meio ambiente

Míriam Leitão: Fogo no Pantanal e as nossas aflições

O Pantanal é uma lindeza. Quem vê não quer parar de olhar aquela beleza de alagado, aquela multidão de pássaros. Há pontos do Pantanal que se a gente admirar bem cedinho fica pensando que deve ter sido assim o começo do mundo. São 150 mil km2 no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Até o dia 13, estavam queimados 29 mil km2. Isso é um quinto do bioma. Mas o fogo avança um pouco mais a cada dia. No Parque Estadual Encontro das Águas, 85% da área está queimada e lá moram onças pintadas. O Pantanal é a maior planície alagada do mundo. O Brasil tem tudo imenso quando o assunto é ativo ambiental. É dono da maior parte da maior floresta tropical do planeta. Tem a maioria das águas da maior bacia hidrográfica do mundo. Que tamanha insensatez a nossa.

— A gente está assistindo a uma tragédia anunciada e crescente. No começo do mês, eram 12% do Pantanal afetados e agora aumentou para 19%. A fauna está sendo muito atingida, os animais estão desidratados e sem comida e isso vai acabar afetando todo o ciclo de reprodução de animais listados em situação de extinção. A gente está vendo também um impacto econômico imenso — diz a cientista política Alice Thuault, diretora adjunta do Instituto Centro de Vida (ICV).

Nossas aflições se somam. O que afeta a Amazônia agrava o problema no Pantanal, que precisa do Cerrado. Os biomas se falam.

— O nível dos rios está muito baixo. Isso é cíclico, mas o desmatamento da Amazônia está impactando o equilíbrio do Pantanal. Eu digo que é tragédia anunciada porque todo mundo viu o que estava acontecendo, e a gente não deu conta, como sociedade, de colocar isso na agenda pública, dos tomadores de decisão — diz Alice Thuault.

Os tomadores de decisão no Brasil estão empurrando o país para o abismo ambiental. Este governo desprezou todos os alertas, desmontou o Ibama e o ICMBio, tirou dinheiro dos seus orçamentos, não liberou os recursos que tinha em caixa, estimulou insistentemente o crime ambiental por atos, por palavras, por portarias e instruções, passando sempre a boiada nas leis. Espantou até os países que estavam doando para o Brasil proteger suas riquezas.

— Pelo corte de recursos, a máquina pública não está presente. O dinheiro do Fundo Amazônia está fazendo falta nas ações de preservação. O Mato Grosso tem um Corpo de Bombeiros antigo, mas que está sem orçamento. O Prevfogo, do Ibama, este ano não fez a qualificação de brigadistas, por causa da Covid — diz a diretora do ICV.

Perto do Parque Encontro das Águas fica a Baía do Guató, última terra indígena demarcada. Todas as aldeias dos Guató foram destruídas pelo fogo que não começou lá, mas sim em terras vizinhas:

— Hoje recebi a imagem da água que eles têm para beber, parece barro. Na Baía dos Guató foram protocolados vários pedidos para montar brigadas. Estão todos esquecidos do poder público. Primeiro é preciso apagar o fogo, depois será necessário socorrer as comunidades. Os indígenas e também os quilombolas que perderam toda a sua produção de subsistência.

Uma tragédia que se desdobra em várias. De onde veio o fogo? As investigações mostram que 67% da destruição foi consequência de incêndios que começaram em nove pontos, cinco deles em áreas que têm cadastro ambiental rural de fazendas dedicadas à pecuária.

O Pantanal é muito específico. Quem vê tanta água, na época da cheia, acredita que ela sempre estará lá. Mas o bioma é frágil. As águas estão de visita, precisam do Cerrado preservado, porque no Cerrado, que parece seco, é onde nascem as águas. Se a Amazônia arde, o Pantanal fica mais seco. A fragilidade da vida se vê, por exemplo, na Arara Azul. Grande e linda e vulnerável. Ela tem suas exigências. Precisa de uma árvore, o manduvi (Sterculia apetala) para sobreviver. E faz seus ninhos nas árvores velhas que já têm um oco, onde elas se instalam na reprodução. Por um trabalho de 30 anos do Instituto Arara Azul a população dessas aves começou a aumentar. O que será delas ao fim dessa devastação?

O Pantanal é uma das preciosidades do Brasil. A flora é resiliente, ela pode voltar devagar, e com a ajuda de viveiros para o replantio, pensa a diretora do ICV. Mas a fauna está morrendo. Há organizações que estão saindo para hidratar os animais. A natureza do Brasil está pagando um preço alto demais.


Bruno Boghossian: Bolsonaro reescreve os fatos como um animador de tragédias

Presidente joga confete nas queimadas do Pantanal e distorce história da pandemia

Jair Bolsonaro anda fazendo bico como animador de tragédias. O governo fez pouco caso da devastação das florestas na atual temporada de seca e viu o Pantanal bater recordes de queimadas nos últimos meses. Ainda assim, o presidente tentou jogar confete no desastre.

“O Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente”, celebrou, durante um evento nesta quinta (17). “O Brasil está de parabéns pela maneira como preserva o seu meio ambiente.”

Bolsonaro desmontou a gestão ambiental, perseguiu fiscais, protegeu madeireiros e quis maquiar números do desmatamento. Recentemente, ele atribuiu as queimadas à população indígena e à geração espontânea. Só não demonstrou grande interesse em combater o fogo.

O presidente tomou gosto por comemorar os resultados de sua própria omissão. Para isso, vale distorcer informações, esconder problemas e até reescrever os fatos a seu favor.

Nas últimas semanas, Bolsonaro lançou uma campanha nas redes e em eventos oficiais para tentar convencer a população de que o governo fez tudo certo na pandemia que matou mais de 130 mil pessoas no país.

Depois de ter deixado o Ministério da Saúde sem titular por três meses, o presidente usou a posse de Eduardo Pazuello no cargo, na quarta (16), para aplaudir a si mesmo. Ainda que tenha previsto menos de 800 mortos na crise, Bolsonaro falava como se tivesse dado todas as respostas.

A cloroquina foi a estrela do discurso. O presidente voltou a fazer propaganda do remédio e disse que o governo se baseou na agência reguladora dos EUA para recomendá-lo. Bolsonaro só esqueceu que a própria FDA lançou em julho um alerta sobre os riscos do medicamento.

Ele também recordou, em tom laudatório, o pronunciamento de TV em que comparava a Covid-19 a um “resfriadinho”, em março. O presidente disse ter avisado que era preciso combater a doença e o desemprego. Naquele mesmo dia, porém, ele afirmou que o vírus passaria “em breve”. Só faltou dar parabéns a si mesmo por não ter feito quase nada.


Fernando Gabeira: As chamas da negação

As gargalhadas diante do fogo no Pantanal revelam a pobreza da mentalidade dominante

As chamas ardem na Costa Oeste dos Estados Unidos e em dois importantes biomas nacionais, Amazônia e Pantanal. Debates essenciais nascem desses incêndios. O primeiro deles subiu para o topo da agenda na campanha para a presidência dos EUA: o aquecimento global. Lá, como aqui, há os que aceitam as evidências científicas e os que as negam.

Um segundo debate decorre do próprio princípio de precaução. Se há realmente mudanças climáticas, os incêndios serão mais intensos a cada ano. Logo, é razoável nos preparamos melhor, em vez de sermos anualmente derrotados por eles.

No Pantanal já foram destruídos mais de 22 mil km2 de vegetação, uma área do tamanho de Israel. Serpentes e jacarés carbonizados estão por toda parte, o refúgio das araras azuis está ameaçado, chamas em Porto Jofre, onde se concentra uma centena de onças-pintadas.

O desastre neste ano é muitas vezes maior que o do ano passado, que tive a oportunidade de documentar. Muito possivelmente, a julgar pelas notícias, a maioria dos focos de incêndio foi provocada. Talvez por pessoas que sonham com um Pantanal transformado apenas em pastagens e campos plantados. Ignoram a riqueza que estão destruindo. São os mesmos que sonhavam em transformar a região em grandes canaviais. Não percebem que ao destruir a vegetação arruínam todo o ecossistema, os próprios peixes que se alimentam de pequenos frutos tendem a desaparecer.

Essa incompreensão básica está também no Palácio do Planalto. Bolsonaro sonha com campos de soja, muito gado, o que na cabeça dele significa aumento da produção. Deve ser por isso que todos riram no palácio quando uma jovem blogueira perguntou pelo incêndio no Pantanal.

Bolsonaro nega o aquecimento global. E pratica sua negação. As verbas para a prevenção de incêndios caíram sistematicamente de 2018 para cá. As destinadas a brigadas, que eram de R$ 23 milhões, foram reduzidas a R$ 9, 9 milhões.

Ele caminha decisivamente na contramão das tendências climáticas. Acha que seu voluntarismo pode afrontá-las com a mesma naturalidade com que muda as regras de trânsito. Em ambos os casos colheremos mortes e destruição.

Cessado o fogo, será difícil articular um projeto de replantio. Os bichos e a mata atrapalham a produção. A ajuda internacional será vista como ameaça à soberania nacional.

Apesar do negacionismo de Trump, o horizonte no Brasil é mais sombrio. Bolsonaro representa um tipo de pensamento que existe também em parte dos fazendeiros e amplamente nas Forças Armadas. Esse tipo de pensamento relaciona destruição ambiental com progresso. O próprio ministro Paulo Guedes disse que os americanos tinham destruído suas florestas e acabado com índios.

É o tipo de argumento clássico do pensamento dominante no governo brasileiro, hoje uma estranha amálgama de generais do Exército e pastores evangélicos. Não há outro caminho senão tentar convencê-los, antes que consigam destruir o País na suposição de que fortalecem a soberania terrena e nos aproximam do reino dos céus.

A produtividade de agrofloresta é um exemplo na Amazônia. Os lucros da exploração sustentável de açaí e castanha são outro. O potencial turístico do Pantanal, a própria capacidade do bioma de atrair investimentos, tudo isso tem de ser repetido à exaustão.

As gargalhadas diante das chamas que devoram um bioma como o Pantanal revelam apenas a distância entre a pobreza da mentalidade dominante e a riqueza de nossos recursos naturais. A utopia de um mundo plantado de soja, subsolo revolvido em busca de minérios, gado pastando na relva – tudo guardado por um exército vigilante, que pinta de branco as poucas árvores que restam, é, na verdade, um pesadelo. Seríamos uma nação que construiu com tenacidade um imenso deserto, teríamos transformado o mundo no espelho do nosso universo mental.

Quem acompanha o desastre do Pantanal desejaria que Bolsonaro tivesse uma ideia mínima do que está acontecendo. Com um pouco de humildade, ele se arrependeria de chamar as ONGs de um câncer que gostaria de extirpar. São as ONGs que se põem em campo, salvando grande parte dos animais feridos, sem nenhuma estrutura ou base financeira além da cooperação voluntária.

Quando cobri um desastre na Galícia constatei que o próprio governo pôs à disposição um pequeno hospital para as aves marinhas atingidas. Comparadas com a fauna do Pantanal, as aves marinhas da Galícia são só um pequeno grupo.

Aqui, no Brasil, o trabalho é feito pela sociedade. Não importam os insultos vindos do mundo oficial, a esperança de reduzir o impacto destrutivo dessa passagem do fundamentalismo pelo poder ainda se baseia em solidariedade e trabalho voluntário. E tudo isso nos alcança num momento de pandemia, em que a capacidade de reação é limitada.

Ao intenso ataque do vírus soma-se a fumaça que atinge as grandes cidades da região. Restou-nos apenas a negação da dupla negação do governo: coronavírus e aquecimento global. Em ambos os casos, resistimos. Mas é impossível deixar de sonhar com um país em que governo e sociedade enfrentem juntos os desastres naturais e sanitários. A vida seria menos difícil.


Vinicius Torres Freire: Morte e destruição não afetam Bolsonaro

Presidente se descola de epidemia, queimada, fracasso de renda básica, carestia de comida

O Pantanal que queimou até agora é do tamanho de metade do estado do Rio de Janeiro. É mais ou menos o triplo da área da região metropolitana de São Paulo, onde vivem quase 22 milhões de pessoas em 39 cidades. É maior que o estado de Sergipe inteiro.

Algumas pessoas se comovem com a imagem horrível dos pobres bichos mortos ou fugindo do fogo queimados e asfixiados, pedindo água nas estradas e nas ruas das cidades à beira do inferno. Sabe-se lá quantas poucas se preocupam com o tamanho do desastre ambiental, da calamidade irreversível que pode ter havido.

No mais, parece que o sentimento nacional de emergência definha quanto mais cresce nossa tolerância com a morte e a destruição. Sempre grande, a indiferença parece maior nos tempos de Jair Bolsonaro.

Ainda morrem 800 pessoas por dia de Covid-19. É como se todos os dias morressem todas as crianças de uma escola das grandes aqui de São Paulo. Talvez imaginar todos os pequenos cadáveres estendidos no pátio ajudasse a suscitar alguma comiseração. Mas talvez na verdade argumentem que três de cada quatro mortos são velhos, gente de mais de 60 anos, “e daí?”, como se faz numa dessas trocas quaisquer de insultos sórdidos e burrice feroz das redes insociáveis.

A indiferença pela epidemia é crescente, notam jornalistas e especialistas que medem a atenção da audiência, do público. Os abatidos pela Covid-19 mais e mais fazem parte da natureza mortal do Brasil, das dezenas de milhares de assassinados ou mortos no trânsito, para as quais quase ninguém liga. No Natal deste ano horrível de 2020 os mortos pelo vírus talvez sejam 200 mil.

Como se sabe com muito asco, o governo federal jamais juntou uma comissão dos melhores cientistas ou pensadores e administradores de calamidades a fim de conter o espalhamento da morte pelo coronavírus. Ao contrário, escorraçou toda a gente estudiosa, a razão e a humanidade. Transformou o Ministério da Saúde em um almoxarifado militar. Por que haveria de se ocupar da emergência do Pantanal?

A destruição do Pantanal, da Amazônia e do que resta do cerrado é parte do programa da coalizão governista, que juntou também grileiros, mineradores e madeireiros ilegais e o pior do agronegócio. Tudo isso é óbvio. Mais importante para quem pretende se ocupar da próxima destruição ou evita-la é o método Bolsonaro de ser irresponsável. Isto é, de não assumir suas responsabilidades, da capacidade de se colocar em um universo à parte, em uma bolha de culto à personalidade desvairado e odiento.

Bolsonaro se exime de responsabilidades na epidemia, nas queimadas, no fracasso do Renda Brasil, na indiferença inepta em relação à carestia da comida, às filas do INSS o que seja. Com sucesso, convence boa parte da população, uns dois terços, de que foi eleito para outras tarefas, como mentir, fazer propaganda de moralismo farisaico (logo ele, que faz piadas sujas com meninas de dez anos), eliminar ONGs, esquerdistas, “militâncias”, armar a população e evitar que seus filhos e, um dia, ele mesmo acabem na cadeia.

A medida de governo mais importante de seu mandato e que evitou uma convulsão social, o auxílio emergencial, foi tomada pelo Congresso. Nem mesmo estelionatos eleitorais evidentes colam, como ter escorraçado o lava-jatismo e feito pacto com a “velha política” do centrão (isto é, reencontrou-se consigo mesmo, apenas).

Bolsonaro por enquanto conseguiu se transformar em uma entidade do sobrenatural da política. Não é cobrado pelo seu desgoverno e se descola da destruição, as que promove ou tolera.


Bernardo Mello Franco: Queima Brasil, um projeto de governo

A indústria da devastação é a única a crescer na pandemia. Enquanto o governo reduz o orçamento dos órgãos ambientais, as chamas avançam na Amazônia e no Pantanal. O programa Queima Brasil está em marcha, com a cumplicidade do capitão e de sua tropa.

O fogo já destruiu cerca de 16% do Pantanal, a maior planície alagada do mundo, onde vivem 36 espécies em extinção. Até a semana passada, 23 mil quilômetros quadrados foram reduzidos a cinzas. Uma área maior que a do estado de Sergipe.

Os efeitos para a fauna local ainda não puderam ser calculados. O Parque Encontro das Águas, principal refúgio das onças-pintadas, perdeu mais de 70% de seu território. Mas nem imagens de animais carbonizados foram capazes de sensibilizar o Planalto.

Na semana passada, uma youtuber mirim perguntou à turma do palácio: “Tá pegando fogo no Pantanal?”. O presidente Jair Bolsonaro e o vice Hamilton Mourão responderam com risadas. No domingo, o ministro Ricardo Salles divulgou um vídeo em que passeia num carro de boi. A pecuária está na origem dos incêndios que destroem a região.

A Polícia Federal afirma que a origem do fogo é criminosa. Fazendeiros destruíram a mata nativa para abrir pastos. Em ano de seca atípica, as labaredas saíram do controle e se alastraram para áreas preservadas. O governo demorou a se mexer para reduzir a extensão da catástrofe.

Foi um risco calculado. Segundo levantamento da Deutsche Welle, o investimento na contratação de brigadistas despencou 58% em relação ao ano passado. A asfixia aos órgãos ambientais já virou política de governo. Para 2021, estão previstos novos corte nos orçamentos do Ibama (4%) e do ICMBio (12,8%).

O bolsonarismo já tentou negar o avanço das queimadas, que é medido por satélites. Agora a tática é atacar quem divulga os dados da destruição. Ontem o general Mourão disse que os números seriam vazados por oposicionistas infiltrados no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. A mentira é parte do programa Queima Brasil. As informações do Inpe são públicas, podem ser consultadas na internet.


Ricardo Noblat: Como cobra, o general troca de pele para melhor servir ao capitão

Mourão quer ser vice outra vez. Pegou gosto

Procura-se alguém do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que prioriza a divulgação de dados negativos sobre as queimadas que devastam a Amazônia e o Pantanal. Só nos últimos 14 dias, o número de focos de incêndios na Amazônia superou o total de focos registrados nos 30 dias de setembro do ano passado.

Que alguém é esse que tanto se procura? Vice-presidente da República e comandante do Conselho da Amazônia, o general Hamilton Mourão não faz ideia de quem seja. Ou se faz não quer dizer. Foi ele que falou do alguém que prioriza a divulgação de dados negativos. Mas não apresentou provas de que ele exista.

O provável é que o general tenha posto a circular mais uma teoria conspiratória tão ao gosto do presidente Jair Bolsonaro e dos seus filhos. Porque não é preciso que nenhum alguém divulgue dados negativos ou positivos sobre o meio ambiente. Os dados do instituto, com base em imagens de satélites, estão na internet.

Na semana passada, Mourão confessou que está em campanha para continuar vice de Bolsonaro caso ele se reeleja. Mourão troca de pele como as cobras. Na campanha de 2018, comportou-se como o general linha dura que foi. Eleito, pôs a máscara de liberal e passou a fazer contraponto a Bolsonaro. Carlos não gostou.

Então, aos poucos, Mourão foi mudando de postura. Trocou a máscara de liberal pela de tradutor condescendente de Bolsonaro, atenuando suas declarações mais explosivas. E, agora, vestiu a máscara de aliado incondicional do seu chefe e ex-companheiro de armas. Ambos já foram punidos quando serviram ao Exército.

O capitão acompanha a metamorfose do general. Por enquanto, ela o satisfaz.


Luiz Carlos Azedo: O cavalo de pau

O governo bate cabeça quanto à saída da crise, e isso repercute muito negativamente no Congresso e entre os investidores. Sinaliza que a equipe econômica está perdida num labirinto

O presidente Jair Bolsonaro desistiu de criar o programa Renda Brasil, no valor de R$ 300 para cada beneficiado, no primeiro mandato. Jogou a toalha porque a equipe econômica não consegue fazer o milagre da multiplicação dos pães, ou seja, não existem fontes de receitas suficientes para o programa que pretendia garantir a transferência mensal, como chegou a ser anunciado pelo presidente e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, em entrevista coletiva. A ficha somente caiu depois que o secretário de Fazenda, Waldery Rodrigues, um craque em Orçamento da União, disse que a fonte de financiamento do auxílio seria o congelamento das aposentadorias por dois anos.

Bolsonaro acordou com a notícia vazada por Waldery nas manchetes de todos os jornais. Decidiu fazer uma live e detonar a proposta, ameaçando dar um cartão vermelho para o seu autor. A cabeça a prêmio é a de Waldery, que seria a nova baixa na equipe de Guedes, mas é muito difícil que um secretário da sua importância defenda publicamente um ponto de vista como esse sem que o assunto seja cogitado pelo próprio ministro. Waldery não é um neófito no setor público, sabe muito bem que a proposta seria polêmica.

Pode ser que a ideia fosse apenas um “bode na sala”, para negociação com o Congresso, como as equipes econômicas costumam fazer quando querem passar uma proposta para aumentar a arrecadação, no caso, o imposto sobre operações eletrônicas, uma espécie de nova CPMF. Mas de boas — e más — intenções o inferno está cheio. A permanência de Waldery na equipe está com as horas contadas, será o “bode expiatório” de uma ideia considerada infeliz pelo presidente Bolsonaro, que repetiu o bordão lançado em Ipatinga (MG) de que não vai tirar dos pobres para dar aos paupérrimos. Convém, porém, não confundir alhos com bugalhos. Bolsonaro não aderiu à política de cortar gastos na própria carne, rejeitou a proposta porque é impopular e nada mais.

Guedes deu mostras de que deve demitir o auxiliar ao tirar por menos as declarações de Bolsonaro, depois de um encontro com o presidente da República. Disse que o “cartão vermelho” dado pelo presidente da República não era para ele e que as divergências no governo sobre o Renda Brasil são “barulheira”. Bota barulheira nisso, porque o governo bate cabeça quanto à saída da crise, e isso repercute muito negativamente no Congresso e entre os investidores. Sinaliza que a equipe econômica está perdida num labirinto.

Fogaréu
Bolsonaro está entre a cruz e a caldeirinha do ponto de vista fiscal. Como não tem um conceito claro sobre como pretende administrar as contas públicas nem um método adequado para lidar com as divergências no governo, deu um cavalo de pau na política de transferência de renda que pretendia incrementar. Decidiu manter o Bolsa Família e outros programas sociais como estão até 2022. Na verdade, a pandemia está tendo um impacto tremendo na economia e na vida das pessoas. O auxílio emergêncial de R$ 600 alavancou sua popularidade, que estava em baixa após a pandemia. A prorrogação do auxílio até dezembro, com a metade do valor, de certa forma, frustra um pouco os beneficiados, porque a alta de preço dos alimentos, irreversível na entressafra, comerá boa parte da ajuda do governo.

Mas fogaréu mesmo não é a crise fabricada pelo próprio governo sobre sua própria política econômica, sem nenhuma colaboração da oposição. São os incêndios na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado, os três grandes biomas do Centro-Oeste e do Norte do país, a maioria criminosos. Incêndios sempre houve, por causa da seca, mas agora a situação é diferente, porque Bolsonaro deliberadamente deu guarida para agricultores, pecuaristas, madeireiros e garimpeiros fazerem o que bem quiserem, sem sofrer as consequências legais por suas ações.

O pior é que o vice-presidente Hamilton Mourão, que deveria ser o guardião da Amazônia, passou a considerar qualquer crítica ou denúncia à política ambiental do governo como coisa da oposição. Não caiu a ficha ainda de que tudo o que acontece em termos de desmatamento é flagrado pelos satélites e está acessível a todos. Não adianta querer tapar o sol com a peneira, como disse certa vez seu colega Aureliano Chaves, vice do general João Baptista Figueiredo, o último presidente do regime militar. Na verdade, para passar a boiada, como já disse o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o governo asfixiou os órgãos de controle e fiscalização ambiental, cujos recursos diminuirão ainda mais no próximo ano.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-cavalo-de-pau/

Fernando Gabeira: Jabuti de Brasília e a fauna do Pantanal

São incapazes de perceber como o desmatamento influi no regime de chuvas

O jabuti foi adotado em Brasília com base nessa afirmação: jabuti não sobe em árvore, se está lá é porque alguém o colocou.

Jabuti numa lei é algo que não tem uma relação orgânica com o texto, é artificialmente introduzido para atender ao interesse de alguém. Em Brasília como na natureza, há jabutis vistosos e discretos. O que foi aprovado na Câmara é do tipo jabuti-piranga, que pode ser reconhecido de longe. O perdão de uma dívida de R$ 1 bilhão contraída por igrejas em suas transações comerciais foi aprovado pela maioria dos deputados.

Coube ao presidente rejeitar esse desafio de contrariar a Constituição para favorecer pastores que são também importantes cabos eleitorais.

Na mesma semana em que o imenso jabuti-piranga passeava pelo Congresso, houve uma estranha reunião no Palácio do Planalto com o presidente e ministros. Uma jovem, também estranha, perguntou se o Pantanal estava queimando. A resposta foi uma gargalhada geral. Em meio aos risos, alguém respondeu também sorrindo: sim, o Pantanal está queimando, mas o presidente já mandou dez aviões para combater o fogo.

Àquela altura, o Pantanal já havia perdido 12% de sua cobertura vegetal. Não só raríssimas araras-azuis estavam ameaçadas, mas no norte, perto de Poconé, a maior concentração de onças-pintadas corria alto risco de ser atingida pelo fogo.

Isso sem mencionar a destruição do entorno do Parque da Chapada dos Guimarães, da intensa fumaça em torno de Cuiabá, ampliando o perigo de doenças respiratórias.

No Parque do Xingu, já na Amazônia, uma pequena brigada indígena tentava conter um fogo de nove quilômetros. Quanta tragédia para a região. Há poucos dias morreu uma de suas mais importantes vozes: Aritana , o líder yawalapiti. O próprio Raoni, o mais conhecido entre os caiapós, perdeu a mulher. Foi contaminado por Covid-19 e duas vezes internado.

De que riem nos palácios de Brasília? A perda de 12% do Pantanal nos empobrece. O fogo no Xingu é uma prova de que Bolsonaro mente quando diz que não há incêndios na Amazônia.

Muito bicho morrendo, árvores carbonizadas. Até a Operação Lava-Jato parece ter dado seu último tiro ao desfechar uma investigação que se aproximou perigosamente da Justiça, o território intocado no suspeito universo institucional brasileiro.

Muitas pessoas sensatas advertem o governo e o agribusiness de que o capital pode nos deserdar, os consumidores podem nos punir. É preciso acenar com essa dimensão da realidade para comovê-los. São incapazes de perceber como o desmatamento influi no regime de chuvas, e isso vai afetar nossa produtividade, pode produzir mais fome no futuro.

Provavelmente, devem dizer entre si: Israel produz no deserto, logo isso não nos intimida. Acontece que Israel já é um deserto, não o escolheu. Ninguém seria estúpido a ponto de optar por se transformar num deserto.

Exceto, talvez, nos países onde abundam os jabutis. Um simples jabuti-tinga pode garantir na lei uma passagem gratuita de toda essa gente para Miami.

O problema é que, abraçados com os trogloditas tipo Trump no norte, vão descobrir muito rapidamente a impossibilidade do jabuti decisivo: não existe planeta B. E vão nos deixar aqui com a terra calcinada, o pesado silêncio da ausência dos pássaros e o gosto amargo de ter compartilhado o país com gente que ri da própria destruição.

Também há limites para o lamento. Ainda se discute no Pantanal se vai ou não ser usado o retardante químico, uma outra forma de combater as chamas. Assim que passar esta fase, será preciso um plano de recuperação. No incêndio anterior à pandemia, já era evidente que os recursos para combater o fogo são limitados.

O Pantanal tem expressão internacional para atrair um grande projeto de recuperação. No passado, cheguei a propor que se separasse dos dois estados de Mato Grosso, tornando-se uma região autônoma, regida por um comitê de bacia.

Mas isso dependia do voto nos dois estados, e perderíamos de lavada. No entanto era a forma de canalizar recursos diretamente e de criar as bases para conservá-lo.

A estação de queimadas, tanto aqui como lá fora, foi severa este ano. E as mudanças climáticas anunciam que, da próxima vez, virá mais fogo.


Luiz Carlos Azedo: Mais mulheres e negros no pleito

A maior distribuição de recursos do fundo eleitoral para as mulheres e os negros deve aumentar a participação feminina nos espaços de poder e combater o “racismo estrutural”

Não existe tradição política mais forte no Brasil do que as eleições de vereadores. Elas antecederam tudo o que existe institucionalizado em nosso país, a partir da formação da primeira Câmara Municipal, em 1532, na Vi-
la de São Vicente. Vêm de uma tradição medieval portuguesa, que foi fundamental para a consolidação de seu império colo- nial, da conquista de Ceuta (1415) à devolução de Macau à China (1999), ao lado das beneficências e santas casas. No caso de São Vicente, foi a alternativa encontrada por Martim Afonso para sedimentar a presença portuguesa, depois do fracasso de suas expedições à bacia do Prata por terra, na qual desapareceram 70 homens, e por mar. Ele próprio naufragou num baixio, frustrando o objetivo de subir o Rio Paraná e penetrar no continente, como o rei Dom João III ordenara.

Depois que Martim Afonso voltou a Portugal,a vila de São Vicente ficou completamente abandonada por duas décadas. Era um povoado formado por náufragos, degradados e marinheiros, o isolamento fez com que seus moradores adotassem os costumes indígenas e a língua franca tupi-guarani, sem a qual seria impossível o escambo serra acima, em conexão com os caciques Tibiriça, Caiubi e Piquerobi, todos tupi, e os náufragos João Ramalho e Antônio Rodrigues, que comandavam um exército de 20 mil homens pelo sertão adentro, a partir da localidade de Piratininga, às margens do rio Anhembi (Tietê). Tibiriça e os genros transfeririam-se para o campo de São Bento, onde se instalou o Colégio São Paulo, catequizados pelo jesuíta Manoel da Nóbrega, para fundar a maior cidade do país, São Paulo.

Conta-nos Jorge Caldeira, em História da Riqueza no Brasil (Estação Brasil), que um único ritual das Ordenações do Reino foi preservado na vila de São Vicente: “As autoridades eleitas governaram, distribuíram títulos mal escritos pelos raríssimos alfabetizados, prenderam, multaram e julgaram. Passados os três anos dos mandatos regulares, os vereadores convocaram eleições, os eleitos tomaram posse, aqueles que deixaram o governo voltaram para a condição de simples governados, os novos governantes passaram a exercer a autoridade.” Quase todos analfabetos, genros de índios, renderam-se à autoridade dos governos dos costumes, eleita e provisória, competente na busca do consenso, com a vida doméstica organizada em torno da linhagem feminina. Eis “o milagre da multiplicação das eleições e do governo cuja autoridade derivava da escolha dos governados.”

É dessa tradição que as atuais eleições municipais herdariam o voto uninominal, que a competência de Assis Brasil canalizou para os partidos com a adoção do sistema proporcional. A propósito, há três grandes novidades nas eleições municipais deste ano: a primeira é o fim das coligações proporcionais, que obrigou os partidos a concorrerem com a chapa completa, o que aumentou muito o número de candidatos a prefeito e, principalmente, a vereador; a segunda, a destinação dos 30% dos fundos eleitorais para candidatas mulheres, o que as tornou mais competitivas e estimulou o lançamento de candidaturas majoritárias femininas; a terceira, a recente deci- são do ministro Ricardo Lewandowski, que determinou a distribuição proporcional dos recursos do fundo eleitoral entre candidatos negros e brancos, de ambos os sexos (mérito do movimento negro, da deputada Benedita da Silva, do PT-RJ, e do PSol, que recorreram à justiça).

Fusões e incorporações
A melhor distribuição de recursos do fundo eleitoral para incluir as mulheres e os negros, que já cobram maior fiscalização para evitar o/as laranjas (candidatos inscritos regularmente, mas que não fazem campanha e repassam os recursos do fundo, ilegalmente, para os caciques partidários), deve contribuir para aumentar a participação feminina nos espaços de poder e combater o “racismo estrutural”. O benefício deveria ser estendido ou pleiteado pelos candidatos indígenas, que em muitos municípios são sub-representados e sofrem grande discriminação.

Nas eleições passadas, o tsunami eleitoral que levou Jair Bolsonaro à Presidência elegeu grande número de candidatos militares, policiais e evangélicos, que reproduziram na campanha eleitoral sua narrativa contra a esquerda e disseminaram ideias conservadoras e reacionárias que pautam o atuam governo, em relação à cultura, aos costumes, à educação, ao meio ambiente e à segurança pública. Entretanto, o que pesou mesmo na eleição foi a linha divisória traçada pela Operação Lava-Jato entre a ética na política e a corrupção, o patrimonialismo e o fisiologismo, que foram associados à esquerda de um modo geral.

Muito provavelmente, essa linha divisória da ética se manterá nas eleições municipais deste ano, acrescida do desempenho dos prefeitos durante a pandemia, mas será menos ideológica e mais “fulanizada”. As pesquisas estão mostrando que a oferta de emprego está mais presente nas aspirações dos eleitores do que, por exemplo, a segurança e a educação, que compõem com a saúde, tradicionalmente, a tríade de prioridades da maioria da população. É muito provável que os candidatos majoritários, na maioria dos municípios, procurem estabelecer vínculos políticos com governadores e o presidente Bolsonaro, principalmente nas cidades onde houver segundo turno.

A tendência de fragmentação partidária nas eleições municipais, em decorrência do grande número de candidatos majoritários e proporcionais, porém, é apenas aparente, temporária. Após as eleições, haverá um processo de fusões e incorporações entre os partidos cujos resultados eleitorais revelarem pouca representatividade para ultrapassar a cláusula de barreira em 2022. Segundo estimativas do ex- deputado Saulo Queiroz, uma velha raposa política, estudioso do assunto, com as regras atuais, o espectro partidário deverá se reduzir a sete ou oito partidos. Até mesmo o PSDB, o MDB, o PSD, o PP, o DEM e o PR que, somados, elegeram 3.417 prefeitos nas eleições passadas, se nada fizerem, correm risco de desaparecer.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/mais-mulheres-e-negros-no-pleito/

Cristina Serra: Governo biocida

Cruza os braços e libera os exércitos de vândalos da floresta

Teoricamente, as duas cabeças do governo para a questão ambiental são o ministro Ricardo "Boiada" e o general Mourão, à frente do Conselho da Amazônia. Mas o que se viu até agora parece mais uma conspiração contra suas próprias responsabilidades. Nesta semana, os dois fizeram dobradinha nas redes sociais, compartilhando um vídeo tão mentiroso quanto tosco, que nem sequer distingue a Amazônia da mata atlântica.

O vídeo, patrocinado por uma associação de criadores de gado, é uma peça de cinismo: diz que não há queimadas na Amazônia, que apenas índios e pequenos produtores usam o fogo para limpar suas roças e que os latifundiários preservam as matas. Não bastasse, Mourão também andou dizendo que está na hora de discutir a mineração em terra indígena "sem preconceitos".

O ataque biocida deste governo ao meio ambiente dispensa equipamentos de guerra. Basta cruzar os braços e liberar os exércitos de vândalos da floresta. Os incêndios criminosos expandiram seu raio de ação. Agora, devoram também o Pantanal e chegam ao Cerrado. Welington Silva, servidor do ICMBio, morreu tentando combater as chamas. Mártir do abandono dos órgãos de proteção.

O fogo é apenas o sintoma mais visível da devastação que come a floresta por dentro. Uma nova corrida do ouro lançou hordas de garimpeiros com suas máquinas e seus venenos em terras indígenas e unidades de conservação. A indiferença deixou o coronavírus penetrar nas aldeias para executar um projeto de extinção em massa. A morte do indigenista Rieli Franciscato, em Rondônia, se inscreve nos contornos desta tragédia humanitária. A flechada em seu coração simboliza um ato de defesa de povos isolados cada vez mais acossados por invasores.

A Amazônia é a maior fronteira de recursos naturais do mundo e abriga incalculável patrimônio genético ainda desconhecido. É fator essencial de regulação climática. Nossa dádiva não pode virar maldição. Temos que reagir às invasões bárbaras.


Paulo Hartung: A economia verde pode ter o selo ‘made in Brazil’

Com uma nova atitude em prol da preservação o produto feito no Brasil passa a valer mais

Das trágicas crises, como a que estamos atravessando por causa da pandemia da covid-19, certamente restam dores irremovíveis de nosso coração e de nossa alma. Mas, apesar de ainda estarmos em plena caminhada de travessia deste tempo crítico, já fica evidente uma lição desta quadra dramática da História: é preciso reinventar nossa interface com a natureza.

O movimento de conscientização ambiental, especialmente entre os jovens, tem ganhado corpo rapidamente. Essa é a base de uma sociedade moderna, composta por novos cidadãos e consumidores mais conscientes.

Na Europa, esse olhar foi decisivo para o New Green Deal, plano de recuperação da região com investimento de 750 bilhões de euros. A discussão ecoa pelo mundo. O candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que vai lidar com “as realidades inegáveis e as ameaças cada vez maiores das mudanças climáticas”.

Quando o tema é meio ambiente, o Brasil entra obrigatoriamente em cena, seja por seu potencial, seja pelos fatos danosos que se acumulam nos últimos meses. Enquanto os debates vão na direção da sustentabilidade, o Brasil toma rumo contrário, especialmente na Amazônia, com desmatamento, queimadas, garimpo e grilagem de terras, entre outras ilegalidades.

No agora já há impacto econômico: o anúncio de retirada de capital do mercado brasileiro de carnes feito pela finlandesa Nordea Asset Management. Para o amanhã precisamos investir nossa energia para tornar a economia verde um dos motores que farão o País ter forças de reação no pós-crise. E nem é preciso reinventar a roda.

A Região Amazônica representa 60% do território brasileiro. Lá se encontram 74% das atividades extrativistas que respeitam o meio ambiente, como as de sementes, frutos, óleos e resinas. O caso mais conhecido é o do açaí, que movimenta US$ 1 bilhão por ano. Cacau, guaraná, seringueira, castanha do Brasil são outros exemplos. Uma série de startups está investindo na região para de lá disseminar pelo mundo uma gama de produtos sustentáveis, como cosméticos, café e chocolates nativos, entre outros.

Mas mesmo com toda essa riqueza em mãos e com rumos evidentes a serem seguidos, a região representa apenas 8% do produto interno bruto (PIB) nacional. Mais de 25 milhões de brasileiros estão na Amazônia, muitos deles vivendo abaixo da linha de pobreza, com dificuldades de infraestrutura, como comunicação e saneamento básico.

Não se pode encarar o desafio amazônico como pauta deste ou daquele governo, mas como uma questão de Estado. Temos a chance de envolver todos os atores interessados em discutir o melhor para o futuro do Brasil, acadêmicos, ambientalistas, setor privado, poder público e, especialmente, os moradores da região, incluindo os de pequenas e grandes cidades, ribeirinhos e povos tradicionais.

É por meio desse diálogo organizado que conheceremos as possibilidades reais de criar meios de tornar o local um polo industrial de bioprodutos, tornando viáveis as condições logísticas, os financiamentos, a capacitação, a tecnologia e a ciência para aquela porção do nosso território.

A iluminar esse caminho, além dos exemplos citados na região, temos casos muito bem-sucedidos de bioeconomia em outras localidades do Brasil, como a indústria de biocombustíveis, atualmente a segunda maior produtora de etanol do mundo. A Raízen exporta tecnologia para produção do etanol de segunda geração. Assim, a companhia mira os royalties, enquanto o meio ambiente é beneficiado.

Outro caso é a indústria de base florestal que trabalha comumente em áreas antes degradadas, cultivando árvores que dão origem a produtos fundamentais no nosso dia a dia, como papel, embalagens de papel e pisos laminados, entre outros. Mesmo consolidada, seus dois pés estão no futuro e da madeira virá uma infinidade de alternativas a materiais de origem fóssil. São fios têxteis com uso de até 90% menos água e químicos, bio-óleos e nanocristais de celulose para telas LCD, entre outros.

O País é o lar da maior floresta tropical e da maior biodiversidade do mundo. Cuidar desses ativos é do interesse dos brasileiros. Com uma nova atitude em prol da preservação, o produto feito no Brasil passa a valer mais para esse novo mundo que quer a sustentabilidade. Engrandece a marca Brasil.

A floresta já tem inúmeros benefícios para a economia brasileira, com serviços ambientais que ajudam na competitividade da agricultura, com regimes de chuvas, permitindo em muitas culturas até três safras por ano.

Que o Brasil mude de vez o rumo de sua interface com o meio ambiente. Temos um patrimônio verde incomparável. Temos oportunidades de produção inclusiva e sustentável a nos inspirar. Temos o clamor pelo respeito à natureza. Agora é preciso reinventar nossa relação com o planeta. Afinal, é da vida que se trata – da minha, da sua, de todas e todos nós, hoje e amanhã.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Luiz Carlos Trabuco Cappi: Empatia, solidariedade e generosidade

Os preceitos do ESG estão em franca disseminação junto aos investidores globais e guardam relação expressa com princípios cuja raiz mais profunda é a ética.

Desconheço tema tão fascinante, multidisciplinar e atual para a vida de empresas como este que o universo capitalista moderno, de maneira sábia, resume em apenas três letras: ESG. São as letras iniciais das palavras da língua inglesa para meio ambiente (environmental), social (social) e governança (governance). Representam globalmente o desafio mais avançado para corporações atentas com o seu futuro e o da humanidade.

Na minha opinião, essas três palavras evocam três comportamentos: empatia, solidariedade e generosidade.

Em razão da ameaça à estabilidade do clima, as condições de desigualdade das populações vulneráveis e o anseio da sociedade por um equilíbrio mais justo no relacionamento entre pessoas, empresas e acionistas, o alinhamento às diretrizes ESG pelos donos do capital não tem meia-volta. Ou a empresa adere ou arrisca sua viabilidade econômica em curto espaço de tempo.

Os preceitos do ESG estão em franca disseminação junto aos investidores globais e guardam relação expressa com princípios cuja raiz mais profunda é a ética. O lucro pelo lucro saiu de moda.

ESG abarca muitos ganhos civilizatórios do século 20 e agrega preocupações novas e urgentes.

O conceito PPP – Pessoas, Produção e Planeta –, que resumiu as Metas do Milênio, lançadas em 2000 pela ONU, foi o embrião do ESG. Desde 2017, a União Europeia requer das empresas declarações sobre ações de proteção ambiental, responsabilidade social, interação com colaboradores, respeito aos direitos humanos e combate à corrupção. A Bolsa de Valores de Nova York recolheu, em 2018, um conjunto de informações de nada menos que 85% das companhias listadas no índice S&P 500. Aqueles dados são os antecedentes do que relatamos hoje como princípios ESG.

Participante das últimas dez edições do Fórum Econômico Mundial, em Davos, constato ano a ano a crescente atenção dedicada pelos CEOs das maiores companhias privadas do mundo a esse formidável conjunto de conceitos. Atento à opinião pública mundial, Davos foi o primeiro grupo de larga influência a perceber que a sensibilidade aos reclamos por sustentabilidade seria o novo norte dos negócios.

Hoje, a Geração Z está chegando ao mundo das finanças, dos negócios e dos investimentos. Jovens com 25 anos influenciam cada vez mais o mundo sobre onde e como investir, quais alimentos e de que empresas devemos consumir e quais as opções menos agressivas ao meio ambiente e à ética para a compra de vestuário e uso de serviços. É um novo direcionamento, cuja consequência é a mudança das métricas decisórias. Os melhores resultados estão hoje correlacionados às boas práticas corporativas.

No Brasil, o compromisso com o ESG exige modelos desafiadores. Somos o maior produtor e vendedor de alimentos do mundo, um dos grandes exportadores de minério, estamos presentes de modo relevante no mercado de óleo e gás, temos uma frota de milhões de veículos e produzimos muito lixo.

E, acima de tudo, temos milhões de hectares de florestas a proteger.

É importante que o Brasil reitere apoio e adesão ao Acordo de Paris, cujos termos representam o compromisso com o desmatamento até 2030. Os problemas estão escancarados. Há uma série de crimes cometidos entre queimadas e desmatamentos. Foi muito bem-vindo, portanto, o recém-organizado Conselho Nacional da Amazônia, formado por governo federal e Estados da região, com o apoio de bancos, empresas e entidades de todo o País. O objetivo é encontrar soluções estruturantes, como o incentivo à bioeconomia e a regularização fundiária, para proporcionar acesso a crédito.

Dados da Embrapa mostram que cerca de 60% do território nacional são de mata nativa. Segundo entidades do setor, cerca de 70% da energia produzida no Brasil vem de fontes renováveis, contra a média mundial de 23%.

Olhado pelo estoque, o Brasil segue sendo verde. Olhado por nossas intenções e políticas, é preciso mostrar ao mundo que também somos verdes. É um compromisso civilizatório.

Gratidão ao jornalista Washington Novaes, pioneiro na defesa do desenvolvimento sustentável no Brasil.

PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO.