RPD || André Amado: O imortal

Leitura de alto nível, que fará esquecer as agruras da quarentena, recomenda André Amado, que nos brinda com uma análise da mais nova obra do embaixador brasileiro no México, Mauricio Lyrio.
Foto: Wikipedia
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Leitura de alto nível, que fará esquecer as agruras da quarentena, recomenda André Amado, que nos brinda com uma análise da mais nova obra do embaixador brasileiro no México, Mauricio Lyrio

É longa e estreita a relação entre funcionários do serviço diplomático brasileiro e a Academia Brasileira de Letras (ABL). No curso da história, nada menos do que doze diplomatas ocuparam cadeiras na prestigiosa academia.[1] No momento, sempre em um universo de 40 acadêmicos, são cinco: Sergio Paulo Rouanet, Alberto da Costa e Silva, Geraldo Holanda Cavalcanti, Evaldo Cabral de Melo e João Almino.

Quando recebi O imortal de nosso embaixador no México, Mauricio Lyrio, confesso que temi tratar-se de uma obra dedicada a explorar a tradição acima mencionada, o que, convenhamos, não é tema exatamente palpitante, para dizer um mínimo.

Conhecendo, no entanto, o autor como conhecia – desde os tempos em que buscava ideias frescas sobre como dirigir o Instituto Rio Branco, honrosa função para a qual acabara de ser convidado –, não pude deixar de intuir que Mauricio teria coisas mais inteligentes a dizer, e de maneira tão brilhante quanto as que me passou lá trás, em 1995.

Não me enganei.

O imortal tem como personagem central Cassio Haddames, um embaixador lotado em Brasília sem maior brilho profissional, mas que é eleito pela Academia Sueca para receber o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se o primeiro brasileiro a ser contemplado com o cobiçado galardão. Sua candidatura fora proposta pelo ministro das Relações Exteriores, em exposição de motivos, dirigida ao presidente da República, iniciativa que incluía – na verdade, tinha como objetivo maior – vender uma segunda candidatura, a de Sua Excelência o mais alto mandatário do pais ao Prêmio Nobel da Paz. O texto desse expediente, cuja leitura já vale a do livro, reproduz na ficção um exemplo frequente na Esplanada dos Ministérios, de como altos membros da burocracia tentam chaleirar o ego de seus superiores, apostando em que ninguém vira o rosto para mimos faiscantes. 

Esqueceram-se de combinar com os suecos, que aceitaram conceder o Nobel de Literatura ao embaixador, mas passaram solenemente ao largo do pleito presidencial. 

De sua parte, Haddames estava até certo ponto constrangido pela concessão do Prêmio. Tal como não se cansava de repetir um despeitado jornalista da terrinha, o próprio Cassio Haddames também tinha dúvidas quanto à justiça da honraria recebida. Ele apenas escrevera três romances, que somavam, juntos, 954 páginas. Daria para justificar a homenagem maiúscula da Academia Sueca? Tanto mais na comparação com a produção literária de um Bandeira, Drummond, Guimarães Rosa, João Cabral, entre tantos outros, jamais considerados por Estocolmo.

Em meio a essa crise de consciência, duas surpresas aguardariam o agora ilustrérrimo embaixador em seu retorno ao Brasil. Primeira, ainda no aeroporto, um comitê de recepção desfraldava faixa monumental com dizeres em letras garrafais: O NOBEL É NOSSO! E a segunda foi de início uma sondagem, que rápido ganhou foros de irrecusável gestão, orquestrada por raposas da cena política brasileira, para que Cassio Haddames aceitasse disputar as próximas eleições a presidente da República.

Fácil de imaginar, a vida de Haddames passou por momentos de turbulência, estupefação e angústia. O autor não nomeia esses sentimentos. Cabe ao leitor identificar, em meio aos múltiplos incidentes descritos no livro, que se alternam com capítulos, de um lado, cobrindo a trajetória profissional do embaixador/presidente por Nova Iorque, Paris e Beijing e, de outro, os inevitáveis desafios das novas funções, explorando com humor os corredores do poder em Brasília (Não hesito em ressaltar a construção e o palavreado do telegrama que o embaixador do Brasil em Estocolmo envia ao Itamaraty sobre o discurso de posse de Haddames na cerimônia de concessão do prêmio, uma peça antológica do que nós, diplomatas, chamamos de “itamaratês”, código que nem por isso deixará de ser decifrado por todos que conhecem o mundo da política). 

Destaque especial merece a correspondência de Haddames com seu filho André, por intermédio da qual o embaixador compartilha sua visão de mundo – não raro, suas culpas como pai ausente -, atualizando o leitor quanto ao perfil emocional e psicológico do personagem. 

Há um momento no livro em que o leitor se pergunta: e daí? Há um romance entre Haddames e uma diplomata argentina, que parece transformar a mesmice da vida do personagem, que, somos informados, era divorciado. Mas, ainda assim, a relação não promete galvanizar a trama. À frente do Executivo, o inexperiente Chefe de Estado não se sai nada mal. Voltamos à pergunta: e daí?

E daí é quando o grande escritor tira o tapete do leitor e escolhe desfecho surpreendente, tecido de maneira magistral. O resumo da história é que vocês não podem deixar de ler O imortal. Garanto: é leitura de alto nível, que fará esquecer as agruras da quarentena.


[1] Lista por ordem cronológica de eleição: Joaquim Nabuco, Aluísio Azevedo, Domício da Gama, Oliveira Lima, Ribeiro Couto, Gilberto Amado, João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Antônio Houaiss, José Guilherme Merchior, Sergio Corrêa da Costa e Affonso Arinos de Mello Franco.

*André Amado é diretor da Revista Política Democrática Online

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