Matias Spektor

Matias Spektor: O futuro

Perigosa, direita populista que hoje dá as cartas tem método e projeto

Esta é minha última coluna neste espaço.

Quando este jornal me convidou para escrever, há sete anos, a ideia era inusitada. Nenhum grande veículo tinha um colunista dedicado à política externa brasileira. Para minha sorte, muitos leitores fizeram da agenda internacional a sua pauta.

Esses anos assistiram à expansão do debate público sobre temas internacionais. Hoje, dezenas de profissionais expressam opiniões sobre o assunto no Twitter e no Facebook.

Isso é muito positivo. A velha redoma que limitava a conversa a um punhado de embaixadores aposentados se estraçalhou, aumentando a diversidade e a densidade do debate.

Acontece que essa transformação também trouxe coisas negativas. Nas redes sociais, a competição por “likes” premiou argumentos de apelo fácil, muitas vezes inverídicos ou incapazes de resistir ao mínimo escrutínio. O debate ficou menos qualificado.

Isso é um problema sério porque ocorre ao mesmo tempo em que colapsa o que havia de consenso na política externa da Nova República. Quem termina ocupando o espaço é a turma que hoje comanda a agenda internacional do governo Bolsonaro.

Eu admito a minha parcela de culpa: como tantos outros acadêmicos, não percebi que um dos efeitos da vitória de Donald Trump seria o nascimento do antiglobalismo messiânico à brasileira.

O resultado é nefasto porque a direita populista que hoje dá as cartas é perigosa. Não se trata de um bando tresloucado: em suas decisões, há método e projeto. A direção do que vem por aí é péssima para o país.

É por isso que chegou a minha hora de parar. A partir de agora, vou trabalhar para promover o pensamento e o debate sobre o futuro da política externa de outras formas.

Trata-se de uma tarefa urgente porque o grupo que se encontra no poder um dia será posto para fora pela força do voto popular. Eles deixarão um rastro de destruição, e cabe à sociedade começar a imaginar a reconstrução.

Seria um erro grotesco acreditar que isso ocorrerá por força da natureza. Afinal, nem direita, nem esquerda têm alternativas decentes para pôr no lugar.

Na esquerda, muita gente acredita ser possível reeditar a diplomacia de Lula. Na direita, vozes influentes ainda defendem a volta à plataforma de política externa elaborada pelo tucanato para as eleições de 1994.

Como sociedade, podemos e devemos fazer melhor. Deixo a coluna para pôr em prática aquilo que defendi durante todo esse tempo: um esforço coletivo para conceber uma política externa nova, capaz de ajudar a sociedade brasileira a sair do buraco em que se encontra.

Obrigado, leitor, por me acompanhar nesta jornada.


Matias Spektor: Chegou a hora de reescrever a história da transição democrática

Episódio envolvendo o Supremo permite fazer o ajuste de contas com o passado

A reação de ministros da corte suprema a suspeitas sobre o possível envolvimento de magistrados com corrupção política é alarmante porque viola a Constituição.

No entanto, esse episódio tem um poderoso efeito pedagógico. Ele permite, finalmente, fazer o necessário ajuste de contas com o passado. Explico.

Nos últimos 30 anos, vingou a tese da suposta transição exitosa para a democracia. A narrativa dominante apresenta o Brasil como um caso de sucesso, em que pesem os vários percalços no meio do caminho.

Claro, essa visão reconhece que a travessia não foi perfeita. Mas as imperfeições são descritas como um mero resquício autoritário —aquela sobra incômoda que sempre tem numa obra grande e bem-sucedida. Não à toa, a expressão comum para descrever esses restos é “entulho autoritário”.

Essa continua sendo a forma hegemônica de descrever os últimos 30 anos. Segundo ela, o entulho atrapalha, mas não inviabiliza. Basta dar tempo ao tempo que uma democracia plena nascerá graças ao acúmulo de anos de governança virtuosa por parte de instituições democráticas, que estariam funcionando muito bem.

Tal visão da história ainda impera incólume em livros, artigos, universidades e na grande imprensa. Durante a década de 2000, quando o crescimento econômico puxado pela China permitiu esquecer o conflito redistributivo, ela virou dogma.

Alguns acadêmicos chegaram a vislumbrar um futuro próximo no qual o Brasil teria uma democracia de qualidade similar àquela hoje vista em Portugal e Espanha, exemplos de transições bem-feitas para longe do autoritarismo.

Ocorre que, nos últimos cinco anos, esse dogma ruiu. Aprendemos que o Executivo usa recursos de conglomerados privados para comprar o Legislativo.

Em conluio, políticos e empresários compram juízes e capturam agências reguladoras. Juntos, abocanham nacos da política de defesa e sequestram parte da política externa. As milícias servem como cabos eleitorais, enquanto o narcotráfico financia candidatos. Clientelismo e compra de voto não ficaram num distante passado arcaico. Permanecem vivos.

A censura impulsionada desde o STF é parte do pacote. Ela coroa as recentes revelações sobre como a corte funciona na prática, e o cenário é desolador.

Por isso, passou da hora de trocar a velha tese da transição bem-sucedida por outra, mais precisa. A dimensão autoritária da atual democracia não se resume ao escombro da reconstrução pós-ditadura. Ela é central a seu funcionamento.

É necessário um esforço coletivo para reescrever essa história à luz das novas evidências. Só assim entenderemos por que o velho pacto oligárquico conseguiu sobreviver à Nova República.

*Matias Spektor, professor de relações internacionais na FGV.


Matias Spektor: Bolsonaro chega à Casa Branca buscando uma vitória

Visita é a importante aposta de política externa do início de mandato

A visita de Jair Bolsonaro à Casa Branca é a mais importante aposta de política externa do início de seu mandato.

O Palácio do Planalto insistiu em realizar a viagem no primeiro semestre do ano mesmo quando os americanos sinalizaram que, postergando a viagem alguns meses, a Casa Branca teria melhores condições de entregar concessões.

O compromisso com realizar a visita rápido é intenso a ponto de fazer Bolsonaro arcar com o custo de pular Buenos Aires como destino inicial.

O presidente acredita que, estabelecendo um canal desimpedido com Trump nos Estados Unidos, seu mandato será mais fácil. Por isso, a visita não começa nem se esgota na identidade política que Bolsonaro construiu com Trump durante a campanha.

Bolsonaro privilegia a Casa Branca porque acredita ter condições de obter benefícios para consolidar sua posição junto aos três grupos sobre os quais se equilibra: a bancada religiosa, os militares e o mercado financeiro.

Em seu encontro com Trump e na reunião que terá com uma rede de denominações evangélicas, Bolsonaro operará a conexão entre voto e prece que é marca registrada da direita americana.

Aos militares, Bolsonaro entregará o acordo de Alcântara, o status de aliado extra-OTAN e a promessa de compras no mercado de defesa. Além disso, Bolsonaro conseguirá para o grupo militar um espaço geopolítico inédito na América do Sul, agora que a Venezuela implode a passo acelerado e promete virar um problema de longo prazo para a segurança nacional do Brasil.

Por sua vez, o mercado financeiro obterá nesta viagem um claro impulsionamento: o apoio explícito do governo americano ao programa de reformas econômicas empreendidas por Paulo Guedes.

Na prática, isso serve em dois cenários. Se houver reforma da Previdência parruda, a Casa Branca ajudará a trazer investidores estrangeiros. Se não houver reforma ou se a reforma for pífia, então o apoio do governo americano será essencial para um país que, quebrado, precisará de apoio do Tesouro americano e do Fundo Monetário Internacional para pagar suas contas, rolar a sua dívida e conter a queda de sua moeda.

Trump está disposto a entregar tudo isso não porque se preocupa com o destino político de Bolsonaro, mas porque Venezuela importa muito para ele. E porque se trata de uma operação de baixo custo para ajudar um político que se inspira no presidente americano.

Apenas três coisas podem atrapalhar esses planos: a eclosão de um novo escândalo de corrupção, revelações comprometedoras envolvendo milícias ou a associação do presidente brasileiro ao ex-guru de Trump, Steven Bannon.


Matias Spektor: Crise do chavismo afeta trajetória da criminalidade no Brasil

Desdobramentos na Venezuela não se esgotam na questão da democracia

A conversa pública está focada num aspecto específico do dilema que o Brasil enfrenta na Venezuela: até que ponto é justo e legítimo pressionar por uma mudança de regime em Caracas?

A pergunta divide governo e sociedade e, por isso, domina o debate. Acontece que esse modo de enxergar o problema é excessivamente limitado e coloca o foco no lugar errado.

Para o Brasil, o que está em jogo vai muito além da estabilidade democrática. Antes, nosso problema é mais grave: a decadência institucional venezuelana afeta a qualidade das instituições brasileiras.

Como assim?

Na Venezuela, a ditadura chavista é apenas um dos atores com peso geopolítico próprio. Coexistem com ela numerosas milícias e grupos paramilitares que não respondem ao comando de Caracas nem fazem parte da estrutura formal do Estado. Tais grupos podem até obter a anuência do governo, mas não se confundem com ele.

Existem na Venezuela estruturas político-militares paralelas às forças oficiais com capacidade de geração de riqueza e de captura do Estado. A batalha desses grupos é pela colonização da vida pública do país e pela sua transformação em narco-estado.

É esse o maior problema estratégico do Brasil.

A gente já tem experiência. Há três décadas, aconteceu algo parecido na região de fronteira com Bolívia e Paraguai. Redes transnacionais de autoridade paraestatal e de economia ilegal obtiveram recursos para espalhar insegurança por milhares de quilômetros entre a fronteira e o oceano Atlântico. Essas organizações mafiosas capturaram agentes públicos em cidades brasileiras, paraguaias e bolivianas, originando uma máfia transnacional difícil erradicar.

Agora, o grande risco é uma repetição dessa dinâmica com a Venezuela. Por isso, ao calcular quais passos tomar diante da crise do chavismo, a prioridade deveria ser a de impedir a consolidação de um drama similar na fronteira Norte.

Ou seja, o interesse brasileiro pelos desdobramentos na Venezuela não se esgota na questão da democracia. E é crucial entender que a eventual restauração das garantias democráticas não levará, necessariamente, a uma reversão do problema. Bolívia e Paraguai são democracias.

Essa mudança de perspectiva demanda reconhecer que a crise política venezuelana transborda não apenas sobre a Colômbia, mas também sobre o Brasil. O futuro da criminalidade brasileira tem conexão estrutural com a evolução da criminalidade no Caribe.

Ao conceber instrumentos de política externa para lidar com o vizinho, a prioridade brasileira deveria ser a de ajustar o foco, dando centralidade aos impactos internos da instabilidade em nosso entorno geopolítico.

*Matias Spektor é professor de relações internacionais na FGV.


Matias Spektor: Bolsonaro pressiona Venezuela, mas plano tem falhas

Governo brasileiro precisa recorrer a medidas que reduzam a dependência de Juan Guaidó

O governo Bolsonaro começou a entregar sua promessa de redobrar a pressão contra a ditadura venezuelana.

O Brasil reconheceu Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional em Caracas, como o legítimo chefe de governo venezuelano. No Twitter, o chanceler Ernesto Araújo aproveitou para chamar Nicolás Maduro de “ex-presidente”.

Poucas horas depois, os americanos fizeram o mesmo. Aproveitando o movimento, o vice-presidente Mike Pence prometeu apoiar o povo venezuelano, caso ele “levante a sua voz num pedido de liberdade”.

Os protestos de rua ocorridos nesta quarta-feira (23) contra Nicolás Maduro só dão fôlego adicional ao Palácio do Planalto. Nos próximos dias, numerosos países seguirão a coalizão sul-americana a reboque.

A implicação imediata disso tudo é elevar o passe de Bolsonaro junto ao governo dos Estados Unidos. O presidente brasileiro se apresentará como esteio da estabilidade regional.

Se a tese segundo a qual Guaidó é o melhor caminho para uma transição democrática ganhar força, também sairá fortalecido o ministro das Relações Exteriores, um de seus mais ativos artífices.

O problema é que essa estratégia tem um problema.

​Guaidó está longe de ser uma liderança consolidada. Ele não conta com base ampla nem controla as ruas. Seu programa de governo é vago, utópico e não oferece plataforma crível para a construção da coalizão que será necessária num esforço de restauração da democracia.

Por isso, o Brasil precisa complementar esse trabalho com outras medidas que reduzam a dependência de Guaidó.

A primeira é a necessidade urgente de diálogo entre o Brasil e as Forças Armadas venezuelanas. Hoje, esse canal não existe, mas não há saída para a crise do país vizinho que exclua os militares.

A construção desse canal também importa porque, ao menos no primeiro momento, Maduro vai redobrar a repressão contra a população.

A segunda medida diz respeito à construção de pontes com aqueles líderes políticos venezuelanos que têm máquina e influência real.

Muitas vezes, trata-se de gente jovem que, outrora chavista, se posiciona agora contra Maduro. Os governadores das províncias de Miranda e Carabobo são exemplos disso.

Se houver um levante popular generalizado e duradouro, então essa gente terá papel decisivo na construção de soluções para a crise no futuro.

Por fim, está a questão da China e da Rússia, as duas potências que ainda apoiam o regime venezuelano. A capacidade brasileira de pressionar esses países é quase nula. Mas o argumento de que eles ganharão mais sendo parte da solução do que do problema precisa ser feito um dia. Esta é uma boa hora para começar.

*Matias Spektor é professor de relações internacionais na FGV.


Matias Spektor: Duas direitas disputam futuro da democracia brasileira

Diversidade tende a ser disciplinada por uma clivagem fundamental

O campo da direita uniu forças para derrotar o petismo, mas a aliança nunca foi óbvia ou natural. Para acontecer, ela demandou que várias facções se resignassem ao peso eleitoral de Jair Bolsonaro.

Com o governo empossado, a disputa entre esses grupos voltará à superfície. Mas, desta vez, toda a diversidade da direita brasileira tende a ser disciplinada por uma clivagem fundamental.

De um lado, a direita formada na esteira da globalização. Trata-se de um grupo de talho liberal. Em política, seu compromisso maior é com o constitucionalismo, o Estado de Direito e a garantia de liberdades individuais e das minorias.

Na economia, essa turma vê no mercado e na abertura ao mundo os melhores mecanismos para lutar contra os grupos de interesse que inviabilizam o controle do gasto público.

Em relações internacionais, esse grupo advoga por instituições globais com peso suficiente para contrapor a força centrífuga dos nacionalismos. Para esse pessoal, o nacionalismo é usado por grupos que lutam para manter o Brasil arcaico como escudo de proteção de privilégios.

Do outro lado, está a direita conservadora. Hoje democrática, ela prega eleições livres e competitivas e dá provas de que pode ganhá-las com folga. Seu compromisso maior é com os ideais de nação, família tradicional e fé cristã. Ela rejeita o multiculturalismo, a normalização da família não-tradicional e a laicidade —marcas distintivas da direita liberal.

Em política exterior, a direita conservadora rechaça organizações internacionais por vê-las como títeres de uma elite global comprometida consigo mesma, ao arrepio das maiorias eleitorais de cada país soberano. Para esse pessoal, o nacionalismo é condição necessária para um mundo mais estável, justo e afluente.

A direita conservadora brasileira não é nova, é claro. Só que sua posição durante o longo condomínio tucano-petista foi periférica. Agora, ela volta com a autoconfiança de quem sabe ser parte de uma onda transnacional, da mão de Donald Trump (Estados Unidos), Viktor Orbán (Hungria) e Bibi Netanyahu (Israel).

Se a direita liberal é cosmopolita e tecnicista, a conservadora é nacionalista e populista. Nos últimos 30 anos, ambas provaram ter capacidade de ganhar no voto. Também foram capazes de costurar uma aliança entre si. Mas seus propósitos são irreconciliáveis.

Sua batalha agora é sentida na arena institucional do novo governo. Economia e Justiça por um lado. Educação, Relações Exteriores e Direitos Humanos por outro.

O fiel da balança será o establishment militar, onde há liberais e conservadores.

O resultado desse embate definirá o futuro da direita e da democracia brasileira, que poderá ser liberal ou não.


Matias Spektor: Plataforma diplomática da ultradireita ganha força

Obtuso, programa lembra muito o da extrema esquerda, com fantasmas imaginários e lógica chã

Ganha forma pela primeira vez no ciclo democrático uma plataforma de política externa de ultradireita.

Ela não deve ser reduzida às maluquices do chanceler nem deve ser descartada como mero plágio inconsequente das ideias de Steve Bannon e Donald Trump. Tampouco é correto atribuir sua paternidade a Jair Bolsonaro. A eleição do presidente impulsiona esse programa e lhe dá força, mas a plataforma o antecede.

As origens intelectuais do projeto vêm de longa data. O furor antiglobalista é emprestado do ciclo iniciado em 1964.

À época, temerosos pela sobrevivência do regime, os generais e sua diplomacia denunciaram as Nações Unidas e os regimes internacionais de direitos humanos, de não-proliferação nuclear e de preservação ambiental.

O argumento era que tais instâncias seriam parte de um conluio esquerdista transnacional para enquistar o Brasil no atraso.

Na prática, o regime fazia de tudo para evitar que suas entranhas fossem expostas ao público. Os governos da época chegaram a abrir mão de ocupar uma cadeira rotativa no Conselho de Segurança da ONU para ficar longe dos holofotes.

Também é daquela época a ideia de que a diplomacia brasileira deve discriminar países em função de sua identidade ideológica com o ocupante do Palácio do Planalto.

Hoje, a velha plataforma de ultradireita ganha cores novas. É nova a noção segundo a qual as denominações cristãs do país devem ser tratadas como dimensão central da atuação externa.

É de agora o uso sistemático de notícias falsas e de teses que, mesmo sendo esdrúxulas, são defendidas ao arrepio das evidências, como é o caso do atual discurso oficial sobre mudança do clima e imigração.

Obtusa, a nova plataforma diplomática de ultradireita lembra muito sua irmã siamesa, a plataforma de política exterior da extrema esquerda. Trata-se de um mesmo mundo de fantasmas imaginários, lógica chã e descompromisso com os fatos.

É possível que o novo projeto da extrema direita sobreviva para além do mandato de Bolsonaro. Afinal, há muitos liberais brasileiros que taparão o nariz, mas embarcarão nessa canoa.

Eles deveriam pensar duas vezes. Essa nova plataforma diplomática inviabiliza a agenda reformista de Paulo Guedes e Sergio Moro. Em ambos os casos, os planos de governo demandam adesão a mais compromissos internacionais, abrindo o Brasil ao mundo sem medo.

Não se trata de submissão. Ao contrário do que diz a mentira em voga, o Brasil nunca aderiu a um acordo que demandasse cessão de soberania. Trata-se de produzir políticas públicas de boa qualidade. E elas são incompatíveis com um projeto iliberal travestido de patriota.

*Matias Spektor professor de relações internacionais na FGV.


Matias Spektor: Ernesto Araújo enfrenta primeiro teste em Lima

Resultado da jornada do novo chanceler terá três impactos fundamentais

Está marcada para amanhã a estreia do chanceler Ernesto Araújo, quando ele participa da reunião do Grupo de Lima, o clube de países interessados em coordenar uma resposta à ditadura venezuelana.

Trata-se de encontro importante porque Nicolás Maduro está prestes a assumir um novo mandato presidencial e, pela primeira vez em muito tempo, devido à crise econômica galopante, dissidentes e opositores conseguem oferecer uma perspectiva de mudança.

Em Lima todos os holofotes estarão sobre o chanceler brasileiro. Bolsonaro alimentou a expectativa de que o Brasil jogará seu peso contra o chavismo, e a pergunta que todos farão é se Araújo consegue liderar a costura de um consenso regional ou se ele tropeçará nos obstáculos que, há tempos, inviabilizam um front comum.

Ao pousar em Lima, o ministro terá somente apoio líquido e certo da Colômbia. O México lhe fará oposição. Argentina, Chile e Peru terão alguma simpatia, mas precisarão ser convencidos.
O resultado da jornada terá três impactos fundamentais.

O primeiro é sobre a Venezuela. Se houver consenso em Lima, os opositores do regime em Caracas e no exílio farão novos movimentos. Se a região ficar dividida, tudo fica como está.

O segundo impacto é sobre Bolsonaro. O presidente terá sua primeira vitória diplomática se o grupo publicar uma declaração com medidas duras, tais como a negação de vistos a representantes do regime venezuelano, a imposição de sanções, uma denúncia ao Tribunal Penal Internacional ou uma crítica à China e à Rússia, as duas potências que ainda ajudam a manter o chavismo no poder.

Ao contrário, Bolsonaro terá amargado um fracasso se a declaração de Lima for murcha, com decisões inócuas, tais como uma mera retirada de embaixadores de Caracas ou um palavreado vazio sobre o não-reconhecimento da legitimidade de Maduro.

O terceiro impacto da reunião de Lima será sobre a posição do próprioErnesto Araújo no governo. Devido às escolhas que fez para alcançar o cargo, ele ainda tem muito chão pela frente antes de consolidar seu nome na Esplanada dos Ministérios.

Enquanto sua força for derivada do deputado Eduardo Bolsonaro, sua permanência no cargo estará sempre por um fio. Para sobreviver no lugar que ocupa, reassegurar quem duvida dele e isolar opositores, ele precisa selar o apoio inconteste do presidente.

Uma vitória em Lima faria isso. Não só devido à Venezuela, cujo desfecho é incerto. Mais pelo efeito de entregar uma região unida contra o chavismo: a garantia de que Bolsonaro encontrará portas abertas por toda a Washington, muito além da Casa Branca.

* Matias Spektor é professor de relações internacionais na FGV.


Vinícius Müller: Violência e desigualdade. Como o Exército e a escravidão moldaram nossa História

A efeméride dos 130 anos da Lei Áurea e a descoberta de documentos referentes ao governo do general Ernesto Geisel revelaram o poder que a História tem de nos incomodar 

Há quem pense que ela sempre se repita em ciclos. Outros, como farsa ou tragédia. No meio do caminho, rupturas. E assim, para outros tantos, em direção ao progresso. O cardápio é variado, o que, às vezes, torna a escolha um tanto confusa e sofrida. Contudo, a História não se deixa domesticar tão facilmente. Ela acontece independentemente de nossas maneiras de entendê-la, de nossos desejos e escolhas. E, muitas vezes, em ritmos e tempos que nos surpreendem. A surpresa pode ser o incômodo para novos entendimentos, revisões e ajustes com o passado. Nos últimos dias, por duas vezes, a História nos tomou algum tempo de reflexão. A efeméride dos 130 anos da Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, e a descoberta, pelo professor Matias Spektor, de documentos referentes ao governo do general Ernesto Geisel, revelaram o poder que a História tem de nos incomodar.

No primeiro caso, (re) descobrimos que, após 130 anos, ainda não demos conta de responder aos desafios criados pela Lei assinada pela Princesa que redimiu um povo, mas perdeu o trono. Desafios que menos se relacionam com o debate entre o arranjo e a ruptura e mais com a continuidade e transmissão. Ou seja, menos importante é saber se teria sido melhor abolir a escravidão no Brasil por uma Guerra, como fizeram os norte-americanos, ou sob o longo acordo que fizemos sob a feição de D. Pedro II. Importa muito mais saber como os valores envolvidos e representados pela escravidão se transferiram para outros aspectos, garantindo sua sobrevivência e o nosso atraso. A desigualdade, por exemplo, mesmo representada agressivamente pela escravidão não acabou com a Lei Áurea. Ela se traveste e se encaixa, quase como uma free rider, em nosso comportamento diário e em nossas instituições. A escravidão não é a desigualdade, é sua representação. Acabar coma escravidão, portanto, não é acabar com a desigualdade.

O mesmo vale para o segundo caso. As revelações de que Geisel sabia mais do que supúnhamos sobre ‘os porões da ditadura’ e que muitas vezes deu anuência à ação criminosa de agentes do Estado contra indivíduos brasileiros, nos mostram que a troca da liderança militar – saiu a ‘linha dura’ de Médici, entrou a transição de Geisel – não se fez em prejuízo da institucionalização da violência, mas ao seu sabor. O que dava a Geisel a marca da ‘abertura’ não era sua vontade e capacidade de estancar a violência, e sim sua competência em controlar e transferi-la dos ‘porões’ ao seu gabinete. E essa transferência toma tempo, porque assim como a desigualdade, a violência também pode ser entendida como um jogo em que alguns ganham e outros perdem. Por isso, aqueles que ganhavam resistiam. Aqueles que perdiam se apressavam. Foi entre os dois que o tempo da História ocorreu. E Geisel deixou claro desde o começo que, para ele, esse tempo seria ‘lento e gradual’.

O que torna essas duas passagens mais interessantes é que, um dia, elas já estiveram juntas. Escravidão e Exército ou desigualdade e violência são elementos centrais à formação do Brasil ao longo do século XIX. E a ponderação entre elas permanece como uma das continuidades mais resistentes de nossa História. Entre 1865 e 1870, o Império viu-se obrigado a ampliar sua política de recrutamento militar. Estávamos em meio ao conflito por nós brasileiros chamado de Guerra do Paraguai e o Exército carecia de estrutura, inclusive de oficiais, para enfrentar o não tão poderoso vizinho. A ampliação do recrutamento incluiu ex-escravos, liberados do cativeiro diretamente para a Guerra sob a negociação entre o Império e os proprietários de gente. Com o fim da Guerra, tal política encerrou-se, desagradando o Exército e o afastando parcialmente do Império.

Desta briga institucional emergiu uma das mais relevantes questões sobre a formação do Estado brasileiro e, a rigor, de qualquer Estado. Ao defender a manutenção de uma política de liberdade de escravos que se transformariam em oficiais militares, o Exército indiretamente se aproximou dos abolicionistas. E essa aproximação fez do Exército um dos defensores daquela que seria a pauta modernizadora do país. O término da escravidão não era apenas a modernização econômica voltada à entrada do país no capitalismo contemporâneo. Era também a modernização moral e civilizatória, amparada na ideia de que a escravidão embrutecia escravos e senhores e tornava impossível a civilização. Mas, além disso, e para os militares, o fim da escravidão representava a superação do hiato que existia entre a ordem privada que permitia o uso da violência em âmbito doméstico e a modernização institucional do Estado Brasileiro que, em tese, teria o monopólio da violência.

Assim, terminar com a escravidão, a mais eloquente manifestação da desigualdade que nos funda, era não só o passo fundamental para o desenvolvimento econômico e para a construção de uma sociedade minimamente civilizada, mas também condição para a modernização e, quiçá, para a própria construção do Estado Nacional. E para isso, era essencial transformar o uso da violência em algo público, não privado. Dessa forma, atacar a desigualdade e garantir a modernização econômica e moral dependia da centralização do poder sobre a violência em mãos do Estado e de seu braço armado, o Exército.

Contudo, estes elementos se recombinam ao longo da trajetória histórica de modo a confundir os incautos. Se a modernização é a tentativa de diminuir a desigualdade cujo antepassado é a escravidão, ela pode ser também a superação da violência em âmbito privado. Se a civilização depende disso, é porque ela dependia no passado da superação da escravidão em favor do avanço capitalista. E ambas estiveram, em nossa história, ligadas à ação do Estado e de seu braço armado, o Exército.

Portanto, ao centralizar a decisão sobre o uso da violência durante seu governo, Geisel estava, mesmo que não soubesse, lidando com questões cuja temporalidade é muito maior do que ele e do que a lamentável experiência da qual fez parte. Enfrentava uma situação de recombinação dos elementos que nos forjaram como nação e que permanecem presentes mesmo à nossa revelia. O Estado e sua função última, o uso da força, podem servir a variados fins: à modernização econômica, à definição do que é moral e civilizado e à garantia de que a violência é assunto público, não privado. Depois de mais de um século que as três questões estiveram juntas, talvez seja tempo de definirmos se elas ainda fazem sentido em conjunto. Desde então, todas as vezes que o Exército – e seu chefe maior, o Estado – se voltou à modernização econômica ou à definição do que é moralmente certo, os resultados não se sustentaram.

A História, que pode ser cíclica, evolutiva, irônica, farsesca ou trágica, também pode ser a recombinação de elementos permanentes com as mudanças circunstanciais. Deixemos, então, que ela reconfigure os elementos de nossa trajetória e que, assim, a economia seja do mercado e que a civilização seja da sociedade civil. Ao fim, estaremos garantindo que o Estado e seu monopólio sobre a violência se volte à promoção e zeladoria da igualdade jurídica. Ou seja, à eterna vigilância de que a igualdade se funda na garantia de uma ordem cuja definição do justo e de sua sustentação a partir do uso da violência seja sempre pública e nunca privada.

* Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.