José Murilo de Carvalho

Ameaça de golpe militar: General nega envolvimento das Forças Armadas

Francisco Mamede de Brito Filho, que participa de webinar organizado pela FAP nesta sexta (30), a partir das 16h, diz não ver riscos de os militares reagirem se Bolsonaro perder a eleição em 2022

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

O general da reserva do Exército Francisco Mamede de Brito Filho, de 59 anos, 40 deles na ativa, diz não ver risco de as Forças Armadas serem usadas em reação ao resultado das urnas diante de uma possível derrota do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em 2022. Francisco, que também foi chefe de gabinete do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) nos quatro primeiros meses do atual governo, vai participar de evento online sobre o tema A questão militar: do Império aos nossos dias. O webinar será sexta-feira (30/7), a partir das 16h.


Assista ao vivo!




Coordenado pelo professor Hamilton Garcia de Lima, o evento será realizado pela FAP e também terá a participação do professor de história José Murilo de Carvalho e do ex-ministro da Defesa Raul Jungmann. O webinar terá transmissão em tempo real no portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade.



“É inimaginável achar que as Forças Armadas vão ser empregadas em favor de um posicionamento ou de um chefe de governo contrário ao parecer das urnas e do próprio presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Isso seria uma ruptura institucional grave”, afirma, em entrevista ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.

Desprestígio
Ex-instrutor da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (Ecme) e ex-chefe do Estado-Maior do Comando Militar do Nordeste, o general explica que “a questão militar é um fato histórico pontual”. Segundo ele, está relacionada ao desprestígio da categoria de maneira geral, por causa da questão salarial, e à legislação leniente.

“Os fatores ali presentes na questão militar vão se replicar em outras situações de ruptura, além da República, como na Revolução de 30, no Estado Novo e no movimento de 1964”, analisa ele.

O conjunto de leis, por exemplo, de acordo com o general, ainda é leniente por não estabelecer limites para a participação política do segmento militar. “Era de se esperar que o Estado propusesse mecanismo de controle para se evitar interferências políticas”, ressalta.

“Controle não é, simplesmente, ter arcabouço legal que venha impor restrições”, explica. “Mas é preciso reconhecer que a despolitização ocorre, principalmente, por meio de legislação que coíba situações que favoreçam a politização”, acrescenta.


General Francisco Mamede de Brito Filho considerou "obscura" a razão que levou à absolvição de Eduardo Pazuello. Foto: 4ª Brigada de Infantaria Leve (Montanha)

Caso Pazuello
Além disso, ele chamou de “obscura” a razão que levou à absolvição do general e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Em junho deste ano, o colega de corporação se livrou de punição administrativa após discursar em ato político em defesa de Bolsonaro, apesar de regulamento disciplinar definir como transgressão a participação de militar da ativa em evento de natureza político-partidária.

“Quanto a isso, a coisa está obscura porque o comandante do Exército decretou 100 anos de sigilo sobre os motivos que o levaram a não punir Pazuello. Deve ter levado em conta algum dado que o deixou à vontade para tomar aquela decisão, mas está clara a situação transgressora, considerando os dados aos quais tive acesso”, diz Francisco.

Na avaliação do general da reserva, é preciso fortalecer ainda mais a legislação para evitar brechas interpretativas que favoreçam militares em cenários de transgressão disciplinar. “Se estamos vivendo situações que colocam a sociedade ansiosa ou com clima de confiança indesejável na democracia, é porque não tratamos bem o arcabouço legal”, assevera.

PEC
O general ressalta que um passo importante será a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) que visa impedir que militares da ativa ocupem cargos políticos em governos.

A autora da PEC, deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB-AC), afirmou que a “sensação” é de que não se sabe mais onde termina o governo e onde começa o Exército. “É o que pode acontecer de pior para esta instituição e as demais Forças Armadas”, disse, nas redes sociais.

Pré-celebração do bicentenário da Independência
A questão militar: do Império aos nossos dias
Dia:
30/7/2021
Transmissão: a partir das 16 horas.
Onde: Portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da Fundação Astrojildo Pereira
Realização: Fundação Astrojildo Pereira

Frente democrática deve ser condicionada a programa político, diz historiador

Nota em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da manutenção da ordem pública

Cristovam Buarque lista lacunas que entravam desenvolvimento do Brasil

‘Passado maldito está presente no governo Bolsonaro’, diz Luiz Werneck Vianna

FAP conclama defesa da democracia e mostra preocupação com avanço da pandemia


José Murilo de Carvalho: ‘Bolsonaro faz bravata perigosa e se dirige a escalões inferiores e às PMs’

Historiador diz que declaração do presidente sobre democracia e Forças Armadas ‘é veneno para as corporações militares’ e que ele ‘não se dará bem’ se desafiar hierarquia militar

 Wilson Tosta, O Estado de S. Paulo

RIO – Uma bravata perigosa. Assim o historiador José Murilo de Carvalho classifica a declaração do presidente Jair Bolsonaro apontando nas Forças Armadas o poder de determinar se o Brasil é uma democracia ou uma ditadura. Embora admita que o que mandatário afirmou é em parte verdadeiro – considera que a República brasileira é tutelada pelos quartéis –, o pesquisador avalia que ele não fala pelos altos comandos de Marinha, do Exército e da Aeronáutica. E aponta um risco nas atitudes do presidente. Ele, afirma, se dirige aos escalões inferiores da hierarquia castrense e às polícias militares. Para o professor, trata-se de uma “violação da hierarquia”.

“É veneno para as corporações militares”, preocupa-se. “Para o historiador, Bolsonaro “fracassou” na “guerra da vacina” e tenta retomar protagonismo”. Mas não conseguirá bom resultado se tentar envolver os fardados e desafiar a sua hierarquia, adverte José Murilo, que diz que na pandemia Bolsonaro “lutou do lado errado”.

A seguir, os principais trechos da entrevista de José Murilo ao Estadão.

Onde o presidente Bolsonaro quer chegar quando diz que depende das Forças Armadas se o Brasil vai ser uma democracia ou uma ditadura?

A declaração é contraditória. Dizer que a democracia depende das Forças Armadas é dizer que já não há democracia, o que em parte é verdade na medida em que temos uma república tutelada. Só teremos uma república democrática quando ela não depender de apoio militar. A república norte-americana passou por uma crise séria, sem que os militares se manifestassem. 

Essa declaração é apenas uma bravata ou há uma ameaça real de golpe, com possibilidade de se concretizar?

É uma bravata perigosa. Ele fala em “nós militares”,  colocando-se como porta-voz do grupo, o que ele certamente não é. Pela lei, quem fala pelos militares são seus comandantes. Se falasse como presidente, chefe das Forças Armadas seria ainda pior, porque estaria colocando a presidência como defensora de um grupo social. A bravata é perigosa para ele por estar usurpando a autoridade dos comandantes das três forças. 

Em sua avaliação, Bolsonaro tem apoio das Forças Armadas, no seu todo ou em parte, para esse tipo de declaração?

Como já indicou o comandante do Exército, general (Edson) Pujol, aliás colega dele na AMAN, quando condenou a politização das Forças Armadas, ele (Bolsonaro) não fala em nome delas. O presidente tem feito um jogo perigoso ao se dirigir a escalões inferiores da hierarquia militar e às polícias militares. Essa violação da hierarquia é veneno para as corporações militares.

Bolsonaro tenta usar as Forças Armadas como “espantalho” contra um eventual processo de impeachment?

Se for o caso, acho que será mais um erro político, um tiro que poderá sair pela culatra por estar comprometendo as Forças Armadas com seu projeto político pessoal. Esse envolvimento não interessa às Forças Armadas que vêm tentando fugir à acusação de que estamos diante de um  governo militar e não apenas de um governo com militares. 

O que explica que Bolsonaro sempre volte à temática e ao imaginário da ditadura, já que ela é passado distante e ele, que ainda não era militar profissional no período mais duro do autoritarismo, deve à democracia a eleição para a Presidência?

O cadete Bolsonaro, número 531, cujo apelido era Cavalão, frequentou a AMAN de 1974 a 1977, em plena ditadura. Teve como instrutores oficiais que lutaram contra a guerrilha do Araguaia montada por militantes do PCdoB, chamados por Bolsonaro em 2009 de “cambada comunista”. Está no livro de Luiz Maklouf Carvalho sobre ele, página 34. A paranoia anticomunista dele nasceu ali e no caso dele, como no de muitos outros militares, continua viva, agora talvez mais como jogada política. 

Declarações desse tipo seriam uma tática do presidente, lançando uma polêmica quando está em desvantagem na opinião pública para desviar a atenção e ocupar o noticiário, como agora, com os problemas que cercam a pandemia, a tragédia de Manaus e ameaça de impeachment? 

É certamente tática de despistamento. A obsessão dele, como era a de Trump, é a reeleição. Ele vai inventar tudo que possa compensar as perdas. 

Diante dessas novas declarações, podemos esperar uma nova fase de radicalização, por parte do presidente?

Ele fracassou redondamente na guerra da vacina e procura voltar à tona. Mas não se dará bem se quiser envolver as corporações militares desafiando sua hierarquia.

Poderemos voltar a 2020, com manifestações apoiadas por Bolsonaro pedindo fechamento do Congresso e do STF?

Se tentar, terá o destino de seu líder norte-americano, sobretudo se os outros dois poderes da República se comportarem com maior responsabilidade. As pessoas estão cansadas da luta contra a pandemia, em que ele lutou do lado errado. 


José Murilo de Carvalho: Cidadão doutor

Sempre tivemos problemas com palavras que indiquem igualdade civil

Os brasileiros sempre tivemos problema com a palavra cidadão, ou com qualquer outra que indique igualdade civil e ausência de hierarquias sociais, como sua irmã gêmea, república. Roberto DaMatta já nos mostrou isso.

O vírus da cidadania chegou a nossas plagas vindo da França revolucionária, do assustador Aux armes, citoyens! Um panfleto manuscrito de 1821, exposto nas ruas de Salvador, não deixava por menos: “Às armas, cidadãos! […] Se à força da razão os reis não cedem/ das armas ao poder cedam os reis”. Mas estávamos vacinados pela tradição monárquica ibérica. A palavra entrou para nosso vocabulário liberal domesticada em seu potencial nivelador.

Nova tentativa de retomá-la em seu sentido revolucionário foi feita logo após a Proclamação da República por alguns republicanos jacobinos e positivistas. Silva Jardim à frente, e novamente inspirados na Revolução de 14 de julho, eles saíam cantando a “Marselhesa” pelas ruas do Rio de Janeiro, para desespero do representante francês, que não queria atritar-se com o governo brasileiro, nem desagradar a seus compatriotas.

Vitorioso o golpe, jacobinos e positivistas tentaram introduzir o tratamento de cidadão para todos os brasileiros no intento de acabar com as hierarquias monárquicas compostas de títulos de nobreza e honoríficos, patentes da Guarda Nacional. A regra de tratamento passava a ser cidadão-presidente, cidadão-deputado, cidadão-barbeiro, e assim por diante.

O destino do esforço pode ser acompanhado na correspondência enviada a Rui Barbosa quando ministro da Fazenda entre 1889 e 1891, quase toda ela dedicada a pedidos de favores, sobretudo empregos públicos. Era óbvia a dificuldade dos missivistas em seguir a nova regra republicana. Em mais de mil cartas, só duas, uma de João Ribeiro, a outra de Silva Jardim, se enquadraram. Os dois mesmos, em outras cartas, e todo o resto temperaram o cidadão no mínimo com um cidadão-doutor. Havia variantes como “cidadão-conselheiro” (misturando o título monárquico com o republicano), “cidadão- general” (título que foi dado a Rui pela própria República, que o constrangia). Alguns missivistas extrapolaram: “Cidadão-general-Dr.”, ou “Exmo.-Cidadão-Conselheiro”. A maior dificuldade dos missivistas era não usar a palavra doutor. Até nos quartéis, era Dr. General para cá, Dr. Tenente para lá.

Mais tarde, já depois da Revolução de 1930, houve nova tentativa de “cidadanizar” o tratamento. Consta que o general Manuel Rabelo, um positivista ortodoxo, como Rondon, quando interventor em São Paulo, promulgou um decreto tornando obrigatório o tratamento de cidadão para todos. Deram-lhe o apelido de “Cidadão-mendigo”. Hoje, cidadão é quase xingamento, como se viu em episódio recente no Rio de Janeiro, protagonizado por um Sr. Dr. Engenheiro. A solução, como sugeriu Capistrano de Abreu, talvez seja dar a todo brasileiro, já na certidão de nascimento, o título de doutor. Seríamos uma República de Doutores, única no mundo.

*José Murilo de Carvalho é historiador


José Murilo de Carvalho: O grande mudo

A doutrina da mudez política do Exército não prosperou entre nós

O jornalista Larry Rohter, que acaba de publicar excelente biografia de Rondon, citou com admiração em sua coluna na revista “Época” uma frase dita pelo marechal em 1956: “O Exército deveria ser o grande mudo”. Zuenir Ventura, aprovando, repercutiu a citação em sua coluna do GLOBO. Como o assunto é atual, vou espichá-lo um pouco.

A frase chegou ao Brasil em 1920 com os componentes da Missão Militar Francesa, chefiada pelo general Gamelin, que fora contratada pelo ministro Calógeras, o único civil a comandar o Exército na República. Existia na França a expressão: L’Armée est la grande muette, referindo-se, naturalmente, a seu caráter apolítico. Antes, entre 1906 e 1912, por sugestão do barão do Rio Branco, três turmas de jovens oficiais brasileiros tinham estagiado no Exército alemão, que adotava o mesmo princípio. De volta ao Brasil, criaram a revista “Defesa Nacional”, de caráter exclusivamente profissional e que lhes valeu o apelido de jovens turcos. A revista só se referiu uma vez à primeira revolta tenentista de 1922. O autor, um oficial da Missão, insistiu em que a neutralidade política dos oficiais era a marca das democracias liberais. Rondon, então com 55 anos, estava no Rio nessa época e foi seguramente quando tomou conhecimento da expressão que transmitiu a Rohter.

A doutrina da mudez política do Exército, no entanto, não prosperou entre nós. Entre os líderes dos “turcos”, talvez o único que a manteve consistentemente por toda a vida foi o general Leitão de Carvalho. Suas ideias foram expostas no livro “Dever militar e política partidária”, publicado em 1959; sua atuação está descrita nas memórias que deixou. Ele se recusou a apoiar a Revolução de 1930 e todos os muitos movimentos militares das décadas de 1920 e 1930. Outro “turco” de destaque, o futuro general Bertoldo Klinger, fez suas adaptações. Já no primeiro número da “Defesa nacional”, dizia que o Exército deveria ter uma função “conservadora e estabilizante”. Para isso, as intervenções militares não podiam vir de baixo para cima, como em 1922 e 1924, tinham que vir de cima para baixo. Em 1930, vitoriosa a revolução, um Movimento Pacificador depôs o presidente W. Luís. Nomeado chefe do Estado-Maior, o então coronel Klinger propôs uma solução de Estado-Maior. Segundo ele, o destino do Brasil deveria ser o naquele momento entregue aos generais de terra e mar, que convocariam nova eleição.

Dos ex-alunos da Missão Francesa, quem mais se projetou foi o general Góis Monteiro. Depois de ter combatido os rebeldes de 1924, renegou toda ideia de mudez e aceitou a chefia militar da Revolução de 1930. Era, então, um tenente-coronel. Vitoriosa a revolta, foi logo promovido a general e publicou um livro intitulado “A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército”, com prefácio de José Américo de Almeida. Nele escancarou as teses de Klinger. O Exército é “um órgão essencialmente político”. Lançou mão dos ensinamentos militares da Missão Francesa para usá-los contra a doutrina da mudez. Era preciso, escreveu, “fazer a política do Exército e não a política no Exército”. Só à sombra do Exército e da Marinha se poderiam organizar as outras forças nacionais. Durante o período de 1930 a 1945, dedicou-se a aplicar a ideia de Klinger: fazer do Exército um ator político unido, eficaz, falante. Os 88 movimentos militares de protesto de 1930 a 1939 foram reduzidos a seis entre 1940 a 1945.

Entre 1937 e 1945, Góis e Dutra monopolizaram o posto de ministro e a chefia do Estado-Maior. Em 1945, as Forças Armadas, em decisão conjunta dos três Estados-Maiores, derrubaram Getúlio Vargas. Adeus Missão Francesa, adeus Exército grande mudo.

*José Murilo de Carvalho é historiador


José Murilo de Carvalho: Livro aponta tutela de militares na República

Hoje, a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas FA para definir seu papel

As Constituições determinam o papel dos atores políticos. Vejamos como as nossas definiram o das Forças Armadas.

1824: sem papel político e policial.

Art. 47: “A Força Militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir, sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima”.

Art. 48: “Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar e Terra, como bem lhe parecer conveniente à segurança e defesa do Império”.

1891: com papel político e policial.

Art. 14: “As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da pátria no exterior e à manutenção das leis no interior. A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos, e obrigada a sustentar as instituições constitucionais”.

1934: com papel político e policial.

Art. 162: como em 1891. Acrescenta nas atribuições: “defesa da ordem e da lei”.

1937: sem papel político e policial.

Art. 161: “As forças armadas são instituições nacionais permanentes, organizadas sobre a base da disciplina e da fiel obediência à autoridade do presidente da República”.

1946: papel político e policial.

Art. 176: “As FA […] são instituições nacionais permanentes […] sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei”.

Art. 177: “Destinam-se as FA a defender a pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”.

1967: papel político e policial.
Art. 92: repete 1946, trocando “poderes constitucionais” por “poderes constituídos”.

1988: papel político e policial.

Art. 142: “[como em 1946] organizadas […] sob a autoridade suprema do PR, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Foi longo e difícil o debate sobre este artigo, feito sob forte pressão do ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves. Mas a disputa deu-se em torno da expressão “garantia da lei e da ordem”. Segundo os críticos, ela podia dar margem a golpismo. Este dispositivo, no entanto, estava presente, com pequenas nuanças de redação, desde a Constituição de 1891, passando pelas de 1934, 1946 e 1967.

Hoje, creio que a atribuição mais grave é colocar as Forças Armadas como garantidoras dos poderes constitucionais, presente desde 1891. Houve uma reviravolta na interpretação desse papel. Em 1891, ironicamente, a Constituição proibia o que o Exército acabara de fazer: desrespeitar as instituições constitucionais. Mesmo assim, deixou uma saída intervencionista ao acrescentar “dentro dos limites da lei”. Juarez Távora não viu na limitação qualquer obstáculo à revolta dos tenentes: eles sabiam definir o que era ou não legal.

Hoje, a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas FA para definir seu papel e justificar sua intervenção. A mais recente manifestação desta postura foi o alerta ameaçador do general Augusto Heleno a propósito de eventual apreensão do celular do presidente. A apreensão, se levada a efeito, seria uma tentativa de “comprometer a harmonia entre os poderes”, com “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Um dispositivo que, inicialmente, visava a impedir intervenção, passou a ser justificativa de intervenção. A Constituição imperial dizia no artigo 98: “O Poder Moderador […] é delegado privativamente ao Imperador […] para que vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”. Temos uma República julgada incapaz de se autogovernar, sujeita à tutela de um novo Poder Moderador.

*José Murilo de Cavalho é historiador


Míriam Leitão: ‘Os erros terão cor verde-oliva’

Historiador José Murilo de Carvalho vê risco crescente de ruptura no Brasil e avalia que as Forças Armadas já estão atreladas aos erros do presidente

A democracia corre riscos no Brasil? Essa foi a pergunta que fiz para o historiador e escritor José Murilo de Carvalho. Ele respondeu: “Corre.” Era difícil imaginar uma resposta assim tão direta, tempos atrás. “Até o início do ano, o risco era pequeno, mas está crescendo, embora, por enquanto, em ritmo menor do que o coronavírus.” Autor do clássico “Forças Armadas e Política no Brasil”, que acaba de ser relançado, José Murilo acha que dificilmente Marinha e Aeronáutica apoiariam qualquer ruptura da ordem.

Ele não está falando, nem se pensa, em um golpe como o de 1964, que aconteceu em outro contexto histórico, mas acha que o artigo 142 da Constituição tem um “caminho aberto para interpretações conflitantes”. Dos muitos sinais dos últimos dias dados por militares que estão no governo, ele acha que o mais grave foi o episódio do general Augusto Heleno, até porque foi respaldado pelo ministro da Defesa:

— A posição do general Heleno é sem dúvida a que mais preocupa, por deixar a entender uma ameaça de intervenção. Pode, em parte, ser atribuída a seu temperamento, mas a nota que distribuiu no dia 22 de maio é ameaçadora. Pode ser interpretada como referência ao que a Constituição diz sobre o papel das Forças Armadas como garantidoras dos poderes constitucionais, isto é, como superpoder, como corte supremíssima.

A Constituição, explica, diz que as Forças Armadas estão sujeitas à autoridade do presidente da República e acrescenta que elas se destinam “à garantia dos poderes constitucionais”.

— Há aí uma enorme dificuldade: como estar sujeitas a um poder e, ao mesmo tempo, garantir os três? É caminho aberto para interpretações conflitantes e dá margem a declarações ameaçadoras como a do general Heleno. Ele faria a mesma ameaça se fosse para defender o Congresso e o STF contra os ataques do chefe do Executivo? — pergunta o professor.

Ele lembra que na história recente esse é o segundo episódio que tem o Supremo como alvo:

— É irônico. O general Villas Boas fez ameaça na véspera do julgamento de Lula no Supremo. Agora, o general Heleno ameaça o mesmo Supremo por, supostamente, perseguir o presidente.

Esses riscos extemporâneos que aparecem no país lembram uma máquina do tempo que nos tenha levado para mais de meio século atrás. Até porque quem presta atenção nas falas bolsonaristas fica com a impressão que ainda estamos naquele mundo. Para um bolsonarista raiz, qualquer pessoa que discorde do presidente é um “comunista”. O professor trata de pôr o passado onde ele deve ficar, no passado.

— Certamente nada como em 1964. Não temos um dos principais condicionantes de então, a Guerra Fria. O comunismo era na época uma realidade no mundo, com adesões no Brasil, inclusive nas Forças Armadas. Hoje é conto de carochinha. A esquerda, se podemos chamar o PT de esquerda, está desarvorada. Grupos civis armados, como os de Brizola em 1964, hoje despontam entre os apoiadores radicais do presidente. Seria curioso se, para garantir a lei e a ordem, e de acordo com a Constituição, o Supremo convocasse as Forças Armadas para combatê-los.

Se por “ruptura” o deputado Eduardo Bolsonaro está falando em endurecimento do regime, como aconteceu em alguns países como a Hungria, por exemplo, isso teria o apoio dos militares?

— Minha aposta é que não. Marinha e Aeronáutica dificilmente apoiariam tal decisão. São forças mais profissionalizadas. Mesmo o Exército hesitaria. O artigo do general Santos Cruz deve representar a posição da maioria do oficialato. O mais crucial é a posição dos generais que permanecem no governo.

O historiador lembra que no início a presença dos generais não significava que o governo fosse militar:

— Mas a constante alegação do presidente de ter apoio militar está deixando esses generais em posição delicada. Eles são corresponsáveis pelas trapalhadas do governo e agora não haverá mais como evitar que a imagem das Forças seja afetada. Os erros terão cor verde-oliva.

Essa situação de temer pela estabilidade democrática foi criada pela retórica belicosa do presidente nesses 17 meses de governo. A saída seria, segundo ele, “o impedimento”, mas acha que ele está protegido pela pandemia:

— Com a quarentena não há rua, sem a rua não há impedimento.

O país se vê às voltas com velhos fantasmas que o governo Bolsonaro mesmo retirou do armário.


O Estado de S. Paulo: Basta razão convincente para afastar Bolsonaro', diz historiador

Segundo José Murilo de Carvalho, há ‘tempestade perfeita’ formada por crise econômica, crise política e novo coronavírus

Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo
RIO - Na crise aberta pela demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça, o historiador José Murilo de Carvalho vê indícios de um governo que começa a se despedir antes do previsto. A crise política agravada pelo confronto de Moro com o presidente Jair Bolsonaro, as dificuldades econômicas e a pandemia do novo coronavírus se aliam em uma “tempestade perfeita”, que torna a sobrevivência do governo “cada vez mais difícil”, avalia. Segundo ele, a fragilidade da base parlamentar de Bolsonaro torna essa possibilidade muito factível.

“Basta haver uma razão convincente de impedimento para que, sem apoio sólido no Congresso, ele (Bolsonaro) possa ser afastado por impedimento”, afirma o historiador, ao comparar a crise atual com aquelas que envolveram os governos Dilma Rousseff e Michel Temer. Para ele, os últimos movimentos de Bolsonaro, livrando-se de possíveis rivais, como Moro, acenando ao Centrão e lançando um plano econômico que lembra o regime militar, tendem a aumentar o seu isolamento. A Bolsonaro, avalia, restaria uma base popular cada vez menor.

O que a saída de Moro, um dos representantes do chamado ‘tenentismo de toga’, significa para a Lava Jato e para o País?

A Lava Jato já estava sendo esvaziada. Se o presidente quiser controlar a PF, a operação será sepultada de vez pelas mãos de quem prometia moralização. Inclusive porque o presidente está agora buscando apoio da ala podre da política.

Bolsonaro quer controlar a PF porque teme investigações contra ele e seus filhos?

Tudo indica que é a razão principal do atrito com Moro. É de notar que o presidente só falou no (filho) 04 (Jair Renan, o mais novo), saltando os zero um (senador Flavio Bolsonaro), zero dois (vereador Carlos Bolsonaro) e zero três (deputado Eduardo Bolsonaro).

O governo Bolsonaro se sustentará até dezembro de 2022?

É cada vez menos provável a sobrevivência dele até o final. Teríamos, além da crise econômica e da pandemia, uma crise política. Tempestade perfeita.

No que a crise atual se parece e se diferencia quando comparada com as crises do impeachment de Dilma e do caso Joesley, no governo Temer?

O presidente atual é mais frágil, por não ter um partido forte que o sustente. Dilma tinha apoio, mas insuficiente. Temer tinha base sólida. Hoje, basta haver uma razão convincente de impedimento prevista na legislação, por exemplo, crime de responsabilidade, para que, sem apoio sólido no Congresso, ele (Bolsonaro) possa ser afastado.

E com outras crises de nossa República, como as dos governos Jânio e Collor, que também pregavam combate à corrupção e mudanças conservadoras? Há comparação?

Jânio era um moralista autêntico e sincero. Só não tinha convicções e paciência democráticas. Collor teve problemas dentro da própria família. Ambos não tinham base parlamentar.

Em um curto espaço de tempo, o presidente Bolsonaro demitiu Luiz Henrique Mandetta, esvaziou Paulo Guedes, demitiu o chefe da PF, provocando a saída de Moro da Justiça, e buscou apoio no Centrão. Qual é a lógica desses movimentos em sequência?

É uma jogada arriscada tirar os dois ministros mais populares e agora minar a posição de Paulo Guedes com a criação de comissão para formular um programa chamado Pró Brasil. O presidente afasta possíveis concorrentes, mas perde crescentemente apoio popular.

Bolsonaro está rearrumando a direita, buscando outra base social, livrando-se de possíveis rivais em 2022 e procurando apoio nos velhos esquemas políticos? Ou está apenas protegendo o seu clã de investigações?

(Está) Livrando-se de rivais e protegendo a prole.

O governo pode, na prática, se tornar um governo militar, tocado pelos generais?

Pelo menos, um governo dependente dos ministros militares. O que é ruim para o governo, ruim para os militares, ruim para o País. Para o governo, por ficar dependente deles. Para os militares, porque qualquer fracasso pode ser jogado sobre a corporação, embora eles não a representem no governo. O envolvimento da imagem da corporação será difícil de ser evitado. Para o País, (é ruim) porque gera insegurança.

O plano econômico anunciado esta semana por militares, com medidas que alguns disseram lembrar o regime militar, é sinal de militarização?

O Pró Brasil lembra um pouco a política desenvolvimentista de (presidente Ernesto) Geisel. Mas lembra também o PAC de Dilma. Nenhum funcionou. A diferença é que, paralelamente, ele (Geisel) começou o processo de desmilitarização da política quando o chamado milagre começou a derreter. Um processo inverso. O crescimento econômico não podia mais ser avalista da ditadura.

O que as mudanças no governo indicam: Bolsonaro está recomeçando, em bases iliberais, ou caminha para o seu fim?

Mais peso estatal na política econômica não precisa ser necessariamente um mal, embora seja incompatível com a política idealizada pelo ministro da Economia (Paulo Guedes). Mas fazê-lo fora da negociação política é um mal. O isolamento do governo crescerá restando-lhe uma base popular cada vez mais restrita. A probabilidade de um fim de governo aumenta.


José Murilo de Carvalho: Munição de guerra

Temos vivido, desde o impeachment, intensa guerra verbal travada no grande pasquim atual que são as redes sociais

A década de 1880 teve início agitado na capital do Império por conta da Revolta do Vintém. A agitação estendeu-se por uns três anos liderada, sobretudo, por pasquins que guerreavam contra a grande imprensa e entre si. O mais agressivo deles foi o “Corsário”, redigido por Apulco de Castro. Em 13 de novembro de 1882, o redator publicou em edição extraordinária os autos de um imaginado conselho de guerra contra Carlos Bernardino de Moura, redator do jornal “A Pátria”. O acusador, isto é, o próprio Apulco, realizou a proeza de lançar 328 acusações contra o réu, na realidade uma saraivada de insultos. Temos também vivido nos últimos anos, desde o impeachment, intensa guerra verbal travada no grande pasquim atual que são as redes sociais. Parece, no entanto, que a munição dos combatentes anda a escassear. A guerra se monotoniza. Ocorreu-me, então, tomar a iniciativa, que creio patriótica, de reabastecer os combatentes com novas armas recorrendo ao arsenal do Corsário. Seguem os novos insultos, tirados dos autos.

“O réu é acusado de ser gatuno, larápio, salteador, sem-vergonha, traste, biltre, safado, ladrão, estelionatário, cara de tacho, sevandija, canalha, bêbado, devasso, bandido, cigano, dantas, trigo loureiro, debochado, besta, lesma, imundo, matéria excrementícia, besta do sexo macho, escória, vergonha, reles, saltimbanco, ignóbil, torpe, bicho, cínico, fresco, gato magro, Cruzeiro, Montoro [monturo?], nojento, rato de latrina, libertino, cão sem dono, sicofanta, porco varado, venal, burro, corrupto, comua, cloaca, José do Patrocínio, cano de esgoto, capadócio, patife, cabral pinheiro, polícia secreta, lazarento, Otaviano Hudson, pústula, sarna, tinha, mula de médico, tocador de pífanos, zebra, cobra, sapo, serpente, sogra, excomungado, onanista, capacho, escarradeira, cabungo, filho de sete pais, veado, azêmola, hiena, Serpa Junior, cáften, batedor de carteira, city improvements, cadela, ilha de Sapucaia, cara de guardanapo, infame, égua, pântano viscoso, atoleiro, podre, deletério, miasmático, peste, esfaimado, sacripanta, mariola, hediondo, repugnante, incestuoso, rua de S. Jorge, biraia, meirinho, monturo, esterquilínio, guano do Peru, sifilítico, vômito, urubu, caixa d’água, caloteiro, pedaço d’asno, ignorante, abutre, fedorento, invejoso, caluniador, mentiroso, vil, Franklin Dória, lama, podridão, escorpião, lagartixa, raia, cação, mono, piolhento, Van-Halle, monarquista, jogador, sujo, porco, horroroso, Calino, Serzedelo, ingrato, mosca morta, Adelino Fontoura, vagabundo, especulador, tagarela, língua de trapos, Fávila Nunes, azeiteiro, Clímaco dos Reis, Município Neutro, Tribuna Portuguesa, ratoneiro, limpa praia, necrotério, ferradura, pirata, hidrófobo, maluco, gira, Traviata, peru de roda, escarro, fúnebre, gato pingado, quilombo, cara de réu, Tinta Roxa, parvo, cisco, cavalgadura, camelo, garoto, moleque, judas, vendido, unhas de fome, idiota, moeda sem cunho, paciente, testa de ferro, filho de mulher solteira, arlequim, casmurro, trampolineiro, bacalhau sem vinagre, traficante, galé, prostituído, charlatão, falsário, mico, megera, piolho, praia do peixe, D. Brás Tizana, Sousa Freitas, Pereira Monte, inepto, salamarreco, borra-botas, bigorrilha, esfola bodes, troca tintas, canhão, pandorga, peralta, lobisomem, ostra, mulher de padre, pau de virar tripas, bosta, mula sem cabeça, pão duro, parati de quiosque, feijoada de frege, ventas de sumaca, sulanca sem peito, vunga, mal assombrado, mendigo, esqueleto, rufião, Russinho, Mané gostoso, figura de gesso, alarve, José do Telhado, Lucas da Feira, assassino, corujão, alcoviteiro, parasita, chorão, Leão XIII, morcego, parteira, ratazana, desbocado, enjeitado, borracho, cemitério, cadáver, prostituta, gajo, caixa d’ossos, cocota, intrigante, bilioso, sátrapa, mundano, horripilante, desdentado, vasilhame, raposa, chinelo velho, espertalhão, vampiro, planista, japonês, bargante, coruja, cascavel, entanha, Iscariote, hipócrita, venenoso, sandeu, animalejo, jumento, escorbútico, odre, jerico, estúpido, tapado, fleimão, escalavrado, roto, esquálido, envenenado, lazarista, jesuíta, pus, santa casa, sexta-feira, magro, pulha, palhaço, fadista, epidemia, sete de setembro, jiboia, jararacuçu, tanajura, afonso vintém, pandilha, ladrão de estrada, malandro, botocudo, pio Enéas, febre amarela, lorpa, madraço, bugio, farsola, poldro, marau, centopeia, lacrau, água suja, suíno, hipopótamo, impingem, parlapatão, laparoto, perverso, petulante, dromedário, pedante, sensual, sem dignidade, burro esporeado, empacador, ridículo, gorgota, vândalo, beldroega, pateta das luminárias, chifre, arrebentado, badameco, muxibento, pelanca, papa-moscas , lambe pratos, onze-letras, lixo, calango, víbora, caninana, burrego, jacaré, paiorra etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc.”

Aos insultos, cidadãos!

*José Murilo de Carvalho é historiador


Folha de S. Paulo: Eleição de Bolsonaro é teste de fogo para nossa democracia, diz historiador

Para José Murilo de Carvalho, muita coisa ruim pode ser feita dentro dos limites da Constituição

Mario Cesar Carvalho, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - É um teste de fogo para a democracia brasileira a eleição do deputado federal e capitão reformado Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidência da República.

A opinião é de José Murilo de Carvalho, 79, um dos mais importantes historiadores do país, autor de um clássico sobre a nascente República ("Os Bestializados") e de uma obra que se tornou referência no estudo da relação dos militares com a política ("Forças Armadas e Política no Brasil").

Carvalho acha que o maior risco não é um golpe ou autogolpe, para o qual, segundo ele, faltaria o apoio das Forças Armadas. "O problema é que a Constituição de 1988 é muito generosa em relação à interferência militar na política", afirmou à Folha.

O artigo 142 da Constituição, segundo ele, permite que militares sejam chamados para garantir ameaças aos poderes constitucionais e à lei e à ordem. "Muita coisa ruim pode ser feita dentro desses limites sem caracterizar golpe", diz.

Carvalho, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras desde 2004, prevê anos difíceis pela frente. "Haverá tentativas de introduzir, por lei ou decreto, medidas que representem retrocesso democrático. A principal tarefa da oposição será combater sem tréguas essas tentativas".

Se as instituições chegarem intactas em 2022, "já será um ganho", na opinião dele.

O historiador, que também é cientista político, diz que só por uma "enorme burrice" Bolsonaro manteria o discurso ofensivo e preconceituoso que caracterizou seus mandatos como parlamentar e sua campanha à Presidência. "Imagino que haverá pessoas a seu redor, inclusive generais, que o farão mudar de retórica. Caso contrário, ele estaria cavando a própria sepultura política".

Como explicar a chegada de Jair Bolsonaro, um deputado do baixo clero, à Presidência da República?
Precisaria de um tratado para responder a essa pergunta. Não tenho nada de diferente do coquetel que tem sido apresentado: falta de confiança nos políticos e na política desde 2013, crise econômica, desgaste do longo governo do PT, Lava Jato, violência, reação a mudanças que afetaram os conceitos e valores tradicionais a respeito de família e gênero.

A eleição de Jair Bolsonaro é uma ameaça à democracia? Há risco de um golpe?
É um teste de fogo para nossa democracia. A haver golpe seria o que o general Mourão [vice-presidente eleito] chamou de autogolpe, isto é, dado pelo próprio governo, como em 1955 e 1969. Não acredito que vá haver o indispensável apoio militar para isso. O problema é que a Constituição de 1988 é muito generosa em relação à interferência militar na política. O artigo 142 dá às Forças Armadas o papel de garantidoras dos poderes constitucionais e, a pedido de um desses, de garantidoras da lei e da ordem. Muita coisa ruim pode ser feita dentro desses limites sem caracterizar golpe.

O senhor foi um dos primeiros historiadores a estudar as Forças Armadas por dentro. Por que os militares apoiam, em diferentes graus, um capitão que foi reformado por indisciplina?
Eles têm em comum um etos militar composto de valores e atitudes. Embora nem sempre seguidos, há a ideia de serviço à pátria, de honestidade pessoal, de ordem, de hierarquia, de cumprimento do dever. Posso imaginar o desconforto de oficiais generais ao terem que bater continência para um capitão. Quanto ao apoio, é preciso distinguir. O profissionalismo, isto é, a resistência à intervenção, é mais forte na Marinha e na Aeronáutica. Todas as manifestações políticas recentes de militares procedem de oficiais generais do Exército, inclusive do comandante dessa Força.

Por que os eleitores decidiram trazer os militares de volta para a política? É uma reação ao PT ou esse retorno tem razões mais complexas?
Esta é a grande pergunta a ser feita. Bolsonaro sempre foi figura apagada que só passou a ter alguma evidência a partir das manifestações de 2013. Estas manifestações, que ninguém previu, deram o alarme, que ninguém ouviu, de que algo se movia entre certas placas tectônicas de nossa sociedade, um mal-estar um tanto difuso, mas real. Daí para cá esse movimento só fez crescer impulsionado pela crise econômica, pela Lava Jato, pelo aumento da violência, por certas leis no âmbito de valores familiares e religiosos que ofendiam o tradicionalismo de muitos. Bolsonaro navegou nessa onda.

Bolsonaro elogia a ditadura, defende a tortura, ofende negros, mulheres e gays. O sr. acha que isso foi uma estratégia para se tornar popular, e ele vai se moderar na Presidência, ou o capitão é assim mesmo?
Seria uma enorme burrice manter essas ideias grosseiras na Presidência. Imagino que haverá pessoas a seu redor, inclusive generais, que o farão mudar de retórica. Caso contrário, ele estaria cavando a própria sepultura política.

Por que corrupção e violência, e não a desigualdade, viraram temas centrais da disputa?
Foi a grande falha destas eleições: discutiram-se temas relevantes, mas omitiu-se o mais importante, que é a luta contra a desigualdade. O país tem pela frente a imensa tarefa de incorporar milhões de desempregados, subempregados e não empregáveis pela baixa escolaridade. Estamos brincando, ou brigando, na praia, alheios a um grande tsunami que se forma no horizonte.

Por que mesmo preso Lula conseguiu levar o PT ao segundo turno e busca qualificar Fernando Haddad para ser o líder da oposição?
Getúlio Vargas, de seu refúgio em São Borja, virou a eleição de 1945 a favor do general Dutra, que o depusera, dando-lhe seu apoio, anunciado pelo rádio cinco dias antes da eleição com [o que hoje seria] hashtag "ele disse". Lula, apesar da prisão, ainda possui capital político considerável. Seu carisma e a memória de seu governo foram suficientes para alavancar Haddad. Quanto a qualificar Haddad para ser líder da oposição, será necessário verificar se ele tem o perfil político para a tarefa.

Há alguma chance de o país se pacificar? O que podemos esperar do governo de Bolsonaro?
Não se pode contestar a legitimidade da eleição, a maioria dos eleitores assim o quis. Mas o país sai dela profundamente dividido, sem lideranças ou partidos capazes de promover o diálogo. Não haverá pacificação. Serão anos difíceis e haverá tentativas de introduzir, por lei ou decreto, medidas que representem retrocesso democrático. A principal tarefa da oposição será combater sem tréguas essas tentativas. Já será um ganho se chegarmos ao final do primeiro mandato com instituições intatas e os valores preservados. Se conseguirmos, nossa democracia terá passado num teste difícil e se fortalecido. Se não, não.

ENTENDA A CITAÇÃO FEITA AO GENERAL DUTRA
Em 27 de novembro de 1945, a cinco dias das eleições, Getúlio Vargas conseguiu mudar o rumo da disputa presidencial e eleger o general Eurico Gaspar Dutra. Vargas havia sido deposto e estava em autoexílio na sua fazenda em São Borja (RS), na fronteira com a Argentina.

De lá Getúlio mandou divulgar a seguinte frase em apoio ao general que participara do golpe contra ele: "Ele disse: votai em Dutra". A mensagem, divulgada em panfletos em todo o país com a foto de Vargas, alterou os rumos do pleito.

O brigadeiro Eduardo Gomes, da UDN, representante dos conservadores que aparecia como favorito nas eleições, acabou derrotado por Dutra. O general, candidato do PSD, recebeu 3,2 milhões de votos, cerca de 1,2 milhão a mais do que o brigadeiro.