Desdobramentos na Venezuela não se esgotam na questão da democracia
A conversa pública está focada num aspecto específico do dilema que o Brasil enfrenta na Venezuela: até que ponto é justo e legítimo pressionar por uma mudança de regime em Caracas?
A pergunta divide governo e sociedade e, por isso, domina o debate. Acontece que esse modo de enxergar o problema é excessivamente limitado e coloca o foco no lugar errado.
Para o Brasil, o que está em jogo vai muito além da estabilidade democrática. Antes, nosso problema é mais grave: a decadência institucional venezuelana afeta a qualidade das instituições brasileiras.
Como assim?
Na Venezuela, a ditadura chavista é apenas um dos atores com peso geopolítico próprio. Coexistem com ela numerosas milícias e grupos paramilitares que não respondem ao comando de Caracas nem fazem parte da estrutura formal do Estado. Tais grupos podem até obter a anuência do governo, mas não se confundem com ele.
Existem na Venezuela estruturas político-militares paralelas às forças oficiais com capacidade de geração de riqueza e de captura do Estado. A batalha desses grupos é pela colonização da vida pública do país e pela sua transformação em narco-estado.
É esse o maior problema estratégico do Brasil.
A gente já tem experiência. Há três décadas, aconteceu algo parecido na região de fronteira com Bolívia e Paraguai. Redes transnacionais de autoridade paraestatal e de economia ilegal obtiveram recursos para espalhar insegurança por milhares de quilômetros entre a fronteira e o oceano Atlântico. Essas organizações mafiosas capturaram agentes públicos em cidades brasileiras, paraguaias e bolivianas, originando uma máfia transnacional difícil erradicar.
Agora, o grande risco é uma repetição dessa dinâmica com a Venezuela. Por isso, ao calcular quais passos tomar diante da crise do chavismo, a prioridade deveria ser a de impedir a consolidação de um drama similar na fronteira Norte.
Ou seja, o interesse brasileiro pelos desdobramentos na Venezuela não se esgota na questão da democracia. E é crucial entender que a eventual restauração das garantias democráticas não levará, necessariamente, a uma reversão do problema. Bolívia e Paraguai são democracias.
Essa mudança de perspectiva demanda reconhecer que a crise política venezuelana transborda não apenas sobre a Colômbia, mas também sobre o Brasil. O futuro da criminalidade brasileira tem conexão estrutural com a evolução da criminalidade no Caribe.
Ao conceber instrumentos de política externa para lidar com o vizinho, a prioridade brasileira deveria ser a de ajustar o foco, dando centralidade aos impactos internos da instabilidade em nosso entorno geopolítico.
*Matias Spektor é professor de relações internacionais na FGV.