoli. A alegação para passar por cima da Lei da Ficha Limpa, que prevê que, além dos condenados em segunda instância, também os políticos cassados, como é o caso de Demóstenes, estão inelegíveis, é que o ex-senador não poderia ser considerado inelegível porque as provas que justificaram sua cassação acabaram anuladas pela Justiça.

A decisão abre um precedente perigoso, pois a Lei da Ficha Limpa não prevê nenhum recurso ao STF. O Senado que cassou Demóstenes foi simplesmente ignorado na decisão. Mas também é improvável que o processo que condenou Lula venha a ser anulado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), a quem cabe analisar os recursos.

Precedente histórico
A interferência da Rússia na eleição de Donald Trump, alvo de uma investigação independente nos Estados Unidos, tem um precedente histórico revelado no livro de memórias de Nikita Khrushchev, secretário-geral do Partido Comunista da então União Soviética.

Ele se gaba de ter ajudado John Kennedy a vencer Nixon na eleição presidencial de 1960, retardando a liberação do piloto do U2 Gary Powers, preso acusado de espionagem. Com isso, evitou que Nixon, reconhecido como um anticomunista feroz, pudesse anunciar que só ele sabia como lidar com os soviéticos.

Na estimativa de Khrushchev, a manobra resultou em mais de 500 mil votos para Kennedy, que ganhou a eleição com 303 votos contra 219 no colégio eleitoral, com apenas 112.827 votos de diferença, ou 0,1% do voto popular.

Powers era piloto de um avião espião U2 abatido pelos mísseis soviéticos quando sobrevoava Sverdlovsk. O avião caiu quase totalmente intacto, e os soviéticos recuperaram seus equipamentos, que foram analisados minuciosamente durante o que se chamou de “a crise do U2”. Powers foi interrogado exaustivamente pela KGB durante meses, e acabou confessando que era um espião.

Sua libertação antes da eleição poderia dar um trunfo para Nixon, que servira durante oito anos como vice de Eisenhower. Outra coincidência com a eleição de Trump contra Hilary Clinton em 2016 é que Nixon dedicou-se a uma campanha em todos os distritos eleitorais, enquanto Kennedy empenhou seu esforço nos chamados estados indecisos

(swing states), do mesmo modo que Trump fez. Hilary Clinton ganhou no voto popular e perdeu no colégio eleitoral. Kennedy ganhou nos dois, mas, pelas contas de Khrushchev, perderia no voto popular se não fosse a ajuda da União Soviética. Não há como provar que não ganharia no colégio eleitoral, que é o que vale, se a União Soviética não tivesse evitado que o anticomunista Richard Nixon pudesse angariar popularidade com a liberação do prisioneiro.


Merval Pereira: Justiça sob ataque

A estratégia do PT de desmoralizar a Justiça para dar ares de verdade à tese de que Lula é um perseguido político, encarcerado injustamente, está produzindo seus efeitos deletérios à democracia brasileira.

O ataque de militantes petistas ao prédio do Supremo Tribunal Federal, com atos de vandalismo, é um absurdo que não foi devidamente repudiado fora dos organismos institucionais da Justiça. Não houve um pré-candidato ou líder partidário que se posicionasse veementemente contra a arruaça promovida por neoaloprados petistas, incentivados pelas declarações e ações das lideranças políticas de esquerda.

Ataques que já haviam acontecido contra a residência da presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, em Belo Horizonte, nos mesmos moldes de jogar tinta vermelha, o que mostra que é uma atitude recorrente de alguma facção ligada ao PT.

A estrambótica tentativa de usar um plantão judicial para libertar Lula, desmontada pela ação pronta de autoridades que prezam pela proteção do sistema judicial brasileiro, inviabilizou o golpe, mas estimulou outras atitudes do mesmo teor.

Foi assim com o plantão no STF do ministro Dias Toffoli, tido como o momento ideal para a libertação de Lula por suas ligações passadas com o PT e o próprio ex-presidente. Vários pedidos de habeas corpus foram apresentados logo no primeiro dia, como se fosse obrigatório Toffoli ajudar Lula, com quem trabalhou e por quem foi indicado para o STF.

Não poderia haver manobra mais rasteira e ingênua politicamente. Também o pré-candidato do PDT, Ciro Gomes, agora dedicado a tentar pela enésima vez o apoio do PT e de partidos de esquerda como o PSB, deu uma entrevista anunciando que a única maneira de Lula sair da prisão é ele ganhar a eleição e colocar o Ministério Público e o Judiciário “dentro de suas caixinhas”.

Nada mais claro, inclusive porque ele complementou que colocaria todos em seus devidos lugares. Diante da repercussão negativa, necessariamente de repúdio às ameaças que um candidato a presidente da República faz ao sistema judicial do país que pretende comandar, Ciro esclareceu que fora mal interpretado por má-fé, mas repetiu o que dissera antes com outras palavras.

Defendeu o Legislativo e o Executivo, dando a entender que estavam sendo constrangidos pelo Judiciário. Já se referira com um palavrão a uma procuradora que abriu uma investigação contra ele, demonstrando que lida mal com a Justiça quando a decisão é contrária a ele ou ao seu grupo político.

Esse ambiente de confrontação com a Justiça, incentivado por Lula e seus defensores, só faz enfraquecer as instituições democráticas do país, o que não é aceitável como maneira de luta política. O ex-secretário de governo de Lula, Gilberto Carvalho, chegou a dizer que apenas um levante popular poderia salvar Lula. Um claro incentivo à revolta popular contra a Justiça, inócua por não ser correspondida por aqueles que deveriam se levantar.

Os advogados do ex-presidente têm todo o direito de usar e abusar dos recursos que a lei lhes permite, mas eles vão além, tentando desmoralizar o juiz Sergio Moro, chegando ao cúmulo de apontá-lo como suspeito, ou, através dos políticos mais destrambelhados, acusando-o de ser um agente da CIA. Também o TRF-4 entra na mira dos advogados de Lula.

A campanha que tenta fazer de Lula um preso político tem lances que chegam a ser patéticos, como a presidente do partido, senadora Gleisi Hoffmann, denunciar a suposta situação em Cuba, onde verdadeiros presos políticos penam nas cadeias sem que o PT proteste. Assim como não protesta contra os proto-ditadores da Venezuela e da Nicarágua.

O desespero dos petistas pode chegar a um nível perigoso depois de 15 de agosto, quando ele deverá ser registrado como o candidato oficial à Presidência da República. A partir dessa data, a luta jurídica terá apenas um objetivo: levar o nome de Lula à urna eletrônica e fazê-lo poder disputar a eleição sub judice. Nada indica que o intento será alcançado. Mas é previsível que a agressividade de seus militantes subirá de tom. A estratégia do PT de desmoralizar a Justiça produz seus efeitos deletérios à democracia Ataque de militantes petistas ao prédio do STF é um absurdo que não foi devidamente repudiado O desespero de petistas pode chegar a um nível perigoso quando Lula for registrado candidato a presidente


Merval Pereira: Geleia geral

A medida do oportunismo do centrão partidário, que ciscou em várias direções e acabou, ao que tudo indica, nos braços do candidato tucano Geraldo Alckmin, é a resistência à entrada no grupo do MDB, sob a alegação de que é preciso se afastar do governo Temer para ser competitivo na eleição geral de outubro.

Logo o centrão, que formou a base de todos os recentes governos, sem distinção de ideologia, inclusive o de Temer até recentemente. Grupo suprapartidário de centro-direita criado no final do primeiro ano da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, o centrão nasceu marcado por uma frase, até hoje é sinônimo de fisiologia: “É dando que se recebe”.

Foi o deputado paulista Roberto Cardoso Alves, o Robertão, já morto, o autor dessa releitura da frase de São Francisco de Assis. O centrão da época reunia lideranças conservadoras de PFL, PMDB, PDS e PTB, não necessariamente as direções partidárias dessas legendas, mas políticos de peso dentro do Congresso como Luiz Eduardo Magalhães e Ricardo Fiuza, do PFL, Gastone Righi, do PTB, e Daso Coimbra, do PMDB.

Partido que se dividiu entre os que apoiavam o governo Sarney e os que seguiam o presidente da legenda à época, Ulysses Guimarães, que semeava na Constituição Cidadã sua futura campanha à Presidência da República em 1989, na qual foi cristianizado, chegando em sétimo lugar com cerca de 4% dos votos.

Essa divisão do PMDB, o partido hegemônico, determinou o fim da Aliança Democrática entre o PMDB e o PFL, que dava sustentação política à Nova República. Da mesma maneira que agora, os líderes do centrão procuraram se afastar do Palácio do Planalto e se aproximaram de Fernando Collor, candidato vencedor na eleição de 1989.

O MDB em tese tem um candidato próprio, Henrique Meirelles, o ex-ministro da Fazenda de Temer e presidente do Banco Central de Lula. Ter um candidato que defenda seu governo foi, aliás, um conselho de Sarney a Temer. E o MDB parecia disposto a disputar sozinho o Palácio do Planalto, mas ontem já começou a dar sinais de que pretende embarcar nesse ônibus partidário, aderindo a Alckmin.

O próprio Temer atuou vigorosamente para que o centrão não apoiasse o candidato do PDT, Ciro Gomes, tornando inevitável o apoio ao candidato tucano. São sinais explícitos da incoerência do quadro partidário brasileiro. É tão estranho o empresário Josué Gomes negociar, ao mesmo tempo, com o PT e Alckmin, quanto o centrão ser cobiçado da extrema direita à extrema esquerda.

Esta eleição está mostrando que, do jeito que as coisas estão, elas não podem continuar. O quadro partidário está completamente falido, tem que começar do zero e reorganizar as bases partidárias. Nossa política está uma geleia geral, ninguém sabe quem é quem, e não se pensa em bases programáticas, o que só traz prejuízos à democracia.

Ainda vamos ter um Congresso pouco renovado, com este esquema partidário funcionando, mas ele está a caminho do fim. A questão agora é compatibilizar a vontade do centrão de se afastar do governo que o acolheu até recentemente, e a necessidade do MDB de estar do lado vencedor na eleição de outubro.

Tudo indica que Henrique Meirelles vai ser abandonado, se não logo na convenção partidária, provavelmente durante a campanha. A indefinição atual favorece o grupo do senador Renan Calheiros, que vem trabalhando para derrotar Meirelles na convenção e pode conseguir que o partido decida não ter candidato, liberando sua enorme bancada.

Mas essa decisão só favoreceria Renan Calheiros, pois o MDB institucionalmente perderia a chance de mostrar sua força dentro do futuro bloco governista. Dividido na eleição, o MDB provavelmente continuará com uma bancada poderosa, fazendo valer o velho axioma da política brasileira: o MDB não consegue eleger o presidente da República, mas nenhum presidente governa sem o MDB.


Foto: Beto Barata\PR

Merval Pereira: Política em tempos interessantes

É sintomático que nenhum candidato tenha escolhido um vice até agora. É sintomático desses tempos interessantes que vivemos no país, no sentido da maldição chinesa de instabilidade e caos, que nenhum candidato tenha escolhido até agora um vice. Se é verdade que vice não ganha eleição, ajuda a governar, como foi o caso de Marco Maciel, do PFL, nas gestões de Fernando Henrique, ou sinaliza uma tendência, como a escolha de José de Alencar nos governos de Lula. Ou até mesmo de Temer nos governos Dilma.

Oque os candidatos estão buscando, nesse nosso presidencialismo de cooptação, é tempo de televisão e a chamada governabilidade, que tantos escândalos já justificou. O mais bem-sucedido até o momento, pelo menos aparentemente, é Geraldo Alckmin, do PSDB, que está para anunciar um acordo político com o chamado centrão.

Na sua forma embrionária e não tão tóxica, o centrão já foi de Fernando Henrique, e depois de Lula e de Dilma, gerando o mensalão e o petrolão. Todos os demais candidatos estão isolados em suas posições, para o bem e para o mal.

O PT não abre mão de dominar o espaço da esquerda e quer esticar a corda ao máximo, na tentativa de colocar a foto de Lula na urna eletrônica. Tudo indica que não conseguirá, e o projeto pessoal de Lula deve inviabilizar a união dos partidos de esquerda, que, se não têm muitos votos, reforçariam o sentido ideológico de uma candidatura única.

Assim como controlou a esquerda engolindo Leonel Brizola, depois de vencê-lo em 1989 e fazê-lo seu vice em 1998, Lula não aceita apoiar Ciro Gomes, do PDT, o mais bem colocado candidato identificado com a esquerda. E tenta manter outros partidos menores, como o PCdoB e o PSOL, sob sua asa. Mesmo com candidatos próprios, esses partidos não oferecem perigo à hegemonia do PT.

Quanto mais demorar a indicar um substituto, menos eficácia terá na transposição de votos para ele. E talvez seja a estratégia oculta do PT perder a eleição e liderar a oposição. Mas só com a vitória de um aliado, Lula tem chances de sair da cadeia.

Por sua vez, Ciro Gomes foi de um lado a outro na tentativa de ganhar o apoio de Lula, ora elogiando o líder petista, ora criticando-o. E buscou com afinco o apoio do mesmo centrão que está em vias de apoiar Alckmin. Foi mal sucedido nos dois casos, e agora busca o apoio da Rede, de Marina Silva, que aparece nas pesquisas à sua frente.

Apesar desse seu bom desempenho, Marina também não conseguiu até agora uma aliança política que lhe oferecesse coerência, além do tempo de televisão. Rejeitou o centrão desde o primeiro momento. Provavelmente vai dar a Ciro uma negativa educada: se ele aceitar o programa da Rede, poderia ser o seu vice.

O líder das pesquisas quando Lula não está, Jair Bolsonaro, também encontra dificuldades para aumentar sua exposição na propaganda eleitoral: Dois nomes de militares de outros partidos foram aventados e inviabilizados nas negociações políticas, e a advogada Janaína Paschoal, tentada pela possibilidade, acabou inviabilizando sua própria indicação ao realizar um discurso crítico na convenção que indicou Bolsaro oficialmente a candidato à Presidência da República. Tudo indica que fez o sincericídio de caso pensado.

De todos os demais candidatos, apenas o ex-tucano Álvaro Dias tem alguma, embora escassa, possibilidade de ser bem sucedido. Mas o que lhe restou de apoio são nanicos que podem lhe dar um pouco mais de tempo de televisão e vices exóticos, como os eternos candidatos Emayel ou Levy Fidelix.

Como se vê, a dois meses e meio das eleições, o cenário político continua confuso, sendo impossível saber neste momento o que vai prevalecer, se os esquemas da velha política, baseados em estruturas partidárias enraizadas pelo país e tempo de televisão, ou a necessidade de renovação que aparece em todas as pesquisas, mas não nas eleitorais.

Lula, na cadeia, continua sendo o líder das pesquisas, e Bolsonaro, Marina e Ciro Gomes são os preferidos até agora. Desses, apenas Marina, embora política tarimbada em sucessivos mandatos, representa uma novidade na maneira de encarar a política, mas foi destruída pela máquina partidária do PT e do PSDB na eleição de 2014.

Bolsonaro e Ciro Gomes são políticos tarimbados e, cada um a sua maneira, representa a velha política. Desde a busca de alianças mesmo à custa da coerência, até a tão conhecida política familiar.


Merval Pereira: Acabou a brincadeira

No bom sentido, é claro, pois todo mundo sabe que futebol é coisa séria. E nada mais exemplar do que o jogo de ontem. Todos os ingredientes de uma decisão dramática estavam lá, desde o herói improvável que se transformou em vilão — o brasileiro Mário Fernandes, que abriu mão de jogar na seleção de seu país para se naturalizar russo, em agradecimento à recuperação do alcoolismo, logo na terra em que o índice de alcoolismo é um grave problema social.

Mário fez o gol de empate da Rússia na prorrogação, e perdeu um dos pênaltis. Pois essa Copa, mais que as anteriores, está revelando a fragilidade e a grandeza dos ídolos do futebol. Neymar, por exemplo, é vítima do que se poderia chamar de “síndrome de Pedro e o Lobo”.

Composta por Serguey Prokofiev em 1936, a música, transformada em peça de teatro, conta a história de um pastor que, entediado com o passar do tempo a cuidar de ovelhas, resolveu se divertir e gritou por socorro. Foi ajudado uma, duas vezes, por outros pastores, mas não havia lobo algum. Na vez em que um lobo verdadeiro apareceu, ninguém foi ajudá-lo.

Mesmo quando Neymar é agredido brutalmente, quase sempre o juiz acha que foi encenação, dado o histórico de quedas sensacionais que já viraram memes na internet. Mas Neymar, se não é o único extraclasse em atuação no mundo hoje — pelo menos Messi e Cristiano Ronaldo estão na frente dele, embora em fim de carreira —, com certeza é o mais criativo, mais original. Mas vai ter que se reinventar.

Se nem Messi nem Cristiano Ronaldo serão campeões do mundo, ele também já passou duas Copas em branco. Teve falta de sorte nas duas. Em 2014, foi gravemente prejudicado por uma agressão que o tirou da Copa antes do 7 a 1 contra a Alemanha. Hoje diz que se estivesse em campo o resultado seria diferente, mas provavelmente está se referindo ao placar, não à possibilidade de vencer aquele jogo, o que, em perspectiva, parece altamente improvável.

Na Rússia, jogou claramente fora de forma devido à contusão que sofreu, que exigiu uma cirurgia no pé direito. Voltou sem tempo de bola, na partida contra a Bélgica sentiu dores, teve que colocar gelo no pé operado. Mas, de qualquer maneira, por enquanto precisa de mais para se comparar aos melhores jogadores brasileiros, que dirá do mundo.

Todos os melhores do mundo a seu tempo — Romário, Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho, Kaká, Rivaldo, — foram campeões do mundo. Sem falar em Pelé, que é de outro planeta. Grandes jogadores também não o foram, e o melhor exemplo é Zico. Também a seleção de 1982 é exemplar de time que venceu perdendo, até hoje considerada uma das grandes seleções de todos os tempos.

A equipe desclassificada na sexta não se compara à de 82, mas está muitos pontos acima da de 2014, que ficou em quarto. Foi bom ter passado esses dias acompanhando os dramas e alegrias provocados pelo maior evento esportivo do mundo. E conhecer bem essa Rússia, ocidentalizada nas grandes cidades, que guarda tradições seculares e venera seus artistas e escritores de maneira ímpar.

Cada vez, porém, fica mais verdadeira a ideia de que a Rússia da era Putin homenageia seus mortos, mas dificulta a vida de seus artistas vivos, que lutam para superar as amarras de um Estado autoritário que, como denunciou o Departamento de Estado dos EUA, não permite a liberdade de expressão. Uma denúncia dessas, às vésperas da cúpula que reunirá Trump e Putin, é um recado nada sutil dos EUA, criticados por terem aceitado um acordo com a Coreia do Norte sem tocar na questão dos direitos humanos. Tiro uns dias de férias e volto à coluna de política no dia 24, para enfrentar o debate da campanha presidencial que, esta sim, define nosso destino como sociedade.

Foi bom ter acompanhado os dramas e alegrias da Copa. Agora, saio de férias


Merval Pereira: A tensão do pênalti

“O pênalti é tão importante que deveria ser batido pelo presidente do clube”. A frase famosa, atribuída ao treinador de futebol de praia no Rio e filósofo do futebol Neném Prancha, ganha dimensão nessa Copa da Rússia, que passou a ser a que mais teve pênaltis de todas já realizadas. Foram marcados 24 pênaltis nos 48 jogos disputados na primeira fase, a de grupos. Nos Mundiais comparáveis, com 32 seleções a partir de 1998, o número máximo de penaltis foi de 18 nos 48 jogos realizados, como em 1998 e 2002.

Dessas 24 “penalidades máximas” marcadas, cerca de 30%, ou sete, foram definidas pelo VAR, o chamado juiz de vídeo que estreou oficialmente para o futebol aqui na Rússia. Penalidade máxima, por sinal, é o título de um belo poema de Armando Freitas Filho que trata do assassinato de Eliza Samudio pelo então goleiro do Flamengo Bruno.

Já houve quem comparasse a cobrança do pênalti a um fuzilamento, um ato de covardia, como fez Pelé, que teria dito certa vez que o pênalti é uma maneira covarde de fazer o gol. Logo ele, que fez seu milésimo gol de pênalti.

O poeta e escritor português Joel Neto, ao contrário, acha que o penalti “é coragem, mais até do que habilidade – e é nos penaltis que o futebol se aproxima em definitivo da vida”. A eterna discussão sobre se foi ou não penalti, que persiste mesmo com a existência do VAR, já foi musicada pelo grupo de rock Skank, que pergunta “Cadê o pênalti Pra gente no 1o tempo?”.

O livro “O medo do goleiro diante do pênalti”, de Peter Handke, usa o sentimento de desamparo do goleiro nessa ocasião para análises filosóficas sobre as incertezas da vida, pois, para ele o futebol é, “como tudo que é redondo, um símbolo do incerto”.

O grande goleiro Sepp Maier, do Bayern de Munique e da seleção alemã, acha que “o medo do jogador que vai chutar o pênalti, isto sim seria digno de um romance”.
Com a chegada da fase do mata-mata na Copa do Mundo, mais uma vez a decisão das partidas pode ir para os pênaltis, e a pressão psicológica em jogadores e torcedores chega ao limite. Na fase das oitavas de final, nada menos que 37,5% das classificações foram decididas nos pênaltis: Rússia desclassificou a Espanha; Inglaterra tirou a Colômbia.

importância, e a busca do chamado “pênalti perfeito”, já foi objeto de vários estudos científicos, aqui e no exterior. "O sucesso nos pênaltis é algo que as equipes podem melhorar", diz o pesquisador Ken Bray, da Universidade de Bath, coordenador de um grupo de pesquisadores que estudou cobranças de pênalti e fez uma abordagem científica do tema.

De acordo com o estudo, há três pontos que devem ser considerados para um “pênalti perfeito”, como escolher na ordem inversa, deixando para o final os batedores mais experientes. O estudo constatou que os goleiros têm uma limitação de alcance da bola em cobranças próximas como os pênaltis, além do que há uma “zona indefensável” que pode ser identificada pelas análises técnicas dos times e das seleções. A preparação mental dos jogadores é tão importante quanto as duas primeiras.

Pesquisa realizada pelo Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP mostrou que, em ocasiões como cobrança de pênaltis, o estresse afeta necessariamente a resposta motora. Nelson Toshyuki Miyamoto, em sua tese de doutorado defendida no ICB, simulou em computador aspectos das cobranças de pênalti. O resultado de aproveitamento caiu para 80% no máximo quando os assistentes da pesquisa simulavam as situações sob pressão de uma torcida.

As partidas do mata-mata têm ainda um componente dramático nada desprezível: a partir de certo momento, nenhum dos times pode levar um gol, embora nesta Copa os gols nos acréscimos tenham sido uma tônica. Isso explica a opção pelos penaltis, uma última chance para que a glória sorria. Como sabem Brasil e Itália. Uma coincidência a mais para dar valor aos penaltis: a Itália, que perdeu a Copa nos pênaltis para o Brasil em 1994, ganhou nos pênaltis da França em 2006.


Merval Pereira: A globalização da emoção

Sobraram poucas estrelas na Copa do Mundo a esta altura, e Neymar parece estar reencontrando seu jogo, depois da cirurgia. Pode reafirmar sua condição de especial, e comandar a renovação dos líderes do futebol, ao lado de Mbappé. Aliás, o ataque do Paris Saint Germain marcou cinco gols até agora nas oitavas, dois de Mbappé, dois de Cavani e um de Neymar, o que mostra que está a caminho de tornar-se um dos grandes clubes do futebol globalizado.

Seria injusto dizer que nessa Copa todo mundo “é japonês”, como se costumava, no tempo em que o politicamente correto não cerceava o pensamento, para igualar situações ou personagens, colocando-os no mesmo nível. Significava dizer que todos pareciam iguais, o que incomoda hoje os asiáticos de maneira geral, e os japoneses em particular.

Além do mais, a seleção do Japão disputou uma partida espetacular contra a da Bélgica, que, por sua vez, justificou a fama de ser uma das novidades do futebol mundial. Formada por um grupo milionário de craques, como Lukaku (Manchester United), Hazard (Chelsea) e De Bruyne (Manchester City), a seleção belga virou o jogo quando perdia por 2 a 0, e não precisou da prorrogação ou dos penaltis para vencer, mas o Japão mostrou que o futebol globalizado está chegando a um nível de competição que iguala as seleções, capazes de juntar os seus melhores espalhados pelo mundo.

A própria seleção do Japão tem jogadores espalhados pelo mundo, embora nenhum em times de ponta, e apenas 6 dos selecionados atuam no Japão. A partida de sexta-feira entre Brasil e Bélgica certamente tem tudo para ser das melhores dessa edição da Copa do Mundo, que está revelando uma competitividade há muito não vista, especialmente porque os grandes times europeus, com dinheiro para comprar diversos jogadores onde quer que apareçam, e cada vez mais cedo, ficaram muito além de seus competidores locais.

Por isso Real Madri e Barcelona dominam o campeonato espanhol, o Paris Saint Germain o francês, o Bayern e o Borússia e assim por diante. A convivência entre jogadores e a facilidade de transmissão dos mais importantes campeonatos do mundo fazem circular as informações sobre esquemas de jogo, preparação física e até psicológica, o que iguala por cima as competições internacionais.

Outra característica do futebol internacional é a tatuagem. Mas não apenas dos jogadores de futebol, mas de basquete e outros esportes coletivos. E também os cortes de cabelo, uma especificidade do futebol. Não foi Neymar quem inventou esses cabelos diferentes, até mesmo Ronaldo Fenômeno se destacou na Copa de 2002 com um corte a la Cebolinha, o personagem de Mauricio de Souza. E nesta Copa, Messi e Cristiano Ronaldo apareceram com cortes de cabelo mudado de uma partida para outra.

Há uma explicação psicológica para esse tipo de procura de destaque, especialmente nos esportes coletivos. Os jogadores querem se destacar do grupo não apenas por suas qualidades técnicas, mas pelas características pessoais. Este é um fenômeno recente, que combina com a era da tecnologia que levou para o mundo comportamentos e manias que se transformam em símbolos, como modos de se vestir, ambientes frequentados, amizades entre grandes ídolos de diversos segmentos da indústria do entretenimento, namoros entre estrelas desse mundo, como no Brasil o casal Brumar (Bruna Marquezine e Neymar). Ou o casamento do jogador da seleção espanhola e do Barcelona Piqué com a cantora Shakira.

Com a saída de seleções famosas e já campeãs do mundo, como a Argentina e a Alemanha, e de ídolos como Messi e Cristiano Ronaldo, que parecem estar encerrando um ciclo de dominação do mundo da bola que fez com que dividissem nos últimos dez anos o título de melhores, o futebol globalizado parece estar entrando em uma nova fase, com o surgimento de novos ídolos mesmo enquanto os antigos continuam em atuação.

Fala-se na saída de Cristiano Ronaldo e da chegada de Neymar no Real Madri. Mbappé surge como uma promessa que pode até tirar a vez de Neymar como melhor do mundo - o que não vai ser fácil, pois Neymar está recuperando o tempo de bola, o que é essencial para sua maneira de jogar.

E a Copa do Mundo está cada vez mais com um sabor político inesperado, com a surpreendente seleção russa, que recupera a auto-estima a cada jogo, e colabora para o uso ufanista da organização do governo Putin. Se levarmos em conta o passado da FIFA, cujo presente ainda nada desmente, e o histórico do governo Putin, não é desprezível a possibilidade de que a Seleção da Rússia chegue mais longe. E quanto mais longe for, pode pegar a do Brasil.


Merval Pereira: A batucada na praça Pushkin

Se não é estranho, depois da vitória da seleção brasileira, ouvir uma batucada à meia-noite na praça que homenageia o poeta Aleksandr Pushkin, e muito menos na Praça Vermelha, onde os torcedores de todo o mundo se reúnem após cada jogo, tampouco é banal ver duas moças andando a cavalo à mesma hora pelas ruas de Moscou, tranquilamente esperando o sinal abrir.

Esta cidade cosmopolita — onde tudo pode acontecer sem chamar a atenção, como nas grandes cidades do mundo — convive perfeitamente com uma festa grandiosa como a Copa do Mundo sem perturbar a rotina excêntrica das amazonas russas com que cruzei no caminho de volta do estádio Spartak, num metrô superlotado, mas funcionando impecavelmente, com entrada livre para os torcedores.

Tudo em Moscou funciona perfeitamente, com exceção dos táxis que se pegam na rua. Mas se o turista pedir um táxi por um dos muitos aplicativos tipo Uber, tudo sai a contento. Se politicamente a Rússia é hoje mais oriental que ocidental, como avalia o especialista Dmitry Trenin, diretor do Carnegie Moscow Center, Moscou e as grandes cidades, como São Petersburgo, são tão ocidentais quanto poderiam ser.

Para Trenin, a nova confrontação da Rússia com as grandes potências nada tem a ver com a guerra fria. Seria uma “guerra híbrida”, não ideológica, nem geográfica. Tanto que a proximidade com a China, de quem Trenin diz que os russos nunca serão amigos próximos, mas jamais serão inimigos, não impede que as relações com os EUA sejam importantes, como demonstra a próxima cúpula entre os dois países.

A Copa do Mundo tem seu sabor político para Putin, e ele e a Fifa devem estar dando graças pelo Brasil ter passado para as oitavas de final, depois da desclassificação da Alemanha. A seleção brasileira não é ainda a dos sonhos dos torcedores, mas já evoca a música ufanista que diz que “o campeão voltou”. E os torcedores brasileiros, fora aquela minoria que já foi repudiada, chamam a atenção pela alegria.

Vários russos com quem conversei têm o desejo de ver uma final entre Brasil e Rússia. O problema é que a seleção brasileira ainda está em evolução, e a Rússia pega logo de cara a Espanha nas oitavas. Vamos ver na próxima estação, na cidade de Samara, se o Brasil justifica o favoritismo.

Simbolismo não falta para que a seleção alcance o infinito. Às margens do rio Volga, Samara é o mais importante centro aeroespacial da Rússia, foi fechada a estrangeiros durante a Segunda Guerra para que seus segredos não fossem revelados e transformou-se na capital soviética alternativa, quando Moscou foi invadida pelos alemães.

A administração do Kremlin transferiu-se para Samara, e hoje uma de suas atrações é o bunker usado por Stálin na Grande Guerra Patriótica, como os russos se referem à Segunda Guerra. Um dos principais centros científicos internacionais, Samara é também um grande centro industrial, com a principal fábrica da empresa russa de automóveis, a Lada. Nela está um monumento ao astronauta Yuri Gagarin, primeiro a viajar pelo espaço no foguete Soyuz em 1961.

O Museu Cósmico e a Universidade Aeroespacial contam a história russa no espaço. A partir da Copa, Samara será também conhecida como uma das mais extravagantes decisões politicas do governo Putin, pois o novo estádio, palco do jogo do Brasil contra o México, em nada se justifica, a não ser para fosse uma das sedes do Mundial. O FC Krylia, da segunda divisão, o time da cidade, de 1,1 milhão de habitantes, definitivamente não tem torcida para enchê-lo.


Merval Pereira: O futebol como metáfora

A seleção de futebol da Rússia está prestes a se classificar para as oitavas de final da Copa do Mundo, o que só aconteceu em 1986, quando ainda existia a União Soviética. E já superou um tabu, pois nunca vencera duas vezes seguidas em uma Copa. A festa pelas ruas de Moscou ou São Petersburgo é muito mais simbólica do que em qualquer outra edição da Copa do Mundo, pois os russos, além de estarem no centro das atenções de bilhões de pessoas pelo mundo, com a realização de uma Copa do Mundo até aqui impecável como organização, reafirmam com a atuação da antes desacreditada seleção de futebol a reconquista do orgulho nacional.

Há uma explicação histórica para tal, a alma russa se impõe nas comemorações. Para o historiador russo Dmitri Trenin, do Carnegie Moscow Center, que antes de se juntar a esse prestigioso think tank serviu por 21 anos no Exército soviético e nas forças terrestres de segurança da Rússia, aposentando-se como coronel, o povo russo sofreu muito ao longo do século XX: “Dificilmente outros povos terão sofrido tanto”, definiu ele em recente palestra no Centro Brasileiro de Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI).

O povo russo, na concepção do especialista, se percebe como “um grande país solitário”. Faz fronteira, de um lado, com a Noruega e de outro com a Coréia, inúmeras etnias e idiomas, é a maior área geográfica do planeta e se sente traído pela União Européia, que atraiu seus ex-satélites.

Trenim resume assim os anos de sofrimento: “Convulsões sociais na alvorada do século, Primeira Guerra, 70 anos de regime comunista, única grande experiência humana no marxismo que naufragou depois de muito sacrifício de seu povo, Stalin, Segunda Guerra com 28 milhões de mortos, mais Stalin, fim da URSS, perda de suas repúblicas”.

Para ele, a ambição original pós-comunismo era uma integração com União Européia, desde a reunificação da Alemanha em 1990. O único pleito russo, feito por Shevardnadze a Kohl, da Alemanha, foi não crescer a OTAN. Apesar do compromisso, com Bush o Tratado do Atlântico Norte (OTAN) cresceu muito. Os russos se sentiram isolados e traídos, ressalta Dmitri Trenin.

A primeira viagem de Putin depois de assumir o governo, em 1999, foi a Berlim, pois tem bom relacionamento com a primeira-ministra Angela Merkel, que fala russo tão bem quanto ele fala alemão, idioma que usou ao discursar no Reichtag. A integração, no entanto, frustrou-se. Europa meio que “roubou suas ex-colônias e abandonou” os russos, avalia Trenin.

A invasão da Criméia, que gerou sanções do Ocidente, é avalizada pelo povo, que na definição de Dmitri Trenin “está adorando” ter voltado ao comando russo; “ O povo russo gosta de um czar, Stalin foi, Putin é”, afirma Trenin. Depois de um século de sofrimento, nos últimos 18 anos, com Putin à frente do governo, “o povo russo respira, vive seu dia a dia com calma. Putin é idolatrado”.

A economia cresceu na media 1,5% desde 1999 com Putin. É pouco, poderia ser mais, mas “dá pro gasto”, embora o investidor internacional tenha dificuldades para investir, para compreender o ambiente de negócios russo, que tem um índice de corrupção ainda muito alto. Esses percalços, que ganham relevância no Ocidente, não parecem afetar os russos de maneira geral.

É comum, em conversas com cidadãos, ouvir respostas que nos soam mal. Como a afirmação de que a liberdade de expressão deveria ser menos importante do que o emprego ou a boa educação. Russos não estudam fora, há boas universidades no país. Questões de gênero também não são temas de preocupação da classe média, que prefere discutir o custo de vida, o sistema de saúde.


Merval Pereira: Identidade contra violência

O formidável aparato de segurança montado para a Copa do Mundo que acontece na Rússia tem razões politicas internas e externas. O perigo de atos terroristas é real, a ponto de a embaixadas dos Estados Unidos e países europeus terem sugerido a seus cidadãos que não viessem à Copa. O que não impediu que os americanos fossem os maiores compradores de ingressos entre os estrangeiros, seguidos dos brasileiros.

O que se vê nos jogos da Copa é um aparato policial sem precedentes, com os policiais fazendo um corredor polonês - ou russo - por onde os torcedores têm que passar em direção à saída dos estádios. Ruas são interditadas várias horas antes dos jogos e operações policiais revistam automóveis aleatoriamente pelas ruas, mesmo quando não há jogos. Uma espécie de blitz como a Lei Seca que existe em vários estados do Brasil, mas não para conter a bebida.

Aqui, com o índice altíssimo de alcoolismo na população russa, a maioria perderia a carteira de habilitação. A bebida alcoólica, por sinal, está liberada nos estádios - a Budweiser é uma das patrocinadoras oficiais da Copa - embora seja proibida em eventos esportivos públicos, justamente como aconteceu no Brasil durante a Copa de 2014.

As ameaças do Estado Islâmico são a maior preocupação, devido ao apoio da Rússia ao ditador sírio Bashar Al Assad. Imagens de Messi e Neymar com ameaças de morte apareceram na internet nos últimos meses. Também há preocupação com movimentos separatistas da Chechênia, que já realizaram atos terroristas na Rússia como os de 2002, quando tomaram o Teatro Dubrovka em Moscou, fazendo 700 reféns.

A ação do aparato de segurança estatal, depois de dois dias de negociações infrutíferas, provocou 170 mortes, a maioria reféns, devido a um gás introduzido pelos dutos do teatro. Até 2010, uma série de atentados ocorreram em Moscou, com mulheres-bomba provocando mortes em estações de metrô.

O mais grave de todos foi a captura de uma escola em Beslan, na região russa de Ossétia do Norte, com mais de mil reféns. As forças de segurança reagiram com uma invasão que provocou a morte de mais de 300 pessoas, a maioria crianças.

Para conter os torcedores violentos que caracterizam os jogos de futebol na Rússia, com demonstrações explícitas de racismo e xenofobia, foi criado um sistema de identificação único até agora nesse tipo de competição: a identidade do fã (Fan ID), que obriga a um prévio cadastramento todos que querem ir aos jogos. Para entrar nos estádios é preciso, além do ingresso, a credencial de fã, uma maneira de impedir que os hooligans conhecidos, da Rússia e de outros países, venham para a Copa.

O cadastramento de milhões de torcedores de todo o mundo reduziu também a possibilidade de câmbio negro dos ingressos, um problema recorrente nas Copas do Mundo. Na do Brasil, em 2014, diversos escândalos aconteceram com vendas de ingressos até mesmo por funcionários da própria FIFA.

Há também outra novidade em relação aos ingressos, que restringe ou dificulta o câmbio negro. Como nos grandes torneios esportivos pelo mundo, a FIFA criou um sistema próprio para revender os ingressos através da internet, limitado sempre ao cadastramento do interessado.

A preocupação com os torcedores violentos russos e congêneres internacionais tem sua razão de ser, embora já distante no tempo. Na copa de 2002, a derrota da Rússia para a Bélgica por 3 a 2, perdendo a chance de ir para as oitavas de final, gerou cenas de vandalismo na Praça Manej, ao lado da Praça Vermelha, onde havia um telão transmitindo o jogo, com carros queimados, prédios e lojas quebradas, duas mortes e mais de cem pessoas feridas.

Desde então nenhum tipo de exibição pública de partidas de futebol aconteceu na capital russa. Mas, hoje, como em toda Copa do Mundo, os locais onde estão instaladas as tendas para as Fan Fest da FIFA transmitem os jogos da Copa por telões, com segurança reforçada.