Literatura

Luiz Carlos Azedo: O projeto conservador

“A dois anos do bicentenário da independência, as ideias de Oliveira Viana parecem renascer das cinzas, como fênix, diante da grande interrogação: que país seremos daqui a 100 anos?”

Há 100 anos, o livro de um autor até então desconhecido, com 37 anos, fez estrondoso sucesso literário e político: Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Viana. Escrito entre 1916 e 1918, levou dois anos para ser publicado, pela livraria José Olympio. Somente um intelectual da época ousou contestá-lo, Astrojildo Pereira, um dos grandes biógrafos de Machado de Assis, jornalista, crítico literário e anarquista, que se converteria ao marxismo e, dois anos depois, fundaria o Partido Comunista. O que dizia Viana? Ele definia três arquétipos para o povo brasileiro: o sertanejo, o matuto e o gaúcho, os quais pretendia analisar, desenvolvendo um projeto de pesquisa ambicioso, ao qual deu sequência com a publicação meteórica de mais quatro ensaios: O Idealismo da Constituição (1920), Pequenos Estudos da Psicologia Social (1921), Evolução do Povo Brasileiro (1923) e O Ocaso do Império (1924). O primeiro volume de Populações Meridionais do Brasil dedicou aos paulistas, fluminenses e mineiros; o segundo, ao campeador rio-grandense. Partia do homem para criticar as instituições da época.

“O sentimento das nossas realidades, tão sólido e seguro nos velhos capitães gerais, desapareceu, com efeito, das nossas classes dirigentes: há um século vivemos praticamente em pleno sonho. Os métodos objetivos e práticos de administração e legislação desses estadistas coloniais foram inteiramente abandonados pelos que têm dirigido o país depois da independência. O grande movimento democrático da Revolução Francesa; as agitações parlamentares inglesas; o espírito liberal das instituições que regem a república americana, tudo isto exerceu e exerce sobre nossos dirigentes, políticos, estadistas, legisladores, publicistas, uma fascinação magnética que lhes daltoniza completamente a visão nacional dos nossos problemas. Sob esse fascínio inelutável, perdem a noção objetiva do Brasil real e criam para uso deles um Brasil artificial e peregrino, um Brasil de manifesto aduaneiro, made in Europa, sorte de Cosmorama extravagante. Sobre o fundo de florestas e campos, ainda por descobrir e civilizar, passam e repassam cenas e figuras tipicamente europeias.”

Oliveira Viana faz um ataque frontal aos liberais brasileiros, corroborado pela iniquidade social que havia sido desnudada por Euclides da Cunha, ao descrever a Guerra de Canudos, n’Os Sertões. Concluía que era preciso “coragem infinita” para “contravir ostensivamente às ideias de liberdade e construir um poderoso Estado centralizado, capaz de impor-se a todo o país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional”. Ao dizer que era impossível reproduzir aqui no Brasil o parlamentarismo inglês, o liberalismo democrático à francesa, ou o federalismo e descentralização republicana ao estilo americano, como lembra o falecido jornalista e cientista político Gildo Marçal Brandão, em Linhagens do Pensamento Político Brasileiro (Hucitec), Oliveira Viana recomendava uma intervenção radical pelo Estado, destinado a promover a industrialização e criação de bases sociais aptas a sustentar governos liberais, o que alguns viram como uma espécie de “autoritarismo instrumental”.

Estado Novo

Música para a jovem oficialidade do Exército, que daria início às rebeliões tenentistas, e para o castilhismo gaúcho, o suprassumo do nosso republicanismo positivista mais autoritário, que desaguariam na Revolução de 1930. A consagração das ideias antissistema de Oliveira Viana viria com o Estado Novo, do qual foi o grande ideólogo, e a “Polaca”, a Constituição de 1937, redigida por Francisco Campos e outorgada pelo ditador Getúlio Vargas. Ironicamente, Jorge Caldeira, em História da Riqueza no Brasil (Estação Brasil), destaca que o colapso político da República Velha interrompe mudanças importantes que estavam em curso, alavancadas por nosso mercado interno e a economia do sertão, como o aumento de rentabilidade da exportação de café, a grande acumulação de capital dos cafeicultores paulistas, que apostaram na industrialização, e não no patrimonialismo, ao contrário das oligarquias rurais que Viana enaltecera.

Segundo Caldeira, em 1920, o Brasil tinha 30 milhões de habitantes, 13,3 mil indústrias, 275 mil operários, produzia 775Gwh de energia elétrica. O Correio transportava 642 milhões de itens. Havia 28,5 mil quilômetros de ferrovias, que transportavam 16,5 milhões de toneladas. Os investimentos, estagnados durante a guerra, eram de 1,1 milhão de libras esterlinas e chegariam a 2,8 milhões, em 1929. Exportava-se 11,5 milhões de sacas de café, cujo rendimento era de 40,4 milhões de libras esterlinas. O percentual da população alfabetizada chegava a 28,8%. Era uma época em que o Estado arrecadava 6% do PIB, ou seja, o setor privado ficava com 94%. A União era responsável por 3,5% desse montante, os Estados com 2,% e os municípios com 0,5%. O país crescia graças ao desenvolvimento capitalista, a conexão entre a economia do sertão e a economia de exportação financiava a industrialização.

Entretanto, o Centenário da Independência desencadearia o questionamento de quase tudo, com a Semana de Arte Moderna, a criação do Partido Comunista, as rebeliões tenentistas, como a Revolta Paulista de 1924 e a Coluna Prestes, no mesmo ano. Qual seria o projeto de país para os 100 anos seguintes? À época, esse debate foi hegemonizado pelas ideias de Oliveira Viana, que tiveram sua grande recidiva após o golpe de 1964, no Sesquicentenário da Independência, no auge “milagre econômico” do regime militar. Agora, no governo Bolsonaro, a dois anos do bicentenário da independência, elas parecem renascer das cinzas, como fênix, diante da grande interrogação: que país seremos daqui a 100 anos?

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Luiz Carlos Azedo: Nos deixem fora dessa

“Na guerra de fake news, atribuir as mais de 100 mil mortes por covid-19 a um falso “genocídio comunista chinês” reproduz uma mentalidade reacionária, xenófoba e racista”

No seu livro Sobre a China (Objetiva), de 2011, Henry Kissinger analisa a história, a diplomacia e a estratégia chinesas na cena mundial. Artífice da reaproximação entre os Estados Unidos e o “Império do Meio”, durante o governo de Richard Nixon, Kissinger realizou mais de 50 visitas a Pequim e a diversas províncias chinesas, encontrando-se com as principais lideranças que antecederam Xi Jinping, o atual presidente chinês: Mao Zedong, Zhou Enlai e Deng Xiaoping. O ex-secretário de Estado norte-americano previu que a China e os Estados Unidos — uma potência continental e uma potência marítima — travariam uma longa disputa pelo controle do comércio mundial, cujo eixo se deslocara do Atlântico pelo Pacífico. Até aí, nada demais. A coisa fica perturbadora quando ele mostra que essa disputa reproduziria o embate entre a Inglaterra, uma potência marítima, e a Alemanha, uma potência continental, pelo controle do comércio no Atlântico, o que provocou duas guerras mundiais no século passado. Quais seriam a forma e desfecho desse embate entre os Estados Unidos e a China?

A resposta começou a ser dada em fevereiro de 2012, com um anúncio da Chrysler, no intervalo da Superbowl, a final do campeonato de futebol americano: “As pessoas estão sem emprego e sofrendo… Detroit mostra-nos que dá para sair dessa. Este país não pode ser derrubado com um soco”. Começava ali a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China que agora estamos assistindo. A Chrysler traduzia o sentimento de milhões de norte-americanos que responsabilizavam a China pela perda de seus empregos. A empresa evocava o patriotismo ao dizer que comprar seus carros salvaria os americanos. Colou a tal ponto que a tese embalou a eleição de Donald Trump em 2016.

O anúncio fora visto por 111 milhões de pessoas, o que popularizou uma discussão que, na verdade, havia sido iniciada em 2005, por Ben Bernanke, então presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, e que ganhara força depois da crise financeira de 2008. O que dizia Bernanke? O deficit da balança de pagamentos dos Estados Unidos havia subido bruscamente no final dos anos 1990, atingindo US$ 640 bilhões, ou seja, 5,5% do PIB em 2004. A poupança interna também havia caído 16,5% do PIB desde 1996. O deficit só poderia ter sido financiado por investimentos estrangeiros. Para Bernanke, havia uma “fartura de poupança mundial” e os chineses, com um tremendo superavit comercial com os Estados Unidos, não estavam investindo nem comprando produtos norte-americanos, estavam aplicando os ganhos em poupança e reservas de moedas.

A pandemia
Bernanke citava outras causas, como o aumento do preço do petróleo e os “fundos de reservas” dos países para se prevenir em relação a crises, mas os chineses eram apontados como os grandes vilões. Na verdade, os americanos aproveitavam a fartura de crédito e se endividavam numa bolha imobiliária. A crise provocada pela falência do Lehman Brothers, porém, parecia corroborar a tese do então presidente do Fed: “Os superavits em conta-corrente da China foram usados quase todos para adquirir ativos dos EUA, mais de 80% deles em títulos do tesouro e de agências muito seguros”, dizia o ex-presidente do Fed. Muitos economistas contestaram a tese, culpar os chineses era uma desculpa para o próprio fracasso. A desregulamentação exagerada do sistema financeiro e a especulação no imobiliário norte-americano foram as principais causas da crise de 2008. A existência da tal “fartura de poupança” também é um mito. Entretanto, a narrativa está aí até hoje e ocupa o centro da campanha de reeleição de Trump, que, agora, também culpa os chineses pela pandemia de covid-19, que chama de “gripe chinesa”.

No Brasil, essa discussão também é pautada por interesses políticos, pois é uma forma de transferir responsabilidades e encontrar um bode expiatório para a pandemia. Na guerra de fake news, atribuir as mais de 100 mil mortes por covid-19 a um falso “genocídio comunista chinês” reproduz uma mentalidade reacionária, xenófoba e racista. Além disso, essa retórica pode trazer péssimas consequências para a economia brasileira, haja vista que o nosso principal parceiro comercial é a China e não os Estados Unidos, potência com a qual o presidente Jair Bolsonaro estabeleceu um alinhamento automático na nossa política externa. Bastou as autoridades sanitárias chinesas anunciarem a presença do vírus da covid-19 num lote de asas de frango congeladas exportado por um frigorífico brasileiro para que as Filipinas, um parceiro comercial importante, suspendessem as importações de frango do Brasil. Ou seja, melhor fazer o dever de casa e ficar fora dessa briga.

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Mario Vargas Llosa: A função da crítica

É também seu papel detectar as relações entre as fabulações literárias e a realidade social

Descobri Edmund Wilson em 1966, quando deixei Paris e fui morar em Londres. As aulas, primeiro na Queen Mary College e, depois, na King’s College, não tomavam muito do meu tempo, e podia passar várias tardes por semana lendo no belíssimo Reading Room da British Library, na época ainda situada dentro do Museu Britânico. Havia dois críticos de leitura indispensável aos domingos: Cyril Connolly, autor de Enemies of Promise e The Unquiet Grave, cuja coluna versava às vezes a respeito da literatura, mas mais frequentemente a respeito da pintura e da política, e as críticas teatrais de Kenneth Tynan, uma maravilha repleta de graça, ideias, insolências e cultura em geral.

O caso de Tynan é muito apropriado para denunciar a hipocrisia da Grã-Bretanha da época (que desapareceu naqueles mesmos anos). Tynan era imensamente popular até circular a suposição de que seria masoquista e que, de acordo com uma sádica, tinha alugado com ela um quarto no centro de Londres, onde ela o chicoteava uma ou duas vezes por semana (e aplicava também a arnica, imagino). O que faziam não importa tanto; mas o fato de isso chegar a conhecimento público já é outra história. Tynan desapareceu dos jornais após o sucesso de Oh! Calcutta! (ele dizia que se tratava de uma tradução inglesa do francês: Oh! Quel cul tu as! (Oh! Que bunda você tem) e deixou-se de falar nele. Partiu rumo aos Estados Unidos, onde morreu, esquecido por todos. Mas suas inesquecíveis críticas teatrais ainda estão por aí, à espera de um editor corajoso que as publique.

Edmund Wilson continua famoso, e espero que ainda seja lido, pois foi o maior crítico literário de antes e depois da Segunda Guerra Mundial, não apenas nos EUA. Acabo de reler pela terceira vez seu Rumo à Estação Finlândia (Companhia das Letras) e voltei a ficar maravilhado com a elegância da sua prosa e sua enorme cultura e inteligência nesse livro que relata as origens da ideia socialista e das loucuras engendradas por esta, desde o momento em que Michelet descobre Vico em uma nota de rodapé e decide aprender italiano, até a chegada de Lenin à Estação Finlândia, em Petrogrado, para comandar a Revolução Russa.

Há dois tipos de crítica. Uma universitária, que está mais próxima da filologia, e trata, entre outras coisas, do indispensável estabelecimento das obras originais tal como foram escritas, e a crítica dos jornais e revistas, a respeito da produção editorial recente, que ordena e elucida esse bosque confuso e múltiplo que é a oferta editorial, no qual nós, leitores, andamos sempre um pouco perdidos. Ambas estão em baixa nos nossos tempos, e não por falta de críticos, e sim de leitores, que assistem à muita televisão e leem poucos livros, e sentem-se assim muito confusos nessa época em que o entretenimento está matando as ideias, e portanto os livros, e destacam-se tanto os filmes, as séries e as redes sociais, onde prevalecem as imagens.

Edmund Wilson, que nasceu em 1895 e morreu em 1972, estudou em Princeton, onde foi colega e amigo de Scott Fitzgerald, mas sempre se negou a ser professor universitário e fazer esse tipo de crítica erudita que só é lida pelos colegas, e às vezes nem mesmo por eles. Seu estilo se destinava ao grande público, que ele alcançava com suas extraordinárias crônicas semanais, primeiro na New Republic, em seguida na New Yorker e, finalmente, na New York Review of Books.

Depois as reunia em livros que nunca perdiam a atualidade. E não escrevia apenas a respeito de autores modernos. Lembro como um de seus melhores ensaios o grande estudo que dedicou a Dickens. Sua prodigiosa capacidade de aprender idiomas, vivos e mortos, era tal que, dizia-se, quando a New Yorker o incumbiu de escrever a respeito dos manuscritos do Mar Morto, ele pediu um prazo de algumas semanas para aprender antes o hebreu clássico. E lembro de ter lido nas páginas do extinto Evergreen sua polêmica com Nabokov a respeito da tradução que este tinha feito de Eugene Onegin, o romance em versos de Pushkin, comentando cada aspecto das quimeras e segredos da língua russa.

Quem descobriu a chamada “geração perdida” de grandes romancistas americanos entre os quais figuravam Dos Passos, Hemingway, o soberbo Faulkner e Scott Fitzgerald? Foi Edmund Wilson que, em seus artigos e ensaios, foi promovendo e decifrando os grandes achados e as novas técnicas e maneiras de narrar do gênio literário americano, sem deixar de mencionar que tinham sido eles que aproveitaram melhor do que ninguém os ensinamentos do Ulisses de Joyce.

Os grandes críticos sempre acompanharam as grandes revoluções literárias e, por exemplo, na América Latina, o chamado “boom” do romance não teria existido sem críticos como os uruguaios Ángel Rama e Emir Rodríguez Monegal, o peruano José Miguel Oviedo e muitos outros. Não surpreende, portanto, que, na França, Sainte-Beuve, e na Rússia, Visarión Belinski, tenham acompanhado o período mais criativo e ambicioso de suas revoluções literárias, dando-lhes alguma ordem e hierarquia. A função da crítica não é somente descobrir o talento individual de certos poetas, romancistas e dramaturgos; é também detectar as relações entre essas fabulações literárias e a realidade social e política que expressam ao transformá-la, o que há nelas de revelação e descoberta, e, portanto, de queixa e protesto.

Estou convencido de que a boa literatura é sempre subversiva, como estavam os inquisidores e censores que proibiram durante os três séculos coloniais a publicação de romances nas colônias da América Espanhola, sob o pretexto de que esses livros disparatados – sua referência era o romance de cavalaria – poderiam levar os índios a acreditar que assim era a vida, a realidade e, com isso, desorganizar e arruinar a evangelização. É claro que houve muito contrabando de romances, e devia ser formidável, naquela época, ler esses romances proibidos. Mas se o contrabando permitiu a leitura dos romances, a proibição se aplicava rigorosamente no que tange a sua edição. Durante os três séculos coloniais não foram publicados romances na América Latina. O primeiro, El Periquillo Sarniento, só foi publicado no México em 1816, após a independência.

Aqueles inquisidores e censores que acreditavam que os romances eram subversivos estavam corretos, mas não ao decretar sua proibição. Eles sempre expressam um descontentamento, a ilusão de uma realidade diferente, seja por bons ou maus motivos. O Marquês de Sade, por exemplo, detestava o mundo de sua época porque não era permitido aos pervertidos que saciassem seus desejos, e seus longos discursos, tão enfadonhos, pedem uma liberdade irrestrita para a luxúria e a violência contra o próximo.

O que os bons romances não aceitam é a realidade como ela é. E, nesse sentido, são motores permanentes da transformação social. Uma sociedade de bons leitores é, portanto, mais difícil de ser manipulada e enganada pelos poderes deste mundo. Isso não fica claro nas democracias, porque a liberdade parece diminuir ou anular o poder subversivo dos romances; mas, quando a liberdade desaparece, os romances se convertem em uma arma de combate, uma força clandestina que contraria o status quo, erodindo-o, de forma discreta e múltipla, apesar dos sistemas de censura, muito rigorosos, que tentam impedi-la. A poesia e o teatro nem sempre são veículos daquele descontentamento secreto que sempre encontra uma válvula de escape no romance, ou seja, são mais passíveis de uma adaptação ao seu meio, ao conformismo e à resignação. Tudo isso deve ser apontado e explicado pelos bons críticos, como fez Edmund Wilson ao longo de toda a sua vida. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL


Luiz Carlos Azedo: Viver é muito perigoso

“Com 82,7 mil mortes no Brasil, as cidades reabrem o comércio, as pessoas circulam em transportes lotados e calçadas apinhadas — o risco de contaminação aumentou”

A frase antológica que intitula a coluna, do jagunço Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, nunca foi tão universal. No romance, repete-se muitas vezes, como as referências aos redemoinhos e ao diabo. “Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo que é bonito é absurdo — Deus estável.”

A situação que os brasileiros estão passando em meio à pandemia do coronavírus é como ter um pesadelo acordado. Estamos numa travessia marcada pela incerteza, na qual um vírus terrível vive à espreita. Sair às ruas é um risco, ao qual cada vez mais pessoas estão submetidas, seja pelo número de infectados assintomáticos que circulam, seja pela necessidade de voltar ao trabalho para sobreviver. Ontem, batemos recorde de casos da covid-19 registrados em 24 horas. Segundo o Ministério da Saúde, foram nada menos que 67,8 mil diagnósticos positivos, somando 2,227 milhões de casos confirmados. O recorde anterior, em 19 de junho, era de 54 mil casos. As mortes por covid-19 registradas nas últimas 24 horas foram 1.284. Subiu para 82.771 o número de óbitos pela doença no país.

A pandemia continua assombrosa em São Paulo, onde avançou pelo interior, e pressiona os estados do Sul e do Centro-Oeste. No Norte e Nordeste do país, parece que o pior já passou. Impossível dissociar a sofisticada filosofia do jagunço Riobaldo do diplomata Guimarães Rosa, o escritor: “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso…”. Riobaldo flertava com correntezas e redemoinhos: “Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo”.

Sem controle

O Brasil está relaxando as quarentenas, a política de isolamento social. Mesmo com 82,7 mil mortes, as cidades estão reabrindo o comércio, as pessoas voltam a circular, nos transportes lotados e calçadas apinhadas, o risco não diminuiu, aumentou. Doze estados ainda registram expansão da doença: Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e Paraíba. Ao mesmo tempo, a omissão do governo federal começa a produzir indicadores objetivos que responsabilizam o presidente Jair Bolsonaro e o ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello, pelo fato de a pandemia permanecer sem controle. Tudo tem seu preço.

A deliberada “descoordenação” do Ministério da Saúde no combate à pandemia se traduz na execução orçamentária da pasta, questionada, ontem, no Tribunal de Contas da União (TCU). O ministro Benjamin Zymler afirmou que é muito “baixa” a execução dos recursos destinados ao combate à pandemia. Segundo seu relatório, o Ministério da Saúde gastou 29% do dinheiro que recebeu. Dos R$ 39 bilhões disponíveis, R$ 11,5 bilhões foram efetivamente pagos. Interino na pasta, o general Eduardo Pazuello está arrumando sarna para se coçar, pois pode ser responsabilizado judicialmente pelo fracasso no combate à pandemia, bem como seus principais assessores, por não empregarem os meios disponíveis para contê-la.

O primeiro sinal de que esse risco é real foi dado, ontem, pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o monitoramento das reuniões entre o governo e lideranças indígenas. A conselheira Maria Thereza Uille Gomes passará a acompanhar a “sala de situação”, que monitora a epidemia nas aldeias. A decisão foi tomada porque integrantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se queixaram ao STF de que foram ameaçados e humilhados por integrantes do governo numa reunião. Há 10,2 mil índios contaminados nas aldeias, que registram 408 mortes. O cacique Aritana, do Alto Xingu, contraiu coronavírus e está em estado grave, hospitalizado em Goiânia. A morte dos idosos nas aldeias indígenas representa perda da identidade étnica desses povos, que é preservada por transmissão oral de suas culturas.

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Luiz Carlos Azedo: Quem salva é o professor

“O governo queria tungar o novo Fundeb. Diante da reação de prefeitos e governadores, os deputados do Centrão, com quem o governo contava, refugaram a proposta de reduzir o Fundeb”

Antes de se tornar romancista, o escritor Daniel Pennac foi professor de francês no ensino fundamental e médio de escolas públicas. Quando criança e adolescente, porém, foi o que os franceses chamam de “cancre”: um aluno lerdo, com dificuldades de aprendizagem e desempenho sofrível. No best-seller Diário de escola (Rocco), vencedor do Prêmio Renaudot — uma de suas 30 obras, para todas as idades —, ele conta como o mau aluno virou professor, pedagogo e escritor. A raiz de seu problema não era a falta de escola nem de professores na França, como acontece em muitos lugares aqui no Brasil. Era o medo. “A reação dos adultos é sempre a mesma: eles também têm medo. Têm medo de que seus filhos nunca tenham sucesso. Os professores também têm medo. Têm medo de serem maus professores. Tudo isso tem a ver com a solidão. Solidão da criança, do professor, dos pais. O que é preciso fazer é acabar com essa solidão. Pedagogicamente, como se acaba com a solidão? Criando projetos em comum, onde todos estão envolvidos.”

Pennac conta que foi salvo pelo professor de Francês, para quem mentia muito, porque nunca fazia os deveres. “Ele me disse: ‘muito bem, vejo que você tem muita imaginação. Então, em vez de utilizar sua imaginação para fabricar mentiras, escreva um romance. Você vai me entregar 10 páginas por semana. Não vou mais te dar redações para fazer ou lições para aprender. Você vai apenas fazer esse romance para mim: 10 páginas por semana.’ Isso me salvou. Esse professor foi capaz de transformar um aluno passivo em um aluno ativo, um aluno que escreve um romance”.

Para o escritor, existem três tipos de pessoas: os guardiões do templo, que veem o saber como propriedade privada e tentam monopolizá-lo, porque outros não são dignos dele; os que não ligam para nada, ou seja, preferem se manter alienados e indiferentes; e os “passeurs”, pessoas que levam em consideração a sua cultura, sabendo que ela não lhe pertence e pode fazer a felicidade dos outros. “Se eu te levo para assistir a um filme do qual eu gostei e você também gosta, lhe farei feliz. Ser ‘passeur’ é isso. Tudo que vocês sabem não pertence a vocês. Não é sua propriedade. O conhecimento não faz mais do que passar através de você”. Seu conselho aos alunos é simples: “Não tenham medo, sejam curiosos. A curiosidade é realmente um remédio contra o medo. Sejam curiosos acima de tudo. ‘Sim, mas a realidade me dá medo…’ Se a realidade lhe amedronta, fotografe-a. Abra-se, seja curioso, não se feche”.

Lógica perversa
Lembrei-me de Daniel Pennac, que escreveu seu romance O ditador e a cama de rede (Asa Editora) quando morou no Ceará, por causa da queda de braço entre o governo Bolsonaro e a Câmara sobre a votação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), prevista para hoje. O pomo da discórdia é a destinação de recursos para o pagamento de professores, que hoje formam uma das categorias profissionais mais desprestigiadas, desrespeitadas e mal-remuneradas do país, embora tenha a missão de resgatar as crianças pobres do Brasil da ignorância e da exclusão já na largada.

O relatório da deputada federal Professora Dorinha (DEM-TO) torna o Fundeb permanente, amplia a complementação da União dos atuais 10% para 20% e altera o formato de distribuição dos novos recursos. No fim de semana, porém, o governo Bolsonaro — que se omitiu durante toda a tramitação da PEC — encaminhou a alguns líderes uma proposta alternativa: usar 5% do fundo para programas de transferência de renda, já que o Renda Brasil deverá substituir o Bolsa Família. De onde sairia o dinheiro? Do pagamento dos professores, é claro. O texto em análise na Câmara aumenta de 60% para 70% o piso de recursos do Fundeb para o pagamento de salários da categoria. A contraproposta do governo, porém, estabelecia um teto de 70% para a destinação de recursos do fundo para essa finalidade. Isso inviabilizaria o pagamento dos profissionais em várias redes estaduais e municipais, que já destinam percentual maior do que 70% para esse fim.

Na verdade, o Ministério da Educação se omitiu o tempo todo da discussão, o ex-ministro Abraham Weintraub, defenestrado depois de atacar o Supremo Tribunal Federal (STF), nunca se preocupou com isso. Bolsonaro muito menos. No fim de semana, a equipe econômica entrou em campo para melar o projeto, porque o ministro da Economia, Paulo Guedes, preferia destinar recursos de uma política universalista e estruturante — educação básica de qualidade para todos — para “focalizar” o gasto social no novo programa de transferência de renda do governo, que mira a reeleição do presidente da República. Entretanto, faltou combinar com os beques. Diante da reação de prefeitos e governadores, os deputados do Centrão, com quem o governo contava para barrar a proposta, refugaram.

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O imortal, de Maurício Lyrio, é opção para esquecer agruras da quarentena

Em artigo na revista Política Democrática Online, André Amado recomenda obra de embaixador do Brasil no México

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online, André Amado, recomenda leitura de alto nível, que, segundo ele, fará esquecer as agruras da quarentena. Ele conta aos internautas uma análise sobre o livro O Imortal (Companhia das Letras), a mais nova obra do embaixador brasileiro no México, Mauricio Lyrio, em artigo que publicou na 19ª edição da revista, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira).

Acesse aqui a 19ª edição da revista Política Democrática Online!

O Imortal é o segundo livro de Lyrio e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2019 e do Prêmio Oceanos – Itaú Cultural, no mesmo ano. A seguir, leia trechos do artigo de André Amado:

O imortal tem como personagem central Cassio Haddames, um embaixador lotado em Brasília sem maior brilho profissional, mas que é eleito pela Academia Sueca para receber o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se o primeiro brasileiro a ser contemplado com o cobiçado galardão. Sua candidatura fora proposta pelo ministro das Relações Exteriores, em exposição de motivos, dirigida ao presidente da República, iniciativa que incluía – na verdade, tinha como objetivo maior – vender uma segunda candidatura, a de Sua Excelência ao Prêmio Nobel da Paz. O texto desse expediente, cuja leitura já vale a do livro, reproduz na ficção um exemplo comum na Esplanada dos Ministérios, de como altos membros da burocracia tentam chaleirar o ego de seus superiores. No caso, do mais alto mandatário do pais, na aposta de que ninguém vira o rosto para o horizonte faiscante de tamanho mimo?

Acontece que os suecos aceitaram conceder o Nobel de Literatura ao embaixador, mas passaram solenemente ao largo do pleito presidencial.

De sua parte, Haddames estava até certo ponto constrangido pela concessão do Prêmio. Tal como não se cansava de repetir um despeitado jornalista da terrinha, o próprio Cassio Haddames também tinha dúvidas quanto à justiça da honraria recebida. Ele apenas escrevera três romances, que somavam, juntos, 954 páginas. Daria para justificar a homenagem maiúscula da Academia Sueca? Tanto mais na comparação com a produção literária de um Bandeira, Drummond, Guimarães Rosa, João Cabral, entre tantos outros, jamais considerados por Estocolmo.

Em meio a essa crise de consciência, duas surpresas aguardariam o agora ilustrérrimo embaixador em seu retorno ao Brasil. Primeira, ainda no aeroporto, um comitê de recepção desfraldava faixa monumental com o nome do premiado e dizeres em letras garrafais: O NOBEL É NOSSO! E a segunda foi de início uma sondagem, que rápido ganhou foros de irrecusável gestão, orquestrada por raposas da cena política brasileira, para que Cassio Haddames aceitasse disputar as próximas eleições para presidente da República.

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Luiz Carlos Azedo: A alegoria de Camus

“A epidemia de meningite só acabou após a vacinação de 80 milhões de pessoas, o que seria impossível com a manutenção da censura sobre a doença”

Publicado em 1947, A Peste, do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), é uma alegoria da ocupação nazista. Por isso, fez tanto sucesso não só na França como na Europa do pós-guerra e também na América Latina, inclusive no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970. Camus foi um militante da Resistência, mas teve uma posição muito moderada em relação aos que colaboraram com os invasores alemães durante a II Grande Guerra, condenando os “justiçamentos”. Já era um escritor consagrado, com duas obras elogiadíssimas pela crítica: O estrangeiro e O mito de Sísifo.

Albert Camus nasceu em 7 de novembro de 1913 na Argélia, à época uma colônia francesa, cenário de seu romance, que conta a história de uma epidemia na cidade de Oran, no norte daquele país. Em 1940, um médico encontrou um rato morto ao deixar seu consultório. Comunicou o fato ao responsável pela limpeza do prédio. No dia seguinte, outro rato foi encontrado morto no mesmo lugar. A esposa do médico tinha tuberculose e foi levada para um sanatório. A quantidade de ratos aumentou exponencialmente. Em um único dia, oito mil ratos foram coletados e encaminhados para cremação.

Em pânico, a cidade declarou estado de calamidade, as pessoas tinham febre e morriam em massa. Os muros foram fechados, em quarentena, ninguém entrava ou saía; os doentes foram isolados, as famílias, separadas. Enquanto o padre apregoava que tudo aquilo era um castigo divino, prisioneiros eram mobilizados para enterrar os cadáveres, que empilhavam nas ruas: velhos, mulheres e crianças morriam. O livro é uma alegoria da condição de vida regulada pela morte, fez muito sucesso porque era uma crítica ao fascismo e relatava as diferenças de comportamento diante de situações-limite. Fora escrito durante a ocupação militar alemã. Camus foi editor do jornal clandestino Combat, porta-voz dos partisans.

Em 1951, Camus lançou o livro O homem revoltado, no qual condenava a pena de morte e criticava duramente o comunismo e o marxismo, o que provocou uma ruptura com seu amigo e filósofo Jean-Paul Sartre, que liderou seu linchamento moral por parte da intelectualidade francesa. Mesmo depois do Prêmio Nobel de Literatura, em 1957, continuou sendo um renegado para a esquerda. Seu discurso na premiação foi profético. Permanece atual nestes tempos de epidemia de coronavírus.

“Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer”, disse Camus.

Epidemia
Em comemoração aos 60 anos de sua morte, divulgou-se na França um de seus textos da época da resistência, cujo original foi encontrado nos arquivos do general De Gaulle, o presidente francês que liderara a Resistência do exílio. O documento era destinado às forças que combatiam o marechal Pétain e trata de dois sentimentos presentes no contexto da ocupação: ansiedade e incerteza. A ansiedade “em uma luta contra o relógio” para reconstruir o país; a incerteza, em razão do fato de que, “se a guerra mata homens, também pode matar suas ideias”.

A alegoria de A Peste também serve de advertência diante de certas manifestações de apoio ao regime militar implantado após o golpe de 1964, cujo aniversário foi comemorado ontem. Em 1974, o Brasil enfrentou a pior epidemia contra a meningite de sua história. Para evitar o contágio, o governo decretou a suspensão das aulas e cancelou os Jogos Pan-Americanos de 1975, que foram transferidos de São Paulo para o México. A epidemia começou em 1971, no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Com dor de cabeça, febre alta e rigidez na nuca, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento.

Em setembro de 1974, a epidemia atingiu seu ápice. A proporção era de 200 casos por 100 mil habitantes, como no “Cinturão Africano da Meningite”, que hoje compreende 26 países e se estende do Senegal até a Etiópia. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas, com apenas 300 leitos disponíveis, chegou a internar 1,2 mil pacientes. Na época, eu era um jovem repórter do jornal O Fluminense, de Niterói (RJ). Com a cumplicidade de um acadêmico de medicina, conseguimos fotografar pela janela uma enfermaria lotada de crianças com meningite, no Hospital Universitário Antônio Pedro (UFF). A foto foi publicada com a matéria, mas gerou a maior crise política para a direção do jornal, porque a meningite era um assunto censurado pelos militares. A epidemia só acabou no ano seguinte, após a vacinação de 80 milhões de pessoas, que seria impossível com a manutenção da censura sobre a meningite pelo governo do general Ernesto Geisel.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-alegoria-de-camus/

RPD || Henrique Brandão: Aldir, nunca haverá outro igual

Nos versos de Aldir Blanc havia um sentimento vitalista de malícia, ironia, crítica social e de imagens brilhantes. Vítima da Covid-19, ele deixa mais de cem canções gravadas e uma música inédita

O que dizer de Aldir Blanc em um momento de profunda tristeza como esse? O bardo da Muda, na expressão de seu amigo Eduardo Goldemberg, merece todas as homenagens e elogios do mundo, pelo grande poeta, letrista e cronista que foi. Como compositor, é dos maiores que a MPB já teve. Um monstro, gênio da palavra.

Todos nós somos “reféns” de Aldir. Quem nunca sambou um samba seu? Quem nunca dançou, com a ponta torturante de um band-aid no calcanhar e embalado por uísque com guaraná, um bolero dele? O cara não era profeta, longe disso. No entanto, quem há de discordar que seus versos em “Querelas do Brasil”, música do distante ano de 1978, em parceria com Maurício Tapajós, haveriam de soar tão atuais quando dizem que “O Brazil não merece o Brasil / O Brazil,tá matando o Brasil”?

Aldir morreu de Covid-19, mas sua saúde, assim como a do país que ele tanto amava, foi sendo solapada pela tristeza galopante, com a velocidade de uma brigada de cavalaria, na descrença de que um horizonte mais generoso ainda fosse possível. O país preconizado por atual presidente psicopata, com sua perspectiva cada vez mais autoritária, está muito aquém do Brasil tão amado e cantado pelo poeta.

O Aldir mais conhecido de todos é o letrista de sucessos maravilhosos, tanto na parceria com João Bosco como com músicos do talento de Guinga, Moacyr Luz e Cristóvão Bastos, entre outros, responsável por sucessos que qualquer um assobia fácil pelas ruas, entoa nas mesas dos bares ou ouve com frequência nas rodas de samba. É aquela música que o cidadão comum conhece, canta inteira, mas, muitas vezes, nem sabe quem é o autor. Isso é privilégio de poucos, reservado somente aos maiores, escolhidos a dedo pelo que o destino lhe reservou. Coisa de Caymmi, Luiz Gonzaga, Noel, Vinícius...

Mas tem um outro Aldir, menos conhecido do público, que é tão talentoso quanto o letrista. É o cronista. Sua verve foi exercida, inicialmente, no Pasquim, semanário de humor de saudosa memória, onde jornalistas e colaboradores do quilate de Jaguar, Millôr, Ziraldo, Sergio Cabral, Ivan Lessa e Sergio Augusto esculachavam a ditadura. A colaboração profícua rendeu seu primeiro livro, Rua dos Artistas e Arredores, reunião das crônicas publicadas no tabloide. A primeira edição é de 1978.

A Rua dos Artistas, com este belo nome, fica em Vila Isabel. Aldir morou nela quando garoto, na casa dos avós. Fez daquele microcosmo do subúrbio carioca, a partir de suas lembranças e de sua perspicaz imaginação, crônicas que dialogam com o mundo, esteja você no Rio, Pequim ou Budapeste. Relendo-as, é impossível conter o riso. Os dramas, casos, personagens e apelidos de cada um, que vivem na fictícia, porém muito real, comunidade “vilaisabetana”, misturam grosseria, poesia e generosidade, na proporção exata que só Aldir sabia dosar. Como cronista, assim como letrista, também foi dos grandes, no nível de João do Rio, Lima Barreto, Sergio Porto.

Além do livro, as crônicas geraram um filhote. Foi do nome de um dos personagens de Aldir, o Esmeraldo “Simpatia é Quase Amor”, que, em 1994, leitor de seu livro, sugeri a um grupo de amigos o nome para um bloco de carnaval que pretendíamos fundar. Aldir acabou virando o patrono do bloco. Como era de seu feitio, sempre se esquivou das nossas inúmeras tentativas de homenageá-lo. Participou de alguns desfiles, sempre discretamente. Chegava sem avisar e ia para o meio da bateria tocar seu tamborim. Quando o descobríamos já era tarde, o bloco estava na rua.

Desde então, há 36 carnavais que, sob a benção de Aldir, o “Simpatia” desfila pela orla de Ipanema. Por ocasião do aniversário de 15 anos, gravamos um CD com todos os sambas cantados em nossos cortejos. Dessa vez, fruto de sua benevolência, quem prestou homenagem ao bloco foi o Aldir, ao gravar um depoimento que abre o CD. Diz ele: “O bloco da minha mocidade foi o ‘Bafo da Onça’, de saudosa memória, do Catumbi, Estácio e adjacências. Mas nem mesmo o ‘Bafo’, com suas rainhas e princesas de polução noturna, me deu emoção tão forte como o ‘Simpatia é Quase Amor’. Criei em livro o ‘Simpatia’ para proteger a identidade de um primo do subúrbio (...). É bonito ver um primo da Zona Norte virar bloco na Zona Sul. Com este gesto simpático, saiu ganhando São Sebastião do Rio de Janeiro. No ‘Simpatia’, onde minhas filhas saíram pequenas, hoje, 15 anos depois, desfilam meus netos”. Esse depoimento enche a todos nós, fundadores e foliões do bloco, de imenso orgulho.

Segue em paz, Aldir.

 * Henrique Brandão é jornalista e fundador do bloco “Simpatia é Quase Amor”.

 Aforismas do gênio Aldir (alguns do Rua dos Artista e Arredores, Mórula, 2016).

“Se você está pensando que o tijucano é um estado de espírito, aqui ó! O tijucano é um estado de sítio”

“Alto funcionário da Polícia Federal lembra a seus subordinados em Brasília: o piso é a prova de fogo, o preso, não”

‘Na inauguração do novo Distrito Policial, coube ao delegado dar o pontapé inicial”

“No Hipódromo da Gávea, um garanhão traçou uma égua, depois de uma... informação de cocheira”

“No Jardim Zoológico, o avestruz concretista, depois de uma bimbada, suspira: Pô, Ema...”

“Eu nunca marco derrota do meu time na Loteria. Me sinto um traidor”

“O amor tanto se mete a edredon, que acaba velha colcha de retalhos”

“Querido diário, hoje foi um dia incrível. Nem te conto”


RPD || André Amado: O imortal

Leitura de alto nível, que fará esquecer as agruras da quarentena, recomenda André Amado, que nos brinda com uma análise da mais nova obra do embaixador brasileiro no México, Mauricio Lyrio

É longa e estreita a relação entre funcionários do serviço diplomático brasileiro e a Academia Brasileira de Letras (ABL). No curso da história, nada menos do que doze diplomatas ocuparam cadeiras na prestigiosa academia.[1] No momento, sempre em um universo de 40 acadêmicos, são cinco: Sergio Paulo Rouanet, Alberto da Costa e Silva, Geraldo Holanda Cavalcanti, Evaldo Cabral de Melo e João Almino.

Quando recebi O imortal de nosso embaixador no México, Mauricio Lyrio, confesso que temi tratar-se de uma obra dedicada a explorar a tradição acima mencionada, o que, convenhamos, não é tema exatamente palpitante, para dizer um mínimo.

Conhecendo, no entanto, o autor como conhecia – desde os tempos em que buscava ideias frescas sobre como dirigir o Instituto Rio Branco, honrosa função para a qual acabara de ser convidado –, não pude deixar de intuir que Mauricio teria coisas mais inteligentes a dizer, e de maneira tão brilhante quanto as que me passou lá trás, em 1995.

Não me enganei.

O imortal tem como personagem central Cassio Haddames, um embaixador lotado em Brasília sem maior brilho profissional, mas que é eleito pela Academia Sueca para receber o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se o primeiro brasileiro a ser contemplado com o cobiçado galardão. Sua candidatura fora proposta pelo ministro das Relações Exteriores, em exposição de motivos, dirigida ao presidente da República, iniciativa que incluía – na verdade, tinha como objetivo maior – vender uma segunda candidatura, a de Sua Excelência o mais alto mandatário do pais ao Prêmio Nobel da Paz. O texto desse expediente, cuja leitura já vale a do livro, reproduz na ficção um exemplo frequente na Esplanada dos Ministérios, de como altos membros da burocracia tentam chaleirar o ego de seus superiores, apostando em que ninguém vira o rosto para mimos faiscantes. 

Esqueceram-se de combinar com os suecos, que aceitaram conceder o Nobel de Literatura ao embaixador, mas passaram solenemente ao largo do pleito presidencial. 

De sua parte, Haddames estava até certo ponto constrangido pela concessão do Prêmio. Tal como não se cansava de repetir um despeitado jornalista da terrinha, o próprio Cassio Haddames também tinha dúvidas quanto à justiça da honraria recebida. Ele apenas escrevera três romances, que somavam, juntos, 954 páginas. Daria para justificar a homenagem maiúscula da Academia Sueca? Tanto mais na comparação com a produção literária de um Bandeira, Drummond, Guimarães Rosa, João Cabral, entre tantos outros, jamais considerados por Estocolmo.

Em meio a essa crise de consciência, duas surpresas aguardariam o agora ilustrérrimo embaixador em seu retorno ao Brasil. Primeira, ainda no aeroporto, um comitê de recepção desfraldava faixa monumental com dizeres em letras garrafais: O NOBEL É NOSSO! E a segunda foi de início uma sondagem, que rápido ganhou foros de irrecusável gestão, orquestrada por raposas da cena política brasileira, para que Cassio Haddames aceitasse disputar as próximas eleições a presidente da República.

Fácil de imaginar, a vida de Haddames passou por momentos de turbulência, estupefação e angústia. O autor não nomeia esses sentimentos. Cabe ao leitor identificar, em meio aos múltiplos incidentes descritos no livro, que se alternam com capítulos, de um lado, cobrindo a trajetória profissional do embaixador/presidente por Nova Iorque, Paris e Beijing e, de outro, os inevitáveis desafios das novas funções, explorando com humor os corredores do poder em Brasília (Não hesito em ressaltar a construção e o palavreado do telegrama que o embaixador do Brasil em Estocolmo envia ao Itamaraty sobre o discurso de posse de Haddames na cerimônia de concessão do prêmio, uma peça antológica do que nós, diplomatas, chamamos de “itamaratês”, código que nem por isso deixará de ser decifrado por todos que conhecem o mundo da política). 

Destaque especial merece a correspondência de Haddames com seu filho André, por intermédio da qual o embaixador compartilha sua visão de mundo – não raro, suas culpas como pai ausente -, atualizando o leitor quanto ao perfil emocional e psicológico do personagem. 

Há um momento no livro em que o leitor se pergunta: e daí? Há um romance entre Haddames e uma diplomata argentina, que parece transformar a mesmice da vida do personagem, que, somos informados, era divorciado. Mas, ainda assim, a relação não promete galvanizar a trama. À frente do Executivo, o inexperiente Chefe de Estado não se sai nada mal. Voltamos à pergunta: e daí?

E daí é quando o grande escritor tira o tapete do leitor e escolhe desfecho surpreendente, tecido de maneira magistral. O resumo da história é que vocês não podem deixar de ler O imortal. Garanto: é leitura de alto nível, que fará esquecer as agruras da quarentena.

[1] Lista por ordem cronológica de eleição: Joaquim Nabuco, Aluísio Azevedo, Domício da Gama, Oliveira Lima, Ribeiro Couto, Gilberto Amado, João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Antônio Houaiss, José Guilherme Merchior, Sergio Corrêa da Costa e Affonso Arinos de Mello Franco.

*André Amado é diretor da Revista Política Democrática Online


André Amado usa arte para analisar ‘nova narrativa em histórias policiais’

Com texto do diretor da revista Política Democrática Online, internautas têm a opção de apreciar um ensaio diferente em tempos de coronavírus

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em tempos de isolamento social por conta dos riscos do coronavírus e da Covid-19, o diretor da revista Política Democrática Online, André Amado, entrega aos internautas um ensaio sobre a obra de Keigo Higashino, na 18ª edição da publicação. Embaixador aposentado, ele deixa em sua análise um traço marcante de seus textos: a linguagem em primeira pessoa, que estabelece uma relação mais pessoal com o seu público, como se levasse cada leitor para apreciar cada palavra escolhida para a sua melhor arte: escrever.

» Acesse aqui a 18ª edição da revista Política Democrática Online!

A seguir, confira um trecho do artigo de André Amado:

Como muitos de minha geração, integrantes contrariados de um tal grupo de risco, cumpro isolamento impiedoso. No meu caso, vigiam-me a inflexível D. Paula e minhas cinco filhas. Aproveito, então, para ler, escrever, pensar, dormir e, torcendo para que as filhas menores não consigam escapar das atividades/incumbências orquestradas pela sempre criativa mãe, não fazer nada, absolutamente nada.

O último livro que li foi Malice (1996), de Keigo Higashino. A escolha foi influenciada pela lembrança festiva de outra obra dele, The Devotion of Suspect X (1994), que lhe valeu a referência mercadológica, para mim mais do que justificada, de “The Japanese thriller phenomenon”.

Em The Devotion of Suspect X, Higashino ambienta a história na cidade de Tóquio, mas como se estivesse em uma planície. A narrativa se desdobra em linha reta, sem trepidação nem sacolejos, a tal ponto que cheguei algumas vezes a pensar em fechá-lo. E, de repente, como se fosse uma serpente bravia, a história enrosca a trama, o Norte vira Sul, o Leste, Oeste, e o leitor é sacudido na poltrona, fascinado pela surpresa, agradecido de não ter interrompido a leitura, sorvendo o desfecho como uma taça de vinho de fina cepa.

Foi assim esperançoso que abri Malice. Nada a ver com a obra anterior, porém, embora tivesse suas qualidades. A se confiar na qualidade da tradução do japonês para o inglês, o que, de resto, é a regra com best-sellers, o livro é bem escrito, obedece à recomendação de ouro do gênero policial, de usar estilo ágil e direto, apresenta personagens críveis, com perfis psicológicos intrigantes, e se desenrola em trama que oculta mais do que revela, em sintonia com os cânones das boas histórias de detetives.

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Compre na Amazon: Política Democrática critica marcha autoritária de Bolsonaro

Produzida e editada pela FAP, publicação está à venda na internet e conta com 29 análises sobre contextos político-econômico e social

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“Vivemos um período preocupante”, diz um trecho do editorial da Revista Política Democrática edição 54 (199 páginas, versão impressa), referindo-se ao que chama de autoritarismo do governo de Jair Bolsonaro e dos filhos do presidente. Segundo a publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e que está à venda no site da Amazon, é a defesa do retorno do Ato Institucional nº 5, com o qual a ditadura militar, nos anos 1960, fechou o Congresso Nacional, perseguiu, torturou e assassinou grandes figuras da resistência democrática, como o jornalista Vladimir Herzog.

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A revista também critica os constantes ataques de Bolsonaro à imprensa, um dos pilares da democracia. “As forças políticas, as entidades representativas e os cidadãos precisam ter o máximo de equilíbrio no enfrentamento à política governamental que busca resgatar e nos impor velhas concepções e práticas inaceitáveis para o país e o planeta que sonhamos construir”, diz um trecho. “Nossa postura oposicionista precisa ser pé-no-chão, sem oferecer pretexto e justificativa para que os bolsonaristas deem continuidade às suas ideias e ações de tentar implantar um modelo autoritário, de estilo fascistoide”, continua.

Nas diferentes seções da edição nº 54, cujo tema de capa é “Sermão aos peixes”, os editores comemoram 19 anos de atividades ininterruptas em montar, imprimir e distribuir, em papel e em e-book, a Revista Política Democrática. Nela, o leitor vai encontrar textos de autores e temas variados a respeito dos complexos e delicados tempos, no Brasil e no mundo inteiro, abrindo-lhe novos horizontes para continuar enfrentando-os com a cabeça erguida e tranquilidade

Análises

No total, são 29 análises, cada qual de um autor diferente, divididas em 11 capítulos: tema de capa, observatório, questões da cidadania e do Estado, economia e desenvolvimento, meio ambiente e sustentabilidade, desafios, questões da cultura, batalha de ideias, mundo, ensaio e resenha.

Diretor-geral da FAP, o jornalista e colunista Luiz Carlos Azedo é autor da primeira análise da revista. Segundo ele, o governo Bolsonaro é assumidamente de direita num contexto institucional de Estado de Direito democrático, o que, conforme destaca, é “a grande fortuna”. “Bolsonaro faz um governo contingenciado pela Constituição de 1988; por isso mesmo, não pode ser caracterizado como protofascista, como afirmam certos setores da oposição”, diz, para emendar: “Entretanto, quando não respeita o direito ao dissenso e à identidade das minorias, afronta a democracia e legitima essa narrativa”.

Em outra análise, o diretor-executivo da FAP e sociólogo Caetano Araújo aborda duas táticas da social-democracia e observa que, no plano nacional, a democracia representativa divide espaço cada vez mais com a participação direta dos cidadãos, por meio do conjunto de associações que integram a sociedade civil organizada. “No plano internacional, contudo, nos processos de integração regional e nos organismos internacionais de cooperação e deliberação, um déficit de representação democrática começa a ser percebido pelos cidadãos dos Estados nacionais, com consequências eleitorais cada vez mais evidentes”, afirma.

O presidente do Conselho Curador da FAP, Cristovam Buarque, propõe uma reflexão sobre a desprivatização do socialismo. De acordo com ele, o socialismo foi aprisionado pelo capitalismo e caiu na armadilha de propor que todos sejam ricos, consumam tudo, em grande quantidade. “Por isto que os socialistas dos partidos que se consideram de esquerda têm caído no ‘neoliberalismo social’: suas bandeiras se limitam a escolher alguns trabalhadores para receberem benefícios que não chegam a todos”, escreve.

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Luiz Carlos Azedo: Companheiro de viagem

“Não é de ontem que Bolsonaro quer nomear o diretor-geral da Polícia Federal, exonerando o delegado Maurício Valeixo, homem de confiança do ministro Moro”

Sou fã incondicional do escritor belgo-francês Georges Simenon, ao qual fui apresentado pelo meu falecido amigo Carlos Jurandir Monteiro Lopes, jornalista, escritor, músico, guru literário e musical, parceiro nas noites boêmias do Lamas e da Estudantina, no Rio de Janeiro. Seus pequenos romances compõem um grande mosaico na literatura francesa, admirado entre outros por André Gide (O imoralista, A volta do filho pródigo), prêmio Nobel da Literatura de 1947, e nossa universal Clarice Lispector (Perto do coração selvagem, A hora da estrela), a judia ucraniana que escolheu o Brasil como sua pátria e, entre os sete idiomas que dominava, a língua portuguesa para tecer sua obra literária.

Além das histórias policiais, nas quais o famoso inspetor Maigret poderia pontificar ou não, Simenon escreveu grandes romances psicológicos, como O Burgomestre de Furnes, que trata do embrutecimento, do ódio e da avareza; O gato, o inferno doméstico de um casal de idosos, que se digladiam por meio de pequenos bilhetes provocadores; e a história do quarentão Kees Popinga, um respeitável cidadão holandês, dedicado ao trabalho e à família, ao xadrez e aos charutos, cuja maior curiosidade era apenas conhecer os passageiros do trem noturno que diariamente via passar de sua janela.

A vida de Popinga vira de pernas para o ar quando seu patrão vai à falência e resolve forjar a própria morte. O pacato cidadão, num surto inexplicável, embarca numa viagem sem volta num trem noturno para Paris, no qual comete o que seria um “crime perfeito”. Entretanto, seu comportamento paranoico e fora do padrão desperta suspeitas e, por isso, acaba preso. O livro é um mergulho psicológico no personagem: quem é Kees Popinga? Um maluco? Ou tão normal quanto qualquer cidadão? Sua vida cheia de regras era normal? A história tem um desfecho dostoieviskiano, impossível não lembrar do jóvem Raskólnikov, o personagem central de Crime e Castigo.

Simenon produzia de seis a sete romances por ano, de um só fôlego, trancado no escritório por duas ou três semanas. Entre um livro e outro, observa a alma das ruas e seus atores, para construir personagens e boas histórias. Sua atualidade não está no estilo, mas na trama sem julgamento moral, nua e crua, que desnuda dramas psicológicos e comportamentos sociais. Jurandir dizia que todo repórter de política deveria ler Simenon, não apenas para melhorar o próprio texto, mas para aprender a levar em conta a psicologia de suas fontes e personagens. Impossível não lembrar de suas lições na hora de escrever sobre a mais nova crise do governo Bolsonaro, desta fez, a fritura do ministro da Justiça, Sérgio Moro, que pode ser a próxima baixa na Esplanada dos Ministérios.

Federais
Não é de ontem que Bolsonaro quer nomear o diretor-geral da Polícia Federal, exonerando o delegado Maurício Valeixo, homem de confiança do ministro Moro. A tensão entre o presidente da República e seu ministro é antiga, decorre da investigação sobre o caso das “rachadinhas” da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), na qual o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) é investigado, por causa do ex-assessor Fabrício Queiroz, e suas conexões com as milícias do Rio de Janeiro, responsáveis pelo assassinato da vereadora carioca do PSol, Marielle Franco, e seu motorista, Anderson Gomes.

Em ambos os casos, porém, as investigações estão na esfera do Rio de Janeiro. Entretanto, Flávio Bolsonaro, por ter direito a foro especial, recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF). As investigações chegaram a ser congeladas pelo presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, em liminar que desautorizou as quebras de sigilo fiscal pela Polícia Federal sem autorização da Justiça, mas o plenário da Corte decidiu por ampla maioria autorizar seu prosseguimento. O fornecimento dessas informações pelo antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), então subordinado ao Ministério da Justiça, provocou o primeiro grande estresse entre Moro e Bolsonaro. O desfecho foi a transferência do órgão para o Banco Central (BC) e o agastamento entre ambos.

Mesmo enfraquecido, Moro permaneceu no governo, mantendo o controle sobre a Polícia Federal (PF). Agora, a corda esticou novamente, por duas razões. Primeiro, a investigação aberta pelo Supremo para investigar as fake news, sob comando do ministro Alexandre de Moraes, que está muito próxima de sua conclusão e, aparentemente, envolve deputados federais. Segundo, a pedido de Ministério Público Federal (MPF), o Supremo também vai investigar os organizadores das manifestações de domingo passado, que foram consideradas pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, um atentado à democracia, ou seja, crime contra a Lei de Segurança Nacional.

Não há nenhuma informação oficial de que o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) esteja envolvido no caso das fake news, tudo corre em segredo de Justiça. Na bolsa de apostas de Brasília, porém, seu nome está cotadíssimo. O do irmão Carlos, vereador no Rio de Janeiro, também. O mais preocupante, porém, é a segunda investigação. Bolsonaro foi ao ato de domingo, se estiver envolvido na sua realização, isso será considerado um fato grave. Nesse caso, segundo a Constituição, poderá ser investigado, pois se trata de ato cometido no decorrer do seu mandato, que pode ser considerado crime de responsabilidade.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-companheiro-de-viagem/