José Goldemberg

José Goldemberg: Licenciamento e desastres ambientais

É possível ser mais rigoroso e proteger a população sem impedir o desenvolvimento

Os desastres ambientais de Mariana e Brumadinho põem na ordem do dia, com alta prioridade, o problema do licenciamento ambiental. Isso significa uma séria inversão de prioridades do governo federal.

A reorganização administrativa promovida em janeiro levou à extinção e realocação de várias áreas ligadas a questões ambientais, o que indicava uma visão desenvolvimentista em que o licenciamento ambiental parece ser um obstáculo ao desenvolvimento.

Essa era explicitamente a visão do governo militar em 1972, por ocasião da primeira Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, em Estocolmo, que levou à criação de Ministérios do Meio Ambiente (ou órgãos equivalentes) na maioria dos países do mundo. A visão do governo na época era a de “desenvolver primeiro” e se preocupar depois com as consequências sociais e ambientais decorrentes.

Apesar disso, o professor Paulo Nogueira Neto, da Universidade de São Paulo (USP), conseguiu convencer o presidente Médici a criar, em 1973, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema) no Ministério do Interior, à frente da qual permaneceu até 1985 e onde conseguiu introduzir toda a legislação e os órgãos administrativos da área ambiental no País.

A criação da Sema deveu-se mais ao prestígio pessoal de Paulo Nogueira Neto, integrante de tradicional família paulista, e sua reputação científica do que a uma compreensão clara da necessidade do governo militar de conciliar desenvolvimento com proteção ambiental.

Ele era visto com reservas por grupos interessados na expansão da ocupação da Amazônia, mas com seu perfil não confrontacional conseguiu introduzir no País legislação ambiental moderna, copiada de países da Europa e dos Estados Unidos. O melhor exemplo é o da criação da Companhia Estadual de Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb), em São Paulo. O sucesso em resolver o problema ambiental de Cubatão, no governo Montoro (1986-1989), deu à Cetesb estatura e prestígio para enfrentar outros desafios.

Isso não ocorreu, contudo, em muitos outros Estados e certamente não no governo federal, em que órgãos como o Ibama frequentemente não tiveram apoio para pôr em prática a excelente legislação criada por Paulo Nogueira Neto.

Estamos pagando hoje o preço disso com os desastres de Mariana e Brumadinho. E o governo Bolsonaro não ajudou nada, até agora, a resolver os problemas reais do setor ao reduzir o status do Ministério do Meio Ambiente (que até cogitou de extinguir) e tolerar entrevistas e declarações de membros de sua administração desqualificando a defesa do meio ambiente como inspirada por agentes internacionais e de modo geral “xiita” nas suas reivindicações.

A realidade é outra e esta é uma boa hora de recolocar o problema nos termos corretos.

A legislação atual tem basicamente dois instrumentos para forçar o cumprimento das normas ambientais adequadas: multas e interdições. A aplicação de multas revelou-se insuficiente, como o próprio presidente Bolsonaro tem declarado, porque a judicialização dos processos tornou-a inoperante. O único instrumento eficaz é o poder das agências ambientais de interditar empreendimentos. Foi o uso dela que permitiu à Cetesb “limpar” Cubatão, 40 anos atrás.

Sucede que a decisão de interditar é suscetível a influências políticas: se os órgãos ambientais não tiveram respaldo e apoio ativo dos prefeitos (nos municípios), dos governadores (nos Estados) e do presidente da República (na área federal), a interdição não é eficaz.

Exemplo na área federal é dado pela redução dramática do desmatamento na Amazônia conseguida pela ministra Marina Silva entre 2005 e 2010, que contou com o apoio entusiástico de setores importantes da sociedade, o que intimidou os promotores do desmatamento. Algo semelhante ocorreu no governo Collor, em 1991, quando a ação da Polícia Federal e o monitoramento do desmatamento feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) - que foi tornado público - levaram a uma redução do desmatamento, que recomeçou a subir no governo Fernando Henrique. Em ambos os casos foi a firmeza e a coragem do governo federal que apoiou os técnicos da área ambiental a cumprir suas tarefas. Não foi preciso criar novas leis, mas decidir cumpri-las.

Esta é uma situação parecida com a Operação Lava Jato e o papel do juiz Sergio Moro. A legislação anticorrupção, com delação premiada e outros dispositivos legais, já existia, mas foi a coragem do juiz em aplicá-la que fez toda a diferença.

Isso não significa que a legislação ambiental não possa ser aperfeiçoada e simplificada - sem perder o rigor -, sobretudo definindo melhor as características específicas dos empreendimentos. Licenciar uma pequena central hidrelétrica numa fazenda no interior não precisa ter a complexidade de licenciamento de uma grande usina hidrelétrica.

Para evitar novos desastres, como em Mariana e Brumadinho, o governo federal precisa demonstrar claramente que vai aplicar as leis vigentes, “doa a quem doer”. Somente assim os técnicos e engenheiros responsáveis pelos projetos e pela fiscalização ambiental se sentirão respaldados para propor a interdição de projetos inadequados e não conceder novas licenças sem a permissão de medidas protetoras da população.

Licenciar uma barragem como a de Brumadinho, permitindo que abaixo dela fossem instalados uma pousada e um refeitório da Vale, ultrapassa as raias do absurdo na sua irresponsabilidade. E poderia ter sido evitado por uma simples medida administrativa.

Não é possível, como querem alguns, resolver os problemas da pobreza no País mantendo a natureza intocada. Mas é possível fazer um licenciamento ambiental mais rigoroso e ágil, que proteja a população sem impedir o desenvolvimento.

* José Goldemberg, professor emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo


José Goldemberg: Aquecimento global e desinformação

Questionar a realidade é obscurantismo, como o foi negar que a Terra gira em torno do Sol

Informação é um elemento essencial para a nossa sobrevivência e a tomada de decisões. É por isso que ninguém se lança de um edifício de dez andares, em lugar de descer as escadas, para ganhar tempo: jamais houve uma violação das leis da gravidade.

O mesmo acontece com tomadas de decisão. Se uma pessoa deseja viajar de avião para Nova York, ela se informa da hora da partida antes de ir ao aeroporto. Caso contrário, corre o risco de perder o voo.

Acontece muitas vezes que a informação não é completa. Nesse caso, o que funciona é saber a probabilidade de ocorrência do evento. Prever quando vai chover é um exemplo. Desde a mais remota Antiguidade a previsão do tempo foi essencial para saber quando plantar e quando colher, e erros graves nestas previsões – que eram frequentes – tiveram sérias consequências.

Nos dias de hoje, com o avanço da tecnologia, as previsões de tempo melhoraram muito e os meteorologistas já são capazes de nos dizer qual a probabilidade de chover amanhã ou no fim de semana, e acertar, na maioria das vezes.

O bom senso comum, que nessas áreas é aceito por todos, não existe, contudo, no tocante a outro problema de grande importância, que é o aquecimento do nosso planeta, que está em curso. A temperatura média já subiu mais de um grau centígrado desde 1800 e provavelmente vai subir mais dois graus até o fim do século 21.

A probabilidade de que a principal causa deste aquecimento seja a emissão dos gases resultantes da queima dos combustíveis fósseis, do desmatamento e de atividades agrícolas é muito grande e essa avaliação decorre de inúmeros estudos científicos. As consequências do aquecimento da Terra são muito sérias e já se manifestam, por exemplo, nos desastres climáticos que se estão tornando cada vez mais frequentes.

Para enfrentar o problema a cooperação internacional é essencial, porque as emissões que causam o aquecimento não respeitam fronteiras. A temperatura na China (o país maior emissor mundial) está subindo por causa de suas próprias emissões, mas também das emissões dos Estados Unidos (o segundo emissor mundial) e vice-versa, bem como das emissões de todos os outros países. O Brasil é responsável por cerca de 3% das emissões mundiais.

Vários acordos foram tentados – desde a Conferência do Rio sobre Mudanças Climáticas, em 1992 – para dividir as responsabilidades entre as nações, como, por exemplo, atribuir aos países cotas para redução das suas emissões. Todos fracassaram porque impunham cortes nas emissões aos países industrializados e isentavam os países em desenvolvimento dessas reduções, o que foi considerado inaceitável para os dois grupos.

O último deles é o Acordo de Paris, adotado em 2015, em que cada um dos países apresentou voluntariamente as reduções que desejava soberanamente fazer. Os países onde o movimento ambientalista é mais atuante apresentaram compromissos mais ambiciosos. É o caso dos países da Europa e dos Estados Unidos (sob a presidência de Barack Obama).

O Brasil, no governo de Dilma Rousseff também apresentou propostas ambiciosas, que foram objeto de amplo debate promovido pela então ministra do Meio Ambiente, Isabella Teixeira. Essas propostas foram convertidas em lei pelo Congresso Nacional. Ninguém forçou o País a adotá-las.

Mais recentemente, o presidente Donald Trump decidiu mudar a posição do seu país, provavelmente para “desconstruir” o legado do presidente Obama, e deixar o Acordo de Paris, que não é mais que a soma dos compromissos voluntários apresentados por cada país. Para não cumprir os compromissos assumidos basta mudá-los unilateralmente, não é preciso “deixá-lo” ou “sair dele”, a não ser por motivos políticos.

É curiosa, portanto, a retórica inicial de alguns dos colaboradores do presidente Bolsonaro de seguir os passos do presidente Trump, que agora, ao que parece, está mudando. Ela nos parece simplesmente fruto de desinformação: não existe a menor dúvida de que a temperatura média do planeta está aumentando e a causa principal é a ação do homem. Quem nega isso são leigos que inventam teorias conspiratórias, setores ligados a interesses contrariados de produtores de carvão e petróleo ou simplesmente desinformados.

Existem outras causas para o aquecimento (e até o resfriamento) da Terra – além das emissões de carbono –, como já aconteceu no passado, como a variação da atividade solar, a inclinação do eixo da Terra, erupções vulcânicas, etc. Mas elas foram todas analisadas pelos cientistas: a ação do homem soma-se a esses eventos naturais e está ocorrendo numa velocidade sem precedentes na história geológica da Terra. Questionar a realidade do problema é uma posição obscurantista, como foi a da Igreja Católica no fim da Idade Média ao negar que a Terra gira em torno do Sol.

Os custos necessários para evitar o aquecimento global são elevados – e para muitos governos há tarefas mais urgentes a realizar –, mas esses custos aumentarão muito se nada for feito agora.

Existem, portanto, razões econômicas e sociais para não enfrentar de imediato esses problemas, caso da indústria do carvão nos Estados Unidos ou dos protestos contra a adoção de uma taxa sobre as emissões de carbono na França.

O Brasil perdeu protagonismo e prestígio internacional nesta questão ao desistir de sediar a Conferência do Clima em 2019 porque ela se realizará no Chile e nossa capacidade de influir nos resultados vai diminuir com possíveis prejuízos para o nosso próprio país.

Mais ainda perder “status” internacional com o argumento de que a conferência teria gastos elevados não é convincente porque o mesmo argumento deveria ter valido para os Jogos Olímpicos que exigiram a construção de inúmeros estádios a alto custo que estão hoje praticamente ociosos.

*Professor emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente durante a Conferência do Clima no Rio de Janeiro (Rio-92)


Cristovam Buarque: Jovens nonagenários

A melhor palavra para definir cada um desses três nonagenários exigiria reunir os conceitos de incansável-estimulante-antecipador-professor — homem de ação — estadista de ideias

Entre 27/5 e 1º/8 de 1928, nasceram três brasileiros que marcariam a história do Brasil na área do ensino superior e do pensamento nacional: José Goldemberg, filho de imigrantes judeus vindos da Rússia; Cândido Mendes, filho da aristocracia católica do Rio de Janeiro; e Heitor Gurgulino, filho de um comerciante cearense e uma jovem alemã recém-chegada. Apesar de uma idade ligeiramente menor que a deles, tenho o privilégio de pertencer à mesma geração e ter convivido com os três.

Fui reitor da UnB em período coincidente com Goldemberg, na USP. Fizemos parte do primeiro grupo de reitores posteriores ao regime militar, quando a comunidade acadêmica se deslumbrava com a democracia e caía na tentação de pôr em oposição Liberdade e Mérito. Fizemos parte dos que não abriam mão da busca de mérito na instituição acadêmica. Defendemos a importância da estrutura multidisciplinar no ensino superior, iniciamos a revolução da internet, promovemos o desenvolvimento da pesquisa tecnológica, em cooperação com o setor produtivo. Esta convivência me passou admiração pelo homem público, estadista da ciência e do ensino universitário, cientista e professor.

Tomei conhecimento de Cândido Mendes nos anos 60, quando eu ainda jovem e ele já era um acadêmico ativo na formulação do pensamento brasileiro que serviu de base à formação intelectual de minha geração. Nos últimos anos, convivi pessoalmente com ele em visitas à Universidade Cândido Mendes e durante os seminários que organiza sob o título de Islam et Latinité, buscando construir diálogo entre os mundos Islâmico e Cristão. Estes seminários fazem parte do patrimônio mundial na busca do diálogo inter-religioso e do entendimento dos problemas contemporâneos. Filho da aristocracia católica, Cândido fez uma opção pelos pobres e optou pela racionalidade sem preconceito contra qualquer credo; humanista cosmopolita é um vigoroso nacionalista. Dele reconheço, sobretudo, a generosidade com que se entrega aos amigos que faz e às causas que defende.

Heitor Gurgulino é um jovem nonagenário que tem uma bicicleta em cada um dos seus endereços. Quando lhe perguntei sobre as dificuldades no tratamento de um câncer, reclamou do trânsito que lhe tomava muito tempo nos trajetos entre a casa e o hospital. Heitor foi professor assistente de física na criação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA); fundador e primeiro reitor da Universidade Federal de São Carlos. Por 10 anos, ficou à frente da reitoria da Universidade das Nações Unidas e construiu o Câmpus da UNU, em um majestoso prédio, em uma das mais refinadas áreas da capital japonesa. Ocupou também o cargo de Subsecretário Geral das Nações Unidas e participou das mais importantes conferências da ONU. Aos1990 anos, é presidente da Academia Mundial de Arte e Ciência. Por tudo isso e por sua intensa atividade em dezenas de órgãos internacionais relacionados com educação, ciência, tecnologia, cultura, ele é o mais bem-sucedido brasileiro no cenário mundial da gestão acadêmica e da promoção de ciência.

A melhor palavra para definir cada um desses três nonagenários exigiria reunir os conceitos de incansável-estimulante-antecipador-professor — homem de ação — estadista de ideias. Os três fazem parte do seleto grupo de seres humanos que, ao longo do século 20 e início do 21, estiveram à frente de seu tempo, refletindo sobre a crise e propondo alternativas para a civilização, na encruzilhada que atravessamos: véspera de catástrofes ou de utopias. Deles tenho a imagem da juventude permanente: todos continuam em plena atividade intelectual, instigando, criando, contestando.Em um país que insiste em se manter como um dos piores do mundo na qualidade e na distribuição da educação para sua população, é surpreendente e animador que tenhamos três personalidades, nascidas ao mesmo tempo, que deram contribuições intelectuais e políticas tão elevadas ao mundo. E que não se cansam, não perdem a crença no futuro da humanidade e não param de lutar por ela.

Um dia, anos atrás, eu disse: “Quando crescer quero ser Darcy Ribeiro”; daqui a alguns poucos anos, gostaria de ser um nonagenário como algum desses três. Há duas semanas, tivemos o primeiro dia de Brasília sem Ari Cunha. Aos 91 anos, nos deixou o jornalista que nos informava e inspirava desde a inauguração de nossa cidade. Ele também foi um jovem nonagenário.

 


José Goldemberg: Einstein e o papel dos cientistas na sociedade

Por mais talentosos e criativos que sejam os cientistas, eles não podem ter a ilusão de poder definir as políticas adotadas pelos governantes

Albert Einstein foi, sem dúvida alguma, o cientista mais importante do século 20. No início do século passado, ele formulou a teoria da relatividade, que mudou a concepção do mundo em que vivemos, a qual havia sido estabelecida por Newton no século 18, conforme descrita com clareza por Kant: um espaço e tempo absolutos que não dependem da posição do observador, quer esteja em repouso ou em movimento.

O que Einstein mostrou é que isso só é verdade quando o observador se movimenta lentamente, como é o nosso caso. Se sua velocidade for muito grande, as dimensões mudam e o tempo passa mais devagar ou mais depressa, dependendo do local onde o observador se encontra.

Uma das consequências da teoria da relatividade é a constatação de que matéria pode transformar-se em energia. Essa é a base da construção das bombas atômicas, em que os átomos de urânio se desintegram em fragmentos velozes. Com base nestas ideias foi possível construir armas com poder explosivo milhões de vezes maior que o das explosões de substancias químicas, como a nitroglicerina.

Einstein formulou suas ideias quando trabalhava no Departamento de Patentes em Zurique, na Suíça, e seu propósito foi sempre satisfazer sua própria curiosidade e tentar entender o universo em que vivemos. Além disso, era um pacifista convicto que se recusou a participar do trabalho dos seus colegas em Berlim na produção de armas durante a 1.ª Guerra Mundial (1914-18), chegando a renunciar à nacionalidade alemã por isso.

Cerca de 30 anos mais tarde, como judeu refugiado nos EUA após a ascensão do nazismo e do antissemitismo na Alemanha, escreveu uma carta dirigida ao presidente americano Franklin Roosevelt sugerindo a criação de um programa para produzir armas nucleares, a primeira das quais arrasou Hiroshima em 1945.

Einstein tentou impedir que essas armas fossem usadas contra o Japão, escrevendo novamente ao presidente. Com o falecimento de Roosevelt, o vice-presidente Harry Truman recusou os apelos de Einstein e de muitos outros dos cientistas que construíram as armas, desqualificando-os como “tolos” e “ingênuos” que não entendiam a importância das explosões atômicas para vencer o Japão e evitar a perda de muitos milhares de soldados americanos.

Três anos depois a União Soviética realizou explosões e com isso se iniciou a corrida nuclear, que marcou o resto do século 20 e até hoje nos assombra.

O canal de televisão National Geographic exibiu recentemente uma série de episódios sobre a vida de Einstein que ilustra bem os dilemas que cientistas enfrentam quando seu trabalho – muitas vezes contemplativo – é utilizado para fins militares. O que a série captou foi sua complexa vida sentimental e as sérias dificuldades com esposas, amantes e filhos e que decifrar o comportamento do universo foi mais fácil para Einstein do que compreender os sentimentos humanos.

Mais do que isso, a vida de Einstein demonstra que o avanço da ciência, que pode ocorrer nos lugares mais inesperados, como o Departamento de Patentes da Suíça, acaba sendo usado pelos governos segundo interesses muito diferentes daqueles que eram antecipados pelos cientistas.

Esse problema é antigo. Há 20 séculos, Arquimedes, que foi um grande cientista, ajudou o rei de Siracusa a defender a cidade de um ataque naval romano. Arquimedes construiu espelhos que concentravam luz solar nos navios romanos para incendiá-los, o que não impediu a vitória dos atacantes. Arquimedes foi morto como um combatente. O comandante romano lamentou sua morte, provavelmente interessado em usar seus serviços.

Outro exemplo é o de Fritz Haber, o grande químico, colega de Einstein na Academia Prussiana de Ciência, que descobriu como fazer amônia com o nitrogênio do ar, que é a base dos fertilizantes. Durante a 1.ª Guerra Mundial ele desenvolveu os gases venenosos que provocaram enorme morticínio e sofrimento nos exércitos francês e inglês, em guerra com a Alemanha. Haber defendeu-se argumentando que os gases eram uma arma tão terrível que eliminaria definitivamente as guerras, o que se mostrou uma tolice, porque os franceses logo desenvolveram gases que foram usados contra os soldados alemães.

Outros exemplos ainda são os de Trofim Lysenko, na União Soviética, e Werner Heisenberg, na Alemanha nazista. Lysenko convenceu Stalin a adotar suas ideias incorretas e arruinou a ciência da genética e a agricultura soviética. Heisenberg foi encarregado pelo governo nazista de produzir armas atômicas, à semelhança de Robert Oppenheimer, que dirigiu o programa americano proposto por Einstein, mas Hitler concentrou todo o esforço técnico-científico da Alemanha nos foguetes que atingiram Londres e não deu atenção suficiente ao projeto nuclear. Há também indícios de que Heisenberg e alguns de seus colegas não se esforçaram suficientemente na sua missão.

A interação de cientistas e governos é, portanto, complexa: bons cientistas como Heisenberg podem desapontar governos, maus cientistas como Lysenko podem desorientá-los, e excelentes cientistas como Haber, Prêmio Nobel de Química, podem fazer coisas perversas.

Einstein tem um papel especial nesse espectro: foi pacifista toda a sua vida, mas deu início à corrida nuclear com a justificativa de que isso foi necessário para destruir um mal maior, que era o nazismo. Passou o resto de sua vida, após 1945, juntamente com Bertrand Russel e outros, promovendo movimentos antinucleares. Além disso, algo que fez a vida toda foi ajudar as vítimas do antissemitismo, auxiliando cientistas nas suas carreiras, e ainda enfrentou corajosamente a caça às bruxas promovida pela histeria anticomunista nos EUA após o fim da 2.ª Guerra Mundial.

Por mais talentosos e criativos que sejam os cientistas, eles não podem ter a ilusão de poder definir as políticas adotadas pelos governantes.

*Professor Emérito da USP, é presidente da Fapesp


José Goldemberg: Mérito na Olimpíada, cotas nas universidades?

O sucesso da Olimpíada de 2016, no Rio de Janeiro, serve para mostrar como é possível enfrentar dificuldades e superá-las. As previsões catastróficas sobre o fracasso do evento por causa de criminalidade solta no Rio de Janeiro, epidemia de zika, obras inacabadas e transporte caótico não se confirmaram e a Olimpíada decorreu dentro do padrão de Beijing e Londres.

O magnífico visual da cerimônia de abertura, preparada pelos talentosos Andrucha Waddington, Daniela Thomas, Fernando Meirelles e Débora Colker, teve até uma apresentação sóbria e cientificamente correta sobre os problemas do aquecimento global e suas consequências, preparada por cientistas brasileiros, como Paulo Artaxo. O Brasil, que era um vilão nessa área por causa do desmatamento da Amazônia, apareceu para uma plateia de 3 bilhões de pessoas como um país sério e responsável que está fazendo sua parte para tentar resolver o problema.

Mas a lição fundamental da Olimpíada,a nosso ver, é que ela abre espaço para confrontos em que só o talento e a competência têm valor. A meritocracia é o fator determinante em todos os eventos, não há favorecimentos de espécie alguma e os melhores vencem, levando suas medalhas de ouro, prata ou bronze.

Na Olimpíada não há distinções entre ricos e pobres, classes sociais, religiões e cor da pele, mas premiação dos melhores; não importa de onde venham, Etiópia, França ou Brasil: vencem os melhores. A riqueza de países como EUA ou Inglaterra permite preparar mais atletas, mas não é uma garantia de sucesso.

São comoventes as histórias contadas por atletas de famílias humildes ao receber as medalhas sobre como superaram seus problemas com o esforço próprio e dedicação. Competir numa escala mundial e vencer nas provas é a melhor forma de se autoafirmar como ser humano e cidadão. Curiosamente, esses mesmos critérios são abandonados sistematicamente no Brasil com a introdução de sistemas de cotas para assegurar vantagens a corporações, alguns grupos sociais e até étnicos.

Corporações foram muito poderosas no passado, mas o avanço da democracia como forma de governo nos séculos 19 e 20 abriu horizontes mais amplos em muitos países. As bandeiras da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade criaram a figura da cidadania, em que todos são iguais perante a lei e têm as mesmas oportunidades.

A introdução de cotas para proteger certos grupos pode se justificar em casos muitos especiais, como o das pessoas com deficiências físicas, mas pode levar a distorções e discriminações intoleráveis, como ocorreu no século 20 com os sistemas totalitários, particularmente na Alemanha nazista, que levou ao holocausto dos judeus. Assistimos hoje à tentativa do mesmo tipo de tentar criminalizar o islamismo, que deve ser energeticamente repelida.

No caso brasileiro, em que distinções raciais não fazem sentido, com a enorme miscigenação que caracteriza nosso país, a introdução de cotas adquiriu características particularmente negativas no acesso às universidades públicas, que são gratuitas e só conseguem atender cerca de 25% dos estudantes que nelas desejam ingressar. Os restantes 75% pagam por seus estudos em universidades privadas. Os estudantes que concluem o ensino médio competem por esses 25% de vagas em exames vestibulares que selecionam os mais capacitados.

Essa é uma situação parecida com uma competição olímpica, em que os mais talentosos são escolhidos. Poder-se-ia argumentar que o desejável seria que todos os que concluíssem o ensino médio pudessem cursar uma universidade pública, como é na França ou na Itália, mas simplesmente não existem recursos públicos para tanto. Em contrapartida, em muitos países do mundo as universidades públicas cobram anuidades, como as privadas.

No caso das universidades federais, seu custo representa mais de 70% dos recursos do Ministério da Educação, que tem um dos maiores orçamentos do governo federal. Se atendesse a todos os que desejam matricular-se em universidades públicas, seu orçamento teria de quadruplicar. Nessas condições, cabe aqui perguntar para que servem as universidades públicas. Pelo artigo 207 da Constituição federal, elas têm por finalidade o ensino, a pesquisa e a prestação de serviços à comunidade, e não apenas o ensino, como a grande maioria das universidades privadas.

A primeira universidade pública no País, a Universidade de São Paulo (USP), criada em 1934, introduziu a ideia de promover a investigação científica e cultural e, portanto, a criação de um grande mercado de profissionais capazes de identificar as tecnologias modernas e aplicá-las para o desenvolvimento do Brasil. Essas atividades têm alto custo, mas o retorno desses investimentos se vê hoje com a modernização do País.

Se essa é a finalidade das universidades públicas, é evidente que é preciso escolher os estudantes mais adequados para fazê-lo e o único critério para tal é o mérito.

Resolver problemas sociais e dar oportunidades aos mais pobres são objetivos importantíssimos, mas não é nas universidades, e sim no ensino fundamental e médio, que isso deve ser feito. Tentar resolver esses problemas facilitando o ingresso em universidades públicas pode ser mais fácil, mas não é o método adequado.

Universalizar o ensino público de boa qualidade no nível fundamental e médio foi uma das bandeiras da Revolução Francesa de 1789, mas esse objetivo só foi atingido cerca de 80 anos depois, com o magnífico sistema de liceus franceses, apesar da riqueza de um país como a França.

Introduzir cotas nas universidades públicas brasileiras como instrumento para compensar/corrigir discriminação racial ou social é muito mais fácil e menos oneroso do que corrigir o problema fundamental, que é melhorar a qualidade e a equidade do ensino fundamental e médio para que todos tenham as mesmas oportunidades no acesso ao ensino superior. (O Estado de S. Paulo – 19/09/2016)

JOSÉ GOLDEMBERG É PROFESSOR EMÉRITO DA USP, FOI MINISTRO DA EDUCAÇÃO


Fonte: pps.org.br