marielle franco

Feminist protest | Foto: shutterstock/Halfpoint

Revista online | Por que ainda precisamos do feminismo?

Beatriz Rodrigues Sanchez*, especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio de 2022)

Nas últimas décadas, uma série de avanços foram realizados no que diz respeito à igualdade de gênero. O direito ao voto foi conquistado, a partir da luta das sufragistas, no ano de 1932. O direito ao divórcio, em 1977. Com a Constituição de 1988, uma série de direitos foram reconhecidos e garantidos constitucionalmente: a ampliação da licença maternidade, a licença paternidade, o direito de mulheres presidiárias poderem amamentar, a criação de mecanismos de combate à violência contra às mulheres, entre outros. 

Também, no âmbito legislativo, mais recentemente, tivemos a aprovação da Lei Maria da Penha, da lei de cotas para candidaturas femininas e da PEC das Domésticas. No âmbito da educação, as mulheres, que até pouco tempo representavam a maior parte dos analfabetos em nosso país, passaram a ser maioria entre as pessoas matriculadas em cursos de ensino superior. Estes são alguns fatos que demonstram o quanto temos avançado em direção à igualdade de gênero. No entanto, apesar desses avanços, a luta feminista ainda é necessária. 

A violência contra as mulheres, em suas diversas expressões, ainda é um grave problema que a sociedade brasileira precisa enfrentar. Seja a violência doméstica, aquela que acontece dentro de casa, entre marido e mulher, ou entre filhos e mães, ou avós e netos; seja a violência política de gênero, que acomete as mulheres que ocupam cargos dentro da política institucional (como o feminicídio político de Marielle Franco); seja a violência obstétrica, especialmente contra mulheres negras que, por conta do racismo estrutural, são vistas como mais resistentes à dor e muitas vezes não possuem acesso à anestesia. Todas essas formas de violência ainda marcam, nos dias de hoje, a sociedade brasileira, historicamente patriarcal e racista. Apesar de o argumento da “legítima defesa da honra” em casos de violência contra as mulheres ter ficado demodê, todas essas formas de violência continuam impedindo que as mulheres exerçam o direito à vida e à dignidade de forma plena. 

No âmbito da educação, apesar de termos entrado no ensino superior, alguns cursos ainda são majoritariamente masculinos, especialmente os cursos da área de exatas. As salas de aula dos cursos de engenharias, matemática, economia, estatística, por exemplo, ainda têm poucas mulheres. Essa diferenciação de gênero nas áreas de formação tem relação com construções sociais históricas que relacionaram as mulheres ao mundo privado da emoção e do cuidado e os homens ao mundo público da razão. Por isso, os cursos de enfermagem, pedagogia, assistência social e terapia ocupacional, apenas para citar alguns exemplos de cursos relacionados ao universo do cuidado, são majoritariamente femininos. 

Feminist Feast | Foto: Shutterstock/AdriaVidal
Feminist Fight | Foto: Shutterstock/Luis Osuna
Feminist | Foto: shutterstock/Jacob Lund
Fight like a girl | Foto: Shutterstock/JLco Julia Amaral
Women power | Foto: Shutterstock/Jacob Lund
Women Together | Foto: Shutterstock/Da Antipina
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No mercado de trabalho, as mulheres ainda hoje recebem salários menores do que os homens, mesmo quando ocupam o mesmo cargo. Além disso, a divisão sexual do trabalho faz com que, além do trabalho produtivo remunerado, as mulheres sejam responsáveis pelo trabalho de reprodução social da vida, que inclui o cuidado com crianças e idosos e as tarefas domésticas. Neste cenário, algumas mulheres, especialmente brancas e de classe média, podem pagar para que outras mulheres, especialmente negras e periféricas, realizem este trabalho, muitas vezes em condições precárias. Assim, a divisão sexual do trabalho, conjuntamente com a divisão racial do trabalho, cria obstáculos para o exercício pleno da cidadania. 

Quando analisamos a representação política das mulheres nas instituições, o cenário atual também é preocupante. No Poder Legislativo, no Executivo ou no Judiciário, as mulheres, especialmente as mulheres negras, periféricas, indígenas, trans e rurais, são minoria nos espaços de poder e na burocracia estatal. 

Atualmente, o Brasil ocupa a 146ª colocação no ranking de mulheres nos parlamentos, atualizado mensamente pela organização Inter-Parliamentary Union (IPU).  Essa sub-representação política das mulheres se reproduz em todos os níveis federativos – federal, estadual e municipal – prejudicando a consolidação de nosso regime democrático. Para se ter uma ideia, apenas 2 das 27 unidades da Federação (incluindo o Distrito Federal) são chefiados por mulheres: Rio Grande do Norte e Piauí. No governo federal, dentre as 23 pastas ministeriais, apenas duas são ocupadas por mulheres.  

Como podemos perceber, a desigualdade entre homens e mulheres continua sendo estruturalmente marcante na sociedade brasileira. No entanto, quando falamos em “mulheres”, devemos lembrar que não formamos um grupo homogêneo. Apesar de a “história oficial” do feminismo, escrita majoritariamente por mulheres brancas, intelectuais e de elite, afirmar que os questionamentos sobre raça, identidade de gênero, classe e outros eixos de opressão teriam surgido apenas na “terceira onda” feminista, as mulheres negras, indígenas e periféricas historicamente têm criticado a universalidade contida no sujeito “mulheres”, desde o período colonial, pelo menos. Por isso, é importante que as políticas públicas contemporâneas que tenham como objetivo mitigar os efeitos da desigualdade de gênero levem em consideração toda a pluralidade da população feminina, desde uma perspectiva interseccional.   

Diante de tudo o que foi dito até aqui, a luta feminista ainda se faz necessária. Nós, feministas, não silenciaremos diante de tudo o que ainda precisamos conquistar. Como afirma a escritora e feminista chilena Isabel Allende, no livro “Mulheres de minha alma”, “o feminismo, como o oceano, é fluido, poderoso, profundo e tem a complexidade infinita da vida; move-se em ondas, correntes, marés e às vezes em tempestades furiosas. Tal como o oceano, o feminismo não se cala”. Não nos calaremos. 

Sobre a autora

*Beatriz Rodrigues Sanchez é pós-doutoranda vinculada ao Programa Internacional de Pós-Doutorado (IPP) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Doutora e mestra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). É formada em Relações Internacionais pela mesma Universidade. É pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do CEBRAP. Desde a graduação vem estudando temas relacionados às teorias feministas e à representação política das mulheres.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio de 2022 (43ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da revista.

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RPD || Paulo Baía: O Brasil não respeita o sagrado ventre de um sorriso

Imagem de Marielle Franco vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre o crime, escreve Paulo Baia em seu artigo. “Um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro”

Eu, Marielle Franco, mulher, preta, favelada, eleita vereadora pela cidade do Rio de Janeiro, levei quatro tiros no dia 14 de março de 2018. 

Era a expressão de alegria. Nosso país não suporta uma mulher com um sorriso largo e sincero. Aberto e franco. O Brasil é o país da misoginia. Marielle subverteu não só pelas origens pobre e negra, mas também por seu currículo, seu brilhantismo profissional e acadêmico. Sua subversão maior era o sorriso escancarado. Brasil que estupra mulheres indígenas e pretas. Sou filho e neto de tais mulheres. Desejo suas vozes ouvidas. O Brasil não respeita o ventre de um sorriso. 

Eu, Marielle Franco, fui assassinada no dia 14 de março de 2018, levei três tiros na cabeça e um no pescoço por um carro que me encurralou no Estácio. Como a música de Luiz Melodia: Se alguém que matar-me de amor, que me mate no Estácio, Bem no compasso, bem junto ao passo, Do passista da escola de samba, Do Largo do Estácio, O Estácio acalma o sentido dos erros que faço, Trago, não traço, faço, não caço, O amor da morena maldita domingo no espaço, Fico manso, amanso a dor, Holiday é um dia de paz... Os assassinos dispararam com uma submetralhadora. Queriam me executar para calar as minhas vozes: mulher, preta e favelada. 

Eu já quero ser a segunda voz dela. Quero ser aquele que escuta. Como um velho, menos analista e mais antropólogo. 

Peço permissão à ancestralidade feminina escravizada e violada nesse nosso torrão, a terra como Gaya, para ouvir Marielle. Desejo falar do lugar do feminino. Embora não possa incorporar o lugar de fala exclusivo dela. Desejo reunir forças para poder realizar esta homenagem. Somos seres simbólicos. É deles que marcamos o nosso compasso neste chão árido, seco, desértico e que machuca feito pelas dores de muitas mulheres. A terra é a simbologia mais antiga do feminino. Ela gira em torno do sol. E Marielle foi apagada antes de terminar a sua própria gira carregada de brilho e cheia de potência em defesa das mulheres faveladas. Das pretas. Ela lutava contra a perpetuação de um movimento de opressão cometido há séculos contra os pretos desde a colonização - a eterna escravidão que nos assombra cotidianamente.

 Marielle era a terra fértil que ria e celebrava. Poderia uma mulher rir e celebrar? Sacralizar o riso, o corpo e a força do feminino é o meu desejo neste artigo. Tanto já foi dito a respeito de sua morte, sobre os assassinos, quem mandou matar que até hoje, no dia 02 de abril de 2021 (data que o autor escreveu o artigo), ainda não sabemos quem mandou executá-la. Os dias passam. O tempo corre. E a imagem vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre este crime político. 

Eu, Marielle Franco, fui assassinada, os tiros vieram de repente com força e não restou tempo para reação, caí morta, perdi a minha vida em meio à barbárie. 

Permaneço preso ao ensaio antropológico e mágico. Feito um ritual de despedida e com o desejo de que sua morte não tenha sido em vão como tantas outras. O momento mais forte veio com a lavagem do chão cheio de sangue. No local onde a mataram no Estácio. Foi uma limpeza feita com ervas. E tambores. Marielle era a terra fértil que ria e celebrava o direito de vida dado a todos pela constituição de 1988, promulgada após a redemocratização. Nossa miscigenação é o fruto de estupros coletivos e continuados de mulheres indígenas e negras por séculos. É o machismo reprodutor assassinando mulheres vandalizadas e matáveis. Pai perverso e assassino de filhos mestiços pretos, quase pretos. Marielle é o retrato perfeito de séculos de violações aos corpos femininos. 

Eu, Marielle Franco, fui morta de forma brutal sem direito à defesa. Nasci com a marca da exclusão e com a certeza de que deveria permanecer calada, distante do jogo político feito entre homens misóginos e racistas. A política feita para poucos que lutam por seus negócios embolados aos prazeres espúrios. E certamente com muitas garotas de programa em suas festinhas regadas a comida, bebidas, entre outras coisas. 

 Permaneço no meu ritual vivenciando uma eterna despedida de um antropólogo que se despe e veste a roupa do cientista político para dizer que a morte de Marielle foi o fim de um sonho e um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro. 

Eu, Marielle Franco perdi a voz, mas renasço em todas as mulheres pretas, pobres e faveladas que trabalham e enfrentam o cotidiano de opressão. A vida é circular. E a Terra é redonda e gira em torno do sol. 

O ritual de despedida homenageou o sorriso largo de uma mulher potente, vibrante, capaz de no sorrir rodopiar as energias, realizando a gira no meio do chão de terra das favelas cariocas. E é deste sagrado sorriso que o país precisa girar para recuperar a sua força e potência. 

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ. 

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Eliane Brum: Vote em Marielle

Mais viva do que nunca, a vereadora executada há quase mil dias é a principal antagonista de Bolsonaro e de seu projeto de poder

As eleições municipais de 15 de novembro são, para o Brasil, o que a eleição presidencial dos Estados Unidos foi para o mundo. Vão mostrar para onde está indo o país, desde que o governo foi ocupado e pervertido por um mentiroso com intenções genocidas. É claro que 2022 será o momento decisivo, pela possibilidade de tirar não apenas Jair Bolsonaro do centro do poder, mas também tudo o que ele representa. A resistência, porém, se expressa no miúdo dos dias e é exercida no chão das cidades ―em cada comunidade, em cada favela, em cada rio. A política, para muito além dos partidos, é tecida no cotidiano. As eleições do próximo domingo vão mostrar qual é a temperatura do movimento de brasileiros anônimos na soma destas pequenas ações e reações. Vão expor o quanto uma parcela da população é capaz de enfrentar o autoritarismo de Bolsonaro também no campo da política institucional e manter a luta mesmo no luto. Vão apontar, principalmente, o quanto o legado de Marielle Franco vive e resiste e avança.

Bolsonaro e o bolsonarismo, a criatura mais importante e possivelmente mais longeva do que o criador que lhe empresta o nome, são fenômenos complexos. Além de tudo o que representam e revelam do Brasil, são também a resposta violenta de uma parcela assustada da população por um lado, de uma elite com medo de perder seus privilégios de classe e de raça, por outro. Em comum, os eleitores de Bolsonaro parecem temer tudo o que a figura de Marielle Franco representa em seu gesto de ocupar o centro político: a pressão de mulheres, negros e pessoas LGBTQIA+ por participação no poder e pelo reconhecimento de sua centralidade. É também esse embate que se fará presente nas eleições em que a participação de candidatos negros é a maior já registrada: 49,9% negros, superando os 48,1% que se autodeclaram brancos.

A eleição acontecerá num momento de forte simbolismo: a proximidade dos mil dias da execução da vereadora do PSol no Rio de Janeiro sem que o Brasil conheça o mandante ―ou os mandantes― e sua motivação. Enquanto quem ordenou a morte, seus motivos e suas conexões não forem apontados, cada dia a mais sem solução é uma denúncia do momento limite vivido pelo Brasil. E uma acusação do enorme déficit de justiça do país. A cada dia a mais sem solução faz também aumentar a densidade das sombras sobre Bolsonaro e sua família, às voltas com indícios de sua ligação com as milícias acusadas de envolvimento com a morte de Marielle.

O assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes, o motorista que morreu mas não era alvo, não é mais um crime em um país atravessado pela violência. A investigação que se estende além do mais flexível conceito de razoável já expõe a crescente infiltração das milícias no Estado brasileiro. Expõe também o cotidiano de um país em que tanto a democracia quanto o ordenamento jurídico são uma pele cada vez mais fina envolvendo estranhas cada vez mais podres, cujos vermes já não se contentam em se manter no lado de dentro. Quando os criminosos começam a gostar dos holofotes é porque acreditam não mais precisar se esconder. O que aqueles que vivem na Amazônia de grileiros e pistoleiros testemunham há muito tempo, e que também na região da floresta se torna cada vez mais explícito, se alastra por todo o Brasil desde que Bolsonaro assumiu e perverteu o poder.

A execução da vereadora do PSol precisa ser solucionada por todas as razões e também para que a população brasileira possa saber se Bolsonaro e seus filhos têm apenas amigos chefiando as milícias que aterrorizam o Rio de Janeiro, alguns deles matadores profissionais, ou se também têm envolvimento com a morte de Marielle. Até este momento, as provas de intimidade e de relações suspeitas do clã Bolsonaro com milicianos matadores são vastas, mas não apareceu nenhuma prova de envolvimento concreto da família presidencial com o crime. Pelo menos, nenhuma foi divulgada até hoje.

Ao denunciar o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), filho mais velho do presidente, pelo esquema criminoso das “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o Ministério Público mostrou que o filho zeroum teria recebido pelo menos 400.000 reais do ex-PM Adriano da Nóbrega. Acusado de chefiar um grupo de extermínio, Adriano foi morto em fevereiro em controversa operação policial na Bahia. A mãe e a mulher de Adriano eram funcionárias do gabinete de Flávio Bolsonaro quando deputado e só foram desligadas pouco antes de estourarem as primeiras denúncias. Segundo a investigação do MP do Rio, Adriano repassava o dinheiro a Fabrício Queiroz, então braço direito de Flávio e operador do esquema criminoso.

Bolsonaro e sua família deveriam ser os brasileiros mais interessados em solucionar a execução de Marielle Franco. Não são. Até este momento, estão presos apenas os acusados de executar o crime, o policial militar reformado Ronnie Lessa, vizinho de Bolsonaro no condomínio Vivendas da Barra, no Rio de Janeiro, e o ex-PM Élcio Queiroz. Ainda não há notícias dos mandantes.

A necessidade de fazer perguntas difíceis envolvendo aquele que ocupa o cargo máximo do país é uma evidência do momento perigosíssimo que vive o Brasil. O “novo normal” de que tanto falam ―e que está muito mais para novo anormal― é assimilar como uma possibilidade de normalidade as relações íntimas do presidente com milicianos e matadores. Também neste sentido o dia da eleição provoca expectativa.

A corrosão da democracia brasileira é cada vez mais trágica, mas ainda há um pequeno espaço para a retomada do que foi velozmente destruído. A escolha dos vereadores e prefeitos que vão tocar a política dos municípios, em geral a que mais interessa aos cidadãos no seu cotidiano, vai mostrar se cresce a parcela da população brasileira que tem consciência do abismo que, como cantava Cartola, escava com seus pés. As eleições de 15 de novembro não contêm a possibilidade de redenção, mas podem sinalizar se o avanço das periferias que reivindicam seu legítimo lugar de centro persiste mesmo com todos os ataques e, principalmente, se têm conseguido aumentar sua ressonância junto ao conjunto da população nestes anos de autoritarismo de ódio produzido pelo bolsonarismo.

O primeiro ministério de Michel Temer (MDB) ―inteiramente branco e masculino, patriarcal e heterossexual em todos os seus signos― depois de quatro anos ainda é o melhor retrato de como a manobra das forças de direita refletia um profundo incômodo com o avanço daqueles tratados como subalternos, manobra que em 2018 resultou na eleição de um homem como Jair Bolsonaro. O fato de que Temer foi o vice que traiu Dilma Rousseff (PT), a primeira mulher a se tornar presidente na história do Brasil, ao minar seu poder desde dentro e apoiar seu impeachment, não é um detalhe. Tampouco é um detalhe o fato de que, das duas únicas ministras mulheres de Bolsonaro, uma é declaradamente antifeminista, Damares Alves, e a outra, Tereza Cristina, se dedica a liberar agrotóxicos e “destravar” a agenda do agronegócio que destrói a Amazônia, o Cerrado e outros biomas, envenenando a comida e a terra e condenando as novas gerações.

A execução de Marielle Franco, em 14 de março de 2018 ―negra, bissexual, publicamente casada com outra mulher, nascida e criada nas favelas da Maré, que ocupa o centro ao se tornar vereadora no legislativo do Rio de Janeiro e levar para dentro da política institucional a luta contra a violência policial na favelas, contra a grilagem de terras nas periferias, parte delas controlada pelas milícias, e pelos direitos das pessoas LGBTQIA+― simboliza a radicalidade do gesto de barrar esse movimento à bala porque ele começa a ameaçar interesses e hegemonias. Para além da solução concreta do crime, seu simbolismo é assim e acertadamente interpretado pela parcela progressista da sociedade, que mantém presente e persistente tanto a memória de Marielle quanto a pressão pela solução de seu assassinato.

Marielle Franco é, iconicamente, mais viva do que nunca e a maior antagonista do atual presidente. E por essa razão, a memória de Marielle resiste e produz Marielles. Nesta eleição, em número inédito: em São Paulo, as candidatas negras são quase o dobro da disputa anterior. Segundo levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), há pelo menos 300 quilombolas disputando uma vaga no legislativo em todo o país. Entre eles, a ativista Socorro de Burajuba, líder da luta contra a destruição socioambiental produzida pela mineradora norueguesa Hydro Alunorte, poluidora dos rios da região de Barcarena, na Amazônia paraense. Nunca se discutiu tanto a participação política de negros como hoje, mas mais do que negros, o que se fortalece em 2020 é a potência crescente das mulheres pretas.

Historicamente mais subjugadas entre os subjugados, elas foram mantidas por décadas periféricas também no feminismo dominado por mulheres brancas e nos partidos de esquerda, majoritariamente liderados por homens e por brancos que sempre deram ênfase à luta de classes em seu diagnóstico e em suas propostas, em detrimento do racismo estrutural como recorte central de análise. Como afirma a socióloga negra Vilma Reis, “são as mulheres negras que empurram a esquerda para a esquerda”.

Mesmo dentro do PSol ―o partido com mais ressonância na esquerda, pelo menos para quem, como eu, considera o PT um partido de centro― Marielle também enfrentava a hegemonia da branquitude e um ranço machista cuidadosamente disfarçado. Depois que Marielle se tornou o maior ícone das mulheres negras (e também de uma parcela das brancas), alguns tentam reduzi-la a uma “cria” do deputado federal Marcelo Freixo (PSol). É justo reconhecer a influência do principal nome do PSol do Rio de Janeiro na trajetória política de Marielle Franco, mas Marielle é muito maior do que isso e foi fortemente marcada pelas mulheres negras que também encontrou no seu caminho.

A força crescente representada por ela, esta que o bolsonarismo não conseguiu parar apesar de toda a violência contra os corpos das mulheres, dos negros e dos LGBTQIA+, pode ser decisiva em 2022. É evidente que o Brasil tem enormes diferenças com relação aos Estados Unidos, assim como também é evidente que Jair Bolsonaro é ainda pior do que Donald Trump. Mas as afinidades também existem e são grandes ―e ambos fazem parte do mesmo fenômeno global. Tanto Trump quanto Bolsonaro souberam encarnar o medo de uma parcela significativa de brancos assustados, perdendo poder aquisitivo pelos efeitos da crise global do capitalismo de 2008 e sentindo-se perdidos pela ameaça ao lugar identitário em que ainda se sentiam superiores: o de raça, o de gênero e o de orientação sexual.

Talvez a melhor forma de explicar esse mecanismo, no caso dos brancos pobres e dos brancos de classe média que perderam renda nos últimos anos, seja com a formulação do intelectual afroamericano W.E.B. Du Bois (1868-1963), cujo pensamento só fui conhecer ao assistir a uma entrevista do intelectual afrobrasileiro Silvio Almeida. Du Bois criou o conceito que apresenta a branquitude como um “salário público e psicológico”. Sugiro ler diretamente na fonte, para alcançar a profundidade da proposição, mas, resumindo em uma linha, seria mais ou menos isso: o branco ferrado se consola com o salário psicológico de saber que há um outro, o negro ferrado, que é mais ferrado do que ele. Para manter esse privilégio psicológico, de um ferrado mais ferrado do que ele, o que o faz superior pelo menos a alguém, ele vota até em perversos como Bolsonaro que o ferram muito mais todo dia. No meu ponto de vista, esse salário psicológico ajuda a explicar também a resistência feroz ao protagonismo das mulheres, o único ponto de privilégio de uma parcela dos homens, sejam eles brancos ou pretos.

Como se sabe, Bolsonaro “liberou” esses machos brancos assustados ao expressar publicamente todo o seu racismo, homofobia e misoginia (ódio às mulheres), sem ser responsabilizado pelo sistema judiciário, e enalteceu em seu discurso de posse a “libertação” do politicamente correto. Representou também a angústia de uma classe média que se via perdendo privilégios que considerava direitos ao mesmo tempo em que, pela primeira vez na história, era obrigada a lidar com empregadas domésticas, majoritariamente pretas, que haviam conquistado a (quase) equiparação aos direitos dos demais trabalhadores.

A escandalosamente atrasada conquista de direitos trabalhistas básicos pelas empregadas domésticas, como já escrevi várias vezes, é essencial na análise da última década. No Brasil, a emancipação feminina se deu não por políticas públicas como ensino integral e creche para as crianças, nem tampouco pela divisão real de trabalho dentro de casa. Ao contrário. As mulheres brancas só conquistaram sua emancipação e conseguiram construir carreiras profissionais ao seguirem subjugando mulheres negras, em sua maioria, e também brancas pobres. Essas mulheres deixavam suas próprias casas e filhos para realizar o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos das brancas por salários irrisórios, jornadas extenuantes, condições de trabalho precárias e direitos escassos. A chamada “PEC das Domésticas” (quase) equiparou os direitos das domésticas aos demais trabalhadores, numa conquista histórica, balançando a herança mais persistente da escravidão e ampliando o medo de uma classe média perdendo renda e privilégios.

As mulheres pretas que hoje avançam sobre os espaços formais da política institucional são, muitas delas, filhas dessas mulheres que chefiam suas famílias e seguram o tranco dos dias há décadas. Muitas delas puderam chegar à universidade graças às medidas de ampliação do acesso ao ensino superior para os mais pobres e graças às cotas raciais, política de inclusão atrasada em mais de um século que provocou violenta reação dos brancos durante os governos petistas. Ainda que as candidatas pretas não se elejam, só o fato de disputarem a eleição aponta que, apesar de toda a violência, o bolsonarismo não conseguiu parar essa força. As quatro balas que arrebentaram a cabeça de Marielle Franco arrancaram-na da sua vida, de suas lutas, de seus afetos e de seus amores, mas tornaram-na imortal no cotidiano de milhões de mulheres pretas que encontram nela a inspiração para seguir adiante sem recuar.

Formalmente, o Instituto Marielle Franco criou nesta eleição a Agenda Marielle Franco, uma iniciativa suprapartidária que reuniu 745 candidatos, espalhados por 270 cidades brasileiras, comprometidos a levar adiante o legado da vereadora executada: justiça racial e defesa da vida; gênero e sexualidade; direito à favela; justiça econômica; saúde pública, gratuita e de qualidade; educação pública gratuita e transformadora; cultura, lazer e esporte. O esforço busca garantir significado a essas candidaturas, na medida em que a ampliação da presença negra no poder legislativo é um grande passo, mas só pode assegurar avanço na luta por igualdade racial se os eleitos defenderem projetos comprometidos com essa pauta e forem representativos de suas comunidades e não apenas de si mesmos.

O acordo é também o de honrar as práticas de Marielle: diversificar, não uniformizar; ampliar, não limitar; honrar, não apagar; coletivizar, não individualizar; puxar, não soltar; escancarar, não se encastelar; cuidar, não abandonar. Guilherme Boulos (PSol), candidato a prefeito de São Paulo com chances de alcançar o segundo turno, é um dos candidatos na lista dos comprometidos em honrar e multiplicar o legado de Marielle Franco.

Em 2005, ao executarem com seis tiros a missionária Dorothy Stang, os grileiros da região de Anapu aprenderam uma lição: algumas pessoas vivem mais intensamente depois de mortas. Nos dez anos seguintes, a atenção internacional provocada pelo crime e a presença de instituições que antes não davam as caras por ali atrapalharam muito os negócios dos destruidores da Amazônia. Dorothy Stang também se tornou uma mártir que tem inspirado movimentos de camponeses, em especial os ligados à Pastoral da Terra, da Igreja Católica. O assassinato de Marielle Franco, independentemente da intenção explícita do mandante ou mandantes do crime, produziu uma força de resistência infinitamente maior e mais significativa para o Brasil. Que os avanços se deem pela destruição dos corpos dos mais pobres e daqueles que resistem à opressão é resultado da democracia seletiva e deformada, jamais completada, do Brasil pós-ditadura civil-militar.

Tanto Trump quanto Bolsonaro se elegeram vendendo passados que nunca existiram, passados tão falsos quanto tudo o que sai de suas bocas. Pregam a volta a uma época em que aqueles historicamente tratados como subalternos ―mulheres, negros, indígenas― aceitavam passiva e pacificamente o seu lugar. Como se sabe, esse passado nunca existiu. O que existiu e persiste é o silenciamento dos que se rebelam, seguidamente calados pelo extermínio. Como Trump e Bolsonaro não têm futuro a oferecer, disseminam mentiras e tentam reescrever a história com elas. Não são apenas negacionistas, mas sim mentirosos com método e intenção.

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Inspiradas pelo exemplo da eleição estadunidense, a centro-direita e a direita brasileiras que já não querem mais dividir o palanque com Bolsonaro ―o homem que, como seu próprio chanceler definiu, transformou o Brasil num “pária” internacional― já começaram a fazer suas articulações para 2022. A questão é que, mais importante do que a vitória de Joe Biden, um homem branco do sistema, é como e por que Biden venceu Trump. As mulheres e os negros foram determinantes para tirar o déspota de topete laranja do poder. Como símbolo deste movimento desponta uma ativista negra chamada Stacey Abrams, cuja atuação está diretamente ligada aos 800.000 novos votantes da Geórgia, metade deles afroamericanos entre 30 e 45 anos. Estado sulista de raízes escravocratas, um democrata não vencia na Geórgia desde Bill Clinton. É fundamental não esquecer: Biden venceu também porque tinha ao seu lado Kamala Harris. Primeira mulher a assumir a vice-presidência dos Estados Unidos, ela é negra de ascendência indiana. Biden é mainstream, mas quem venceu Trump não foi o mainstream.

O que é chamado de periferia, tanto em países como Estados Unidos quanto no Brasil, têm sido os centros de criação de pensamento, de cultura e de inovação. Diante de fenômenos de ultradireita como Trump e Bolsonaro, são também produtores de resistência que avançam para o centro da política institucional. No Brasil, movimentos majoritariamente brancos e de classe média publicaram em 2020 manifestos em defesa da democracia nos principais jornais do país. Não citavam o racismo estrutural em seus textos. De imediato, a Coalizão Negra por Direitos, que reúne mais de cem organizações e coletivos, publicou nos mesmos espaços o manifesto Enquanto houver racismo, não haverá democracia. Sinalizava ali que, desta vez, nenhum rearranjo das forças políticas, da direita à esquerda, teria legitimidade se não enfrentasse o racismo estrutural do país. O manifesto antirracista pode ter sido o ato político mais importante dos últimos anos.

O necessário deslocamento do que é centro e do que é periferia é fundamental para determinar o destino do Brasil. Aqueles que são tratados como periféricos, como a floresta e a favela, têm no horizonte uma aliança a tecer, fundamental para a criação de futuros capazes de dar respostas de possibilidade ao momento limite da emergência climática. Neste sentido, nos Estados Unidos, a esquerda do Partido Democrata, onde essas novas forças estão estrategicamente alojadas, está mais à frente ao perceber e sublinhar publicamente que, hoje, enfrentar o racismo é enfrentar a emergência climática. Já não existe a possibilidade de uma luta sem a outra luta.

O apartheid tenebroso que já se anuncia e se aprofunda em ritmo acelerado é o que a própria ONU chama de “apartheid climático”. E, mais uma vez, atinge principalmente as mulheres, os negros e os indígenas. No Brasil, a aliança entre os ativistas das favelas e os ativistas da floresta precisa avançar com mais rapidez, dada a emergência do momento. Os ativistas da floresta são principalmente indígenas, mas também quilombolas e beiradeiros ou ribeirinhos. E são também as mulheres negras das periferias de cidades amazônicas. Em Altamira, epicentro da destruição da floresta, jovens ativistas como Daniela Silva têm levantado a voz para lembrar que as mulheres negras das periferias urbanas também fazem parte da Amazônia.

A luta está só começando. Homens como Trump e Bolsonaro, o brasileiro ainda com chances de se reeleger em 2022, são apenas um capítulo e não necessariamente o mais difícil. Como afirma a estrela da nova esquerda do Partido Democrata, a estadunidense de origem latina Alexandria Ocasio-Cortez, ao comentar a derrota de Trump: “Não estamos mais em queda livre para o inferno. Mas, se vamos nos levantar ou não, é uma questão. Fizemos uma pausa nessa descida precipitada. A questão é se e como iremos nos reconstruir”.

Apesar do atoleiro vivido pelo Brasil sob o Governo de ódio de Bolsonaro, o país tem, talvez como nenhum outro, um grande trunfo para voltar a criar futuro no presente: a enorme força de vida dos negros e dos indígenas que têm resistido contra todas as formas de morte por quatro séculos, caso dos descendentes dos africanos escravizados, por cinco séculos, caso dos indígenas. Grande parte das forças progressistas do planeta já compreenderam que a batalha pela Amazônia é a grande batalha deste momento ―e não apenas no sentido dos limites geográficos da floresta que regula o clima, mas no sentido de amazonizar o pensamento para a criação de uma sociedade humana capaz de viver sem destruir nem a casa onde vive nem as espécies com quem divide a casa.

A crise climática e a sexta extinção em massa de espécies, ambas comprovadamente provocadas por ação da minoria dominante dos humanos, tornaram este momento o mais desafiador de nossa trajetória no planeta. Trump e Bolsonaro são apenas sintomas. Com todos os limites evidentes de uma eleição numa democracia que nunca chegou para todos, assim como os limites da própria democracia como sistema, o voto deste 15 de novembro é muito mais importante do que parece à primeira vista. Países vizinhos como a Bolívia e o Chile já deram o exemplo e mostraram que é possível enfrentar o autoritarismo da direita e da extrema direita e avançar. O Chile decidiu pela primeira Constituição construída de forma igualitária entre homens e mulheres e, na Bolívia, as mulheres conquistaram 20 das 36 cadeiras do Senado (56%) e 62 das 130 da Câmara Baixa (48%) nas eleições de outubro, com forte presença dos povos originários. O Brasil, que costuma ver a si mesmo como vanguarda política e criativa, já está atrás no mapa da América Latina na luta contra o autoritarismo de direita.

A polarização política tem sido vendida como um problema e uma distorção nos últimos anos. Não é assim que eu vejo. Não é possível e nem desejável superar a polarização num país estruturado sobre o racismo e com uma desigualdade abissal. O problema é a distorção da polarização, situada propositalmente nos polos falsos. O discurso contra a polarização, aliás, será cada vez mais usado pela centro-direita e pela direita que hoje se anunciam como não bolsonarista para se apresentar como uma alternativa de “pacificação do país” em 2022. Michel Temer já usou esse discurso antes e agora ele se insinua nas negociações entre o governador de São Paulo, João Doria Jr (PSDB), o ex-ministro de Bolsonaro Sergio Moro e o apresentador da Globo Luciano Huck para a próxima eleição presidencial. A paz da centro direita e da direita aponta para um rearranjo cosmético, com algumas concessões aqui e ali, de modo que a desigualdade racial e social do Brasil se mantenha inalterada na essência. Prefiro ficar com a frase antológica da atriz e escritora negra Roberta Estrela D’Alva: “se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

A eleição de 15 de novembro não é uma prévia para 2022. É muito mais do que isso. É a recolocação dos polos que foram deslocados. É uma sinalização de que a polarização já não se dá entre Bolsonaro e Lula, mas entre Bolsonaro e Marielle Franco. Esta sempre foi a polarização real dos Brasis, em alguns momentos representada pelo PT do passado, há muitos anos não mais. Quase mil dias depois da sua execução, o grito se fortalece e avança: Marielle, Presente.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Míriam Leitão: Cuidar do legado, regar a semente

Quase dois anos após a morte de Marielle Franco, instituto trabalha para cuidar do seu legado, cobrar justiça e preparar mulheres para a inclusão política

Pedra do Sal é um marco do coração do Rio, por onde passou muita história do país e da escravidão. Durante o mês de março haverá um espaço por lá chamado “Casa de Marielle”. É o primeiro passo do instituto que leva o nome da vereadora assassinada há quase dois anos. Durante todo o mês, haverá atividades, principalmente no dia 14. A diretora do Instituto Marielle Franco, Anielle, tem planos de que ele possa “cuidar do legado, regar a semente e batalhar por memória e justiça” desse crime ainda sem resposta.

Anielle foi jogadora de vôlei profissional, morou 12 anos nos Estados Unidos e voltou com o mestrado em inglês e jornalismo pela Universidade da Carolina do Norte. Sua maior incentivadora era a irmã, cinco anos mais velha.

— Eu pensei várias vezes em desistir, porque era muito tempo longe da família. Mari dizia: fica que eu estou ralando para você estar aí. Um dia você vai voltar e ver o quanto foi importante. Hoje quando vejo o tamanho que a Mari se tornou e eu penso que posso ir aos Estados Unidos fazer uma palestra sobre ela em inglês. Nunca consegui fazer isso sem me emocionar — diz Anielle, lembrando que a irmã queria muito que ela aprendesse inglês.

A saudade vem sempre no meio de muita batalha. Tem sido assim há quase 24 meses. Nunca foi possível descansar. Perguntei o que ela sentia ao ver que uma nota do Planalto reuniu Marielle e o miliciano Adriano Nóbrega. Um trecho dizia que “os brasileiros honestos querem saber os nomes dos mandantes das mortes de Marielle e do capitão Adriano”. Anielle chorou:

— É difícil para mim, como irmã, pessoa criada com ela, perceber que ainda tentam colocar Marielle no mesmo patamar de uma pessoa como Adriano. Parêntesis sobre ele: nenhum ser humano merece ser morto. Mas minha irmã foi vítima de um feminicídio político.

A nota foi emitida pelo Planalto, no meio da briga do presidente Jair Bolsonaro com o governador Rui Costa, da Bahia. Falava também em Celso Daniel, mas o nome da vereadora assassinada junto ao do miliciano, foi, de fato, um despropósito.

A entrevista foi na Câmara dos Vereadores, onde Marielle exercia seu mandato e onde foi velada. Anielle lembrou que se preocupou em colocar uma faixa na cabeça da irmã que escondesse a marca dos tiros. Até hoje o crime não foi esclarecido e o assunto está sempre no meio da disputa política. A família prefere que a investigação não seja federalizada. O crime permanece impune e as redes de ódio têm na vereadora morta um dos seus alvos:

— O exemplo de mulher que eu tenho é ela. E me dói muito quando tenho que defender a índole e o caráter da minha irmã, porque ela era uma pessoa muito honesta, uma pessoa que não abaixava a cabeça, uma parceira que tentava fazer tudo muito certinho e iria muito longe. Tinha um potencial incrível e perceberam isso.

O instituto tem muitos planos e o que fez até agora foi através de financiamento coletivo. Um dos projetos é o das “escolas marielles”, de preparação de meninas e mulheres negras para a participação política. Anielle repete sempre que gostaria de que toda essa defesa do legado fosse suprapartidário, porque, mesmo sabendo que ela era uma vereadora do PSOL, quer que eleitores de outros partidos entendam e ajudem a divulgar a mensagem que ela deixou:

— Este é só o ano da estruturação do Instituto, mas temos muitos planos e o mês de março será de luta e de alegria, porque ela fazia política com muito afeto. Tenho muitos sonhos e me emociono. Sonho com o dia em que vou poder falar do legado da Mari sem ter que explicar que ela era uma política de esquerda ou de direita. Quero ver o instituto fortalecendo a vida de muitas meninas da Maré. Porque nós somos exceção à regra e quero passar para as meninas o sentimento de que é possível. Eu sonho com o instituto fazendo um trabalho do tamanho de Martin Luther King. Ultrapassar barreiras, olhar no olho de quem falou mal dela, espalhou fake news e dizer: tá vendo, enquanto vocês disseminam o ódio, a gente trabalha por um mundo melhor. Quero que as pessoas entendam que direitos humanos não é defender bandido, é defender o direito de ir e vir, de entrar e sair — como minha irmã estava saindo do trabalho — e não ser assassinada com quatro tiros na cabeça. Eu tenho muitos sonhos. Quero que o Brasil e o mundo tenham a dimensão do tamanho da Marielle. Ela é gigante.


Eliane Brum: Precisamos saber quem está no poder

O silenciamento da pessoa-chave para elucidar crimes, que podem estar ligados ao clã Bolsonaro, aprofunda a pergunta mais perigosa da República

Na semana em que completou 700 dias que Marielle Franco foi assassinada, a notícia não é a elucidação do crime – e, sim, o assassinato da pessoa-chave para elucidar o crime. A execução de Marielle, uma vereadora do Rio de Janeiro e uma ativista dos direitos humanos, assinalou o momento em que um limite foi superado no Brasil. O não esclarecimento até hoje, quase dois anos depois, de quem foi o mandante e por que ela foi morta aponta a crescente e cada vez mais perigosa incapacidade das instituições de proteger a democracia no país. O silenciamento de Adriano da Nóbrega, premeditado ou não, no domingo, 9/2, mostra que o Brasil é um país em que os limites entre lei e crime foram borrados num nível sem precedentes. Não sabemos quem está no Governo. E precisamos saber.

A maioria já conhece os fatos. Mas é preciso reafirmá-los. Adriano da Nóbrega poderia esclarecer o esquema de “rachadinha”, desvio dos salários de servidores, no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, hoje senador e filho do presidente Jair Bolsonaro. Poderia esclarecer qual é a profundidade das relações da família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro. Poderia ajudar a esclarecer o assassinato de Marielle Franco.

Poderia, mas não pode mais. Foi morto numa suposta troca de tiros durante uma operação conjunta da Polícia Militar da Bahia e da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Dezenas de policiais treinados foram supostamente incapazes de prender, numa casa isolada, uma pessoa considerada essencial para a elucidação de crimes que assombram a República. Foram capazes apenas de matá-lo. Segundo o advogado do morto, Paulo Emílio Catta Preta, Adriano teria afirmado dias antes que, caso fosse encontrado pela polícia, seria eliminado como “queima de arquivo”. Quando foi assassinado, estava escondido na casa de um vereador do PSL, num sítio no município de Esplanada, na Bahia. O PSL até há pouco era o partido do presidente e também de seu primogênito.

Quem era Adriano da Nóbrega?

Ex-capitão do BOPE, elite da polícia militar carioca, Adriano estava foragido havia um ano, suspeito de chefiar a milícia de Rio das Pedras, a mais antiga do Rio, e também o Escritório do Crime, um grupo de matadores de aluguel. Formado por policiais e ex-policiais civis e militares, o Escritório do Crime está relacionado pelas investigações à execução de Marielle Franco. Adriano já havia sido preso três vezes, por homicídio e tentativas de homicídio, e liberado. Sua mulher e sua mãe trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro até novembro de 2018.

Adriano era próximo de Fabrício Queiroz, suspeito de comandar o esquema da rachadinha para Flávio Bolsonaro e de envolvimento com a milícia de Rio das Pedras. Queiroz, por sua vez, era não só funcionário, mas amigo pessoal de Jair Bolsonaro desde os anos 1980. Também era policial militar aposentado. Um cheque de Queiroz, no valor de 24 mil reais, foi depositado na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

O homem que foi morto era publicamente respaldado pela família Bolsonaro no exercício de seus mandatos como parlamentares. Como deputado, Flávio deu ao então policial a Medalha de Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa do Rio. Naquele momento, 2005, Adriano cumpria prisão pelo assassinato de um guardador de carros que havia denunciado policiais. Era a segunda vez que o filho mais velho do presidente homenageava o PM. Também em 2005, Jair Bolsonaro, então deputado federal, fez um discurso na Câmara dos Deputados, defendendo Adriano e protestando contra a sua condenação por homicídio. Segundo o Ministério Público do Rio, as contas de Adriano foram usadas por Queiroz para transferir o dinheiro do esquema de “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro.

Os dois acusados pelo assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes são o policial reformado Ronnie Lessa, que teria dado os tiros, e o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, que teria dirigido o carro. Ambos são suspeitos de pertencer ao Escritório do Crime, que seria chefiado por Adriano da Nóbrega. Ronnie Lessa, por sua vez, vivia no mesmo condomínio de Jair Bolsonaro, na Barra da Tijuca.

Neste mapa de coincidências e suspeições, Adriano da Nóbrega era a pessoa capaz de juntar os pontos e preencher as lacunas. Mas está morto.

O que não é possível

Todas as coincidências podem ser apenas coincidências. É possível que a família Bolsonaro seja apenas ingênua ao escolher amigos e colaboradores. É possível que Flávio Bolsonaro estivesse apenas distraído demais para notar o que, suspeita-se, estava acontecendo no seu gabinete sob o comando de seu amigo Queiroz. É possível que Bolsonaro não tivesse tido relações com este vizinho chamado Ronnie Lessa. É possível que o grupo de policiais da Bahia e do Rio que foram prender Adriano sejam apenas incompetentes. É possível que essa quantidade de policiais militares e ex-policiais suspeitos de crimes seja apenas ocasional e não revele nada sobre o que a instituição Polícia Militar se tornou.

O que não é possível é continuarmos sem saber se há ou não envolvimento de Bolsonaro e seu clã com criminosos. Se há ou não envolvimento de Bolsonaro e seu clã com as milícias. Se houve ou não o esquema de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro. O que não é possível é 700 dias depois do assassinato de Marielle Franco o Brasil – e o mundo – não saber quem mandou matá-la. E por quê.

Nada é normal no Brasil de hoje

Há um esforço para tratar o que hoje vive o Brasil como normalidade. Como se houvesse apenas anomalias que pudessem ser corrigidas no curso do processo eleitoral e sob a vigilância de instituições robustas. Como se o que está em curso fosse do jogo da democracia. Não há, porém, nada de normal no que acontece hoje no Brasil.

Há forte desconfiança de que Adriano da Nóbrega foi executado para não poder contar o que sabia. Ainda que tenha sido incompetência da polícia, como achar que é normal uma parte significativa da população brasileira ter certeza de que as PMs trabalham para si mesmas ou para interesses que não são os da população nem da justiça? Como achar normal que esta rede de suspeitos sejam policiais ou ex-policiais? Como achar normal conviver com o poder das milícias, que são formadas por integrantes das forças de segurança formais dos estados? E como achar normal o DNA de milicianos marcarem atos e fatos do presidente da República, de um senador da República que é filho do presidente e de outros familiares do clã? Este Brasil não nasceu agora, mas só hoje temos um presidente e uma família presidencial envolvida em tantas coincidências criminosas, que produzem cada vez mais sangue e parecem estar cada vez mais longe de serem esclarecidas.

Bolsonaro e as instituições

A trajetória de Jair Bolsonaro pode ser contada pela ação e também pela inação das instituições brasileiras. Se o então capitão tivesse sido condenado pelo Superior Tribunal Militar, em vez de absolvido, por planejar colocar bombas em unidades militares para protestar contra os baixos salários, o país seria diferente hoje? Se o então deputado federal Jair Bolsonaro tivesse sido julgado e condenado por cada declaração racista e de incitação à violência que pronunciou durante seus quase 30 anos de Congresso, o Brasil seria diferente hoje? Se o então parlamentar Jair Bolsonaro tivesse respondido na Justiça e sido cassado pelos seus pares por homenagear um torturador durante o impeachment de Dilma Rousseff, o Brasil seria diferente hoje?

O exercício do “e se” vale apenas como isso mesmo, um exercício para iluminar melhor o que aconteceu de fato. Ou não aconteceu de fato. O que está diante de nós, hoje, é o que fazer diante desta realidade agora. Não que país seria o Brasil, mas sim que país será o Brasil caso não descobrirmos por que não podemos descobrir quem mandou matar Marielle Franco.

A pergunta mais perigosa

A aparente impossibilidade de elucidar a morte de Marielle, que já provocou alarmantes declarações de autoridades públicas no passado recente, nos lança em perguntas cada vez mais perigosas. As perguntas perigosas costumam ser as mais importantes.

Sabemos há muito que há um poder paralelo no Brasil. Um poder do crime que, em diferentes momentos, teve e tem ramificações na estrutura do Estado. As milícias cariocas, herdeiras dos esquadrões da morte formados por policiais, são o exemplo mais bem acabado desta distopia que virou realidade. E também de sua evolução ainda mais perversa, ao confundirem-se nas últimas décadas com o próprio Estado, na medida em que são agentes do Estado usando a estrutura do Estado para controlar as comunidades, lucrar com esse domínio e executar quem se opõe ao seu poder. Começaram a atuar com a desculpa de proteger as favelas e periferias do tráfico de drogas. E se tornaram ainda piores do que o tráfico. Em alguns casos são sócias dos traficantes, na maioria dos casos mais poderosas.

Como o cidadão pode se contrapor a um poder que controla ao mesmo tempo o crime e as forças de repressão ao crime, a usurpação dos serviços públicos e os próprios serviços públicos, um poder que comercializa até mesmo lotes de votos numa eleição, como fazem algumas milícias? As muitas comunidades que hoje são reféns das milícias no Rio podem contar como é viver sob o jugo da lei que corrompe a lei, da polícia que é bandida.

O que Adriano da Nóbrega poderia esclarecer é se este poder já deixou de ser paralelo. Se chegamos a um ponto em que um e outro são o mesmo também no Planalto. Poderia, mas não pode mais. E nós, que (ainda) estamos vivos, o que podemos? E, mais importante, o que faremos?

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de RuínasColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum


Demétrio Magnoli: Causa mortis

Marielle foi executada pois colocava em risco os negócios e a segurança das milícias

Ela morreu porque era negra, homossexual, feminista e socialista. Um ano atrás, logo após o assassinato de Marielle Franco, incontáveis ativistas de esquerda atribuíram o crime a isso que a lei qualifica como "motivo torpe". No dia da prisão dos suspeitos (12/3), a promotora Simone Sibílio, coordenadora do Gaeco, reproduziu a conclusão prévia: "os autos de investigação nos autorizam a imputar aos dois denunciados a motivação torpe, decorrente de uma repulsa à atuação política de Marielle na defesa de suas causas: minorias, mulheres negras, LGBT". No megafone dos ativistas, o diagnóstico reflete o impulso de direcionar os holofotes para suas convicções militantes. Já no microfone da promotora, denota incompetência —ou, pior, o desejo de encerrar as investigações sem elucidar a autoria intelectual da execução.

O crime foi meticulosamente planejado. Os suspeitos não mantinham relações pessoais com a vítima. Um deles pertenceria a uma milícia de Rio das Pedras; o outro seria responsável por homicídios ligados à contravenção. Tudo indica que eles dispunham de um arsenal de fuzis de assalto M-16. A tese do "crime de ódio" não combina com esse conjunto de circunstâncias. As causas das "minorias, mulheres negras, LGBT" contam com inúmeros destacados porta-vozes. Contudo, não há indícios de que os suspeitos buscavam a eliminação genérica deles. Por que precisamente Marielle, entre tantos?

Num artigo publicado na Folha, Mônica Benício, viúva de Marielle, faz referências ao racismo e à homofobia mas não inclui, em momento nenhum, a palavra "milícias". Talvez sem perceber, seu texto assenta-se sobre a tese do "crime de ódio". Contudo, simultaneamente, em outra declaração, afirma que "não basta prender mercenários" pois é preciso "saber quem mandou articular tudo isso e qual foi a motivação".

O problema é que, se estamos diante de um "crime de ódio", a demanda não faz sentido. Nessa hipótese, os suspeitos não poderiam ser classificados como "mercenários" e suas recompensas transitariam exclusivamente na esfera psicológica. A viúva da vítima tem direito à confusão; a promotoria não tem. A promotora que, açodada, joga todas as fichas na "motivação torpe" está, conscientemente ou não, sabotando a investigação.

A indagação "quem mandou articular tudo isso?" inscreve-se na tese do crime político, que Simone parece disposta a afastar. Marielle, negra e homossexual, assim como Marcelo Freixo, branco e heterossexual, era uma liderança engajada na exposição das ligações das milícias com a polícia e com a política. A primeira foi executada; o segundo consta de listas semipúblicas de "marcados para morrer" das milícias. Sob a lógica do crime político, compreendem-se as características metódicas da execução e as motivações racionais que deflagraram a operação. Mas ela solicita perseguir respostas politicamente sensíveis.

Marielle foi executada pois colocava em risco os negócios e a segurança das milícias. Raul Jungmann, ex-ministro da Segurança Pública, partia desse princípio quando declarou, há quatro meses, que um "complô" impedia que viessem à tona "os mandantes e executores" do assassinato. Na ocasião, Jungmann atribuiu o "complô" a "interesses que envolvem agentes públicos, milícias, políticos". Simone, a promotora, tem evidências de que o ex-ministro assoprava um balão de denúncias vazias?

De um ex-ministro a um ministro, e do passado ao presente: Sergio Moro assegurou que a Polícia Federal "continuará contribuindo com todos os meios necessários para as investigações do crime e das tentativas de obstruí-las". Disse, ainda, esperar que as prisões conduzam à "elucidação completa deste grave crime, para que todos os responsáveis sejam levados à Justiça". O "complô", porém, segue ativo, agora agarrado à conveniente tese do "crime de ódio".

*Demétrio Magnoli, Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Eliane Brum: Quem mandou matar Marielle? E por quê?

Bolsonaro, que governa o Brasil pela administração do ódio, deveria ser o maior interessado em desvendar o crime

Quando soube que Marielle Franco havia sido assassinada, eu tinha acabado de chegar de Anapu, a cidade que recebeu o sangue de Dorothy Stang. Quatro tiros tinham arrebentado a cabeça bonita de Marielle e também aquele sorriso que fazia com que mesmo eu, que nunca a conheci, tivesse vontade de rir com ela. Ainda hoje tenho quando vejo a sua fotografia. E rio com Marielle. E então lembro o horror da destruição literal do seu sorriso. E então eu não choro. Eu escrevo.

Quando a notícia chegou eu ainda estava na Amazônia, mas me preparava para pegar um avião para São Paulo. Eu carregava no meu corpo o horror de ter constatado que a violência contra os pequenos agricultores no Pará era, naquele momento, pior do que em 2005, ano do assassinato de Dorothy. Havia então, em Anapu, uma trilha vermelho-sangue de 16 execuções de trabalhadores rurais ocorridos desde 2015, pessoas que não tinham cidadania americana para chamar a atenção da imprensa.

Dois dias antes, na estrada de Anapu, eu havia sido alcançada pela notícia do assassinato de Paulo Sérgio Almeida Nascimento, diretor da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama). Paulo recebia ameaças por sua atuação e fez repetidos pedidos de proteção policial. Ele cobrava providências dos governos federal e do Pará, além da prefeitura de Barcarena, sobre a atuação da mineradora norueguesa Hydro Alunorte, que comprovadamente contaminou a água dos rios da região, ameaçando a vida da população e o meio ambiente. Paulo foi assassinado dois dias antes de Marielle.

Em Anapu, eu tinha escutado padre Amaro Lopes afirmar que sabia que estavam armando para ele, que inventariam algo para interromper sua luta. Ele era considerado o sucessor de Dorothy Stang na proteção dos direitos dos trabalhadores rurais e da floresta amazônica na região. Para mim era claro que as reais sucessoras de Dorothy eram as freiras que dividiam a casa com ela e que seguiam seu trabalho sem escorregar em vaidades pessoais. O trabalho de Amaro Lopes, porém, era importante o suficiente para ser interrompido pela violência. Duas semanas mais tarde, como o padre havia previsto, ele foi preso numa operação cinematográfica pela polícia do Pará, e acusado de quase tudo. O objetivo era assassinar a sua reputação e neutralizá-lo. Foi alcançado.

Quando soube da morte de Marielle, era este o mapa de mortes ao redor de mim, apenas no pequeno círculo que era eu. Essas mortes, ainda que não diretamente, estavam conectadas. Elas expressavam um novo momento do país, um em que a vida valia ainda menos, e a justiça era ainda mais ausente, quando não conivente.

Desde 2015, a tensão no campo e nas periferias urbanas crescia no Brasil. Era o resultado direto da fragilização da democracia pelo processo de impeachment, que sempre se faz sentir primeiro nos espaços mais distantes dos centros de poder. Mesmo antes de ser afastada, Dilma Rousseff (PT) já estava concedendo o que não se pode conceder, no desespero de barrar o processo que a arrancaria do cargo para o qual fora eleita. Na Amazônia, esses recados são interpretados como literalidade. E autorização.

Os assassinatos mostraram como o Brasil arcaico tentava esmagar o Brasil insurgente que tinha avançado nos últimos anos

Essas mortes expressavam também como o Brasil arcaico, aquele que ganhou uma imagem eloquente no retrato oficial do primeiro ministério de Michel Temer (PMDB) – branco, masculino e reprodutor das oligarquias políticas – esmagava o Brasil insurgente que tinha avançado nos últimos anos, aquele que deslocava os lugares dos centros e das periferias, confrontava o apartheid racial não oficial, rompia com os binarismos de gênero, enfrentava o patriarcado com cartazes e peitos nus.

Eu descia a escada da casa que alugava. Ao chegar ao último degrau, tive a sensação de que o Brasil tinha sido rasgado. Comecei a descer a escada em um país, e terminei em outro. No meio, a notícia do assassinato de Marielle Franco. O corpo flagelado de Marielle era o rasgo.

Quando viajava para São Paulo, num percurso longo de três voos, em que podia checar as informações apenas nas escalas, percebi que esse sentimento não era só meu. Uma parte do Brasil se levantava, ocupava as ruas, se retorcia e gritava.

Matar uma vereadora eleita a tiros era um passo além na violência extrema de um país que convive com o genocídio dos jovens negros, que convive com o genocídio dos indígenas, como se fosse possível conviver com genocídios sem corromper além do possível o que chamamos de alma. O assassinato de Marielle era um passo além, um passo já sobre o vão do abismo, até mesmo para o Brasil.

Desde 2014 eu comecei a escrever uma palavra em vários dos meus textos. Esgarçado, esgarçamento... Demorei a reconhecer o padrão. Às vezes uma palavra se impõe pelos caminhos do inconsciente que percebe o mundo a partir de outros percursos. Esgarçada, a carne do país agora se rasgava, como se os corpos furados à bala, os corpos negros, os corpos indígenas, ao se tornarem numerosos demais, tivessem tornado impossível sustentar qualquer remendo. Mesmo uma costureira amadora sabe que não é possível cerzir um pano rasgado demais, onde a pele juntada com agulha e linha de imediato se abre. Já não havia integridade possível no tecido social do Brasil porque se matou demais. Marielle Franco era o além do demais.

Em 14 de março de 2018, o Brasil entrou numa nova fase de suas ruínas continentais

Entendi então que também era um Brasil que morria com Marielle. E que daquele dia em diante entraríamos numa outra fase de nossas ruínas continentais. Acredito que estava certa. Mas acredito também que estava errada. Estava certa porque Marielle Franco acolhia em seu corpo todas as minorias esmagadas durante 500 anos de Brasil. Seu corpo era um mostruário, uma instalação viva, da emergência dos Brasis historicamente silenciados.

Marielle carregava múltiplas identidades: negra, como é a maioria dos que morre; da favela (da Maré), de onde vêm os que têm menos tudo; mulher preta, a porção mais frágil e sujeita à violência da população brasileira; lésbica, o que a lança em outro grupo flagelado pela homofobia. Carregando tudo o que era – e será sempre –, Marielle elegeu-se vereadora do Rio pelo PSOL. E fez de suas identidades criminalizadas uma explosão de potência. Ela era a encarnação de um movimento que vinha tanto dos interiores quanto dos estertores do Brasil. Marielle encarnava um levante que não morreu com ela, mas que vem sendo massacrado nos últimos anos. Um levante criador e criativo que sonhava com outro Brasil, que almejava atravessar as oligarquias alegremente com seus pés descalços como o fez neste Carnaval – rumo a um outro jeito de ser Brasis, no plural.

Marielle tinha todo esse desaforo no seu corpo e ainda ousava rir, e ria muito, como fazem as mulheres que sabem que rir é um ato de transgressão, já que chorar é o que se espera de nós.

O Brasil que existiu de 1985 a 2016 morreu com o voto criminoso de Bolsonaro em favor do impeachment da primeira mulher presidente

Ao mesmo tempo, eu estava errada. O Brasil pós-redemocratização, o país onde eu tinha vivido a minha vida adulta, não tinha morrido em 14 de março de 2018. Mas sim quase dois anos antes, em 17 de abril de 2016.

Uma parte dos brasileiros soube que algo terrivelmente definitivo tinha acontecido naquele domingo em que os deputados votaram pela abertura do impeachment de Dilma Rousseff. Mesmo os que eram favoráveis ao impeachment chocaram-se com as tripas à mostra dos parlamentares, a votar em nome de Deus e da família contra uma presidenta que não havia cometido crime de responsabilidade. A vergonha atingiu quase todos nós. Ou pelo menos muitos. Muitos pela ética, a maioria talvez apenas pela estética.

O Brasil que existira durante 31 anos, do fim da ditadura militar à votação do impeachment de Dilma Rousseff, de 1985 a 2016, morreu com o voto de Jair Bolsonaro. Nestas mais de três décadas o Brasil avançou e retrocedeu, convulsionou-se, desvelou-se, povoou-se de esperanças, conviveu com o impossível de seus genocídios e protegeu agentes de Estado que cometeram crimes contra a humanidade durante o regime de exceção.

É da gestação dessa democracia deformada que nasce o Brasil que vivemos hoje, como já escrevi neste espaço, mais de uma vez. Mas até 2016 tivemos um país em ebulição, onde o presente era ferozmente disputado por diferentes grupos. Naquele país, o levante do qual Marielle Franco é um dos símbolos avançava pelas brechas, e avançava rápido, porque tinha séculos de atraso às suas costas.

Não é coincidência que Jean Wyllys, o deputado que cuspiu em Bolsonaro, é também o primeiro exilado de seu governo

O voto de Jair Bolsonaro interrompeu esse processo – e encerrou uma das fases mais ricas de possibilidades do Brasil. Não apenas o impeachment, que parte da esquerda chama de “golpe”, mas a perversão do impeachment tornada explícita pelo voto de Bolsonaro. Se o voto do ex-capitão era uma expressão da anatomia do impeachment, e era, o voto era isso e também algo além disso. Um além que talvez só Jean Wyllys (PSOL), no seu ato de cuspir, tenha percebido. Não é apenas coincidência que seja ele o primeiro político exilado do Brasil do bolsonarismo.

Naquele momento, Bolsonaro cometeu o crime de apologia à tortura e ao torturador. “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim". O então deputado federal violou o artigo 287 do Código Penal: “Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime. Pena: detenção de três a seis meses, ou multa”.

Ustra foi o único torturador reconhecido como torturador pela justiça brasileira. Sob o comando de Ustra, pelo menos 50 pessoas foram assassinadas e outras centenas torturadas. Havia ainda o sadismo explícito do aposto colocado por Bolsonaro: “pelo pavor de Dilma Rousseff”. A presidente foi torturada por agentes do Estado na ditadura.

Bolsonaro consumava ali a ligação entre os dois momentos do país, saltando sobre o período democrático. Ao invocar o torturador e apontar o pavor da torturada, Bolsonaro tornou o impeachment sem base legal um novo ato de tortura contra Dilma Rousseff.

Aquele, na minha opinião, foi o momento mais grave do país desde a redemocratização. O dia seguinte decidiria o futuro do Brasil. Se a lei fosse cumprida e Bolsonaro denunciado, julgado e preso, as instituições teriam mostrado que eram capazes não só de fazer a lei valer, mas também capazes de proteger a democracia e os princípios democráticos.

A serviço de forças muito além de sua família, Bolsonaro era aquele soldado raso despachado para a frente de batalha para descobrir se explode ou se a tropa mais gabaritada pode avançar em relativa segurança. Como ele ameaçou uma presidente e homenageou um torturador e continuou tocando a vida porque a lei era palavra morta, o Brasil afundou ali. Menos de um mês depois, em 12 de maio de 2016, dia do afastamento de Dilma Rousseff da presidência do país, Bolsonaro mergulhou nas águas do Rio Jordão, em Israel, para ser batizado pelo Pastor Everaldo, líder do PSC.

Foi também naquele voto que Bolsonaro virou presidente da República, ou alguém com muitas chances de se tornar presidente da República. De personagem bufão do baixo clero do Congresso, ele foi promovido a representante das forças mais arcaicas: tanto as que queriam garantir a ampliação do seu poder no Planalto, como os ruralistas, quanto as que queriam alcançar o poder central, caso dos evangélicos.

Os generais hoje no poder deveriam ter escutado o ditador Ernesto Geisel, que chamava Bolsonaro de “mau militar”

Naquele momento, também os setores das Forças Armadas incomodados com a Comissão da Verdade e a pressão pela revisão da Lei de Anistia viram uma oportunidade. Arriscada, mas ainda assim uma oportunidade. O ex-capitão, que era conhecido como oportunista e insubordinado, poderia ser útil para barrar a produção de memória sobre o regime de exceção e reescrever a história. Poderia ser útil também para garantir a volta dos generais ao Planalto sem o trauma de um golpe clássico, como ocorreu em 1964.

Acreditaram poder controlá-lo. Deveriam ter ouvido um general mais experiente antes de se meter na perigosa aventura bolsonarista. Em 1993, em entrevista aos pesquisadores Maria Celina D´Araújo e Celso Castro, o general Ernesto Geisel, quarto militar a presidir o Brasil durante a ditadura, afirmou: “Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar”.

Marielle Franco foi morta neste novo Brasil, por este novo Brasil escancarado pelo crime de Bolsonaro ao votar pelo impeachment. Este novo Brasil é velho, mas também é novo. Porque o novo não é sinônimo de bom. E o velho não é sinônimo de ruim. A serviço do que há de mais arcaico e viciado na história do Brasil, Bolsonaro é novo. A serviço do que há de mais cínico na história do Brasil, o fundoportunismo evangélico das lideranças neopentecostais é novo.

Já o novo que vem das raízes, representado por Marielle, o que vem da insurreição dos negros aquilombados, da resistência quase transcendental dos povos indígenas, das mulheres que amam suas bucetas, daqueles que não se encaixam na normatização dos corpos, é este que está sendo esmagado. Precisamos saber: Quem mandou matar Marielle? E por quê?

Marielle foi morta também por carregar no corpo o levante dos Brasis periféricos que reivindicam o lugar de centro

Seja qual for a resposta objetiva, concreta, que já tarda um ano, Marielle também foi morta por carregar no seu corpo o levante dos Brasis periféricos que nos últimos anos vêm reivindicando o lugar de centro. Ela era a expressão cheia de curvas de tudo aquilo que aqueles que só conseguem conviver com ângulos retos sentem compulsão por exterminar. Não apenas porque são incapazes de lidar com outras formas geométricas, mas porque quando os excluídos do Brasil ocupam as tribunas pelo voto, aqueles que acham que o poder é parte do seu destino hereditário temem por seus privilégios.

Desde que a primeira mulher presidenta foi arrancada do Planalto por um impeachment descabeçado, a violência nas periferias da floresta, do campo e das cidades recrudesceu. A percepção era de que algo represado, contido com muito esforço, se liberava. E de fato se liberava. Todo o desejo de destruição recalcado pelo que chamam de “politicamente correto”, mas que é outra coisa, emergiu. E da forma violenta como irrompe o que é controlado com esforço, o que é empurrado para o fundo, sem trabalho de elaboração tanto na esfera pública quanto na privada. Ainda assim, as Marielles seguiram.

Há no Brasil atual um desejo de destruição dos corpos que se recusam a ser normatizados, como os das mulheres e dos LGBTI

É de desejo de destruição que falamos. E minha interpretação é que majoritariamente é um desejo de destruição dos corpos das mulheres e dos LGBTI, dos corpos que se recusam a ser normatizados, como Jair Bolsonaro e seus seguidores deixaram claro na campanha de 2018. Acrescentaria ainda nesta lista os corpos dos que praticam as religiões de origem africana, barreira ao crescimento das evangélicas neopentecostais, que por isso precisam ser demonizadas.

Quando Bolsonaro invoca a tortura do corpo da presidenta ao votar pelo impeachment, é a vontade de destruição do corpo de Dilma que reafirma. Como antes já havia feito a apologia do estupro ao agredir a deputada federal Maria do Rosário (PT).

É importante lembrar de Luana Barbosa dos Reis Santos, negra, periférica e lésbica, que foi assassinada por policiais em 2017. Assim como lembrar que foi uma mulher, Amélia Teles, torturada por Ustra, aquela que foi agredida mais uma vez pelas redes sociais ao ser ameaçada de morte por apoiadores de Bolsonaro durante a campanha. Também Amelinha foi torturada duas vezes, a segunda por ousar contar a violência que sofreu pelas mãos e ordens do herói de Bolsonaro. Como vale a pena lembrar ainda, os agentes do Estado, além de usarem os equipamentos clássicos de tortura, como os choques elétricos, costumavam também torturar as mulheres introduzindo ratos e baratas em suas vaginas, ampliando o componente misógino do sadismo.

Os atuais donos do poder deflagraram uma guerra pelo controle dos corpos, aquilo que Jair Bolsonaro pregou como o fim das minorias, que devem “se curvar diante da maioria”. O “menino veste azul, menina veste rosa”, da ministra da Mulher, Damares Alves, não é uma distração ou um factoide – e sim a mais exata tradução de uma disputa de poder muito profunda.

O Carnaval de 2019 perturbou tanto Bolsonaro porque mostrou que o levante continua vivo

É necessário prestar atenção em quem foi obrigado – até agora – a deixar o país para salvar a sua vida: publicamente, um gay assumido e duas feministas conhecidas. Mas há mais gente. A violência não é sobre quaisquer corpos, mas sobre corpos específicos. O que se disputa, vale repetir, é o controle sobre os corpos que se insurgiram – o das mulheres, dos negros, dos indígenas e dos LGBTQI. Também não foi qualquer imagem que Bolsonaro escolheu para tentar desqualificar o Carnaval de 2019, mas uma relação sexual entre dois homens. Bolsonaro se descontrolou um pouco mais porque o Carnaval mostrou, apesar de toda a violência pregada pelo presidente, que o levante continua vivo. E muito vivo.

É urgente parar de fingir. Não vivemos numa democracia. Desde que assumiu, Bolsonaro passou a usar seu poder de presidente a serviço de sua máquina de produzir linchamentos e desqualificar opositores, que trata como inimigos. A estratégia de sua ação na redes sociais, assessorado pelo filho zero dois, é a de manter a população em suspenso. Bolsonaro e zero dois vão controlando os dias e os espasmos, disseminando mentiras e direcionando ataques.

Sejamos claros: Bolsonaro está controlando o cotidiano do país. Não pela administração pública, mas pela administração do ódio. O que vai acontecer neste país com um presidente que usa o poder e a máquina do Estado para destruir uma parcela cada vez maior da população?

Bolsonaro e sua administração do ódio podem provocar uma tragédia a qualquer momento

Parar de fingir que existe uma normalidade democrática é uma medida urgente para manter a sanidade mental da população. O Brasil pode explodir em ódios a qualquer momento. São grandes as chances de Bolsonaro provocar uma tragédia. Ele está fora de controle, se é que algum dia teve algum controle. E as instituições não se movem para proteger a população e a Constituição.

Vivemos no Brasil um cotidiano de exceção. Desde o voto de Bolsonaro. E rumamos para um Estado de Exceção, desde o voto em Bolsonaro.

A destruição do corpo de Marielle Franco, o corpo político que se recusava a ser subjugado, é até hoje o mais violento ataque. É por dignidade que se grita “Marielle Presente”. É por responsabilidade coletiva. Mas também é pela convicção de que manter viva a memória de Marielle e tornar cara a sua morte é o que possivelmente já tenha nos salvado de outros corpos arrebentados à bala pelas ruas do Brasil. Esse grito persistente é o que talvez tenha nos tenha salvado do descontrole total.

Este Brasil que matou Marielle já era o Brasil de Bolsonaro mesmo antes de ele ser eleito. Era o Brasil em que os filhos de Bolsonaro vestiam uma camiseta com a inscrição “Ustra Vive” para disputar votos. Em que o atual governador do Rio aparece junto com dois brucutus, que depois se tornariam deputados eleitos pelo PSL. Na imagem, eles se orgulham de arrebentar a placa de rua com o nome de Marielle Franco. E atravessam seu nome com os próprios corpos, como numa espécie de estupro simbólico.

A apuração do assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes está em curso. O fato de um ano após sua morte o Brasil ainda não saber quem ordenou o crime e por que razões ordenou o crime é uma vergonha para os responsáveis, em todas as instâncias – e uma vergonha para o Brasil. Mas não só uma vergonha. O que a demora em solucionar o crime expõe é a convulsão do país em que uma polícia precisa investigar por que razões a outra polícia não investiga. Um país em que os suspeitos que acabaram de ser presos eram policiais militares.

Bolsonaro deveria ser o brasileiro que mais deseja esclarecer a morte de Marielle e, assim, provar que coincidências são apenas coincidências

O presidente do Brasil e sua família deveriam ser os primeiros a querer que o assassinato de Marielle Franco fosse esclarecido. E imediatamente. Deveriam ser os mais interessados em provar que as coincidências e os vários cruzamentos da família com suspeitos de terem executado o crime são apenas isso: coincidências. Não é possível governar um país sem que essas coincidências sejam esclarecidas. A cada nova coincidência, cresce na população o sentimento de descontrole.

Só a dois dias de completar um ano das mortes é que finalmente a Polícia Civil do Rio e o Ministério Público do Rio prenderam os ex-PMs Ronie Lessa e Elcio Vieira de Queiroz. Lessa foi preso na casa de 280 metros quadrados onde vivia com a família, na mesma rua e no mesmo condomínio de Jair Bolsonaro. Da varanda da casa de Lessa é possível ver o quarto da filha de Bolsonaro. Segundo o delegado Ginilton Lages, a filha de Lessa namorou um dos filhos de Bolsonaro. Na casa de um amigo de Lessa, a Polícia Civil encontrou 117 fuzis incompletos, do tipo M-16: é a maior apreensão de fuzis da história do Rio de Janeiro.

Ninguém é responsável pelos atos de seus vizinhos nem pelos atos dos sogros dos filhos. Mas, enquanto os mandantes do crime não forem descobertos e as motivações esclarecidas, também não há como provar que coincidências são apenas coincidências. E isso é ruim para o Brasil. É por isso que o clã Bolsonaro deveria ser o maior interessado em desvendar o assassinato de Marielle. Para o bem do Brasil.

Porque há outras coincidências. O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), escreveu numa rede social que um dos cinco presos na operação “Os Intocáveis”, de janeiro deste ano, uma ação conjunta da Polícia Civil e do Ministério Público, era suspeito de envolvimento nas mortes de Marielle e de Anderson. O ex-capitão da PM Adriano Magalhães Nóbrega, hoje foragido, foi apontado pela operação como um dos líderes da milícia de Rio das Pedras, que opera um esquema de grilagem de terras, entre outros crimes e contravenções. Nóbrega também seria chefe do grupo de extermínio Escritório do Crime, suspeito de estar associado à execução de Marielle e de Anderson. Este mesmo Nóbrega foi celebrado pelo hoje senador Flávio Bolsonaro, o zero um, com moção de louvor por seu “brilhantismo e galhardia”, em 2003, e com a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em 2005.

As coincidências não param aí. Até novembro de 2018, a mãe e a mulher de Nóbrega trabalhavam no gabinete de Flávio Bolsonaro. O zero um atribuiu as contratações a seu ex-assessor, Fabrício Queiroz, amigo de longa data do presidente da República. Queiroz, que foi policial militar, é suspeito de comandar rachadinhas no gabinete de zero um. O esquema retém parte dos salários de funcionários nomeados de um gabinete. Queiroz também é o autor do depósito de um cheque de 24 mil reais na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

No final de 2018, a Polícia Federal entrou no caso Marielle para descobrir o que estava barrando a investigação do caso Marielle. “Uma investigação sobre a investigação”, como definiu o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann. Quando a Polícia Federal precisa ser acionada não para desvendar um caso, mas para descobrir por que o caso não é desvendado, é compreensível e mesmo esperado que a população comece a entrar em pânico.

Jungmann disse mais: o processo de apuração do crime é “uma aliança satânica entre a corrupção e o crime organizado”. O então ministro já havia descrito o caso Marielle com as seguintes palavras: “Fica claro que existiria uma grande articulação envolvendo agentes públicos, milicianos, políticos, num esquema muito poderoso, que não teria interesse na elucidação do caso Marielle, até porque estariam envolvidos nesse processo, se não tanto na qualidade daqueles que executaram, na qualidade de mandantes”. Ele era o ministro da Segurança e tudo o que afirmava era sua impotência para elucidar o crime.

Para manter a popularidade em alta, Bolsonaro está gestando uma guerra civil não declarada no Brasil

Bolsonaro entra no terceiro mês de governo. Já mostrou que governa pela administração do ódio. E que essa administração é estratégica e calculada para cumprir pelo menos dois objetivos: desviar o foco das atenções sobre as suspeitas envolvendo o filho zero um, que podem atingir mais membros da família, inclusive o próprio presidente, assim como manter o país em guerra civil não declarada nas redes sociais, de forma que Bolsonaro possa escolher o inimigo a ser linchado antes que o ódio se volte contra ele.

O presidente dedica grande parte do seu tempo a manter suas milícias digitais ocupadas, destruindo as reputações de seus críticos, e sem tempo para prestar atenção em como são tratados os assuntos urgentes do Brasil. Como já se viu, a produção de linchamentos seguidamente tem como alvos jornalistas que investigam tanto as milícias do Rio quanto o caso Queiroz.

Jair Bolsonaro transformou o Brasil em um laboratório de administração do ódio e de seus efeitos sobre a população. É um “case”. E é muito perigoso. Quem percebe já começou a adoecer. Outros deixaram o país para não virarem mártires. O pior que podemos fazer neste momento é fingir que isso é normalidade. Ou que há normalidade possível com um presidente que controla os dias do Brasil pela administração do ódio nas redes sociais. A pressão está crescendo. As coincidências precisam ser esclarecidas o mais rapidamente possível. As instituições devem acordar.

Quando finalmente for descoberto quem mandou matar Marielle Franco – e por quê –, não será apenas um crime que vai ser elucidado. É a anatomia do Brasil atual que poderá ser desvelada em todo o seu espantoso horror. Mas os mandantes – e os motivos – só serão revelados se continuarmos a perguntar: “Quem mandou matar Marielle? E por quê?”

Marielle Presente!

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


Míriam Leitão: Marielle era força e promessa

Filhos de Bolsonaro fizeram as perguntas erradas diante da apresentação dos suspeitos do assassinato de Marielle Franco

“Quem era Marielle?” A pergunta é do deputado Eduardo Bolsonaro. “Estou falando com todo o respeito. Ninguém conhecia Marielle Franco antes de ela ser assassinada”. O parlamentar tem que redobrar seu respeito. Marielle era um fenômeno da política. Mulher, negra e tendo crescido na Maré, sem qualquer parente na política, de um partido pequeno, fez uma campanha sem recursos e que a consagrou com mais de 46 mil votos. Ela foi votada principalmente nas áreas pobres da cidade.

Quem era Marielle? Era uma política despontando com uma força de liderança enorme. Na democracia representativa, os representantes são o esteio das instituições e por isso vivem sob constante escrutínio da população. Marielle encarnava exatamente os que mais precisam ter voz num país desigual e cheio de injustiças como o Brasil, as mulheres, os negros, os pobres, os que são perseguidos por sua orientação sexual. Trabalhou para construir essa liderança, por 10 anos foi funcionária de uma casa legislativa, acompanhava o chefe, deputado Marcelo Freixo, numa CPI árdua, a das milícias, problema que ou é enfrentado ou o Rio naufragará na barbárie. Os chefes da milícia são, como ninguém desconhece, ex-integrantes das forças de segurança do Estado. Atuam numa zona de sombra perigosa, afinal o Estado treina e arma seus agentes para que protejam a população e não para prepará-los para ocupar parte do território, sequestrar populações, ameaçá-las e matar os que considera que são seus inimigos.

Segundo o deputado Bolsonaro, ninguém sabia quem era Marielle Franco, antes do crime. Seus eleitores sabiam, a população que foi espontaneamente às ruas nas horas seguintes para chorar sua morte sabia. E infelizmente sabiam também os que a mataram e os que tramaram tão minuciosamente como executar o crime. Se não era ninguém, como sugere o deputado Bolsonaro, porque o policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Queiroz programaram com tanta frieza, a esperaram com tanta determinação, planejaram com tantas minúcias o seu assassinato?

Ela era uma força emergente que já no seu primeiro mandato ameaçava e incomodava. O país precisa saber tudo sobre esse crime porque ele é um atentado à democracia. O Estado Democrático de Direito não pode conviver com o fato de que um representante eleito foi assassinado pelas ideias que tinha e defendia. Isso ocorre nas ditaduras, que se instalam na marginalidade, na ausência da lei. Mas a democracia não pode aceitar o silêncio, as respostas incompletas ou as interpretações enviesadas sobre os motivos que levaram ao crime. Como disse Merval Pereira ontem neste jornal, é “improvável” a tese de que foi por ódio que Ronnie Lessa a matou. Um ódio dele, só dele, e não a ponta executora de um plano para eliminar uma voz que ficava mais alta a cada dia.

O senador Flávio Bolsonaro fez também uma pergunta, diante dos fatos expostos pela Delegacia de Homicídios ao prender os dois suspeitos. “Agora virou fator importante para o crime o cara coincidentemente morar no condomínio dele (de Jair Bolsonaro)?” De novo, há um erro de olhar. O que ele e os órgãos de segurança e todos os envolvidos na proteção do presidente deveriam se perguntar é como ninguém soube que o presidente morava tão perto de alguém que tinha ligações com criminosos, era um matador de aluguel e possuía arsenal onde havia 117 fuzis. Afinal, Bolsonaro foi esfaqueado durante a campanha. E esse foi o argumento para se fazer uma blindagem tão grande na posse que impôs aos jornalistas constrangimentos inéditos. Mas, depois da posse, quando vinha ao Rio, ele ficava numa extrema proximidade de um matador de aluguel.

Há distorção da realidade nas perguntas feitas pelos dois filhos do presidente diante da apresentação pela polícia dos suspeitos pela morte de Marielle. A pergunta exata é saber quem mandou matar uma representante do povo do Rio na Câmara Municipal. O esclarecimento do crime é fundamental para dar respostas à família, aos que amavam Marielle, aos que se sentiam representados por ela, aos que vislumbravam o seu futuro. Mas é também a única forma de fortalecer a democracia. A cada dia — e já são 365 deles — em que não se sabe a motivação e os mandantes desta conspiração e morte, maior é o risco que corre a democracia brasileira.


El País: Prisão de suspeitos de matar Marielle eleva pressão para rastrear mandantes

Um ano após crime, autoridades respondem primeiras perguntas em meio a apuração paralela da PF. Investigação sobre papel de Escritório do Crime segue em sigilo

Por Felipe Betim, do El País

Foi necessário quase um ano desde a brutal execução da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes para que os investigadores da Delegacia de Homicídios (DH) e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro dessem as primeiras respostas a familiares e amigos das vítimas — e também para a sociedade brasileira — sobre quem poderia ter executado o crime, um divisor de águas na história recente da violência política no país. A primeira fase das investigações só veio a ter um desfecho nesta terça-feira, 12 de março, a apenas dois dias do primeiro aniversário do duplo assassinato. Ronnie Lessa, um sargento reformado da Polícia Militar, de 48 anos, foi formalmente acusado pelo MP de ter feito os 13 disparos contra o carro onde estavam Marielle e Anderson. Elcio Vieira de Queiroz, um policial militar expulso da corporação em 2011, de 46 anos, foi apontado como o motorista do Cobalt prata de onde saíram os tiros.

Ambos estão presos e tiveram suas residências reviradas por policiais, autorizados pela Justiça a realizar um total 34 mandados de busca e apreensão que devem servir para dar continuidade a uma investigação que, nas palavras de Geniton Lages, chefe da DH, ainda não terminou. Os investigadores anunciaram que faz parte de uma segunda fase, boa parte dela ainda em sigilo, a elucidação definitiva do crime. Assim, o visível alívio dos investigadores ao apresentar os primeiros resultados foi imediatamente tomado pela pressão, verbalizada por familiares e amigos das vítimas, para saber se Lessa, que já era conhecido por seus serviços como matador de aluguel embora jamais tenha sido formalmente acusado disso, planejou o crime sozinho ou se recebeu ordens — e dinheiro — para executá-lo. O dia terminou com uma fotografia de 117 fuzis M-16 apreendidos na casa de um amigo de Lessa. Uma quantidade que serve ao menos para demonstrar que o sargento reformado não trabalha sozinho.

A investigação do caso Marielle percorreu diversos caminhos e começou a expor as entranhas do mundo do crime organizado — mais organizado do que se pensava — no Rio de Janeiro. Foi através das investigações que as autoridades chegaram até o chamado Escritório do Crime, um poderoso grupo miliciano de Rio das Pedras que atua sob encomenda. A investigação acabou desmembrada do Caso Marielle e resultou na Operação Intocáveis em janeiro deste ano. O capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, vulgo Gordinho, tido pelo MP como uma das lideranças do Escritório do Crime, está foragido. O caso ganhou ainda mais voltagem política com a divulgação de que Raimunda Veras Magalhães e Danielle Mendonça da Costa da Nóbrega, mãe e mulher de Adriano, respectivamente, estavam lotadas no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio até o segundo semestre de 2018 .

Investigação sigilosa

Ainda não está clara qual é a relação de Adriano Nóbrega e Ronnie Lessa. Durante a entrevista coletiva desta terça, as promotoras do Ministério Público Simone Sibilio e Leticia Emile não descartaram nem apontaram uma relação entre os dois personagens. As investigações, ressaltaram, seguem sigilosas. Limitaram-se a dizer que até o momento foi identificada uma possível ligação de Lessa com grupos milicianos fora de Rio das Pedras, mas disseram que o sargento reformado já teve uma academia no bairro. Ou seja, segundo suas próprias palavras, já pode ter tido ao menos no passado alguma relação com uma das regiões mais emblemáticas de milícia e com vinculação ao Escritório do Crime. As duas investigações seguem paralelamente e também não está claro como voltarão a se encontrar lá na frente.

A denúncia feita pelas promotoras ressalta que o crime "foi praticado por motivo torpe, interligado à abjeta repulsa e reação à atuação política da mesma na defesa de suas causas". Entre essas causas estão as "voltadas para as minorias, para as mulheres negras e LGBTs", esclareceu Sibilio nesta terça. Os investigadores tiveram acesso às pesquisas feitas por Lessa, que teria demonstrado "um perfil absolutamente reativo a essas pessoas que se dedicam às causas das minorias", ainda segundo a promotora. Essa constatação enfraquece a tese de que o crime foi encomendado por outra pessoa? “Essa motivação ela é decorrente da atuação política dela, mas não inviabiliza um possível mando. Ela não inviabiliza que o crime tenha sido praticado por uma paga ou promessa de recompensa. Essas causas juridicamente e faticamente não se repelem", garantiu Sibilo.

Há outras questões correndo em paralelo. Ronnie Lessa, que deixou a PM em 2009 após perder a perna em um atentado, era conhecido no Rio por ser um exímio atirador e matador de aluguel, conhecido pela frieza com que cumpria suas tarefas criminosas. Para encontrá-lo e encomendar uma execução bastava ir a Quebra Mar, Barra da Tijuca, onde batia ponto cotidianamente. Apesar disso, Lessa era ficha limpa, isto é, não havia até o momento sido investigado ou processado. Por que a Polícia Civil ainda não havia chegado até ele?

O que existe, até o momento, é uma denúncia feito pelo miliciano Orlando de Curicica — preso e apontado como um dos mandantes do assassinato de Marielle por uma testemunha — de que a cúpula da Polícia Civil recebe propina para não investigar milicianos e contraventores. "Existe no Rio hoje um batalhão de assassinos agindo por dinheiro, a maioria oriunda da contravenção. A DH (Delegacia de Homicídios) e o chefe de Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, sabem quem são, mas recebem dinheiro de contraventores para não tocar ou direcionar as investigações, criando assim uma rede de proteção para que a contravenção mate quem quiser. Diga, nos últimos anos, qual caso de homicídio teve como alvo de investigação algum contraventor?", afirmou em uma entrevista ao jornal O Globo no ano passado. Apontado por uma testemunha de ter planejado a execução da parlamentar do PSOL junto com o também vereador Marcello Siciliano, ele é um dos investigados pela DH e nega as acusações. Mas, com as prisões desta terça, não está claro se Siciliano e Orlando de Curicica foram descartados.

Seja como for, a Procuradoria-Geral da República determinou que a Polícia Federal investigasse as denúncias de que a Polícia Civil agia para sabotar as investigações. Nesta terça, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, fez questão de fazer referência à investigação da PF, a quem comanda, e garantir que a corporação seguiria empenhada em esclarecer as obstruções. No ano passado,  o Governo Federal, presidido por Michel Temer (MDB), tentou sem sucesso federalizar as investigações mais de uma vez. Isso foi ressaltado pelo ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungmann nesta terça-feira em entrevista ao portal UOL. Ele se disse frustrado por não ter assistido à elucidação do caso Marielle, mas que não se sente responsável. Também disse que faltam provas para que haja uma condenação de Lessa e Queiroz.

"É na Polícia Federal que eu deposito as maiores esperanças. Confio que será possível saber se algum complô se formou no Rio para evitar que se chegue a executores e mandantes", disse ele. "Espero que se esclareça também de que maneira o crime organizado conseguiu capturar, em larga medida, órgãos de Estado, poderes estaduais, instituições do Rio. Precisamos chegar ao coração das trevas, desmontando essa aliança satânica", acrescentou.

Jungmann já havia dito no ano passado que "políticos poderosos" estavam envolvidos na morte da vereadora. Em agosto do ano passado, o então deputado estadual Marcelo Freixo cobrou uma investigação sobre um possível envolvimento de ex-deputados do MDB no crime, que estaria lihado à atuação firme do PSOL durante o processo que os afastou da Assembleia Legislativa do Rio (ALERJ) e resultou na prisão deles. Os parlamentares são Edson Albertassi, Paulo Melo e Jorge Picciani, este último um dos principais caciques do partido no Estado e ex-presidente da ALERJ. Até agora, nenhuma palavra das autoridades aventa um possível envolvimento da cúpula do MDB fluminense.

Também já se sabe que o sargento reformado Ronnie Lessa é morador do condomínio Vivendas da Barra, onde também morava o presidente Bolsonaro e seu filho Carlos. Os investigadores descartam, por ora, qualquer relação entre os Bolsonaro e Lessa. "Não detectamos uma relação direta com a família Bolsonaro", destacou Lages. Questionado, reconheceu que a filha de Ronnie Lessa namorou um dos filhos do presidente. "Isso tem [namoro entre os dois], mas isso, para nós, hoje, não importou na motivação delitiva. O fato dele morar no condomínio do Bolsonaro não nos diz nada, isso será confrontado no momento oportuno. Não é importante para esse momento", acrescentou.

Por ora, o governador Wilson Witzel, flagrado em um evento no qual foi rasgada uma placa comemorativa em memória a Marielle Franco durante a campanha no ano passado, tenta aumentar seu capital político com as prisões desta terça-feira, ao convocar a coletiva no palácio da Guanabara juntamente com os chefes da polícia e defender uma delação premiada dos acusados. As promotoras do MP, que não consideraram o local adequado, convocaram uma entrevista coletiva para horas depois. Esses desencontros políticos mostram que as questões que rondam o caso, que promete levar brasileiros às ruas na quinta no primeiro ano do crime, ainda são muitas. As respostas, insuficientes.


Política Democrática online mostra relação de milícias no RJ com o caso Marielle

Assassinatos de vereadora e de seu motorista completam um ano sem elucidação nesta quinta-feira (14/3)

Cleomar Almeida

O poder das milícias no Rio de Janeiro e seu suposto envolvimento nos assassinatos da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, são destaques da quinta edição da revista Política Democrática online. Os crimes completam, nesta quinta-feira (14/3), um ano sem elucidação. Em vídeo, fotos e textos, a reportagem reforça a cobrança por Justiça, liderada por familiares das vítimas e movimentos sociais, e detalha a teia de atuação dos grupos criminosos, também formados por agentes da segurança pública, em comunidades pobres do Estado.

» Acesse aqui a edição de fevereira da revista Política Democrática online

Com o título “Caso Marielle expõs o poder de milícias no RJ”, a reportagem divulga, com exclusividade, que, de 2013 a 2018, 2018, 835 militares foram expulsos da corporação, no total, por diversas irregularidades – incluindo envolvimento comprovado com milícias e prática de crimes –, 312 (37,3%) deles só no ano passado, quando foi registrada a maior baixa do período. Os dados foram repassados pela corregedoria e pelo coordenador de comunicação social da PM-RJ, coronel Mauro Fliess.

As milícias extorquem as populações de favelas. Cobram por suposta segurança e ligações clandestinas de água, energia e TV a cabo. Estipulam comissões ilegais sobre venda de botijões de gás, água, materiais de construção e transporte. Fazem grilagem de terras, assim como a extração de pedra e saibro nas reservas ambientais da União. Orquestram a eleição de políticos aliados. Matam qualquer um que representar ameaça ou resistência aos projetos de manutenção e aumento do poder de seus integrantes sobre populações pobres, que se tornam ainda mais vulneráveis diante do fortalecimento desses grupos.

Foto: Cleomar Almeida/FAP

“No momento em que vi Marielle no caixão, inerte, fiquei anestesiada pela dor. Não tenho como explicar, ela foi abatida como uma coisa qualquer. Foi um filme de terror”, desabafa a advogada Marinete da Silva, de 67 anos, mãe da vereadora assassinada (foto acima). “Tem hora que paro e parece que a ficha ainda não caiu, mas preciso ser forte para cuidar do nosso filho”, diz Agatha Arnaus, viúva do motorista.

A reportagem conta o drama das famílias das vítimas. Elas esperam por justiça e cobram agilidade das investigações, realizadas pela Polícia Civil e Ministério Público do Rio de Janeiro. A Polícia Federal também atua sobre o caso.

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El País: Suspeitos de matar Marielle, PM e ex-PM são presos no Rio de Janeiro

Ronie Lessa teria feito os disparos e Elcio Vieira de Queiroz, conduzido o veículo usado no crime

Dois suspeitos de matar a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, no dia 14 de março de 2018 foram presos na madrugada desta terça-feira. Ronnie Lessa, policial militar reformado, de 48 anos, é acusado de ter feito os 13 disparos contra o carro onde estava Marielle. Já Elcio Vieira de Queiroz, de 46 anos e expulso da Polícia Militar, é acusado de ter dirigido o Cobalt prata de onde saíram os tiros que mataram a vereadora do PSOL e o motorista. O crime completa um ano na próxima quinta-feira, 14 de março.

Em entrevista coletiva, Giniton Lages, chefe da DH, disse que as prisões são a conclusão da primeira fase de uma investigação que ainda está longe de acabar. Falta agora saber se alguém mandou matar Marielle Franco ou se a ideia partiu do próprio Lessa. Também é preciso saber as motivações do crime, embora já se fale em “crime de ódio”. “Esta é a primeira fase. Não tem nada encerrado. Estamos indicando quem atirou e quem conduziu o veículo. Há ainda respostas para alcançar”, destacou. Por isso, ressaltou, a polícia está cumprindo um total de 34 mandados de busca e apreensão nesta terça.

Já o governador Wilson Witzel disse que os acusados “poderão fazer uma delação premiada”. Ele disse ainda as prisões são “uma resposta importante que nós estamos dando para a sociedade: a elucidação de um crime bárbaro cometido contra uma parlamentar, uma mulher, no exercício de sua atividade democrática”.

As prisões ocorreram em uma operação conjunta do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, e da Delegacia de Homicídios (DH) da Polícia Civil da capital. A polícia e o Gaeco chegaram às 4h na casa dos investigados. Lessa mora no condomínio Vivendas da Barra, o mesmo do presidente Jair Bolsonaro (PSL). "Não detectamos uma relação direta com a família Bolsonaro", destacou Lages. “O fato dele morar no condomínio do Bolsonaro não nos diz nada, isso será confrontado no momento oportuno”, afirmou. A Operação Buraco do Lume, em referência ao local no centro do Rio onde políticos do PSOL prestam contas à população, também cumpriu outros 32 mandados de busca e apreensão para apreender documentos, telefones celulares, notebooks, computadores, armas, entre outros objetos que podem ajudar a esclarecer o crime.

De acordo com a denúncia das promotoras Simone Sibilio e Leticia Emile, o crime foi planejado nos três meses que antecederam os assassinatos. "É inconteste que Marielle Francisco da Silva foi sumariamente executada em razão da atuação política na defesa das causas que defendia. A barbárie praticada na noite de 14 de março de 2018 foi um golpe ao Estado Democrático de Direito", diz a denúncia. O MP também pediu a suspensão da remuneração e do porte de arma de fogo de Lessa, a indenização por danos morais aos familiares das vítimas e a fixação de pensão em favor do filho menor de Anderson até completar 24 anos de idade.

As provas contra Lessa e Queiroz

Segundo o Ministério Público, os dois foram denunciados depois de análises de diversas provas. Os investigadores conseguiram acessar os dados de Lessa armazenados na nuvem (servidor externo que permite acessar arquivos remotamente) e descobriram que o acusado monitorava a agenda de Marielle Franco.

Para chegar a esses dados a Polícia Civil percorreu um longo caminho durante meses. De acordo com as informações do jornal O Globo, a polícia rastreou todos os telefones que estavam ligados nos locais por onde Marielle passou naquele 14 de março. Assim, a polícia conseguiu uma extensa lista de números de telefone. O problema é que Lessa não usava um número em seu nome, mas sim um telefone "bucha", isto é, comprado com o CPF de uma outra pessoa, ainda segundo jornal. Já o número registrado em nome do sargento reformado estava com uma mulher na zona sul da cidade. O objetivo, segundo os investigadores, era confundir a polícia caso decidisse checar as antenas de telefonia.

Mas uma câmera de segurança captou a luz de um celular dentro do Cobalt prata onde estavam os assassinos da vereadora e do motorista. O carro estava parado na rua dos Inválidos, onde Marielle participava de um debate. Assim, com as informações de horário e local, a polícia fez uma outra triagem e conseguiu identificar um número que havia telefonado para uma pessoa relacionada a Lessa. Após identificá-lo, a polícia conseguiu através de uma ordem judicial acionar as empresas de aplicativos e, assim, ter acesso aos dados do sargento reformado. Verificou-se, então, que ele monitorava a agenda de Marielle Franco e havia buscado informações sobre o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL), mentor político da vereadora, além do interventor federal e general Walter Braga Netto.

Além disso, Lessa entrou no radar da polícia depois de ter sido vítima de um atentado no dia 27 de abril do ano passado, um mês depois do assassinato de Marielle e Anderson. Ele e um amigo estavam em um carro na Barra da Tijuca quando um homem em uma motocicleta se aproximou e atirou. Lessa reagiu e o rapaz fugiu. Baleado, deu entrada no Hospital Municipal Lourenço Jorge e saiu sem dar esclarecimentos. A polícia disse que havia possibilidade de ser um assalto, mas não descartou a hipótese de que o atentado foi uma tentativa de queima de arquivo.


BBC Brasil: O que são e como agem as milícias acusadas de matar Marielle Franco

Por Rafael Barifouse, Da BBC News Brasil em São Paulo

Muro com foto de Marielle Franco
Milicianos estão sendo acusados de participação na morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, em março, no Rio

 

As milícias que atuam no Rio de Janeiro voltaram às manchetes nesta semana com desdobramentos de investigações ligadas à morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, executados a tiros na região central da capital fluminense há nove meses.

O general Richard Nunes, secretário de Segurança Pública do Estado, disse ao jornal O Estado de S. Paulo, que Marielle teria sido morta a mando de milicianos. O motivo seria a crença de que a vereadora poderia interferir em interesses relacionados à grilagem de terras na zona oeste do Rio, principal área de atuação destes grupos paramilitares na cidade.

Na quinta-feira (12), foram cumpridos mandados de prisão, busca e intimações nas cidades de Nova Iguaçu, Angra dos Reis e Petrópolis, no Rio de Janeiro, e Juiz de Fora, em Minas Gerais.

Os mandados foram emitidos em inquéritos que correm em paralelo à investigação sobre a morte de Marielle e Anderson e teriam como alvos suspeitos de envolvimento com o crime.

Marcello Siciliano dá entrevista
Houve uma operação de busca e apreensão na casa e no gabinete do vereador Marcello Siciliano (PHS), acusado por testemunhas de estar envolvido no crime

 

Também foi feita uma operação de busca e apreensão na casa e no gabinete do vereador Marcello Siciliano (PHS). O político estaria envolvido junto com um miliciano no assassinato de Marielle, segundo depoimentos prestados à polícia. Siciliano nega qualquer participação no crime.

A Polícia Civil ainda apura um suposto plano para executar o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). Segundo uma denúncia anônima, um policial militar e comerciantes ligados a milicianos teriam a intenção de matá-lo.

Freixo é o autor do relatório da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que investigou a atuação das milícias, em 2008, e que culminou no indiciamento de 226 pessoas por ligações com estes grupos, entre elas vereadores e deputados estaduais.

Até hoje esta CPI foi a maior investigação já feita sobre a atuação de milícias.

Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, as milícias representam hoje uma ameaça maior do que o tráfico de drogas no Rio de Janeiro.

 

O que são as milícias

Milícias são grupos armados irregulares formados muitas vezes por integrantes e ex-integrantes de forças de segurança do Estado, como policiais, bombeiros e agentes penitenciários.

Os milicianos assumem por meio da força armada o controle territorial de áreas ou mesmo bairros inteiros e coagem moradores e comerciantes, segundo definições traçadas pelos pesquisadores Ignácio Cano e Thais Duarte no estudo "No Sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011)", publicado em 2012.

Estes criminosos se apresentam como uma solução para o problema do tráfico de drogas seja para impedir sua entrada em um determinado bairro, por exemplo, ou como uma forma de expulsar os traficantes dali.

"Estes grupos podem ter 20, 30 ou até 40 membros. São pessoas que de alguma forma têm acesso privilegiado a armas e bons contatos na polícia, o que lhes confere proteção. Eles ocupam uma área sob a justificativa de que proporcionarão a segurança que o Estado não é capaz de fornecer, deixam um grupo armado no local e partem para outras áreas para invadi-las", diz Michel Misse, diretor do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Marielle Franco
Marielle teria virado alvo ao trabalhar com um grupo de Rio das Pedras que tentava impedir a construção de novos edifícios no local, o que traria prejuízo a milicianos

 

As milícias têm como objetivo principal o lucro, obtido a princípio pela cobrança da proteção oferecida nestes locais.

"Eles chegam dizendo que trarão a paz, mas isso tem um preço, que é a taxa de segurança imposta a moradores e comerciantes. Quem se opõe, é morto. Depois, as milícias percebem que podem criar um negócio mais amplo e ampliam o portfólio de suas atividades", explica o sociólogo José Cláudio de Souza Alves, professor da UFFRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).

O pesquisador diz que atualmente as milícias estão envolvidas na oferta de uma variedade de serviços, como venda de água, gás e cestas de alimentos, transporte clandestino, TV a cabo e internet piratas, roubo e refino de petróleo cru para fabricação de combustível, coleta de lixo e também na apropriação de terras públicas e privadas abandonadas ou sem uso, que são loteadas e vendidas ilegalmente.

Esta última atividade estaria ligada ao crime contra Marielle e Anderson, de acordo com a polícia, porque a vereadora estaria apoiando um grupo que lutava contra o plano da prefeitura para a comunidade de Rio das Pedras, na zona oeste, de realizar parcerias com construtoras para que elas fizessem obras de urbanização em troca da permissão para construir edifícios de até 12 andares na região.

Rio das Pedras foi uma das primeiras áreas da cidade a ser controlada por milícias. A atuação da vereadora contrariaria os interesses de milicianos, que seriam donos de imóveis no local.

A origem das milícias

Muitas vezes, as milícias são tratadas como uma novidade surgida no Rio de Janeiro nos anos 2000, mas especialistas no tema apontam que suas raízes são mais profundas.

"Quando se cria essa categoria, parece um fenômeno novo, mas foi apenas um novo nome para um tipo de atividade que já existia na Baixada Fluminense [na região metropolitana do Rio] desde os anos 1950, em que grupos de extermínio já agiam como protomilícias e cobravam taxas de comerciantes locais para manter a ordem", diz Misse.

Alves afirma que, a partir de meados dos anos 1990, estes grupos mudaram de perfil - até então formados majoritariamente por civis, eles passaram a ter entre seus membros cada vez mais agentes públicos de segurança e ganharam força, atuando também na política.

"Com o controle de um território urbano, eles passam a oferecer o acesso a eleitores e vendem votos de áreas inteiras para quem paga mais", diz o sociólogo.

Marcelo Freixo segura relatório de CPI
O deputado Marcelo Freixo (PSOL) foi o autor do relatório da CPI que culminou com o indiciamento de 226 pessoas por ligações com milícias

 

A socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Cidadania na Universidade Candido Mendes (CESeC) e ex-diretora do sistema prisional do Rio de Janeiro, diz que, em princípio, "havia a crença que estes grupos tinham bons propósitos".

"Políticos chegaram a transmitir a ideia de que, como a polícia não podia dar segurança, a própria população estava se organizando para fazer isso, mas, com o tempo, ficou claro que eram grupos armados que estavam submetendo comunidades inteiras a um regime de terror e cometendo todo tipo de crimes", diz Lemgruber.

A CPI de 2008, instaurada após funcionários do jornal O Dia terem sido torturados por milicianos, foi um ponto importante para essa mudança de percepção.

A Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro informou à BBC News Brasil que, entre 2006 e setembro deste ano, 1709 pessoas foram presas por ligações com milícias.

No entanto, Lemgruber faz críticas ao real efeito da CPI e da atuação do Estado contra estes grupos.

"A CPI mostrou que temos um problema de grandes proporções, durante algum período pessoas foram presas, mas nada foi feito além disso", afirma a socióloga.

"Algumas medidas simples poderiam ter sido tomadas. As corregedorias das corporações deveriam ter aberto investigações para verificar se agentes suspeitos tinham rendimentos para levar a vida que tinham. Estes grupos precisavam ser sufocados financeiramente, mas isso nunca aconteceu, porque não há interesse. Ou melhor, há muitos interesses escusos entremeados aí."

Visão aérea de Rio das Pedras
Investigação apura se Marielle teria sido morta por contrariar interesses de milicianos na comunidade Rio das Pedras, na zona oeste do Rio

 

A dimensão das milícias

Estudos apontam que as milícias cresceram bastante desde a conclusão da CPI.

Um levantamento do MPE (Ministério Público Estadual) do Rio de Janeiro revelado em abril pelo jornal O Globo mostra que, nos últimos oito anos, as milícias mais do que dobraram sua área de atuação na zona oeste do Rio de Janeiro.

Em 2010, grupos paramilitares controlavam 41 comunidades e favelas cariocas nesta região da cidade. Hoje, são 88.

Por sua vez, um levantamento do site G1 feito com base em dados do MPE, da Polícia Civil, da Secretaria de Estado de Segurança e do IBGE aponta que, em 2008, as milícias estavam em 161 favelas da região metropolitana fluminense. Dez anos depois, já estão em 37 bairros da cidade e 165 favelas.

Estes grupos teriam 2 milhões de pessoas sob sua influência, em uma área de 348 km², uma expansão ocorrida não só na zona oeste, mas também na Baixada Fluminense e no município de Itaguaí, a 69 km do Rio.

Na avaliação de Alves, da UFRRJ, as milícias representam hoje um perigo maior do que o tráfico de drogas.

"O poder deles é incomparável, têm um portfólio de negócios em sua base e estão dentro do Estado. Eles elegem políticos, o tráfico não. Veja que, para a investigação sobre a morte da Marielle chegar a alguma coisa, foram necessários nove meses. Não sei se isso terá algum resultado, mas mostra o poder que as milícias têm hoje."

Misse, da UFRJ, concorda que os grupos paramilitares são um problema de segurança pública "mais grave do que o tráfico, porque envolve agentes e ex-agentes públicos".

"Hoje em dia, há um discurso que legitima esse tipo de atuação, de que isso é algo eficiente para controlar a criminalidade, algo que o tráfico não tem", afirma.

"As milícias continuam se espalhando e parecem ter um projeto de expansão, de ampliar seu poder por meio da política, conferindo a ela uma proteção por dentro do Estado."