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Mario Sergio Conti: O Brasil tem um problema. Tirar Jair Bolsonaro da presidência da República

A pandemia não poderá ser debelada se ele continuar à frente do Estado, e isso não é profecia, é constatação empírica

O Brasil tem um problema: tirar Bolsonaro do Planalto. Eis a proposição.

“Um problema” é licença poética. O país tem dúzias de encrencas. Que existem há séculos ou surgiram ontem. De abacaxis indescascáveis a questiúnculas. Exemplo de um probleminha: não se diz destituição, mas impeachment.

Embora a palavra inglesa não figure na Constituição, a casta política não vive sem ela, mesmo se dizendo constitucionalista. O trejeito idiomático, signo do complexo de vira-lata, não é um problema urgente.

O problemaço é destituir Bolsonaro, "impichá-lo". Porque ele virou um empecilho à solução de todo e qualquer problema nacional. A peste não poderá ser debelada se continuar à frente do Estado —e isso não é profecia, é constatação empírica.

Ele sempre desdenhou o corona. Disse que a China provocou a gripezinha. É contra máscaras e confinamento. Oferece cloroquina a avestruzes. Aglomera. Lotou o Ministério da Saúde de milicos. Despreza vacinas. Promoveu a mortandade em Manaus.

A perspectiva é que as coisas piorem. Novas variantes do vírus se alastram. Faltam insumos, oxigênio, UTIs. Fura-se a fila da vacinação. Um confinamento mais doloroso parece inevitável.

Há quem ache que o risco de perder apoio fará com que Bolsonaro saia do negacionismo. Dá-se como exemplo sua louca cavalgada atrás de vacinas nos últimos dias. De fato, não lhe falta cara de pau para fingir e enganar. Para dizer simultaneamente uma coisa e seu contrário. É seu método de governo.

Com a peste, tal método o fez errar na mosca —sempre. Admita-se que demita o ministro da Saúde, energúmeno que só lhe segue as ordens. Convidará um Drauzio Varella para o cargo? Óbvio que não. E essa é outra constatação empírica.

Dado seu prontuário, chamará um sabujo, um incompetente, um carreirista para o cargo. Foram esses os requisitos inegociáveis que usou na montagem do ministério. Não há nele ninguém que preste. São pessoas que, sem luz própria, medram na treva fétida do pântano.

Eis a segunda proposição: o centrão é o pântano.

Esquerda e direita são categorias surgidas na Revolução Francesa. Os conservadores sentavam-se à direita na Assembleia Constituinte e os revolucionários, à esquerda. A maioria dos deputados não era nem uma coisa nem outra. Pertenciam ao pântano, ou planície, como também se dizia.

O pântano oscilava entre direita e esquerda conforme a pressão popular. Mas seus traços definidores eram outros: a ausência de princípios, o oportunismo e, sobretudo, a venalidade. Igualzinho o centrão.

Com a diferença que o centrão não é de centro. É de direita sempre, doa a quem doer. Desde o fim da ditadura ele é maioria no Congresso. Foram do pântano Sarney, Collor, Temer e, como pinto no lixo, Bolsonaro.

Veio a pororoca de crises. A pandemia roncou, o desemprego explodiu, os filhos se emporcalharam e o auxílio emergencial foi para o beleléu. Bolsonaro voltou ao aconchego do velho pântano. Foi recebido de braços abertos, o que era esperado.

O que não se esperava é que a oposição não se opusesse. O PT primeiro aprovou o plagiador que Bolsonaro indicou para o Supremo. E agora, como o PSOL, disse que votará em Baleia Rossi para presidir a Câmara. Este garantiu em alto e bom som: nem pensar em impeachment.

As duas proposições levam a uma terceira: o problema Bolsonaro existe e persiste porque o centrão assim quer.

Sua destituição é uma quimera? Não. Tanto que setores da direita —Novo, MBL, Vem pra Rua— passaram a propugná-la. Ouviram tambores, perceberam que, como se diz nos filmes de Tarzan, “os nativos estão inquietos”.

A queda de Bolsonaro não será uma missa negra no Congresso, com beijinhos à tia Maricota nos cafundós da Paraíba. Será um árduo embate de forças.

O presidente conta com a força bruta propriamente dita: generais com e sem pijama, milícias e meliantes, polícias e porra-loucas. Aumentou-lhes o soldo e os armou até os dentes.

Do outro lado estará a força da política militante, a auto-organização popular e da sociedade civil. Nos locais de trabalho, nos bairros, nas escolas —em praça pública.

No meio do bangue-bangue estará o pântano. Ele não é imóvel. Dá para ouvir um rato sussurrando para um réptil: “Parece que esse negócio de impeachment está dando um dinheirão”.

Mas o presidente não deixará o Planalto como Collor ou Dilma. Terá de ser tirado. Sua queda estará mais para derrubada que para impeachment. Só sairá se houver revolta. Se continuar, continuará o bololô. Até que tente o golpe.

*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


Mario Sergio Conti: Leitura de 'A República das Milícias' leva à constatação de que dias piores virão

Obra do cientista político com formação de jornalista Bruno Paes Manso é um forte candidato a livro mais triste do ano

O clã Bolsonaro sempre exalta o direito dos cidadãos a ter e usar armas. Ignorante que só ela, a primeira família não usa o argumento óbvio: o direito do povo em mandar bala em quem ataca a sua soberania está inscrito na segunda emenda à Constituição americana.

Diz ela: "Sendo uma milícia bem regulamentada necessária à segurança de um Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas não deve ser violado".

Aprovada em 1791, a emenda é fruto de levantes libertários: a revolução inglesa do século anterior; a francesa, que se encontrava no auge; e a guerra americana contra a coroa inglesa pela independência, vencida poucos anos antes.

Nos três casos, a mobilização de tropas populares para enfrentar os exércitos da aristocracia foi vital para o triunfo do poder burguês, plebeu e, no caso americano, anticolonial. Assim nasceu o mundo moderno, armado e atirando para matar.

O discurso de Bolsonaro é outro. Na imunda reunião ministerial de abril, gravada por ordem sua, ele rebaixou a Presidência ao seu nível, o da sarjeta: "Um bosta de um prefeito faz uma bosta de um decreto, algema e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia para a rua".

O que quis dizer, na sua sintaxe selvagem, é que, armado, o povo acabaria na marra com o confinamento. Fechou sua exortação assim: "Quero dar um puta de um recado para esses bostas! Por que eu estou armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura". Cabe o clichê: estilo é o homem.

Ilustração de três homens atirando na bandeira do Brasil, atras deles, o fundo é vermelho. Da bandeira, escorre sangue
Bruna Barros

Na época, todos os comentaristas concordaram que o rosnado presidencial visava, sim, a imposição de uma ditadura —por meio do armamento de seus cupinchas, do núcleo duro da sua freguesia e de seu séquito de fanáticos. Mas havia algo mais no baixo calão do Cavalão.

Esse algo mais é o tema de Bruno Paes Manso em "A República das Milícias - Dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro" (Todavia, 302 págs.), um forte candidato a livro mais triste do ano. Ele esmiúça com sobriedade o processo de desagregação fluminense.

Bolsonaro e seus filhos, por exemplo, frequentam com assiduidade clubes de tiro. Pimpões, posam para fotos com fuzis e metralhadoras. Não são apenas infantiloides, perversos, maníacos por símbolos fálicos que simulam disparar armas à la Rambo.

"A República das Milícias" conta que muitos clubes de tiro são mocós para a compra e tráfico de armas de calibre pesado. O comércio de armamento é essencial para as milícias cariocas corromperem, ocuparem novos bairros, aterrorizarem; e assim enriquecerem seus membros e padrinhos —caso de Bolsonaro e caterva.

A segunda emenda usa "milícias bem regulamentadas" como sinônimo de batalhões populares de libertação. Não são essas as milícias do presidente. As dele são gangues que vendem proteção, gás, conexão com a TV paga e até casas. Além de roubar e matar, suas milícias exploram o povo.

Paes Manso é um cientista político com formação de jornalista. Ele recorre à primeira pessoa para relatar seus encontros com milicianos e a paisagem social na qual se movimentam. O que o espanta é a banalidade do mal. O crime virou norma; o Estado é bandido.

A condição de paulista circunspecto não o leva ao bairrismo —seu livro anterior, "A Guerra", com a socióloga Camila Nunes Dias, é um mergulho nos infernos do PCC. Mas o fato de ser estrangeiro ao Rio lhe garante distanciamento crítico de um sistema escabroso.

É dessa forma que "A República das Milícias" investiga os estertores de uma sociedade em desagregação. Fala de esquadrões da morte; de militares que migraram da tortura para o jogo do bicho; dohomicídio de Tim Lopes; da ocupação marqueteira da Cidade de Deus; do fracasso das UPPs; do assassinato de Marielle Franco; do espraiamento da força bruta.

A eleição de milicianos para o Planalto é o corolário de um estado de coisas. Nele se imbricam a política, a polícia, igrejas, as Forças Armadas, as rachadinhas, as Vivendas da Barra, a corrupção, a condescendência das elites.

O triunfo miliciano espelha uma sociedade que se desindustrializou, não oferece empregos e na qual a miséria grassa. E a ideologia dominante, nessa terra sem lei nem ordem, é a de cortes que desmantelam o Estado —que, justamente, deveria implementar a lei e a ordem.

Não há força social capaz de fazer frente à anomia que se instala. Por isso "A República das Milícias" é um livro triste. Ele não oferece soluções porque elas não parecem existir. Sua leitura leva a uma constatação amarga: dias piores virão.Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


Mario Sergio Conti: Esplendores e misérias das cortesãs e cortesãos do bolsonarismo à la Balzac

Entre as cretinices cloroquínicas do tempo do escritor estão as pseudociências como frenologia e da fisiognomia

Balzac não escapou das cretinices cloroquínicas de seu tempo, o século 19. Ao contrário. Foi um entusiasta da frenologia e da fisiognomia, pseudociências que atribuíam o caráter das pessoas à sua aparência física, a começar pela do crânio.

Num lance de gênio, contudo, também fez com que as roupas, a decoração e a arquitetura expressassem pessoas e costumes —e vice-versa. É por isso que ele diz da dona da pensão em “O Pai Goriot”: “A sua pessoa explica a pensão, assim como a pensão implica sua pessoa”.

A abrangência do recurso evitou que fosse um Lombroso das letras. Sua imaginação titânica não cabia nas próprias crendices: cada um dos 2.472 personagens de “A Comédia Humana” tem traços singulares. Juntos e misturados, e mediados pelo dinheiro, compõem o mural de uma época.

A seguir, verbetes à la Balzac dos lírios envenenados da vala bolsonarista.

Ilustração de uma pessoa apertando o botão de uma privada e liberando vários seres que saem delas. É possível reconhecer algumas pessoas (Regina Duarte, Damares Alves, Michelle Bolsonaro, Paulo Guedes) e animais (cachorro e jacaré)
Bruna Barros/Folhapress

Brasília
Sondai-a o quanto quiserdes e jamais conhecereis todos os desvãos da medonha fossa do Planalto Central. Por numerosos que sejam os exploradores do abismo, sempre haverá antros secretos, valhacoutos, mictórios, guaritas, casernas. O Mitômano está em casa.

Damares Alves
Seu rosto desalentado e gorducho, do qual brota um nariz em bico de papagaio, as mãozinhas rechonchudas, o corpo roliço como de uma ratazana de igreja, o busto amplo e oscilante estão em harmonia com o ar fétido que o ministério, enfadado, exala.

Ricardo Salles
Acha que o mundo todo tolera quem tem olho claro. Mas como os incêndios na Amazônia e no Pantanal brilham mais, foi marcado a ferro e fogo pelo que realmente é: arrogante, vaidoso, mesquinho, execrável.

Michelle Bolsonaro
Se as luzes de um baile projetassem reflexos rosados no semblante gasto; se uma carta de amor iluminasse suas faces ligeiramente cavas; se o convívio com gente graciosa lhe reanimasse os olhos fundos, seus dias seriam leves. Como não tem nada disso, e o estrupício a aborrece, retirou uns quilos do abdômen e botou botox rosto.

André Mendonça
Baixinho, franzino, com cabelos ralos e óculos redondos de aro de metal, lembra um funcionário da Gestapo dos filmes de guerra. (Essa não é de Balzac; é do Jô).

Sergio Moro
Nosso Rastignac: topetudo, provinciano, interesseiro, manipulador astuto, um baita arrivista de voz esganiçada. Para ele não há princípios, só circunstâncias; não há leis, mas acontecimentos. Teve na política entrada de leão (grrr!) e saída de cão (caim! caim!).

Braga Netto
Sempre alerta, qual um cavalo de parada ao ouvir o toque do clarim.

Janaina Paschoal
A Salomé do Tatuapé rodopiou a cabeleira ensebada e revirou os olhinhos até obter a cabeça de Lula numa bandeja de prata. Debulhando-se em lágrimas crocodilescas, disse a Dilma que o impeachment era para o bem dos seus netos. Cartesiana que só ela.

Eduardo Pazuello
Concentra todo o suor do corpanzil entre o nariz e o lábio superior, uma característica da casta burocrático-militar.

Dias Toffolli
Com mais gel no cabelo que neurônios no cérebro, traz no corpo as cicatrizes da covardia. Dobra de bom grado a espinha para generais, mas somatiza a subserviência em vagos achaques, lumbagos, abcessos e num engorda-emagrece incessante.

Paulo Guedes
Tem alma de jogador da Bolsa e o pior corte de cabelo da República. Vai de chinelo e meia ao trabalho. Disse ter lido Keynes três vezes e ficou evidente que não entendeu nada. Cultiva
a arrogância dos sem-noção: não conversa, ministra aulas.

Augusto Heleno
Estava à altura do general Sylvio Frota, o pintor de rodapé de quem foi ajudante. Galgou degraus e dragonas servindo gente de alto coturno e baixa catadura.

Regina Duarte
Chegou à pocilga planaltina toda coquete, com olhos vidrados, sorriso automático, o nervosismo de uma alcoviteira que se agasta para se fazer pagar mais caro. Deu-se mal. De volta a São Paulo, caiu na rua e quebrou os dentes.

Carluxo
Hostil e turbulento como Vautrin, de quem um policial de “O Pai Goriot” diz: “Sabem de um segredo? Ele não gosta das mulheres”.

Eduardo Bolsonaro
Fez carreira na Polícia Federal e não passou de escrivão. Deputado, continua um escrivão com cérebro de escrivão de polícia.

Millôr Fernandes
Em 1970, a Redação de O Pasquim foi presa e ele escreveu uma carta a Ivan Lessa, em Londres. Disse dos governantes de então: “A vida não vai acabar já e esses putos não vão durar sempre, muito embora já estejam durando demais pro meu gosto”.Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


Mario Sérgio Conti: Zumbidos da revolução e do nacionalismo de Cuba em 'Wasp Network'

O filme se passa durante a implosão da União Soviética, que deixou de subvencionar Cuba

Ao comentar “Wasp Network: Rede de Espiões”, transmitido pela Netflix, Anthony Lane faz na New Yorker uma pergunta que chamou de “suprema”: “Em qual universo uma criatura sensível abandonaria voluntariamente Penélope Cruz?”. Capciosa, a pergunta procede.

A atriz interpreta a engenheira Olga, filha de operários e militante do Partido Comunista de Cuba. Era casada e tinha uma filha com René, outro comunista de carteirinha: comandara uma coluna de tanques na guerra civil angolana e recebera a medalha de combatente internacionalista.

Num dia de sol outonal de 1990, sem dizer palavra a Olga, René entra num avião cubano e o pilota até a Flórida. Lá, vitupera Cuba e diz que lutará com outros exilados contra Fidel Castro. Olga fica malvista por ter casado com um “gusano”, um verme que traiu a pátria.

René é interpretado por Edgar Ramírez, astro de “Carlos”, o melhor filme do diretor Olivier Assayas. Com outros dissidentes, come o pão que Tio Sam amassou. É jardineiro, vive mal, morre de saudades de Olga-Penélope Cruz.

René se ligou aos anticastristas e passou a pilotar aviões que ajudavam quem fugia de barco da ilha. Logo foi chamado para missões lucrativas: trazer cocaína da América Central. Contou o que se passava a um agente do FBI —que agradeceu e o convidou a ser informante do órgão.

Filmado em Havana e na Flórida, “Wasp Network” tem um visual de alvoradas cálidas e floridas. Os entretons áureos contrastam com a fauna acinzentada da diáspora cubana em Miami, que rasteja
num brejo de traficantes de drogas e armas, políticos e policiais, terroristas e espiões.

Há até heróis nesse charco. O filme se passa durante a implosão da União Soviética, que deixou de subvencionar Cuba. Faltou tudo na ilha, de luz a gasolina, remédios e empregos. Para atrair moedas fortes, o Partido Comunista investiu no turismo internacional.

Como a iniciativa deu certo, grupos anticastristas organizaram da Flórida a explosão de bombas em hotéis e restaurantes de Havana. Invadiam o espaço aéreo cubano para jogar sobre a cidade panfletos e até medalhinhas de Nossa Senhora do Cobre, a padroeira do país.

Cuba enviou à Casa Branca vários dossiês sobre os atentados terroristas. Um deles foi levado pelo escritor Gabriel García Márquez, amigo comum de Bill Clinton e Fidel Castro. Em vão: as bombas continuaram. A conivência americana era evidente.

A resposta dos comunistas está no título de “Wasp Network”, a Rede Vespa. Passando-se por desertores, espiões cubanos foram enviados à Flórida para se infiltrar nas fileiras anticastristas e desbaratar atentados. René é uma vespa, um dos heróis do filme.

Assayas conta essa história de maneira conturbada, realçando a aventura em detrimento da psicologia dos personagens e da política cubano-americana. Numa entrevista, o diretor justificou a confusão do filme dizendo que o livro no qual se baseou tem toneladas de informações.

Trata-se de “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, de Fernando Morais. O autor de “Chatô” entrevistou durante três anos os espiões e suas famílias, agentes do FBI, líderes anticastristas e gente do governo de Cuba e dos Estados Unidos. Seu livro é uma reportagem de primeira linha.

A peste ilhou Morais em Ilhabela. Ele gostou do filme, embora ache que poderia melhorar se fosse mais longo e político. E respondeu na lata à pergunta que não quer calar: por que alguém troca Penélope Cruz para viver entre inimigos, se arriscando a morrer ou mofar na prisão?

“Por patriotismo”, disse. Patriotismo não é só uma palavra fora de moda; é uma história. René e as vespas eram veteranos da guerra que levou 400 mil cubanos a Angola —4% da população da ilha. Enfrentaram por 15 anos tropas armadas pelos Estados Unidos.

Olga justifica com três palavras, perdidas na torrente de atos e palavras de “Wasp Network”, a presença dos cubanos em Luanda e Miami: estiveram ali “por nossa revolução”.

O zumbido das conquistas da revolução, sobretudo o igualitarismo na saúde, na moradia e na educação, explicaria o patriotismo das vespas. Implicitamente, se admite que a ausência de liberdade e democracia contaria menos.

Onde haveria patriotismo semelhante? Fernando Morais pensou um pouco e respondeu: Israel. Produto de uma mobilização social e bélica, de uma nação minúscula no meio de inimigos, o nacionalismo israelense teria algo do cubano.

Com a diferença que os Estados Unidos sustentam Israel até hoje, e a União Soviética já era faz tempo.

*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


Mario Sergio Conti: O inferno são os outros, e os outros fazem carreatas em defesa da peste

Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, 'Entre Quatro Paredes'

A peste pegou em cheio a linguagem pública e a particular. A pública porque ela é manipulada pelo poder para perverter a realidade. A particular porque, apinhados e à míngua entre quatro paredes, os pobres foram silenciados. A verborreia dos dominantes mantém a mudez dos dominados.

Ilustração de carros verdes enfileirados dando a volta em um quadrado amarelo. O quadrado parece um cômodo vazio com uma pessoa deitada no chão. Há um círculo azul na imagem e algumas bandeiras do Brasil em alguns carros.

A perturbação linguística desmoraliza clichês da idade clássica. Caso do Rubicão, o rio que generais eram proibidos de cruzar para não se acercarem com tropas do coração do império, Roma. Júlio César o cruzou e disse: “A sorte está lançada”. Deu-se bem e virou ditador.

Bolsolígula disse que a peste era gripezinha e o confinamento, asneira. Propagou perdigotos. Pregou a ditadura nas barbas do Supremo e do Congresso, exortando a tropa a atropelá-los. Enxotou o ministro da Saúde e depois o da Justiça, cortesãos sebosos que tantos serviços lhe prestaram.

Toda vez que Bolsonero atravessou o Rubicão, ouviu-se a algaravia da indignação oficialesca, acompanhada por semblantes graves. Mas sobressaiu na cacofonia o vagido ameno, o bacharelês castiço, o dó de peito impotente dos potentados: “Lamentável sob todos os aspectos etc.”.

Já não há Rubicões: eis a novidade além-linguagem. Ele foi cruzado tantas vezes que quase dispensa uma boa quartelada. Na republiqueta do Messias, milicos mandam e paisanos obedecem. Antes, contudo, as vestais de toga encaram os fardados e, altivas, questionam: “Quer um café, general?”.

A última azeitona verde-oliva na empada do Planalto é o interventor na Saúde. Ele logo avisou: “Vou como instituição, não como Eduardo Pazuello”. Ao funéreo ministro nominal, o chofer do rabecão, cabe olhar o chefe nos olhos e indagar: “Que tal uma fatia de bolo, general?”.

Militares na política têm uma vantagem crucial sobre políticos civis. Como não querem votos, e sim cargos e salários, não posam de Miss Simpatia. Dirigem suas piscadelas coquetes apenas ao capitãozinho que tem a caneta.

Mas a má fé dos de quepe é idêntica à dos sem-quepe.

Mal chegados ao Planalto, os generais já prometeram um Plano Marshall. Há 81 anos, o plano original respondeu à pressão dos povos europeus que venceram o nazismo.

Em 1945, houve guerras civis na Grécia e nos Balcãs; insurreições na França e na Itália; expropriações no Leste.

O Plano Marshall respondeu também ao interesse americano em reconstruir a Europa. Os Estados Unidos investiram ali o equivalente a US$ 100 bilhões. Pois bem. Existe pressão popular hoje? Há interesse em pôr capital produtivo no Brasil? Alguém vê US$ 100 bilhões à disposição?

A quimera militar, pois, é como a mitológica: tem cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. É uma figura especiosa da retórica, uma mentira troncha para enganar os trouxas. Como diz o vulgo, é uma fake news —um meticuloso amálgama do simbólico com o real.

Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, “Entre Quatro Paredes”. Ela se passa dentro de um quarto, onde se digladiam um escritor heroico que se acovarda, uma patroa infanticida e uma funcionária ressentida.

Sem referências rombudas, por meio de uma linguagem estupenda, se percebe que, fora do quarto, rondam os lobos acinzentados, os nazistas, os colaboracionistas da ocupação. No fim, se revela que, sem demônios de tridente, enxofre e labaredas dramáticas, o quarto é na verdade o inferno.

As três personagens estão condenadas a se atormentarem por toda a eternidade. A última fala da peça marcou época: “O inferno são os outros”. Ao contrário do clichê que se tornou, ela mostra o primado da vida social, a interdependência entre o ser e os outros, e não sua solidão infinita.

Ela pode ser completada por duas outras frases de Sartre: “a existência precede a essência” e “o marxismo é a filosofia insuperável de nosso tempo”. Enquanto a sociedade estiver dividida em classes, a liberdade será motivo de engajamento, um devir. O inferno são os outros.

Alguns outros. Os lobos promovem carreatas pela peste na avenida Paulista e Brasil afora. Seguem ordens do presidente e de seu clã, dos seus generais, empresários e milicianos. A linguagem deles não é a da lei nem a da urbanidade. É a da mentira, da força, da agressão. São fascistas.

Eles devem ser enfrentados como tais. Com firmeza, união e audácia, e não com nhenhenhém. A existência da peste, vivida entre quatro paredes, ensina o que está na essência de Bolsonaro e sua gangue: a vontade de destruir e dominar.

*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


Mario Sérgio Conti: Governo Bolsonaro é ineficaz e se transformou num inimigo

Política não é fazer chicana em palácios, é rigidez e ousadia contra o mal

Bolsonaro é um bobo alegre e perigoso. Não liga para a lógica e a coerência. Despreza os fatos, o real, a verdade. Não tem compromisso com os brasileiros. Como foi eleito, se acha no direito de arrotar absurdos. Mas não se é presidente impunemente.

Em 15 de janeiro de 1793, um advogado de 25 anos, autor de um poema épico-libertino que açoitava a corte de Versalhes, associou o exercício do poder não apenas à responsabilidade —mas ao dolo, à culpa e à condenação. Chamava-se Louis Antoine Léon de Saint-Just.

Na notável peça oratória com a qual acusou Luis 16 de ser inimigo do povo, ele tonitruou: “Não se pode reinar inocentemente: a loucura é demasiado evidente”.

O jovem de traços finos não deu chance ao meio-termo: “Esse homem deve reinar ou morrer”. Foram 361 os deputados da Convenção que concordaram com Saint-Just. A cabeça do rei rolou uma semana depois.

Como os tempos são outros, a invectiva do Arcanjo da Revolução deve ser suavizada: a loucura de Bolsonaro é demasiado evidente, esse homem deve governar ou ser derrubado. Não se pode permitir que sabote o combate à pandemia, que aumente a dor e a desordem.

Não se trata só da sua estupidez. Seu governo ineficaz transformou-se num inimigo. Veja-se o ministro da Saúde. Ao invés de dizer se o confinamento é necessário ou não, fez média. Mas empostou a voz, deu-se ares de sumidade e fugiu das perguntas de repórteres. Revelou-se um politiqueiro pomposo e servil.

No aspecto prático, foi pior. Os equipamentos que prometeu não chegaram aos hospitais: alegou que não recebera os endereços. Não apresenta números que possam orientar o combate à propagação do vírus. É prolixo e opaco.

No Ministério da Economia, o tagarela de todas as tevês emudeceu. Ele nem sequer alinhavou meia dúzia de medidas imprescindíveis. Não tem ideia de como fará chegar algum dinheiro aos desafortunados.

Numa situação de emergência, seus dogmas ideológicos o paralisam.

Mandetta e Guedes são os bumbos da charanga regida por um ignorante que crê piamente em remédios não testados. Que acha melhor que “uns velhinhos” morram a ele mesmo se aplicar e trabalhar. Que opõe questões sanitárias à economia sem saber o que são uma e outra.

O resultado é o que se vê. Ausência de testes para detectar o vírus. Falta de UTIs e ventiladores pulmonares. Governadores a favor do confinamento e outros contra. Comerciantes sem saber se abrem ou fecham suas lojas. Panelaços contra o presidente e carreatas a seu favor.

Há mais. Um ministro senil que rompe a quarentena. Pastores argentários que promovem cultos de massa nos quais extorquem o dízimo.

Traficantes e milícias decretando toque de recolher em favelas. Saques aqui e ali. Boatos, baderna, vale-tudo.

A anarquia aumentará à medida que a Covid-19 congestione hospitais. O pico da pandemia tende a pegar o país pela proa, abatendo-o sabe-se lá por quanto tempo. É preciso fazer algo —dizem todos. Mas o quê?
Saint-Just, que, além de resoluto era realista, talvez tenha algo a nos dizer. “Não há grandes homens, só há grandes conflitos”, escreveu.

E ainda: “A força das coisas nos conduziu talvez a resultados nos quais não havíamos pensado”. E arrematou: “Ousem!”.

Não há o que esperar de Bolsonaro e sua tropa de néscios, da horda de odiosos que ele atiça. Mas é preciso lhes opor os argumentos da ciência e da solidariedade. Contra a força das coisas, a força da razão virtuosa. Política não é chicana, é rigidez contra o mal.

Ainda que hoje a política esteja reduzida à retórica. Ao contrário de Saint-Just, vivemos dias de anomia. Ele dizia não haver barulho mais belo do que o de um povo que discute e delibera o seu destino. E nós aqui, encerrados em bolhas virtuais, falando a língua das panelas. Ousar como?

Estamos em boa medida na dependência daqueles que detêm poder factual e prático. Ou seja, da elite —seja ela econômica, parlamentar, científica, institucional, midiática ou jurídica.

Dado o prontuário histórico dos mandachuvas do Brasil, dá vontade de chorar. Tanto que pululam os que querem lucrar com a crise; os demagogos impenitentes; os atravessadores desabusados; os pilantras sem pejo. Mas a força das coisas não é unívoca nem unilateral.

Há gente séria e empenhada despontando. Cientistas que pesquisam e buscam saídas. Médicas e enfermeiras que vivem dias macabros. Políticos tradicionais que se insurgem contra os palermas do Planalto. Que eles ousem tirar o problema Bolsonaro do caminho.

Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


Mario Sergio Conti: É abusivo Cristovam Buarque dizer que esquerda elegeu Bolsonaro

No livro 'Por Que Falhamos - O Brasil de 1992 a 2018', senador acerta contas com a política democrata e progressista

Cristovam Buarque é um homem honrado. Ao ver uma foto de Lula com crianças em Toritama, Pernambuco, ele foi até lá. Quis conhecer aquelas meninas e meninos descalços e sem camisa, apartados do presidente por uma cerca de arame farpado. Um ano antes, em 2004, Lula o demitira, pelo telefone, do Ministério da Educação.

Visitou as crianças e falou com pais e professoras. Esteve na escola onde fazia um calor dos diabos. Viu o chão de terra batida, as carteiras desconfortáveis, a poeira, a pedagogia ineficaz. Escreveu uma carta a Lula contando o que vira.

Disse ao presidente que ele “não era culpado da tragédia que observei, mas seria se, uma década depois, a situação não melhorasse”. Cristovam, que assumira sua cadeira no Senado, deu-lhe também ideias para melhorar a educação em Toritama e em todo o Brasil.

Voltou lá dez anos depois, em 2015. Nenhuma criança que conhecera terminou a escola. Ticiana teve um filho aos 16 anos. Cambiteiro, vigilante, foi assassinado aos 19. Rubinho, que não aprendeu a ler, virou pai aos 17. Diego foi esfaqueado, fugiu do hospital, sumiu. A escola seguia péssima.

A narrativa das visitas a crianças e jovens pobres de dar dó rende as melhores páginas de “Por Que Falhamos - O Brasil de 1992 a 2018” (Tema Editorial, 89 págs.), o novo livro de Cristovam Buarque.

Elas servem para lembrar o objetivo clássico da política: harmonizar a vida em sociedade. E, a partir da Revolução Francesa: agir para que os cidadãos sejam livres, iguais e fraternos.

Como a política nacional não gerou nada disso —e sim Toritama—, os governos de Itamar a Dilma desaguaram num bonapartismo bestial que esfola os pobres para enriquecer os ricos. Cristovam faz o balanço de um fracasso: o dos políticos “democratas e progressistas”, entre os quais se inclui.

O título do livro em inglês será outro, “Como a Esquerda Elegeu a Direita no Brasil”. Ocorre que Cristovam votou em Aécio (de direita) para presidente, pela destituição de Dilma (de centro-esquerda) e apoiou Temer (de direita). Esquerda quem, cara-pálida?

Mas fiquemos no livro em português: o PSDB e o PT falharam na construção de uma república moderna. Analisar a debacle é imperativo porque a ausência de autocrítica foi um elemento constitutivo dela.

Daí a dizer que eles “elegeram” Bolsonaro é abusivo. É não levar em conta a extrema direita. É esconder que o empresariado e seus prepostos a apoiaram na eleição e hoje a sustentam. Exagero? Eis o que dizem dois líderes da classe sobre o governo.

Abílio Diniz: “Minha avaliação é altamente positiva” (Folha, 12 de janeiro). Jorge Paulo Lemann: “O rumo do Paulo Guedes está correto. Poderia ter menos agito na parte política” (O Globo, 16 de dezembro.). Para eles, o que importa é ganhar dinheiro. O seu. Com ou sem “agito”.

“Por Que Falhamos” se recusa a considerar essas forças político-econômicas porque não tem método. Sem hierarquia, cada um dos 24 capítulos do livro enuncia um erro.

O que liga os erros entre si são as idiossincrasias do autor.

Elas vão da inconsequência à má-fé. Ele reclama duas vezes ter sido o verdadeiro criador do Bolsa Família, ao qual teria batizado de Bolsa Escola. Ninguém nunca defendeu isso, só Cristovam.

O título de um capítulo é “Adotamos o culto à personalidade”. Ora, o termo designa uma política específica do stalinismo. Não houve nada de parecido aqui. Se a intenção foi aproximar Lula de Stálin, o fez de maneira insidiosa, sem sequer citar o nome de um e de outro.

Dedicado ao período entre 1992 e 2018, o livro desdenha o que se passou nesses anos, a própria história.

Não se trata de prescindir da ordem cronológica. Mas de embaralhar os fatos, confundindo os definidores com os acessórios, para se concluir o que se deseja.

Fato definidor foi a emenda de Fernando Henrique que permitiu a sua reeleição. O personalismo em benefício próprio do príncipe dos sociólogos, digna de caudilhos bigodudos e de sombreiro, esculhambou a própria noção de república.

Fato definidor foi o planeta. Não basta dar a barretada de praxe à venda de matérias-primas brasileiras à China. Ou de repetir “sustentável” feito papagaio. Mas de investigar se o Brasil pode de fato ser autossustentável.

Fatos definidores foram os protestos de 2013 e a reação do PT a eles. A primeira coisa que Lula e Dilma fizeram foi procurar o marqueteiro João Santana, um corrupto confesso.

Cristovam não diz uma palavra sobre os três fatos. Não basta ser um homem honrado para escrever um livro útil.


Mário Sérgio Conti: Descida na decadência

Tagarela e entorpecido, o Brasil se dedica à produção contínua de ruínas

Foi João Carlos Saad quem melhor expressou o sentimento pesado, misto de iniquidade e torpor, provocado pelas catástrofes deste início do ano. Na segunda-feira, o presidente do Grupo Bandeirantes disse: "Quando terminarmos de investigar este caso, vamos encontrar um fio condutor entre essas tragédias".

Saad se referia à ruptura da barragem da Vale, ao incêndio no alojamento do Flamengo e à morte, horas antes, na queda de um helicóptero, do jornalista Ricardo Boechat.

Melancólica, a assertiva dispensou os consolos do acaso, que produz crendices do tipo "o Brasil precisa se benzer!". Para Saad, as mortes em Minas, no Rio de Janeiro e em São Paulo, os estados mais ricos da federação, foram produto "de coisas inadequadas que vêm acontecendo".

A inadequação não começou ontem nem veio do além. O Brasil real está em descompasso com autoimagens idílicas, difundidas durante décadas. Temos empresas de ponta, dizia-se, tão admiráveis quanto as melhores do mundo: a livre iniciativa forjará o progresso e o futuro.

Ei-las, as ilhas de excelência. A Petrobras desviou porrilhões de dólares. Viva o pré-sal. A Odebrecht comprou políticos urbi et orbi. Viva a engenharia nacional. A JBS privatizou a política. Viva o agronegócio. A Vale intoxicou o rio Doce. Viva a preservação do meio ambiente.

Há mais. Firmas lideradas por seres iluminados, como a Abril, a Cultura e a Saraiva, empulharam funcionários e fornecedores. Seus donos deram golpes na praça, mas não se diz mais "falência fraudulenta" —o chique é "recuperação judicial". Resolve-se tudo com tagarelice e tribunais.

Mais, ainda. O futebol, circo eletrônico que compensa o pouco pão, e mofo, é arena de cartolas como os do Flamengo, cujo domador-mor se faz chamar de CEO, Chief Executive Officer. Escolas de samba e igrejas, hoje empreendimentos de arte & religião, são ingênuos, pios?

Resta o consolo dúbio que corrupa, desleixo e má-fé não são apanágio verde-amarelo. Samurai da Renault-Mitsubishi-Nissan, Carlos Ghosn está preso há três meses. Google e Facebook, Big Brothers do mercado online, são alvo de protestos e processos. A Fifa é a CBF globalizada.

Com a queda da taxa de lucro, e as sequelas sociais de uma crise que vai e volta há uma década, tornou-se regra a concorrência desonesta e selvagem. Desde há 30 anos, quando caiu o Muro, a economia não tem alternativa à vista ou em potencial. Contudo a história não chegou ao fim.

Aumentaram as calamidades ambientais, os surtos climáticos extremos, a imundície urbana e industrial, a esterilização da natureza e o aquecimento planetário. Mas cresceu a consciência de que a Terra se esgota de modo convulsivo —a humanidade pode provocar o apocalipse.

Incêndios e inundações, porém, não originaram uma utopia. Como disse o crítico Fredric Jameson: é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. Sem expetativas, não há esperança. Como a experiência histórica coletiva conta pouco, somos condenados ao presente.

Um presente de "coisas inadequadas", de decadência, de produção não do futuro, mas de ruínas. Não que o passado fosse bom —longe disso— ou que o presente lhe seja superior. No sentido etimológico, a decadência se explica pela raiz da palavra latina que lhe deu origem: "cadere", cair.

No sentido jurídico, decadência significa perda de direitos. Se o sujeito é levado pela inércia, pela repetição automática do estado em que se encontra, seja ele parado ou em movimento, seus direitos prescrevem. A inércia comanda nossa queda livre no presente vazio.

Acelerando sem parar num túnel vertical infindável, os brasileiros são despidos de seus direitos —no vento vão retalhos velhos. Seus líderes lhes garantem que, se continuarem a cair, se trabalharem por anos e anos sem descanso, se estatelarão de felicidade no fundo do poço.

No sentido estético, estudado por Nietzsche e Lukács, decadência quer dizer desintegração do sentido e atomização da sociedade. Ou seja, a incompreensão provocada pela perda do sentido comunitário —em favor de um individualismo impiedoso, de uma solidão sem misericórdia.

No sentido teológico, a decadência é atributo de um dos sete pecados capitais do catolicismo, a acídia. Arma do Anticristo, a acídia corrói a vontade, gera indolência, indiferença, impotência e, uma vez mais, inércia.

O Anticristo só pode ser vencido pelo Messias. Ele é o único capaz de pôr fim a séculos de letargia, à estagnação. Mas não há mais redentores.

*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


Mario Sergio Conti: O Haiti é aqui

As marcas da intervenção militar brasileira para apoiar um governo golpista

O governo Bolsonaro adquire feições militares a cada dia que passa. A última contagem, feita pela Folha, detectou 45 oficiais no primeiro e segundo escalões. São sete ministros, o porta-voz, diretores, gerentes, montes de assessores, chefes na Petrobras, nos Correios e na Funai.

A blitzkrieg deu um chega para lá nos evangélicos fanáticos, nos falcões neoliberais, nos trumpeteiros, nos udenistas de capa preta, no baixo clero e na bruta prole presidencial —a caserna virou a alma do governo. Tal armação não é legado da ditadura.

O PT reinventou os militares. Em que pese aos salamaleques de Sarney, Collor e FHC, eles estavam no desvio desde 1985. Não foram incriminados pelas atrocidades da ditadura, mas mofavam em casernas. O PT os tirou de lá e lhes conferiu uma missão nobre, intervir no Haiti.

Foi a mais longa operação militar da nossa história: 13 anos. Foi a que envolveu o maior contingente humano: 37 mil homens, contra 25 mil na Força Expedicionária na Itália. Foi a única missão na qual Brasil teve autorização para empregar força física.

A ingerência imposta aos haitianos foi sobretudo aquilo que Lula disfarçou: atentado à soberania de uma nação pobre; apoio a um governo fantoche; defesa dos privilégios de uma elite rapace.

A intromissão está sintetizada em “The Big Truck that Went By” (St. Martin’s Press, 320 págs.), de Jonathan Katz. Contudo, o tema do livro é outro. Partindo do terremoto de 2010, no qual 250 mil haitianos morreram, ele disseca a corrupção de grandes empresas e ONGs filantrópicas.

A conclusão de Katz, o único jornalista estrangeiro em Porto Príncipe no dia do sismo, está no subtítulo: “Como o mundo quis salvar o Haiti e provocou um desastre”. Amoldado, o subtítulo caberia à ação brasileira: “O Exército brasileiro foi salvar o Haiti, mas salvou-se a si mesmo”.

Jean-Bertrand Aristide, um ex-padre da teologia da libertação, foi o primeiro presidente eleito do Haiti. Derrubado por militares, voltou ao poder e tomou uma medida extremada para evitar futuros golpes: acabou com as Forças Armadas. Não deu certo.

Grupos paramilitares, gangues e a elite local o afrontaram. Mercenários americanos sequestraram Aristides e o despacharam para o exílio. Milhares dos seus adeptos foram assassinados.

Sob a orientação dos Estados Unidos, a ONU articulou a criação de uma força internacional e a encarregou de policiar o pobre Haiti. Foi esse triste papel, o de caudatário de um golpe, que coube ao Brasil.

Por que Lula topou? Porque embarcara na mística do país unido em torno de si, o líder popular pró-mercado. Ao Brasil apaziguador caberia um assento no Conselho de Segurança da ONU.

Ele também quis dar serventia aos milicos. A utilidade começaria em Cité Soleil e acabaria na Rocinha. O poder armado seria usado contra pardos, pobres e pretos lá fora, para depois aplicá-lo em favelas.

Por fim, a missão no Haiti obteve o apoio de duas bêtes noires do bolsonarismo, além do PT —a ONU, organização que o capitão tachou de “comunista”, e a Cuba de Fidel Castro.

A missão mobilizou a elite do Exército. Oficiais sêniores saíram de quartéis mecanizados, escolas de alto comando e academias militares. Reequipadas com badulaques de primeira, as tropas receberam salários em dobro.

“A experiência foi fundamental para a atual geração de oficiais do Exército brasileiro”, disse o primeiro comandante da missão de paz, general Augusto Heleno Pereira.

Bolsonaro o tornou ministro —e recrutou para o governo outros quatro comandantes da missão haitiana.
“A América Latina tem menos guerras que a Suíça e mais generais que a Prússia”, disse certa vez Fidel Castro. Acrescente-se que a experiência internacional de militares muitas vezes prefigura o uso da força internamente.

No Império Romano, milicos vitoriosos no exterior voltavam para casa e viravam ditadores —vide Júlio César. Na França revolucionária, um general corso liderou campanhas na Itália e no Egito antes de se sagrar imperador.

Nos anos 1930, o general Franco se amotinou no Marrocos e liderou a guerra civil contra a República proclamada em Madri. Nesses três casos, e no Haiti, militares disciplinaram povos distantes e depois se voltaram contra quem os deu poder.

O anjo da história continua a contemplar as ruínas do mundo se acumularem a seus pés. Resta ver, então, como os egressos da missão haitiana, que formam a espinha dorsal do governo Bolsonaro, reagirão aos atos do capitão que nunca saiu de casa.

Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


Mario Sergio Conti: Cavalgaduras à caça de Marx

Um tropel ignaro acossa o filósofo, que volta à vida ao analisar 'Fausto'

A majestade do "Fausto", de Goethe, obstrui a fruição do esplêndido poema dramático alemão. Acrescente-se à fama fáustica um século e tanto de teses emboloradas, de empoladas notas de pé de página. Elas mais envelhecem que dão viço ao doutor que vendeu a alma a Mefistófeles.

Esse argumento foi defendido por Brecht, em 1954, num estudo ao qual deu o título certeiro de "A Intimidação Através do Classicismo".

Algo assim ocorre hoje no Brasil. Aqui, um bando de brutamontes macambúzios só ejacula ao maltratar Marx, do qual não leu uma parca página.

Mas até o capitão sabe que não dá para associar o PT ao pensamento radical. Desde o berço o partido prescindiu do marxismo, hostilizando-o com zelo pelego. Seu norte foi a reforma —nhô sim de chapéu na mão e cabeça baixa.

Inspirador do socialismo, Marx saiu de moda no mundo todo. Está ausente das cogitações das castas dirigentes de Pequim, Pyongyang e Havana —para não falar das paródias bolivariana e sandinista. Por que então manter Marx na condição de espectro ameaçador? "Buuuuu", ainda?

Como o status quo quer esmerar a espoliação, Marx serve para satanizar a justiça e a igualdade. Serve para desqualificar a razão radical. A "manu militari" é hostil a raciocínios. Viceja no mangue das teorias conspiratórias. Mito é palavra que lhe cabe como luva.

É escutar o capitão dois minutos para perceber seu desprezo pela argumentação. Seus idólatras terão de incrementar a exploração por meio da força, e não de ideias bem concatenadas. Daí sua cruzada contra Marx, que Brecht batizaria de "A Intimidação Através da Ignorância".

A intimidação, porém, implica atentar contra a ciência, a filosofia, a arte, a cultura e a própria noção de estudo. A cultura, no seu sentido clássico, está sendo dinamitada dia e noite pelos escribas e pornógrafos da bolsonaríada.

As figuras de linguagem preferidas pelos ideólogos da baixaria são a hipérbole, o eufemismo e o paradoxo.

Elas são encaradas como petardos retóricos na guerra para excomungar os discordantes. O objetivo é ofendê-los e expulsá-los do debate de alternativas. Só a fé obtusa salva.

Bem entendido: a fé do capitão e de seus cortesãos em si mesmos. O marxismo contra o qual deblateram ficou incapaz de galvanizar os trabalhadores de todo o mundo. Ao xingá-lo, os estafetas da nova ordem dizem na verdade que não se deve mudar o mundo. É preciso se submeter.

Marx foi um grande pensador e escritor. Assim ele é reconhecido mundo afora. Mesmo distante da subversão direta, tem muito a dizer às pessoas de aqui e agora. Denegri-lo tem tanto sentido quanto ofender Spinoza. Estudá-lo, em contrapartida, amplia a imaginação e o mundo.

Nos "Manuscritos Econômico-Filosóficos", que escreveu em 1844, mas que foram publicados no século seguinte, Marx analisa versos do "Fausto", de Goethe. Neles, Mefistófeles diz que o homem com dinheiro para comprar seis cavalos adquire a força deles: passa a ter 24 pernas.

Para o demônio, a individualidade vale menos que a riqueza. O sujeito é horrível, mas a força repelente da feiura não impede que atraia as mulheres mais belas —caso tenha dinheiro em abundância. Ele pode ser coxo, mas a riqueza lhe dá 24 patas. Ela anula as incapacidades individuais.

Marx, que tinha 26 anos, escreveu que o dinheiro isenta o milionário do trabalho de ser desonesto. E conclui: o dinheiro é o vínculo do homem com a sociedade e a natureza. Vínculo de todos os vínculos, ele tanto pode unir como apartar as pessoas.

Noutro manuscrito, "Grundrisse", de 1857, Marx dá um passo adiante na conceituação da riqueza —o ter dinheiro à farta. Observa que, na Antiguidade, a riqueza nunca foi o objetivo da produção. O seu objetivo era a melhoria dos cidadãos e da cidade.

Só no mundo moderno a riqueza se tornou um objetivo em si —mas da classe proprietária. Mesmo assim, Marx defende a riqueza da era moderna. Ela significa "a universalidade das necessidades, capacidades, fruições e forças produtivas dos indivíduos".

Ou seja: "quando despojada da sua estreita forma burguesa" —a propriedade privada—, a riqueza é o alfa e o ômega da sociedade, o produto do esforço coletivo racional, que condensa o trabalho criativo de gerações.

Abdicar desse objetivo coletivo racional, para delegá-lo às forças irracionais da economia e da política, é um contrassenso regressivo. A abdicação, contudo, é moeda corrente nas sociedades que produzem aquém do necessário à sua dignidade e iluminação. É o que o jovem Marx ensina.

*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


Mario Sergio Conti: Matou Stálin e foi ao cinema

Uma sátira política ultrajante saída dos quadrinhos e da história para as telas do presente

"A Morte de Stalin" é insólito. Baseado numa história em quadrinhos francesa e dirigido por um escocês, o filme narra um putsch na pardacenta União Soviética de 1953. Mas, vá lá: vivemos numa cultura visual, fazem-se milhares de filmes tolos todo ano, há público à beça para birutices.

Ainda assim, "A Morte de Stalin" é subversivo. Está fora da ordem porque é um primor de sarcasmo. Por isso, foi banido da Rússia de Putin. O cinema de Moscou que o exibiu uns poucos dias, alegando não ter recebido a ordem de censura, foi invadido pela polícia. Suas sessões lotavam.

O filme foi feito por Armando Iannucci, que dirigiu o seriado americano “Veep”, uma comédia com uma vice-presidente mentecapta, vigaristas da política e marqueteiros fuinhas. No filme, a Casa Branca de agora dá lugar ao Kremlin de 65 anos atrás —o que aumenta muito a complicação de fazer rir.

Isso porque o prazo de validade da sátira política é curto. O Vampirão na escola de samba é divertido hoje. Mas tripudiar do Chupa-Cabras daqui a 65 anos? Quem se lembra da cara de Café Filho, o vice-presidente golpista e traidor de Vargas?

O fato de Stálin ser ultraconhecido implica outras dificuldades. Ele não foi um pascácio cheio de dedos, mas o protagonista de uma luta planetária que se estendeu por mais de 70 anos. Matou milhões de inocentes e inspirou ódio, pavor, adoração. Não é tranquilo debochar dele.

Chaplin fez algo assim em "O Grande Ditador", de 1942, a comédia na qual achincalhou Hitler. Na sua autobiografia, contudo, disse que não teria feito o filme se soubesse dos campos de extermínio: "Não poderia fazer graça com a insanidade homicida dos nazistas".

Enquanto “O Grande Ditador” é piegas e populista, “A Morte de Stálin” tem um pique anárquico. O humor negro é o trunfo do filme. Além de captar o ambiente de desconfiança paranoica que cercava Stálin, a graça ultrajante tira o espectador do sério.

Stálin jaz numa poça de xixi, vítima de um derrame, e seus comparsas estão lívidos de medo. Temem que o tirano sobreviva e se vingue da sua inação. Também têm medo que ele morra e, desfavorecidos, tenham que se haver com as multidões que os detestam. Odeiam o ditador, mas seus privilégios advêm da ditadura.

Ficam paralisados, por fim, porque um ano antes, ao fantasiar que seus médicos planejavam assassiná-lo, Stálin os atacou com fúria assassina. Os profissionais que o atenderam, dez horas depois de ter tido a síncope, foram tirados aos cacos da cadeia.

As estrelas do filme são Nikita Kruschev, que veio a ocupar o posto de ditador; Lavrenti Béria, o carrasco de Stálin; e o marechal Jukov, o herói da tomada de Berlim. A trinca que os interpreta é prodigiosa. Sem Steve Buscemi, Simon Russell Beale e Jason Isaacs o filme não seria tão engraçado.

Os atores reduzem figuras históricas a umas poucas características. Jukov é o milicão tapado de carteirinha, com cicatriz na cara e medalhas no peito. Béria, um carniceiro gordão e careca que resfolega. Kruschev, um conchavador ardiloso, audaz e espalhafatoso.

Seus comparsas na gangue que chefia o PC são seres emaciados pela covardia e ressentidos por décadas de humilhação. A morte do Pai dos Povos não os liberta: passam de imediato a conspirar uns contra os outros. Delatam, traem e trocam de aliados para tomar o poder. Suspeitam de si mesmos porque sabem que são vis.

“A Morte de Stálin” é um retrato frenético da casta stalinista num momento de crise. Também escancara o mecanismo de um golpe de Estado —tema sensível ao Brasil de ontem, hoje e de dias que virão. Não é pouco para o cinema sem graça e pouco pensante do presente.

Há outros retratos daquele instante soturno. A própria história em quadrinhos que deu origem ao filme, de Fabien Nury e Thierry Robin (ed. Três Estrelas, 152 págs.), é bem diferente. Dramática, ela enfatiza as feições mórbidas da situação e dos personagens —Béria lembra um rato.

Para quem quiser ir ao material bruto, há “Beria: Le Bourreau Politique de Staline”, de Jean-Jacques Marie (ed. Tallandier, 512 págs.). Com base nas atas do julgamento de Béria, memórias dos participantes do golpe e o que foi publicado recentemente na Rússia, o historiador francês conta o que se passou nos idos de 1953.

Moscou é longe, a vida é breve e o stalinismo já era. A arte e a política ainda vivem. Se Fernanda Torres e Roberto Schwarz se juntassem para filmar “A Morte do Morcegão” aprenderíamos algo sobre nós mesmos. Fica a sugestão.

*Mario Sergio Conti é autor de 'Notícias do Planalto' (1999); começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977.