Justiça
Revista online | Vistos como tabu, casos de assédio no trabalho se alastram
Especial para a revista Política Democrática online (45ª edição: julho/2022)
“Tudo começou com uma série de pedidos para que eu estendesse o meu expediente de trabalho. Se eu não aceitasse, [o patrão] insinuava que iria descontar na avaliação de desempenho. Virou um inferno. O estopim foi o dia em que ele me disse para acompanhá-lo em um evento fora da empresa e, no meio do caminho, disse que me faria surpresa. Me levou para o motel. Gritei muito dentro do carro”.
O desabafo é de uma engenheira de alimentos, de 45 anos, que pediu para ter o nome mantido sob sigilo. Moradora de Brasília, ela mudou de emprego, mas carrega consigo as memórias de um passado recente que classifica como “terror”. “O assédio parece uma peste, está impregnado. No meu caso, assim que ele [patrão] parou no semáforo, abri a porta do carro e saí correndo. No outro dia, registrei a denúncia na polícia e na empresa. O processo ainda está tramitando na Justiça”, afirmou.
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De acordo com casos julgados na Justiça, os exemplos de assédio moral e sexual são incontáveis: um elogio constrangedor, imposição de metas desproporcionais em relação ao prazo de cumprimento delas, uma piadinha de cunho sexual ou uma investida do chefe ou colega dentro do ambiente de trabalho.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) entende que é assédio sexual no trabalho todo tipo de gesto, conversa ou insinuação de natureza sexual feita sem consentimento e que provoque constrangimento na vítima. O órgão define assédio moral, por sua vez, como “a exposição de pessoas a situações humilhantes e constrangedoras no ambiente de trabalho, de forma repetitiva e prolongada, no exercício de suas atividades”.
No Brasil, todos os dias, multiplicam-se situações muito parecidas com as que foram relatadas por funcionárias da Caixa Econômica Federal, envolvida no maior escândalo de assédio moral e sexual no mês passado e que provocou, em 29 de junho, a demissão do seu então presidente, Pedro Guimarães, alvo de investigação do Ministério Público Federal (MPF). Já são 60 denúncias registradas no órgão desde a saída dele.
Confira, abaixo, galeria de imagens:


















“Ciclo vicioso”
Casos de assédio se repetem em outros locais de trabalho. No mesmo dia da demissão de Pedro Guimarães da Caixa, um servidor do Ministério Público de São Paulo (MPSP) suicidou dentro do órgão, no centro da capital paulista. Denúncia feita ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em 1º de julho, diz que ele tinha depressão e indica que sofria assédio moral no trabalho.
Segundo o documento, o analista jurídico do MPSP tinha 48 anos e viu um colega do órgão ser demitido “a bem do serviço público’. Por isso, em razão da doença, achou que teria o mesmo fim. “Constantemente, os servidores sofrem assédio moral sem ter onde pedir amparo. Pouquíssimos são os que têm coragem de relatar os fatos. É um ciclo vicioso instalado”, afirma um trecho da denúncia.
Em nota, o MPSP lamentou "o triste episódio" no mês passado e manifestou "condolências à família e aos amigos do servidor, cuja ficha funcional era impecável, não restando, portanto, qualquer óbice quanto ao seu desenvolvimento na carreira." O órgão disse que o bem-estar de membros e servidores é uma preocupação central da atual gestão e que as ações desta área são focadas no Centro de Gestão de Pessoas.
Justiça
Os assédios também se alastram em grandes empresas privadas. A 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10), em Brasília, condenou o banco Santander a pagar R$ 274,4 milhões em indenização por danos morais coletivos, por causa de assédio moral cometido contra funcionários. A decisão é de segunda instância e foi publicada em 15 de julho. O banco disse que vai recorrer ao Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Dados do TST apontam que, somente em 2021, foram ajuizados, na Justiça do Trabalho, mais de 52 mil casos relacionados a assédio moral e mais de 3 mil relativos a assédio sexual em todo o país, o que, segundo especialistas, mostra que as violências são numerosas no mundo do trabalho.
Por outro lado, o desfecho dos processos nem sempre é a punição dos assediadores. De acordo com levantamento da Controladoria-Geral da União (CGU), dois em cada três processos de investigação por assédio sexual na administração pública federal, por exemplo, terminaram sem qualquer penalidade.
No período de 2008 até junho de 2022, foram instaurados 905 processos correcionais para apurar casos de assédio sexual. Desse total, 272 ainda estão em andamento, e outros 633 foram concluídos. Destes, 432 terminaram sem punição, o que representa 68% do total. As demais resultaram em advertência, suspensão ou demissão do agressor.
Preocupação
No caso do funcionalismo público federal, a situação é ainda mais preocupante por não ter um canal centralizado para receber denúncias específicas de assédios moral e sexual, conhecidos pela natureza mais sensível que outros tipos de queixas. Essa falta de estrutura pode afastar e até calar as vítimas.
Essa é a conclusão da advogada e consultora para equidade de gênero Myrelle Jacob em sua dissertação de mestrado. O estudo, que deve ser concluído em novembro, começou há dois anos como um trabalho de consultoria para o Banco Mundial e analisou os mecanismos de denúncias adotados por estados da federação. O objetivo do estudo avança agora para o Executivo Federal.
A pesquisadora explica que o estatuto que regulamenta a parte disciplinar dos servidores federais, a lei 8.112/90, não prevê o assédio como infração e nem como conduta passível de punição. Apesar disso, há diversos canais para denúncias espalhados por órgãos federais. Isso, porém, é um problema, de acordo com a advogada, já que não serve para analisar os casos como um todo.
Veja, a seguir, galeria de fotos:




















Sala de cirurgia
Em outro caso recente, a Polícia Civil e o Ministério Público investigam o presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), Clóvis Bersot Munhoz, por suposto caso de assédio sexual contra uma técnica em enfermagem. Ele chegou a ser indiciado pelo crime, em inquérito sigiloso encaminhado ao Ministério Público, que pediu mais diligências à polícia.
O assédio teria ocorrido em uma sala de cirurgia de um hospital privado da Zona Sul do Rio. Em depoimento, a mulher disse que Munhoz afirmou que ela era "muito quente” e que precisava ter mais relações sexuais por ter se casado muito cedo. Uma testemunha confirmou o caso à polícia. Ela contou que ele colocou a mão no pescoço dela e chegou a perguntar se ela tinha interesse em trair o marido.
No dia 21 deste mês, o Cremerj anunciou, na página e nas redes sociais da entidade, o afastamento de Munhoz do cargo. O conselho informou que a decisão da diretoria preza pela “lisura e pelo comprometimento com a transparência” e que vai abrir uma sindicância contra o médico para apurar a denúncia sobre assédio sexual.
Conhecida por ajudar a combater assédio moral no trabalho, a médica Margarida Maria Barreto já viajou por todo o país divulgando e incentivando discussões sobre a questão que afeta inúmeros trabalhadores. Ela já foi responsável por um site que recebia cerca de 300 denúncias por dia.
A médica lembra que o assédio moral configura casos que expõem trabalhadores a situações vexatórias, constrangedoras e humilhantes durante o exercício de sua função, de forma repetitiva e prolongada ao longo da jornada de trabalho. Segundo ela, a batalha é levar o foco da discussão para a área do direito, pois o assédio moral não é uma doença do trabalho e não pode ser atribuído à personalidade e sensibilidade do assediado.
“Tabu nas companhias”
Não existe estatística geral sobre o número de casos. No entanto, quem atua diretamente com vítimas afirma que é crescente a procura de profissionais – mulheres ou homens, jovens ou não – por ajuda e aconselhamento para lidar com a questão. “Assédio sexual e moral é um tabu nas companhias”, afirma Raimundo Sabino, consultor de carreira há 20 anos.
“As empresas estão completamente despreparadas para lidar com esse problema, que é histórico e não pode ser visto meramente como ‘cultural’, porque isso não é cultura. É um crime que precisa ser combatido todos os dias, inclusive com punição por omissão estendida aos superiores que fecham os olhos e ignoram o problema na frente deles”, afirma a defensora pública Gabriela Soares, que atua há mais de 20 anos com vítimas desse tipo de crime.
A engenheira de alimentos que chegou a ser levada para o motel pelo chefe sem o consentimento dela disse que ainda não tem previsão para o julgamento do seu caso na Justiça. Hoje, ela disse que tem dedicado parte de seu tempo a auxiliar pessoas a escolher melhor as empresas para trabalhar.
“Diversas questões hoje devem ser observadas por um profissional antes de aceitar um emprego, apesar de as oportunidades estarem escassas, mas sempre destaco para as pessoas não aceitarem propostas que vão tirar a saúde mental delas ou que vão acabar em perseguição e assédio no trabalho”, ressaltou a engenheira.
Consultores indicam estratégias para combater assédio no trabalho
No Brasil, 52,64% das denúncias registradas por funcionários se referem ao relacionamento interpessoal, categoria que considera as chamadas “práticas abusivas”, de acordo com ampla pesquisa divulgada no início deste mês pela ICTS Protiviti, consultoria especializada em gestão de riscos, compliance e segurança. As queixas de assédio representam 31%. Os dados são de um estudo realizado a partir de 125.412 registros feitos nos canais de denúncias de 563 empresas no país.
“Num meio competitivo como o corporativo, com suas metas de eficiência, discursos repetitivos de meritocracia e bônus, é tênue a linha que demarca o fim do rigor extremo e o início do assédio moral. Sufocados, funcionários humilhados veem a produtividade desabar, criando um círculo em que os ataques se sucedem até que o funcionário é afastado ou fique doente no hospital, com contínuas crises”, afirmou o CEO e consultor de empresas Richard Lemos, que atua no mercado há 30 anos.
A advogada e consultora Danielle Soares Mota, que atua com Direito Empresarial, disse que tem observado aumento no número de pedidos de demissão por parte de funcionários. “São muito comuns algumas negociações de rescisão de contrato de trabalho que já incluem não apenas o cômputo das horas extras, mas também acordos monetários para indenizar casos de assédio moral”, afirmou ela.
De acordo com Richard Lemos, para evitar problemas, primeiramente, as empresas precisam especificar o que esperam em termos de comportamento e reforçar esses detalhes junto aos funcionários. Depois, segundo ele, as pessoas precisam ficar muito à vontade para entender que existe um lugar em que elas podem reportar abusos. “É fundamental criar essa confiança. Não adiantar o profissional denunciar, e os gestores jogarem para debaixo do tapete e fingirem que o problema está resolvido”, alertou.
Consultores de mercado destacam três pontos que consideram importantes para boas práticas. O primeiro é chamado de balanço de consequência. Quando uma denúncia acontece, é preciso que a empresa mostre que não vai aturar situações desse tipo e que medidas punitivas serão tomadas imediatamente. “Isso vai fazer com que mulheres e homens se sintam mais seguros por um lado e, também, vai desestimular os assediadores”, ponderou Lemos.
O segundo pilar é a questão do report. As pessoas têm que ter confiança no repórter, saber que serão ouvidas e que suas denúncias serão levadas em consideração. “Isso nos leva para o terceiro ponto, que é a apuração: as funcionárias precisam saber que a denúncia está sendo investigada e que essa investigação será levada a cabo. O canal de denúncia não pode ser apenas um repositório de queixas”, acrescentou o CEO.
*Título editado.
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Polícia investiga garoto de 13 anos e circunstâncias de estupro de menina de 11 em SC
Barbara Brambila, Giulia Alecrim, Thiago Félix, Tiago Tortella e Vinícius Tadeu, CNN Brasil*
À CNN, delegado afirma que depoimentos confirmam relações sexuais entre os jovens; especialistas se amparam no ECA para justificar aborto
A Polícia de Santa Catarina confirmou que um garoto de 13 anos está sendo investigado no caso da menina de 11 anos que realizou aborto na quarta-feira (22).
O delegado Alisson Rocha, titular da Delegacia de Tijucas, confirmou à CNN que existe um procedimento para apuração de ato infracional em curso pela unidade, e que depoimentos confirmam que os jovens tiveram relações sexuais e que elas teriam sido consensuais.
Ainda estão sendo feitos exames de elementos biológicos, dentre outros procedimentos, para apuração genética, não sendo possível afirmar que o bebê que a menina esperava era do suspeito.
Segundo o artigo 217-A do Código Penal, uma das classificações para estupro de vulnerável é “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”.
“O que saltou aos olhos foi que, no geral, houve uma relação de afeto entre os dois, houve uma premeditação para o lado da atividade sexual, em comum acordo, havia consentimento. Em regra, os dois praticaram as condutas com um ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável do artigo 217-A do Código Penal”, diz o delegado.
Ariel de Castro, presidente da Comissão de Direito à Convivência Familiar de Crianças e Adolescentes da OAB-SP e integrante do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, observa que estupro de vulnerável se configura quando as vítimas têm menos de 14 anos, independentemente do consentimento ou não.
“É uma violência presumida pela legislação, com entendimento de que pessoas de menos de 14 anos não devem manter qualquer tipo de ato libidinoso”, afirma.
Um primeiro relatório de apuração foi encaminhado pela Polícia Civil para o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) há doze dias, porém, o MPSC pediu que a investigação faça mais diligências. Só ao término desta nova fase o delegado analisará se existe responsabilidade de ato infracional análogo ao estupro de vulnerável.
O delegado estima que as diligências devem ser concluídas até a próxima terça-feira (28). Depois disso, o relatório será novamente encaminhado ao MP, que também deve se manifestar sobre o assunto.
Punições possíveis?
Com a possibilidade de a gravidez ter sido causada por relações sexuais entre uma criança e um adolescente menor de 14 anos, juridicamente o caso ganha nova complexidade, de acordo com especialistas ouvidos pela CNN.
“Quando a relação é entre dois adolescentes, um adolescente e uma criança, só o caso a caso vai poder falar. O contexto é importante”, afirma Isabella Henriques, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-SP, ressaltando que é uma definição delicada.
Henriques também destaca que, em casos gerais, existem medidas socioeducativas prevista para os atos infracionais, mas que o caso deve ser julgado por uma justiça especializada pelo fato de o adolescente “também estar em um momento peculiar de desenvolvimento”.
Thales Cezar de Oliveira, procurador de justiça do MP-SP e professor da Faculdade Piaget, pontua que, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), quando algum maior de 12 anos pratica um ato infracional ele pode ser passível de medidas socioeducativas até internação, desde que seja comprovado o ato.
O ECA considera crianças as pessoas com até 12 anos incompletos, e são considerados adolescentes aqueles entre 13 anos de idade e 18 anos incompletos.
Ariel de Castro destaca ainda que, se temos “um adolescente de 13 e uma menina de 11”, ambos são considerados vulneráveis.
“Caberiam medidas de proteção para ambos, de inclusão social, educacional, acompanhamento e atendimentos de saúde e psicológicos”, complementa.
Ele pontua também que, se for comprovado que não houve violência ou ameaça contra a vítima, o adequado, na avaliação dele, seria não aplicar uma medida de privação de liberdade para esse adolescente.
“Em casos assim, se não houve violência ou grave ameaça, no processo de apuração do ato infracional do adolescente, os juízes da infância concedem remissão (espécie de perdão judicial), a pedido da promotoria. Essa tese jurídica que tem sido aplicada no Brasil e internacionalmente é chamada de Lei Romeu e Julieta”, explica.
“Precisam ser aplicadas medidas de proteção. Ele precisa ser orientado sobre questões de sexualidade e deve se verificar se ele vive em situação de negligência familiar, abandono etc”, finaliza.
Isabella Henriques defende que o tema da violência sexual contra crianças seja discutido pela sociedade, tendo em mente os impactos na vida das crianças, e que tanto “sociedade e sistema de justiça estejam preparados para acolher as nossas crianças”.
Ariel de Castro ressalta que quando um caso como o da menina de Santa Catarina ocorre, “todos somos co-responsáveis, pela lei. A família, o Estado e a sociedade”, reforçando a importância da educação sexual.
Legalidade do aborto
Uma das exceções para a interrupção da gravidez no Brasil — visto que o aborto é criminalizado no país — é o estupro.
“No caso de uma criança com menos de 14 anos, vítima de estupro de vulnerável, não há dúvida do ponto de vista jurídico que ela pode abortar”, diz Henriques.
Castro, por sua vez, afirma que o caso de Santa Catarina é “sim, um estupro de vulnerável, porque uma menina de 11 anos está grávida”.
Isabella Henriques ressalta que os responsáveis legais precisam dar autorização para o procedimento, mas que o melhor interesse do menor de idade se sobrepõe aos interesses dos responsáveis.
“Se o responsável legal não tomar a decisão no melhor interesse da criança, no sentido de garantir os direitos da criança, o Ministério Público, a Defensoria Pública podem promover, provocar os direitos da criança”.
Thales de Oliveira também destaca que “independente da idade, a gravidez, sendo provocado por uma violência, tem o direito de abortar”. Não está claro, no caso específico, se a suposta relação da menina foi ou não consensual.
“É preciso que você tenha o consentimento da gestante e do representante [para o aborto]. Mas o Estatuto da Criança e do Adolescente confere tanto à criança e ao adolescente o protagonismo do seu direito. Há a prioridade à vontade da criança e adolescente. A menos que perceba que é uma vontade viciada”, pontua o procurador.
Em 21 de junho, a OAB de São Paulo publicou uma nota ressaltando o artigo 128 do Código Penal, que dita que “não se pune o aborto no caso de gravidez resultante de estupro”.
Caso teve repercussão nacional
Em maio, a mãe da menina de 11 anos a levou ao hospital universitário de Florianópolis (SC) logo após constatar que ela estava grávida. Na ocasião, a menina tinha 10 anos de idade.
O hospital constatou que o feto tinha 22 semanas e se recusou a realizar o procedimento, ao dizer que as equipes médicas não realizariam abortos após 20 semanas.
Após a negativa do hospital, a mãe da menina recorreu à Justiça para conseguir autorização para interromper a gravidez, mas não obteve o aval judicial.
O caso tramita em segredo de Justiça e veio a público após o site The Intercept e o portal Catarinas divulgarem trechos da audiência em que a juíza Joana Ribeiro Zimmer, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), faz uma série de perguntas à criança. A CNN entrou em contato com a advogada da família, Daniela Felix, que confirmou as informações da reportagem dos dois veículos.
No vídeo, a juíza questiona a garota se poderia “suportar mais um pouquinho” para, assim, permitir que o feto pudesse ser retirado com vida. Em outros momentos da audiência, Joana Ribeiro ainda perguntou à criança se ela gostaria de “escolher o nome do bebê” e se ela achava “que o pai do bebê concordaria com a entrega para adoção”.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina informou, em nota, que a Corregedoria abriu um procedimento investigatório sobre a condução do processo.
Zimmer autorizou a ida da menina para um abrigo, justificando em um dos despachos o “risco” da mãe efetuar “algum procedimento para operar a morte do bebê”. A menina já foi retirada do abrigo.
Juíza e promotora envolvidas no caso afirmaram à CNN que não iriam se pronunciar.
*Texto publicado originalmente em CNN Brasil
Nas entrelinhas: Doria desiste, mas PSDB continua dividido
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
O ex-governador de São Paulo João Doria jogou a toalha e desistiu da candidatura à Presidência da República, após ser comunicado pela cúpula da legenda que seria candidato de si mesmo. Doria perdeu o apoio do grupo liderado pelo governador Rodrigo Garcia, que o sucedeu, e pelo presidente do PSDB, Bruno Araújo, aliados aos presidentes do Cidadania, Roberto Freire, e do MDB, Baleia Rossi. Se depender dos presidentes dos três partidos, a candidata da chamada terceira via será a senadora Simone Tebet (MS), do MDB.
Doria foi vítima dele mesmo. Rompeu com seu padrinho político, Geraldo Alckmin, que hoje é o vice na chapa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A aliança de segundo turno que havia feito com o presidente Jair Bolsonaro, em 2018, rompeu-se no começo da pandemia da covid-19, por causa da política de distanciamento social adotada pelo governo paulista para restringir a propagação da doença. Quando o Instituto Butantan, pioneiramente, começou a produzir a vacina chinesa CoronaVac, Doria se tornou o principal adversário de Bolsonaro, cujo negacionismo combateu em entrevistas diárias pela tevê.
A superexposição na mídia, porém, alavancou sua rejeição nas pesquisas de opinião, embora viesse fazendo um bom governo, dos pontos de vista administrativo e financeiro. Doria nunca teve uma trégua das lideranças petistas de seu estado, muito fortes nas áreas da saúde e da educação, e também sofreu oposição sistemática dos bolsonaristas de São Paulo, principalmente nas áreas do agronegócio e da segurança pública. Lançou-se candidato à Presidência em situação muito desvantajosa do ponto de vista de imagem.
Seu maior erro talvez tenha sido levar o vice-governador Rodrigo Garcia do DEM para o PSDB, o que aprofundou seu isolamento interno, afastando lideranças históricas, como Alckmin, que já estava com um pé fora da legenda, e os ex-senadores Aloysio Nunes Ferreira e José Aníbal. A mudança também provocou o afastamento de sua candidatura do antigo DEM, que viria a se fundir com o PSL e formar o União Brasil. Além disso, Doria terceirizou as articulações políticas com deputados federais, estaduais e prefeitos, deixando-as a cargo de Garcia.
Ungido seu sucessor natural, Rodrigo Garcia passou a operar com os deputados Carlos Sampaio (SP), Rodrigo Maia (RJ), Bruno Araújo e Baleia Rossi para tornar irreversível a saída de Doria do Palácio dos Bandeirantes. As prévias do PSDB, do ponto de vista prático, serviram apenas para isso. Quando Doria ameaçou não disputar a Presidência e permanecer no governo paulista, Garcia e Araujo assinaram um termo de compromisso garantindo que apoiavam sua candidatura ao Planalto. Doria caiu na armadilha: renunciou ao mandato de governador e acabou defenestrado.
Candidatura própria
Doria também nunca teve grande apoio fora de São Paulo. A desistência dele, porém, não unifica o PSDB. Os líderes históricos da legenda desejam lançar uma candidatura própria. Os nomes cogitados são os do ex-governador gaúcho Eduardo Leite, que perdeu as prévias para Doria e retirou sua candidatura, mas está desincompatibilizado para concorrer à Presidência; e o senador Tasso Jereissati (CE), um dos fundadores do partido. O deputado Aécio Neves (MG) e o ex-governador de Goiás Marconi Perillo defendem essa alternativa.
Entretanto, a reunião da Executiva que se realizaria hoje foi suspensa por Bruno Araújo. O grupo paulista não quer uma candidatura própria, para assim poder abrir o palanque de Garcia em São Paulo, numa tentativa desesperada de viabilizar a reeleição do atual gestor. Pesquisa divulgada ontem pelo Real Big Data revela que o candidato petista Fernando Haddad lidera a disputa com 29%, seguido de Tarcísio de Freitas (PR) e Márcio Franca (PSB), com 15%. Rodrigo Garcia tem 7%. Nos cenários sem Haddad ou França, Garcia permanece atrás de Tarcísio, o candidato de Bolsonaro.
A lógica das articulações da bancada paulista para remover a candidatura de Doria foi a da alça de caixão difícil de carregar. Com a desistência, a situação se alterou completamente, porque Garcia não tem mais nenhuma desculpa para explicar sua desvantagem nas pesquisas eleitorais e precisa recuperar a expectativa de poder que perde a cada dia. Ou seja, provar que a rejeição de Doria era seu principal obstáculo. Tem a seu favor o grupo econômico que apoiava seu antecessor e teve um papel decisivo no convencimento de que o tucano deveria desistir de disputar a Presidência. Entretanto, Tarcísio de Freitas também transita entre os empresários paulistas.
Viabilizar o palanque de Simone Tebet em São Paulo é uma prioridade na terceira via, mas tanto Baleia Rossi quanto o prefeito Ricardo Nunes (MDB), que administra a capital paulista, sabem que essa não é uma prioridade do atual governador. A candidata do MDB tem apoiou político de Garcia para impedir uma candidatura própria do PSDB, porém não tem nenhuma garantia de apoio eleitoral no estado com maior eleitorado do país.
Luiz Carlos Azedo: Txai Suruí é a minha candidata ao Nobel da Paz de 2022
A jovem Walelasoetxeige Suruí tem apenas 24 anos e confirma a quebra do monopólio da política internacional de chefes de Estado, diplomatas e militares
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Criado em 1901, o prêmio Nobel da Paz não foi capaz de impedir as duas grandes guerras mundiais do século passado, mas contribuiu muito para que a política internacional deixasse de ser monopólio dos chefes de Estado, diplomatas e militares, projetando personalidades que efetivamente contribuíram para que a paz se consolidasse como um valor universal. Ironicamente, seu criador, Alfred Nobel, era um industrial, inventor e fabricante de armamentos sueco. Por sua decisão, um comitê de cinco pessoas indicadas pelo Parlamento da Suécia anualmente escolhe aqueles que se destacaram por trabalhar pela fraternidade entre as nações, pela abolição ou redução de exércitos permanentes e pela paz. Polêmico, nos últimos anos, o prêmio vem sendo destinado a pessoas que enfrentam situações limites em seus respectivos países, como os jornalistas Maria Ressa e Dmitry Muratov, nas Filipinas e na Rússia, respectivamente, os premiados de 2021.
A jovem Walelasoetxeige Suruí, mais conhecida como Txai Suruí, de 24 anos, filha de Almir Suruí, 47, líder dos Povos Suruí de Rondônia, confirma a quebra do monopólio da política internacional. Até então, era conhecida apenas por ambientalistas e outras jovens lideranças indígenas, mas encantou o mundo ao discursar em inglês na abertura da Conferência da Cúpula do Clima (COP26), em Glasgow, na Escócia, para uma plateia que reunia entre outros o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel. Foi a única brasileira a participar da abertura, num inevitável confronto de imagem e objetivos com o presidente Jair Bolsonaro, que gravou uma mensagem e foi passear pela Itália, desprestigiado. Tornou-se uma personalidade mundial na luta contra o aquecimento global. É minha candidata ao Nobel de 2022.
O veterano líder indígena Marcos Terena, um dos fundadores da Aliança dos Povos da Floresta, com Aírton Krenak e Chico Mendes, não se cansa de me falar que as jovens lideranças indígenas são a grande esperança, e que a causa indígena chegará a um outro patamar. “Nós agora temos índios doutores, médicos, advogados, antropólogos, biólogos, cineastas… São lideranças jovens que mantêm suas ligações com as aldeias e respeitam as lideranças mais velhas, somam os antigos saberes aos novos conhecimentos”. Terena foi o primeiro “índio piloto”, viveu os conflitos da tradução de identidade. Quando jovem, era chamado de “japonês” pelos colegas de escola e por seu próprio instrutor de voo. Mas a consciência indígena falou mais alto: “Indígena é potência de saberes. Seu conhecimento é a universidade do mundo”.
Aquecimento
A jovem Txai ainda está no último semestre do curso de direito, mas já atua no departamento jurídico da Associação de Defesa Etnoambiental (Kanindé), em Rondônia. Em Glasgow, na Escócia, enquanto a jovem ativista sueca Greta Thunberg criticava o blablablá sobre o clima dos líderes mundiais, Txai roubava a cena no plenário, ao falar da importância dos povos indígenas na proteção da Amazônia. Na hora, lembrei-me das conversas com Marcos Terena sobre esse encontro de gerações indígenas: “Meu pai, o grande cacique Almir Suruí, me ensinou que devemos ouvir as estrelas, a lua, o vento, os animais e as árvores. Hoje, o clima está esquentando, os animais estão desaparecendo, os rios estão morrendo, nossas plantações não florescem como antes. A Terra está falando, ela nos diz que não temos mais tempo”, disse Txai.
Os suruís de Rondônia são 2 mil indígenas, mas são articulados, combativos e plugados nas redes sociais. Ao discursar na COP26, Txai relembrou a morte do seu amigo Ari Uru-EU-Wau-Wau, jovem como ela, que trabalhava registrando e denunciando extrações ilegais de madeira dentro da aldeia onde morava. Segundo Txai, ele foi morto por defender a floresta. “Vamos frear as emissões de promessas mentirosas e irresponsáveis, vamos acabar com a poluição de promessas vazias e vamos lutar por um futuro e presente habitáveis”, defendeu. Na extensa pauta da COP26, o eixo da discussão é a necessidade de conter o aquecimento global.
Energia, empoderamento público e da juventude, natureza e uso da terra, ciência e inovação, transporte e cidades, regiões e espaços organizados estão sendo debatidos até o próximo dia 12, por cientistas, ativistas, autoridades governamentais, executivos de empresas da nova economia, mas, nesse debate, a Amazônia tem lugar de destaque. Cerca de 40 lideranças indígenas, de diversos países, estão participando do encontro. O mundo está descobrindo que eles são os verdadeiros guardiões da floresta e têm um papel de destaque na solução dos problemas ambientais. Oficialmente, o Brasil está representado pelo ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, que apresentou uma nova meta climática, com redução de 50% das emissões de gases do efeito estufa até 2030.
CPI desafia o Brasil a punir Bolsonaro pela gestão insensível às mortes na pandemia
Aprovação do relatório final pressiona autoridades judiciais por punições e acua o presidente
Afonso Benites e Beatriz Jucá / El País
Depois de quase seis meses de trabalho, a CPI da Pandemia aprovou seu relatório final por sete votos a quatro, colocando o presidente Jair Bolsonaro no centro de uma gestão frouxa e intencionalmente insensível da pandemia de coronavírus. Os senadores acusam o presidente de ter cometido crime contra a humanidade, e outros oito delitos, entre eles, incitação e propagação da pandemia, além de charlatanismo. Os integrantes da CPI já anteveem um encontro com representantes do Tribunal Penal Internacional para tratar da acusação mais grave.
A CPI sistematizou todos os potenciais crimes, omissões e erros cometidos pela Governo federal no combate à pandemia, em busca de uma suposta imunidade de rebanho. O plano era retomar a economia a qualquer custo, deixando o vírus se espalhar. Bolsonaro foi o principal garoto propaganda da desobediências às regras sanitárias, ao não usar máscaras, promover aglomerações e defender o uso da cloroquina. Além do presidente, outras 77 pessoas e duas empresas foram implicadas por 24 delitos, de charlatanismo a epidemia com resultado morte; de incitação ao crime a corrupção ativa. A lista é longa e já resultou na abertura de 17 procedimentos iniciais em órgãos de controle, como Ministério Público e Tribunal de Contas. Senadores e especialistas calculam que milhares de vidas poderiam ter sido poupadas se tivesse havido uma gestão responsável da pandemia.
A comissão parlamentar desnudou um balcão de negócios no Ministério da Saúde, impediu uma compra de 1,6 bilhão de reais da suspeita vacina Covaxin, descobriu esquemas de lobby de empresas Precisa e VTCLog, que tinham contratos com o Governo, e revelou que seres humanos eram usados pelo plano de saúde Prevent Senior e por um médico como cobaias involuntárias de medicamentos como cloroquina e proxalutamida. “Esta comissão parlamentar de inquérito tirou o Brasil do cercadinho e colocou o negacionismo dentro do cercadinho”, sintetizou o vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), em alusão ao local onde os militantes bolsonaristas costumam se concentrar para ouvir o presidente em frente ao Palácio da Alvorada. O senador Renan Calheiros, (MDB-AL), relator da Comissão, chegou a comparar Bolsonaro ao ditador chileno Augusto Pinochet, e ao comandante Carlos Brilhante Ustra, temido agente da ditadura, que chefiou um centro de tortura de adversários do governo militar.Mais informaçõesInvisíveis, órfãos da covid-19 encaram a pandemia da dor e do desamparo
O destino do relatório está nas mãos do Procurador Geral da República, Augusto Aras, que deve analisar oito crimes comuns atribuídos ao chefe do Executivo, e do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que vai avaliar se Bolsonaro cometeu o crime de responsabilidade que lhe é atribuído e deveria, portanto, sofrer um processo de impeachment. “A CPI fez bastante barulho, produziu um relatório sério e robusto, mas o presidente ainda tem dois guardiões, Lira e Aras. Tudo o que a CPI fez, agora, depende deles. No mais, o desgaste político de Bolsonaro já foi dado”, destaca o cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB).
Aras tem 30 dias para dar uma resposta aos senadores. Ele já disse que montará uma espécie de grupo de trabalho formado por procuradores para analisar as sugestões dos parlamentares para, só então, se manifestar. Lira, por sua vez, dificilmente dará andamento a um processo impeachment a menos de um ano da eleição. Como ressaltou Fleischer, portanto, é possível que a grande punição à política sanitária de Bolsonaro nos últimos meses venha das urnas no próximo ano, quando o presidente tentará a reeleição.
As mudanças
Correndo o risco de ver todo seu trabalho ser perdido por um rejeição do relatório pelo plenário da comissão, o relator Renan Calheiros recuou e decidiu apresentar um pedido de indiciamento do governador do Amazonas, o bolsonarista Wilson Lima (PSC), e do ex-secretário de Saúde do Estado Marcellus Campêlo pelo delito de prevaricação durante a crise de falta de oxigênio em Manaus. A inclusão de Lima era um pedido do senador Eduardo Braga (MDB-AM). O governador também responderá por epidemia com resultado morte e por crime de responsabilidade.
Calheiros acrescentou ao relatório outros 12 pedidos de indiciamento nesta terça-feira. No início do dia, o senador alagoano atendeu a um pedido do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e colocou no rol de possíveis culpados pelos erros na pandemia o senador Luz Carlos Heinze (PP-RS). Eles queriam que Heinze fosse indiciado por incitação ao crime pela divulgação de desinformação. Porém, uma intensa negociação com a cúpula do Senado levou à retirada do nome do parlamentar gaúcho, a pedido do próprio Alessandro Vieira, para evitar o constrangimento de envolver um senador da comissão entre os principais responsáveis pela crise que levou a mais de 606.000 mortes no país.
O nome de Heinze foi cogitado para a lista por ele ter propagandeado nos últimos seis meses o uso da cloroquina, entre outros medicamentos do ineficaz kit covid. É um comportamento semelhante ao de Bolsonaro, que foi apontado como o responsável por nove delitos. Heinze seria indiciado por incitação ao crime. “Não se gasta vela boa com defunto ruim. Esta CPI fez um trabalho, prestou um serviço para o Brasil, muitíssimo relevante. Não posso, a esta altura, colocar em risco nenhum pedaço desse serviço por conta de mais um parlamentar irresponsável”, justificou Vieira ao pedir a retirada do nome do colega do documento final.
Os senadores concordaram ainda em solicitar o banimento do presidente das redes sociais, pela insistência em disseminar desinformação. A última delas ocorreu na quinta-feira passada, quando, durante sua live semanal, ele associou a vacina contra coronavírus à infecção por HIV, o que é falso. “A responsabilidade é principalmente desse presidente da República, desse serial killer, que tem compulsão de morte e continua a repetir tudo que fez anteriormente. Agora, com a declaração de que a vacina pode proporcionar AIDS ele demonstra que não tem respeito nenhum pela vida dos brasileiros”, disse Calheiros, que chamou o presidente de homicida. “Bolsonaro agiu como um missionário enlouquecido para matar o próprio povo.”
O vídeo em que Bolsonaro mente sobre a vacina foi retirado do Facebook, do Instagram e do YouTube. Desta última plataforma o presidente ainda foi suspenso por uma semana. A intenção dos senadores opositores ao presidente é que ele sofra a mesma sanção que o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, suspenso depois de incentivar a invasão do Capitólio e reincidir diversas vezes na divulgação de fake news.
Parlamentares governistas protestaram contra o relatório aprovado. “É uma peça claramente de vingança, com requintes de crueldade, de ódio, com interesses de poder”, disse o senador Eduardo Girão (Podemos-CE). Já o primogênito do presidente, Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), disse que o documento é uma aberração jurídica e minimizou o resultado das apurações. “O maior escândalo que foi levantado aqui é de uma vacina que não foi comprada.”
Com o fim dos trabalhos, os senadores montaram uma espécie de observatório para acompanhar o andamento das denúncias apresentadas. A cúpula da CPI, formada por Randolfe, Renan e pelo presidente do colegiado, Omar Aziz (PSD-AM), tentará conseguir uma agenda com representantes do Tribunal Penal Internacional. A ideia é levar o caso a Haia para que Bolsonaro seja julgado por crime contra a humanidade.
Depois de seis meses de atuação, a Comissão chega ao fim com um projeto de escapar das práticas bárbaras em que o país mergulhou, como discursou o senador Renan Calheiros. “É passada a hora de encerrar esta noite macabra que enluta o país dolorosamente”, concluiu, antes de os senadores fazerem um minuto de silêncio por quem não teve como se defender dos erros e omissões do Governo: os 606.000 mortos pela covid-19.
Janio de Freitas: CPI da Covid é exemplo de atuação a Ministério Público e Judiciário
Já Rodrigo Pacheco não emitiu nem uma palavra de apoio aos trabalhos ou de aplauso aos resultados
Janio de Freitas / Folha de S. Paulo
A descrença na punição dos indiciados na CPI da Covid, pelo visto, bem próxima da unanimidade, é um julgamento de tudo o que se junta no sentido comum de "Justiça brasileira".
Também desacreditado por parte volumosa da opinião geral, o desempenho da CPI excedeu até o admitido pelos mais confiantes.
O fundo da realidade volta à tona, porém. A criminalidade constada aliados por covardia ou por patifaria.
A CPI traz mais do que a comprovação de um sistema de criminalidade quadrilheira, voltado para o ganho de fortunas e mais poder político com a provocação da doença e de mortes em massa.
Nas entranhas desses crimes comprovados, está a demonstração, também, da responsabilidade precedente dos que criaram as condições institucionais e políticas para a degradação dramática do país e, nela, a tragédia criminal exposta e interrompida pela CPI.
Nada na monstruosidade levada ao poder surgiu do acaso ou não correspondeu à índole do bolsonarismo militar e civil.
Muito dessa propensão foi pressentido e trazido à memória pública com exaustão, lembrados os antecedentes pessoais e factuais.
Também por isso as surpresas com a pandemia não incluíram a conduta do poder bolsonarista, que então prosseguiu, em maior grau, a concepção patológica de país traduzida na liberação de armas, nas restrições à ciência, na voracidade destrutiva.
A CPI proporciona ainda um exemplo ao Ministério Público e ao Judiciário.
Cumpriu um propósito de extrema dificuldade, porque contrário a um poder ameaçador e desatinado, e o fez com respeito aos preceitos legais e direitos. Sem a corrupção institucional própria do lavajatismo.
É necessário não esquecer a contribuição, para o êxito incomum da CPI, de senadores como Omar Aziz, que impôs o bom senso e a determinação com sua simpática informalidade. E Randolfe Rodrigues, autor da proposta de CPI e impulsionador permanente do trabalho produtivo.
Tasso Jereissati foi importante, com o empenho para aprovação e composição promissora da comissão, além de dirimir impasses --tudo isso, apesar da cara de cloroquina do seu PSDB chamado a definir-se contra o poder bolsonarista.
O polêmico Renan Calheiros foi, como sempre, muito decidido e eficiente. Otto Alencar e Humberto Costa, médicos, foram decisivos muitas vezes. E houve vários outros, mesmo não integrantes do grupo efetivo, como Simone Tebet.
Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco não deve ficar esquecido. Filia-se ao PSD com o projeto de candidatar-se à Presidência, de carona no êxito da CPI.
Contrário à investigação da criminalidade do governo e de bolsonaristas na pandemia, sumiu com o projeto aprovado para criação da CPI.
Foi preciso que o Supremo o obrigasse a cumprir as formalidades de instalação. E não emitiu nem uma palavra de apoio aos trabalhos ou de aplauso aos resultados.
A descrença em punições não precisa de explicação. Oferece mais uma desmoralização das afirmações de que "as instituições estão funcionando" no país do governo criminoso e da descrença nos tribunais superiores.
Sem solução
Inesperada, a derrota na Câmara do projeto que passaria ao Congresso atribuições dos promotores e procuradores, sem com isso atacar o essencial, evitou mais uma falsa solução.
Mudar a natureza de procuradores e promotores é impossível, um Dallagnol será sempre o que é. Logo, o necessário é o acompanhamento honesto do que se passa no Ministério Público, e mesmo no Judiciário.
Tarefa básica que os conselhos dessas instituições não fazem, funcionando sobretudo no acobertamento dos faltosos.
Eis uma norma há anos adotada pelo Conselho Nacional do Ministério Público: mesmo que determinada pelas regras penais, a demissão do faltoso só deve ocorrer se há reincidência.
Do contrário, a pena será apenas de suspensão temporária da atividade e dos vencimentos. Uma discreta indecência.
O necessário é fazer com que os conselhos sejam leais às suas finalidades.
O que o Congresso pode conseguir com a criação de um sistema de vigilância público-parlamentar. Até algo assim, os conselhos do Ministério Público e da Magistratura continuam como motivo de descrença extensiva nessas instituições.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2021/10/conselhos-de-ministerio-publico-e-judiciario-sao-motivo-de-descrenca-extensiva.shtml
Dorrit Harazim: Vísceras expostas
Cabe agora ao Ministério Público e à Justiça responder aos pedidos de indiciamento
Dorrit Harazim / O Globo
O simples fato de a CPI da Covid ter existido e resistido, apesar da tropa de choque bolsonarista e da contrariedade do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, já foi notável. Duplamente admirável foi o empenho da maioria de seus integrantes em trabalhar como gente grande, com decência e benefício claro para a sociedade. Conseguiram dar algum compasso moral a um Brasil que, de resto, está à deriva e expuseram as vísceras de Jair Bolsonaro, cujo método de governo se assenta num amplo leque de tipificações penais.
Nada a festejar, porém. Não pode haver conforto para povo algum que tem na chefia da nação um presidente indiciado por crime contra a humanidade — no caso, contra sua própria gente. É igualmente trevoso para a história de qualquer nação ver seu presidente indiciado por mais outros oito crimes. É tudo de um horror abissal, por ser factual. E por quase ter ficado enterrado nos porões do governo, não fosse o dever cumprido pela maioria na CPI.
Cabe agora ao Ministério Público e à Justiça responder aos pedidos de indiciamento. E dar uma resposta adulta para a gargalhada com que o filho Zero Um do presidente, senador Flávio Bolsonaro, pretendeu desdenhar o documento histórico. O aspecto mais chulé da vida nacional anda esquisito — num curto espaço de tempo somos informados de que o presidente chora escondido no banheiro e de que o Marcola do PCC, líder da maior facção criminosa do país, está deprimido na prisão.
Mas são problemas reais que deixam em torvelinho 213 milhões de brasileiros. A fome de comer pelanca, o caos social, a extrema direita sem freios, os solavancos na economia, a emergência ambiental, a incerteza quanto a liberdades, a degradação geral da vida em sociedade — tudo isso entrou em marcha acelerada sob o comando errático de um só homem, Jair Bolsonaro. Que ninguém se engane — armados de fé e, se preciso, munidos de armas, seus seguidores mais extremados nunca lhe faltarão no pacto de morte contra o Estado Democrático de Direito.
Talvez o presidente e o relator da CPI da Covid, senadores Omar Aziz e Renan Calheiros, já tenham se arrependido de ter votado pela recondução de Augusto Aras ao cargo de procurador-geral da República. Nos Estados Unidos, o então presidente Donald Trump sobreviveu a dois processos de impeachment porque os senadores do Partido Republicano cerraram fileiras. Acreditaram estar fazendo política. Na realidade, fizeram história trevosa ao deixar o caminho aberto para Trump e sua vertente nacionalista voltarem ao poder — seja na reconquista da maioria na Câmara e no Senado em 2022, seja com Trump de volta à Casa Branca em 2024.
Não se trata de alarmismo. Nesta semana, Steve Bannon, o já notório cérebro de uma internacional fascistoide que inclui o Brasil, desafiou abertamente o Poder Legislativo dos EUA. Simplesmente recusou-se a depor perante a comissão de inquérito que investiga sua atuação na invasão do Capitólio de 6 de janeiro último, quando milicianos trumpistas pretendiam impedir a certificação da vitória eleitoral de Joe Biden em 2020. Parece pouco? Para padrões da bicentenária democracia americana, não é. Ao deboche público das instituições, arrostado por Bannon, vem somar-se uma acelerada limitação do direito ao voto em vários estados decisivos do país. E esse desmonte é obra de governadores mais leais a Trump que àquilo que os Estados Unidos de melhor deram ao mundo: o voto universal e livre.
Por toda parte, pipocam candidatos a clones de Trump, que Steve Bannon vai arrebanhando e formatando em rede. Alguns ainda são meros aspirantes a um poder menor, como a figura midiática do argentino Javier Milei, candidato a uma vaga no Congresso nas eleições do próximo mês. Admirador declarado de Trump e Bolsonaro, tem fala carismática e propostas de soluções simples para problemas complexos, como manda o manual populista. Outros visam mais alto logo de cara. Na França está em curso a ascensão meteórica e inesperada do polemista Éric Zemmour, apresentador do canal conservador CNews , que parece querer disputar a corrida presidencial. Situado à extrema direita de Marine Le Pen, Zemmour também é admirador declarado de Trump, alerta contra o “declínio da França”, ataca a imigração, o islamismo e o resto da cartilha democrática.
Sem falar no governo a cada dia mais fechado da Polônia, primeiro a desdenhar de peito aberto as convenções democráticas da União Europeia. Na sexta-feira, a ainda chanceler da Alemanha, Angela Merkel, recebeu uma ovação sincera dessa mesma União Europeia. Foi recebida pelo rei Philippe da Bélgica (a sede da EU é em Bruxelas), homenageada com peças de Mozart e Beethoven em concerto de gala e saudada com frases como “a senhora foi um compasso”, “as próximas cúpulas sem Angela Merkel serão como Paris sem a Torre Eiffel”. No caso, não eram exagero — por 16 anos ela foi âncora. Sem ela, a Europa e o mundo com Trumps e Bolsonaros se tornarão ainda mais sombrios.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/visceras-expostas.html
Cristovam Buarque: A gripezinha fiscal do Guedes
O debate atual sobre o financiamento do Auxílio Brasil é mais um exemplo de corrupção da bondade
Cristovam Buarque / Blog do Noblat / Metrópoles
As atas das sessões no Parlamento durante os debates da Lei Áurea mostram escravocratas argumentando contra a Abolição, porque os escravos livres ficariam desamparados e morreriam de fome. Isto é corrupção da bondade. Defender aos pobres fazendo mal a eles. Este caso extremo foi repetido ao longo de décadas na política brasileira. Não defenderam a Abolição com distribuição terra aos ex-escravos, defendiam manter a escravidão para proteger aos escravizados.
Esta tem sido uma prática comum da minoria privilegiada brasileira ao defender propostas que lhes interessem, argumentando a favor dos pobres. Além da corrupção no comportamento, que rouba dinheiro público, temos a corrupção da ostentação, a corrupção dos privilégios, a corrupção nas prioridades e corrupção das bondades falsas. O BNH foi criado com o argumento de dar habitação aos pobres, mas serviu para financiar o lucro de empreiteiras, e construir as mansões e apartamentos que caracterizam as moradias das classes médias e altas brasileiras. O sistema nacional de habitação deixou pobres sem água, saneamento e os privilegiados com bons apartamentos financiados com empréstimos subsidiados, construídos por pedreiros recebendo míseros salários e continuarão sem casa, água nem saneamento.
O debate atual sobre o financiamento do Auxílio Brasil é outro exemplo de corrupção da bondade: em nome de atender o povo pobre, que passa fome, e precisa do auxilio, provavelmente vai fazer a maldade de trazer de volta a inflação, que sacrificará sobretudo a população pobre..
Por décadas os dirigente brasileiros aliaram o populismo mais desbragado dos políticos com o keynesianismo de economistas que não souberam adapta-lo às características do Brasil. O resultado foram décadas de uso da inflação para financiar projetos megalomaníacos, mordomias desavergonhadas, privilégios aristocráticos, subsídios à ineficiência, concentração da renda. Além de criar e consolidar a cultura de recursos ilimitados do Tesouro, capaz de financiar o luxo e dar ajudas a quem vive no luxo, tudo financiado pela inflação que aumenta as receitas nominais dos governos fazendo circular moeda desvalorizada, espécie de cheque com quase fundo.
O Auxílio Brasil aos pobres não deve ser adiado, mas deve ser financiado com recursos dos que não são pobres. Sem risco da inflação que paga com uma mão e tira com a outra.
O povo precisa e tem direito a receber uma renda que lhe permita sobreviver com dignidade. Esta renda exige muito mais do que os míseros R$400,00 que estão oferecendo, mas em moeda estável, sem inflação. E o Brasil, com um PIB e uma Receita Pública que permite financiar este auxílio. Desde que se toque no exagerado custo dos subsídios a setores ineficientes, se elimine privilégios financiados com recursos públicos, cancele-se o fundo partidário, as emendas parlamentares, os precatórios, reduzam o custo monumental do Estado, especialmente Legislativo e Judiciário. Mas no lugar de tirar de quem tem para auxiliar quem não tem, prefere-se romper o Teto para repetir as antigas equações populistas e gastar mais do que dispõe, com empréstimos ou emissão de moeda deixando ao povo a conta da inflação.
Bolsonaro aplica para as finanças a mesma visão negacionista com que enfrentou o covid, agora enfrenta o deficit. Para ele, com o apoio do Guedes, furar o teto é um arranhãosinho. A consequência poderá ser muito mais do que uma gripezinha fiscal: um epidemia monetária chamada inflação.
*Cristovam Buarque foi governador, senador e ministro
Fonte:
Luiz Carlos Azedo: A bagunça na economia
Com a inflação descontrolada, ninguém sabe o resultado da equação “injeção de dinheiro no bolso dos mais pobres e elevação dos juros”, em termos de atividade econômica
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Quem quiser que se iluda. A um ano do pleito de 2022, a política econômica do governo Bolsonaro entrou em acelerado modo eleitoral. Quando falou das pressões da ala política e da incompreensão dos jovens integrantes de sua equipe em relação ao teto de gastos, na entrevista coletiva de sexta-feira, no Ministério da Economia, ao lado do presidente da República, o ministro da Economia, Paulo Guedes, sinalizou que pretende manipular os instrumentos de que o Estado dispõe para intervir na economia no sentido de construir um cenário favorável à reeleição de Jair Bolsonaro.
É disto que se trata: começou uma corrida maluca para ganhar as eleições, na qual o governo pretende reverter os desgastes de Bolsonaro junto à população de mais baixa renda e, com isso, manter o apoio do Centrão. O carro chefe da estratégia é o Auxílio Brasil, o programa de Bolsonaro para substituir o Bolsa Família, além de outros benefícios, como o vale gás e o subsídio de R$ 400 para os caminhoneiros abastecerem os tanques de seus veículos. O rombo no teto de gastos, estimado em R$ 86 bilhões, pode chegar a R$ 100 bilhões.
O problema é que os R$ 400 anunciados por Paulo Guedes, R$ 100 a mais do que aceitavam os integrantes da equipe econômica que deixaram o governo, liderados pelo secretário de Tesouro Bruno Funchal, dificilmente serão mantidos pelo Congresso. Não para reduzi-los; pelo contrário, para aumentá-los, podendo chegar a R$ 600, como propôs o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa é uma bandeira que a oposição agarrará com as duas mãos, muito provavelmente com o apoio docemente constrangido do Centrão. A conferir!
Cá entre nós, para um governo cujo orçamento é da ordem de R$ 1 trilhão, essa despesa poderia ser feita dentro do Orçamento da União, se o valor equivalente fosse remanejado de outros setores do governo, em vez de obtidos por meio de um calote nas dívidas judiciais, ponto de partida da chamada PEC dos Precatórios, e de uma manobra contábil no cálculo do IPCA, que serve de base para a atualização do teto, que deixou de junho a junho para janeiro a dezembro, ou seja, uma mágica que comprova a teoria de que na política o calendário é relativo. Na economia também, mas o dono do tempo é o mercado.
Estelionato eleitoral
O problema é o “instinto animal” dos agentes econômicos, como diria o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto, principalmente de produtores e investidores, porque a manobra não altera positivamente a realidade da economia, da geração de riqueza ao emprego e à renda, pelo contrário. Vejamos:
(1) Dólar – O rombo no teto de gastos pode chegar a R$ 100 bilhões, o que vai provocar mais desvalorização da moeda. O mercado estima que a cotação do dólar chegará a R$ 5,80 em dezembro e ultrapassará R$ 6,20 até as eleições de 2022.
(2) Inflação – No acumulado de 12 meses até setembro, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) chegou a 10,25%. Foi a maior taxa anula desde fevereiro de 2016.
(3) Juros – O Banco Central será obrigado a aumentar ainda mais a taxa básica de juros, atualmente em 6,25% (Selic). Na próxima reunião do COPOM, deve subir 1,25 ponto percentual e chegar a 8,75% ao ano, em dezembro, subindo para 10.5% em 2022.
(4) Crescimento – O crescimento esperado de 1,8% para o PIB de 2022 deu lugar a uma expectativa média de 1%. Há quem fale em 0,5% do PIB.
(5) EUA – O Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) pode subir os juros, hoje na faixa entre 0% e 0,25%, em meados do ano que vem.
(6) China – O PIB chinês cresceu 4,9% no terceiro trimestre de 2021, o ritmo mais lento em um ano, em razão da crise de energia, das interrupções na cadeia de abastecimento, do agravamento das dívidas em seu setor imobiliário e dos surtos esporádicos de Covid-19.
Nesse cenário, o presidente Bolsonaro e o ex-presidente Lula emulam propostas de caráter populistas, que tendem a deteriorar ainda mais a situação da economia. Tanto na reeleição de Fernando Henrique Cardoso, com o câmbio fixo, como na reeleição do ex-presidente Lula, com o Bolsa Família, foi possível interferir na economia para favorecer quem estava no poder, porém, numa situação de inflação sob controle. Longe da eleição, com a inflação descontrolada, ninguém sabe o resultado da equação “injeção de dinheiro no bolso dos mais pobres e elevação dos juros”, em termos de atividade econômica. Quem ganhar as eleições, ao assumir, terá que fazer um duro ajuste nas contas públicas.
A direita, o centro e a esquerda no “dia do fico” de Paulo Guedes
A sexta-feira, 22 de outubro, promete ficar conhecida, na crônica política, como o “dia do fico” do ministro Paulo Guedes
Paulo Fábio Dantas Neto / Blog Democracia e Novo Reformismo
A primeira das interpretações possíveis - aquela que mais diretamente aciona a intuição e os sentidos de quem assistiu à bizarra entrevista coletiva de ontem à tarde – é a de um canastrão ébrio, delirante, inconsciente do seu script. O ex-posto de conveniência de um chefe mais aventureiro do que ele, que de há muito não se abastece com ele e sequer passa por perto dele, posa, tal qual um apóstolo de religião extinta ou um poeta de língua morta, de guardião de um teto de gastos imaginário enquanto se desnuda ensopado pelo aguaceiro político e fiscal que lhe tirou o prumo, a equipe e o que lhe restava de dignidade. Patético agonizar de um paciente terminal, ao qual não faltou uma cena que lembra outra. Em maio de 2020, o então ministro da Saúde, Nelson Teich, também em coletiva, ouviu perplexo, da boca de um repórter, a notícia de uma declaração de Bolsonaro que desmoralizava o que ele, ministro, acabara de afirmar. Foi constrangedor comparar sua cara de traído, derradeiro sabedor da situação em que se metera, com o riso zombeteiro do general Pazuello, seu futuro sucessor, divertindo-se com a saia justa do condenado. Pois foi do mesmo sarcasmo o sorriso de Bolsonaro quando Guedes errou, ontem, o nome do novo auxiliar que anunciava na cena do “fico”. Sem noção do próprio papel e do lugar subordinado que ocupa, o ministro jactava frases baluartistas sobre um país inexistente e supunha um “acordo” seu com o presidente, a quem não obedece, mas com quem negocia.
Passado o impacto da impressão que acionou a intuição da agonia pública e indigna de Paulo Guedes, apareceu lugar para um raciocínio mais ajustado à imagem do dia do fico. Dela decorre uma segunda linha de interpretação do episódio e do processo em que ele se insere, a qual, pelo que se pode notar, faz, até aqui, mais fortuna na cobertura da imprensa. Para o bem de poucos e felicidade particular dos que não tem noção do povo e da nação - vítimas reais da pobreza e doença adensadas pela perversidade de um desgoverno - o presidente fez um afago no ministro que é o seu elo com o mundo da economia. Pressionado pelo desastre das bolsas e do câmbio, de um lado e pelo apetite patrimonialista de sua base congressual, de outro, Bolsonaro pisou no freio com os políticos para prestigiar seu ministro, o qual, em retribuição, reviu a suposta inclinação a pedir demissão. Supõe-se que o mercado raciocina que ruim com Guedes, pior sem ele. Nada que signifique perigo do centrão perder a condição objetiva de aliado preferencial do Presidente, na hora do “vamos ver”. É adiamento de um desfecho, o que por si só mostra a simultânea fragilidade da situação política do governo e do próprio Bolsonaro, premidos por um caos econômico, uma crise social e uma alta rejeição popular. Que dizer do futuro de um governo para o qual o ébrio da banca ainda é uma âncora?
O contraste entre as duas interpretações é pouco relevante, se comparado à situação de desgaste que nenhuma delas consegue ocultar. As reações de Bolsonaro e Guedes à adversidade que os põe na defensiva são, igualmente, de terceirizar responsabilidades. Bolsonaro sempre apontou o dedo para o isolamento social provocado pelos governadores e pelo Judiciário; Guedes lembra que inflação é assunto do BC, que precisa “correr atrás”. Anestesiado por angústias de curto prazo, Guedes forja um discurso por um “ajuste fiscal mais brando, com abraço social mais longo”. Ao BC cabe aumentar juros para conter a inflação que afeta o povo. Inflexão ao social útil à satisfação da banca. A situação permite uma terceira interpretação, segundo a qual Paulo Guedes e políticos do centrão lutam por restos, em meio a escombros, sendo Bolsonaro menos árbitro e mais refém dessa disputa.




















A esse respeito, a coluna de Andrea Jubé (“Não tem bala de prata para a economia - Valor Econômico, 22.10.21) traz abordagem original do atual contexto pré-eleitoral cuja fonte é o economista e consultor político Mauricio Moura, fundador do Instituto Ideia Big Data. A controvérsia que ele abre com as previsões predominantes em análises de cenários para 2022 instiga a reflexão. Para Moura, o grau de dificuldades de Bolsonaro para obter a reeleição justifica que ele, apesar de ocupar, hoje, o segundo lugar nas pesquisas, seja considerado como “terceira via”, sendo Lula e um candidato, ainda oculto, da centro-direita, as vias mais prováveis de estarem presentes no segundo turno. Considera que o prazo de um ano é apertado para se recuperar uma economia que, no momento, produz problemas sociais (desemprego, inflação, pobreza, fome, fechamento de pequenos negócios) em níveis de gravidade comparáveis aos de 1988. A menção àquela conjuntura nos lembra de que na eleição de 89 o legado econômico-social do governo Sarney teve rejeição quase unânime, entre duas dezenas de candidatos presidenciais.
Ao lado disso - e em conexão lógica com isso – Moura salienta os índices de ruim e péssimo quase consolidados na marca de 55% e um dado, talvez o mais importante para o contexto, que aqui se discute, de disputa política em torno do auxílio social, encarado como uma espécie de tábua de salvação do governo. A má notícia para Bolsonaro seria que apenas dez por cento dos eleitores que consideram o governo regular (grupo no qual repousa, em tese, algum potencial de crescimento para ele) estão nas classes D e E. Se essa informação é precisa, fica uma certa impressão de que ela não justifica tanto barulho na atual queda de braço entre Guedes e o centrão. Fica no ar, como complemento dessa terceira interpretação, a sensação de que o conflito público foi aquecido para que dessa vez não haja dúvidas sobre o pai da criança do auxílio Brasil. Turbina-se uma crise “entre a política e a economia” (disjunção funcional ao apoliticismo reinante) para não haver divisão de louros entre Executivo e Legislativo, esse comparecendo – ao contrário do ocorrido com o auxílio emergencial de 2020 – apenas com o carimbo formal. Sendo tema de acirrada controvérsia, o auxílio adquire também valor simbólico de opinião pública, podendo afetar o comportamento eleitoral de bem mais gente do que seus beneficiários diretos. Não à toa sobraram farpas de Guedes ao Senado de Rodrigo Pacheco, cujo vagar na votação de alterações no IR teria obrigado o governo a conceber o mix alternativo que soma à PEC dos precatórios o auxílio Brasil a vulneráveis e, de quebra, a caminhoneiros. Pode-se negar tudo a Bolsonaro menos o reconhecimento do seu faro apurado para rivais.
Mas a realidade desafia as fabulações. Uma espécie de tempestade perfeita aguarda Bolsonaro na esquina, pois há a incompetência gerencial do governo e a propensão do presidente a se dirigir primordialmente ao seu grupo de eleitores mais fiel. Cético quanto à sustentabilidade de fases “moderadas” de Bolsonaro, o mesmo Maurício Moura o vê repetindo o erro que desgraçou Trump. Por outro lado, diz que se Bolsonaro conseguir se manter à frente de todas as candidaturas do centro e assim chegar ao segundo turno contra o PT (o que se pode dar também, caso o centro não se apresente razoavelmente unificado), ganharia competitividade no segundo turno, porque o antipetismo voltará a aflorar, fazendo Bolsonaro ser, outra vez, beneficiado pelo voto plebiscitário.
Ler essa última reflexão de Moura, trazida por Jubé, fez-me experimentar um temor que se achava aplacado, há meses, em relação ao risco de reeleição de Bolsonaro. Se hoje, ele pode ser “terceira via” porque tende a não chegar ao segundo turno, a condição para isso se confirmar é haver política inteligente na oposição de centro (para deslocá-lo do segundo turno) e na oposição de esquerda, para, em caso de fracasso do centro, adotar um discurso mais amplo para contemplá-lo e assim evitar a polarização extremada que pode devolver Bolsonaro ao páreo. Esse é um perigo que o país e a democracia não podem correr, por desagregação do centro, ou pela estreiteza da esquerda, ou pelas duas coisas.
Nesse sentido preocupam certos fios desencapados que se mostram em projetos de candidaturas excessivamente autárquicos e personalistas e, também, na gana de espetáculo que ameaça a credibilidade e a consequência dos resultados da CPI do Senado. Se um senso de centro político moderador não tirar de tempo esses fios, um festival de tiros no pé pode dar a Bolsonaro saídas que hoje não tem. Algumas das imprudências podem ter como alvo justamente inviabilizar a agregação de uma oposição de centro. Isso interessa objetivamente a Lula, que tem parceiros no centro e na direita para ajudá-lo a ominar o centro, por se imaginar imbatível num segundo turno contra Bolsonaro. Convém pensar em como agirá o eleitor conservador comum (majoritário no eleitorado) diante da perspectiva do PT retornar ao governo. Dependendo do tom da campanha lulista, mesmo decepcionado com o ‘mito”, esse eleitor pode olhar para o Bolsonaro de carne e osso que emergir, por exemplo, do auxílio Brasil e usar, na urna, o metro usado em 2018. Claro que o PT não pode se anular ou se imolar por causa disso. Mas na sua busca legítima de chegar ao segundo turno não precisa confundir tanto os inimigos.
Nenhum cuidado é demasiado quando se trata de bloquear o caminho ao reagrupamento do bloco reacionário que elegeu Bolsonaro em 2018. O ex-deputado Rodrigo Maia, por exemplo, atualmente secretário do governo de São Paulo, está certo ao dizer que o adversário do centro, a ser deslocado do segundo turno, deve ser Bolsonaro e não Lula. Nada a opor a essa tese geral. Mas o discurso se contradiz e por isso é pouco veraz ao bater continência ao governador paulista. Parece que o adversário real de Maia é a centro-direita, onde granjeou desafetos. Eixo que terá boa chance eleitoral se unificado, o que será mais difícil se Doria vencer as prévias do PSDB. Maia quer aliança preferencial com o PDT, subestimando, talvez, a relevância do campo do qual ele próprio provém. Como se Doria pudesse existir fora da direita, indo do centro à esquerda, o que não é real.
É um discurso que, além de agradável a Doria, pode ser útil, ou neutro, para se eleger deputado no Rio, mas pouco agregador para a eleição presidencial. É cada dia mais claro que, para ser competitiva e deslocar, de fato, Bolsonaro do segundo turno, uma aliança teria que ser do centro (PSDB, MDB, PV, Cidadania) com o PSD e o União Brasil. Seria bom o PDT estar nela também, mas todos sabem que esse partido só fará aliança se na cabeça estiver Ciro Gomes, candidato carente de prestígio entre partidos da direita, embora (ou até porque) corteje seus eleitores. Se houvesse a hipótese de o PDT puxar o tapete de Ciro para celebrar uma aliança sem a cabeça da chapa seria para apoiar Lula e não alguém do centro ou centro-direita, muito menos Doria.
Claro que tudo isso pode mudar em um ano, mas a possibilidade que hoje parece ainda haver de uma agregação ao centro que desminta a previsão de um segundo turno sangrento entre bolsonarismo e lulismo é outra: está em Eduardo Leite adotar postura menos evasiva, ser menos artificial e genérico no discurso, conseguir ganhar as prévias do PSDB e ser, quem sabe, um vice politicamente representativo numa chapa encabeçada por alguém do campo liberal- conservador, como Rodrigo Pacheco, por exemplo.
Não se trata aqui de gostar ou não dessa composição (particularmente vejo, entre os dois, pouca diversidade de atitude e estilo), mas de ver que é a opção que parece sobrar, a uma terceira via, para ter alguma cara de frente política. Ainda que com a ressalva de que sobre a estratégia de Gilberto Kassab em filiar Pacheco ao PSD e lançá-lo candidato paira a suspeita de que é jogo combinado com Lula para o segundo turno. Aliás, boataria mais afoita tenta tirar a bucha do balão antes que ele se acenda e suba, espalhando até a ideia de que Pacheco poderia ser vice numa chapa com o petista. A ordem natural das coisas é outra, pois Pacheco parece querer embicar sua nave no exato momento em que o “fico” de Paulo Guedes sinaliza o prolongamento de uma batalha intensa pelos recursos materiais envolvidos no fundo público que o governo gerencia (ou ao menos deveria). Dessa batalha chapa-branca fatalmente perdedores serão expelidos e o presidente do Senado tem perfil sereno, tolerante e acolhedor, propício a virar imã e não a ser imantado. A ver.
Como nada isso está combinado com os eleitores, Pacheco, se vier a ter em torno de si um arco de alianças amplo, poderia virar agente, em vez de novo solvente da terceira via. Embora tenha longa estrada a percorrer em busca de relevância eleitoral para o seu nome, ele tem cancha, poder de articulação e meios institucionais, caso performances de prima-donas, às vezes histriônicas, do trio que comanda a CPI da pandemia não prejudiquem a credibilidade do Senado como possível pista de decolagem de uma candidatura moderada.
Diante de óbices, até aqui não superados, para que Luiz Mandetta convença deputados do União Brasil (principalmente os egressos do ex- PSL) a admitirem lançar um candidato presidencial sério, aceitando assim repartir a farta cota do partido no fundo partidário, Pacheco, pelo PSD, parece ser opção mais à mão para o tal projeto de terceira via, ainda que carregada de incerteza sobre os passos subsequentes que poderão ser dados por ele, em diferentes direções. Isso deve ser ressalvado, não porque lhe falte discurso ou compromisso democráticos para eventualmente ser uma opção também voltada ao centro. Mas porque interlocuções que ele mantém, a partir da presidência do Senado, emprestam contorno mais enigmático ao desenho do arco político que pode reunir. Entre ser vice de Lula e candidato de uma direita governista dissidente, tudo, a princípio, é possível.
Nesse sentido, Mandetta seria caminho menos oblíquo e mais próximo ao perfil desejado por quem busca agregar um centro democrático com mais cara de oposição. Suas chances de vingar como opção agregadora dependem, no entanto, do processo adquirir andamento mais incisivo e ousado, no sentido de formulação de uma plataforma social democrática, porque, embora provenha da centro-direita, tem pendor a um discurso social, ainda inconcluso, mas perceptível nos movimentos de caráter unitário que ele tem feito até aqui.
Afora Pacheco ou Mandetta, opções aparentemente mais agregadoras, há um arquipélago de jogos solteiros, como os de Ciro Gomes, João Doria e Datena, para não falar do de Sergio Moro, esses dois últimos outsiders estranhos a qualquer centro. Em jogos mais personalistas é que mora, no caso do centro, o risco acenado na análise de Maurício Moura.
Por fim, vale prestar atenção ao que se passa (ou deixa de passar) no território da esquerda. Estranha a quietude que, por vezes, emana dessas paragens. Há certa acomodação à coadjuvância mesmo diante de temas que lhe são caros, como a pauta social. Parece que, resolvido o quem e, uma vez estando esse quem confortavelmente aclamado em pesquisas, transcorre hiato inercial antes que se defina “o que” e “o como” fazer as coisas e de comunicá-los ao país. O discurso de Lula é reiterativo, abaixo do seu potencial de mobilização política e de intervenção em cada cena. Peço licença à memória de Moraes Moreira para dizer que nesse tique, nesse taque, nesse toque, nesse (pouco) pique Lula leva de roldão o PT e, assim, candidato e partido ficam, perigosamente, reféns de uma fala de configuração plebiscitária, quase maniqueísta, quando ecos da trajetória do ator – especialmente os de 2002 - permitem esperar algo mais animado e complexo.
O tom meio nostálgico contamina e congela as falas dos partidos da oposição de esquerda, não só a do PT. Até Boulos recuou da ousadia positiva da sua campanha municipal e voltou a repetir jargões de esquerda negativa. O PSB, é verdade, captou e integrou alguns pontos fora dessa curva conservadora, como Freixo, Flávio Dino, Tábata Amaral e outros, que tensionam o arco de uma promessa renovadora. Mas o tom geral, mesmo entre quadros mais afeitos ao diálogo político e nele educados, é o que se vê na fala do deputado Molon, um desses quadros e atual líder da oposição na Câmara. Colocado diante do desafio concreto de dizer o que a oposição quer aprovar no caso do auxílio Brasil e suas conexões com a PEC dos precatórios, as mudanças no Imposto de Renda e por aí vai, perde-se na retórica. Sabe que “não vai por aí”, mas não consegue indicar por onde se deve ir. Num momento em que não se pode usar meias palavras para dizer que se deve votar, sim, o auxílio aos mais vulneráveis, isso é dito, ou de passagem, ou num repicar de cifras descomprometido com a exequibilidade. Falta admitir, com todas as letras, o limite fiscal, assumir medidas heterodoxas imediatas como exigências da emergência social, acenando com atitudes de contenção a médio e longo prazos. E resistir à tentação do udenismo de esquerda, que aponta emendas parlamentares e negociação política em geral como vilãs, sem dizer o que e como seria o uso “republicano” do inevitável furo no teto de gastos.
Esses e outros limites fazem a atitude da esquerda ser menos positiva na apresentação de proposições, atendo-se à torcida para que seu porta-voz chegue às urnas com a aprovação popular que atualmente tem. Dessa torcida faz parte torcer pelo fracasso prévio de uma terceira via, cujo papel, caso se construa, será tirar Bolsonaro do páreo, ainda no primeiro turno. Poderia ser objetivo nacional, se o diálogo entre forças democráticas fosse maior.
*Cientista político e professor da UFBa
Fonte: Blog Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/10/paulo-fabio-dantas-neto-direita-o.html
Na última década, 64% dos generais foram nomeados para cargos políticos
Segundo levantamento do GLOBO, maioria das nomeações ocorreu sobre a presidência de Bolsonaro
Bernardo Mello e Jan Niklas / O Globo
RIO — O Alto Comando do Exército, que configura o topo da hierarquia militar, também vem representando — especialmente no governo Bolsonaro — um estágio que antecede a obtenção de cargos políticos. Levantamento do GLOBO com os promovidos ao Alto Comando na última década mostra que, de 33 generais hoje na reserva, 21 — isto é, 64% ou aproximadamente dois em cada três — foram nomeados para funções de confiança, cuja remuneração se acumula à aposentadoria militar. A maioria das nomeações ocorreu sob a presidência de Jair Bolsonaro, e depois de esses generais esgotarem seu ciclo de promoções no Exército.
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Na prática, as nomeações configuram uma espécie de “porta giratória”, permitindo o retorno a cargos públicos para oficiais compulsoriamente retirados do serviço ativo, por esgotarem o prazo de permanência no Alto Comando. Dos 21 generais, 17 receberam seu primeiro cargo fora da estrutura militar depois de terem ido à reserva. Entre as exceções nomeadas quando ainda eram da ativa, dois são ministros de Bolsonaro: Walter Braga Netto (Defesa) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência). Metade dos egressos do Alto Comando em cargos de confiança foi nomeada a partir de 2019. Especialistas avaliam que houve uma “exacerbação” da presença no governo de militares do topo da hierarquia.

Politização
O Alto Comando é formado pelos 17 generais de quatro estrelas da ativa, que podem ficar até quatro anos nesse estágio hierárquico. Por ser o último degrau do Exército, é obrigatória a passagem à reserva após esse prazo. No levantamento, O GLOBO desconsiderou cargos inseridos na estrutura das Forças Armadas, como os de chefe do Estado-Maior e de ministro do Superior Tribunal Militar (STM), bem como em estatais, fundações e autarquias com finalidade militar, casos da Imbel e da Fundação Habitacional do Exército. Também não foram contabilizados cargos eletivos, como o do vice-presidente Hamilton Mourão.
— Em que pese a qualificação dos generais, a exacerbação de cargos ocupados por eles não é boa nem para a corporação, nem para a sociedade. Ela traz antagonismos políticos para uma instituição, o Exército, que deveria ser funcional — avalia Eurico Figueiredo, ex-diretor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF), que desenvolveu pesquisas em cooperação com a Escola de Comando e Estado Maior do Exército (Eceme).
Entre os generais que passaram pelo Alto Comando, quatro já figuraram no primeiro escalão do governo federal, e quatro ocuparam a presidência ou cargos de direção em estatais. Um exemplo de ambos os casos é o general Joaquim Silva e Luna, promovido à quarta estrela em 2011, e que passou à reserva em 2014. Silva e Luna foi ministro da Defesa por oito meses, no governo Temer, nomeado no início do governo Bolsonaro para a direção-geral de Itaipu e, em abril deste ano, assumiu a presidência da Petrobras.PUBLICIDADE
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Em abril, uma portaria do Ministério da Economia permitiu que militares inativos que também ocupem cargo comissionado ou eletivo ultrapassem o teto remuneratório da administração federal, de R$ 39 mil.
Luiz Carlos Azedo: O indiciamento de Bolsonaro
A CPI foi bem-sucedida ao revelar os erros cometidos pelo governo durante a pandemia, mas também teve seus momentos de histrionismo e de dribles a mais
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense / Estado de Minas
Antes mesmo de ser indiciado pela CPI do Senado que investiga a atuação do governo durante a pandemia do novo coronavírus (covid-19), o presidente Jair Bolsonaro sentiu o golpe. No cercadinho do Palácio da Alvorada, onde manda seus recados por meio de apoiadores e da imprensa, chamou de “bandido” o relator da comissão, senador Renan Calheiros (MDB-AL), que pretende lhe imputar 11 crimes, sendo três gravíssimos: homicídio, crime contra a humanidade e genocídio. “O que nós gastamos com auxílio emergencial foi o equivalente a 13 anos de Bolsa Família. Tem cara que critica ainda. O Renan me chama de homicida. Um bandido daquele. Bandido é elogio para ele. O Renan está achando que eu não vou dormir porque está me chamando de homicida, está de sacanagem”, estrilou.
No cronograma da CPI, o relatório será apresentado na terça e votado na quarta-feira, o que promete uma semana quente no Senado. A tropa de choque do governo deve se mobilizar para barrar o relatório, que proporá o indiciamento da cadeia de comando do governo no auge da pandemia, ou seja, entre outros, do então ministro da Casa Civil, general Braga Netto, hoje ministro da Defesa; do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e do seu ex-secretário-executivo Élcio Franco, aquele da faca ensanguentada na lapela — além do presidente Bolsonaro e dos supostos integrantes do chamado “gabinete paralelo”, o que inclui seus filhos Flávio, senador; Eduardo, deputado federal; e Carlos, vereador carioca; o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR); o deputado Osmar Terra (MDB-RS), ex-ministro da Cidadania; e os médicos Paolo Zanotto e Nise Yamaguchi.
A CPI foi bem-sucedida ao revelar os erros cometidos pelo governo durante a pandemia, mas também teve seus momentos de histrionismo e de dribles a mais. Existe uma maioria robusta para aprovação de um relatório consistente; dificilmente, porém, haverá maioria para a imputação do crime de genocídio a Bolsonaro. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), por exemplo, defende o foco na cadeia de comando e o indiciamento apenas naqueles crimes sobre os quais há provas irrefutáveis. Delegado de Polícia Civil, tem experiência no ramo. A CPI não é um tribunal, é uma comissão de inquérito; seu relatório será remetido a diversas esferas, da Justiça de primeira instância ao Supremo Tribunal Federal (STF); do Tribunal de Contas da União (TCU) à Procuradoria-Geral da República (PGR), da Receita Federal à Polícia Federal.
Genocídio
“O que passa na cabeça do Renan Calheiros naquela CPI? Eu vi que… O que passa na cabeça dele com esse indiciamento? Esse indiciamento, para o mundo todo, vai que eu sou homicida. Eu não vi nenhum chefe de Estado ser acusado de homicida no Brasil por causa da pandemia. E olha que eu dei dinheiro para todos eles (governadores)”, disse Bolsonaro, traindo o temor de que essa venha a se tornar a maior dor de cabeça de sua vida. Uma coisa é responder às acusações na Presidência, outra é ter que fazê-lo, caso não seja reeleito, na planície, como simples cidadão.
São acusações pesadas: epidemia com resultado de morte; infração de medida sanitária preventiva; charlatanismo; incitação ao crime; falsificação de documento particular; emprego irregular de verbas públicas; prevaricação; genocídio de indígenas; crime contra a humanidade; crime de responsabilidade, por violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo; e homicídio comissivo por omissão no enfrentamento da pandemia. Como o relatório da CPI será acolhido no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda? Criado pelo Tratado de Roma, em 1998, o órgão ligado à ONU foi ratificado por 66 países, entre os quais o Brasil. A imagem internacional de Bolsonaro é péssima.
A Corte tem competência para julgar os chamados crimes contra a humanidade, assim como os crimes de guerra, de genocídio e de agressão. O Estatuto define genocídio como qualquer ato praticado “com intenção de destruir total ou parcialmente grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Crime contra a humanidade é “qualquer ato praticado como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil e com conhecimento de tal ataque” (por exemplo, “práticas que causem grande sofrimento ou atentem contra a integridade física ou saúde mental das pessoas”).