José Goldemberg

José Goldemberg: As teorias conspiratórias e o meio ambiente

Não há nenhuma ameaça estrangeira à nossa soberania sobre a Amazônia

Apelar para teorias conspiratórias é uma arma usada frequentemente para desacreditar adversários, até mesmo governos.
Alguns exemplos mais recentes de teorias conspiratórias são os seguintes:

• O governo americano oculta até hoje a existência de discos voadores que trouxeram seres extraterrestres para nosso planeta.

• O lançamento de astronautas à Lua em 1969 foi uma montagem de Hollywood e nunca houve voos espaciais.

• O atentado terrorista que destruiu as torres gêmeas em Nova York, em 11 de setembro de 2001, foi orquestrado pelo serviço secreto americano para justificar a “guerra ao terror” e a invasão do Iraque e do Afeganistão.

• O assassinato de John F. Kennedy foi promovido pelo governo de Cuba ou por grupos políticos americanos preocupados com as políticas liberais do presidente, e não por um assassino isolado como Lee Oswald.

Característica comum de todas elas – por mais inverossímeis que pareçam – é que são baseadas em suposições que contrariam os fatos ou a compreensão dominante dos eventos históricos e são imunes a argumentos racionais: uma verdadeira questão de fé. Só para dar um exemplo, existem estimativas do número de pessoas que teriam de fazer parte da conspiração de que o homem não pousou na Lua: cerca de 400 mil, contando os cineastas envolvidos, técnicos da Nasa, jornalistas e políticos de todo tipo e outros.

As origens das teorias conspiratórias são predominantemente psicológicas ou políticas. As psicológicas decorrem do fato de que para algumas pessoas a insegurança diante de eventos catastróficos é tal que as leva a criar paranoias conspiratórias. As políticas são mais concretas e têm que ver com vantagens políticas ou econômicas.

Um problema de natureza ambiental que foi objeto de teorias conspiratórias é o uso da fluoretação da água para reduzir a carie dentária, que é adotada em todos os países, mas ainda é contestada por alguns grupos como uma trama para dominar o mundo, provocar esquizofrenia e outras doenças. Afora isso, proteção ambiental em nível local e regional (basicamente para garantir qualidade do ar e da água) nunca foi contestada por teorias conspiratórias. Lamentavelmente, porém, problemas ambientais globais como o aquecimento da Terra e a proteção das florestas tropicais têm sido vítimas frequentes desses ataques.

Os que nos afetam mais de perto são os que dizem respeito à Região Amazônica. Esse é um problema antigo, começou na década dos 70 do século 20, quando a “ocupação” da Amazônia por colonos vindos do sudeste do País se tornou a política pública dominante para garantir a soberania nacional sobre aquela área, o que levou ao desmatamento da floresta. “Ocupar para não entregar” era o mote vigente, que tinha componentes de paranoia.

Participei em 1991, como secretário especial de Meio Ambiente da Presidência da República, de reuniões com outros membros do governo (ministros do Exército e da Justiça) que manifestavam, na época, preocupações com propostas de criação de uma área protegida internacionalmente na Amazônia para assegurar a sobrevivência dos ianomâmis, no extremo norte do Brasil.

Perguntei qual era a origem dessa informação, que eu ignorava, apesar de participar intensamente de todos os preparativos internacionais da Conferência sobre o Clima que se realizaria em dezembro de 1992 no Rio de Janeiro.

A informação que recebi era baseada num panfleto distribuído aos passantes no aeroporto de Houston, nos Estados Unidos, preparado por alguma obscura organização ambientalista americana. No aeroporto de Houston distribuíam-se panfletos de toda espécie. A fragilidade da informação era tão óbvia que o assunto foi abandonado.

Passados 30 anos, esse tipo de paranoia volta a circular em altas esferas do governo, apesar de não haver nenhuma evidência concreta de interferência na soberania nacional sobre a Amazônia. O que há são governos interessados nos problemas ambientais mundiais, como a Noruega e a Alemanha, que se ofereceram para ajudar financeiramente na implementação de programas do governo brasileiro na região que protejam a floresta. Imaginar que isso faça parte de um complô para nos tirar a Amazônia está claramente na categoria de teoria conspiratória.

Não há nenhuma ameaça estrangeira à nossa soberania sobre a Amazônia. A ameaça vem daqueles que não obedecem às leis em vigor e enfraquecem o poder do Estado.

Somente recursos do exterior não resolveriam todos os problemas do desmatamento nessa região, onde a carência fundamental é a ausência do poder público, como ocorre também nas favelas da Baixada Fluminense e do Rio de Janeiro dominadas pelo tráfico.

O fortalecimento do Ibama e a implementação gradativa da legislação fundiária é que levariam a cercear a ação dos “grileiros” e desmatadores da região. A crescente produção agrícola e de carne no País não necessita desse desmatamento predatório e da retirada clandestina de madeira. Há melhores métodos de utilizar a floresta.

*Professor emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente


José Goldemberg: ‘Negacionismo’ e políticas públicas

O próprio presidente é um ‘negacionista’, o que causa grandes prejuízos na saúde e na economia

“Negacionistas” são pessoas que se recusam a aceitar a realidade, adotando posições que não têm validação ou experiência histórica. A História está, de fato, cheia de exemplos de “negacionistas”.

Se os reis da Espanha e Portugal fossem “terraplanistas” – como era a Igreja Católica na época –, não teriam financiado a viagem de Cristóvão Colombo que descobriu a América ao tentar atingir o Oriente, nem Cabral teria descoberto o Brasil.

Apesar disso, no Brasil está surgindo um número inquietante de negacionistas. Um deles é o próprio presidente da República, que – nas palavras insuspeitas do seu ex-ministro da Justiça, Sergio Moro – é um “negacionista” no que se refere à pandemia do coronavírus, descrevendo-a como uma “gripezinha”, mesmo diante da evidencia aterradora de mais de mil mortes por dia. Além disso, encontra pretextos para argumentar que os números de mortes são “exagerados” e manipulados pelos opositores políticos.

A realidade é bem outra, como se sabe: morrem no Brasil por ano cerca de 1,3 milhão de pessoas por todo tipo de doenças, como câncer, problemas cardíacos e outras, além de acidentes de trânsito, homicídios e suicídios. Isso significa cerca de 3.500 mortes por dia. A covid-19 aumentou esse número para cerca de 5 mil óbitos por dia.

Há duas razões para que pessoas (ou agentes públicos) adotem posições “negacionistas”: ignorância pura e simples ou má-fé (interesse material ou político). A segunda hipótese é exemplificada pelo que acontece com a indústria do tabaco, que lutou (e ainda luta) desesperadamente para evitar a redução dos fumantes, usando argumentos anticientíficos para negar a evidência de que fumar é uma causa importante de câncer de pulmão.

O caso da covid-19 é mais complexo e mistura ignorância e má-fé. Há “negacionistas” de direita e de esquerda. Os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil populistas de direita recusaram-se a levar a sério o problema para agradar à sua base eleitoral, com resultados dramáticos em número de mortes. Em contraste, o primeiro-ministro da Hungria e o presidente da Turquia, ambos também de direita, adotaram confinamento severo e contiveram a propagação da doença nos seus países. O mesmo fez o presidente da Argentina, que é de esquerda. Já o presidente do México, igualmente de esquerda, não o fez, com resultados perversos para a população do seu país.

Sem a liderança do governo federal não é possível ter uma política eficaz de combate ao vírus. No Brasil, a responsabilidade de governadores e prefeitos é “concorrente” à do governo federal, o que não o exime de exercer a liderança, como, aliás, o ex-ministro Mandetta, da Saúde, conseguiu fazer até ser demitido.

Outro exemplo de “negacionismo” no atual governo é o tratamento da questão da Amazônia, que destruiu a imagem positiva que tínhamos no exterior e pode acabar por prejudicar seriamente as nossas exportações. Não reconhecer a realidade do desmatamento crescente da Amazônia nos últimos anos (documentada por órgãos do próprio governo, como o Inpe) é não só um absurdo, mas prejudicial ao País.

Já enfrentamos esse problema no passado, em duas ocasiões em que o desmatamento ilegal e predatório foi reduzido sem que fossem prejudicadas as atividades econômicas. O exemplo mais conhecido é o da redução dramática do desmatamento entre 2007 e 2012, mesmo com o aumento do volume e do preço da soja e da carne exportadas. Um exemplo anterior a esse se verificou entre 1988 e 1992, no final do governo Sarney e durante o governo Collor.

Nos dois casos, o que aconteceu foi a adoção de uma política clara na Presidência da República que motivou e até constrangeu os governos estaduais e municipais a participarem do esforço de redução do desmatamento. A integração das ações do Ibama com a Polícia Federal e polícias ambientais dos Estados, com o amplo apoio da imprensa e de muitas organizações não governamentais, deu resultados.

Foram essenciais nesse processo as ações de inteligência capazes de detectar com antecedência os atos predatórios, e não simplesmente correr “atrás do prejuízo” e enviar força policial ou militar quando o desmatamento já se consumou. O papel do Ibama mostrou-se essencial nos dois casos descritos acima.

O “negacionismo” do governo atual no caso do desmatamento – diferentemente do caso da covid-19 – não parece dever-se apenas à ignorância e ao populismo, mas tem base política em parte do setor agropecuário, que se mostrou insatisfeito com restrições à expansão da ocupação da Amazônia decorrentes do Código Florestal.

Essa visão não é unânime no setor agropecuário, que reconhece que melhores tecnologias permitiriam aumentar a produtividade de soja, milho e outros produtos sem avançar em áreas públicas ou “griladas”. No caso da pecuária, adensar a forma de criar os rebanhos também faz sentido técnica e economicamente, e isso poderia ser acelerado.

Desmatar a Amazônia não é um “problema cultural”, como argumentam alguns. É um problema de transgressões que devem ser coibidas.

  • José Goldemberg é professor emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente

José Goldemberg: Como proteger a Amazônia?

A presença do poder público pode levar rapidamente à redução do desmatamento

Desde a mais remota Antiguidade os seres humanos tiveram uma relação complexa com as florestas, que durante milênios foram a única fonte de calor disponível: o uso da madeira para cozinhar alimentos e aquecer ambientes permitiu o salto evolutivo que deu origem ao Homo sapiens.

Ao longo dos séculos os produtos florestais foram também a principal fonte de materiais de construção, móveis e navios; como consequência, as florestas que cobriam toda a Europa foram praticamente erradicadas, dando lugar à agricultura. O mesmo aconteceu com a Mata Atlântica, que cobria o Sudeste e o Sul do Brasil e da qual restam apenas cerca de 15% por causa da exploração predatória do pau-brasil pelos colonizadores portugueses.

A eliminação total de florestas na Europa, a partir do século 18, só não se concretizou graças ao uso crescente do carvão mineral que representou, na época, um enorme progresso tecnológico, abrindo caminho para a revolução industrial na Inglaterra.

Mesmo antes disso os países da Europa se deram conta dos efeitos negativos da erradicação de suas florestas e trataram de restaurá-las, por motivos estritamente pragmáticos: econômicos, de proteção das nascentes dos rios e do meio ambiente em geral. A imperatriz Maria Teresa da Áustria iniciou esse processo, estendido logo depois a todos os demais países da Europa. Cerca de metade do continente europeu é hoje coberta por florestas plantadas, que substituíram as florestas originais.

A ideia do uso sustentável das florestas não foi invenção dos ambientalistas, mas de estadistas com ideias avançadas. Até no Brasil isso foi feito, de forma limitada, com a recuperação da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde a Mata Atlântica havia sido totalmente eliminada.

Não há nada pior do que não aprender com os erros do passado e há dois exemplos históricos sobre os quais o governo federal deveria refletir antes de defender a ideia de que os países da Europa utilizaram suas florestas para fins produtivos no passado e agora querem impedir que usemos a Floresta Amazônica para alavancar o nosso progresso.

Há amplo espaço naquela região para usá-la com cuidado, pois é uma área imensa onde é permitido - pelo Código Florestal - utilizar 20% da floresta para atividades agrícolas e pecuária. Os 80% restantes incluem unidades de conservação, reservas indígenas e áreas de proteção ambiental de vários tipos, criadas por lei ao longo do tempo.

Muitas delas foram criadas há mais de 50 anos e seus limites foram fixados antes de se conhecerem com precisão a existência de muitos recursos minerais e as possibilidades de aproveitamento do potencial hidrelétrico de alguns rios da região, mas correções desses limites são possíveis com a aprovação do Congresso Nacional.

O que é inadmissível é o desmatamento predatório e ilegal. A experiência mostra que a presença do poder público pode levar rapidamente a uma redução dramática dessas atividades: o desmatamento caiu radicalmente no governo Collor, em 1991, e de mais de 15 mil quilômetros quadrados por ano para cerca de 5 mil quilômetros quadrados no período de 2004 a 2012. Esses sucessos podem ser repetidos equipando melhor o Ibama e usando as Forças Armadas para apoiá-lo nessa missão, preservando as atividades produtivas legais.

A melhoria das tecnologias da agropecuária, de modo a permitir aumentar a densidade do gado nas áreas desmatadas, reduziria a necessidade de desmatar mais e avançar a fronteira agrícola na Amazônia, como está acontecendo. Ajudaria muito também aumentar a produtividade na produção de milho e outras culturas, como argumenta corretamente a ministra da Agricultura. A produtividade de soja no Brasil é muito próxima da produtividade dos Estados Unidos. Já a produtividade do milho é apenas metade da produtividade americana. Pesquisa científica poderia resolver esse problema, bem como o amplo uso de produtos florestais de forma sustentável, como já é feito com o açaí e produtos cosméticos e farmacêuticos.

O que torna o problema da Amazônia difícil é que vivem lá cerca de 25 milhões de pessoas, que cortam a floresta para seu benefício imediato, vendendo madeira ou criando gado para sobreviver, além de culturas de subsistência. Por outro lado, os que não vivem na região - quer no Brasil, quer no exterior - valorizam os benefícios no longo prazo de manter a floresta intocada para preservar a biodiversidade e o estoque de carbono ali armazenado.

Para quem vive no Sudeste do Brasil, a destruição da floresta leva à mudança do regime de chuvas na região. Para os europeus, lançar na atmosfera bilhões de toneladas de carbono frustra seus esforços para combater o aquecimento global.

Esse é um problema clássico de conflito entre “interesses locais” e “interesses difusos”. Em lugar de demonizar os que defendem “interesses difusos” na preservação da Amazônia como sendo interferência na nossa soberania, o que caberia fazer seria converter estes “interesses difusos” em recursos financeiros para protegê-la.

*Professor emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente


Foto: Reprodução/Google

José Goldemberg: Energia e meio ambiente após a covid-19

Maior respeito pela ciência pode ser uma das consequências mais positivas desta tragédia

Por mais grave que seja a atual pandemia, ela acabará passando, como aconteceu com outras no passado. Nenhuma, porém – nos tempos modernos –, atingiu tantos países e levou a uma paralisação econômica tão profunda, decorrente da imposição de quarentena, que é indispensável para evitar a propagação da doença.

Uma das muitas consequências desta quarentena é a redução do consumo de energia, principalmente no setor de transporte, que representa mais de 25% de toda a energia consumida no mundo.

O que aconteceu no setor do petróleo foi o que se chama “tempestade perfeita”. A demanda diminuiu justamente na ocasião em que havia excesso de produção. O cartel dos grandes produtores – principalmente a Arábia Saudita e a Rússia – não conseguiu fixar cotas de produção, que mantinham o resto do mundo refém do petróleo que produzia. O preço do petróleo não decorria dos custos de produção, era fixado arbitrariamente para suportar a economia dos regimes políticos e sociais dos países-membros do cartel.

Como consequência da falta de acordo dos produtores, o preço do barril de petróleo caiu de cerca de US$ 80 o barril para menos de US$ 20. No mundo pós covid-19 ele dificilmente voltará aos níveis anteriores, pois grande número de empresas e pessoas descobriram que home office funciona e o mesmo aconteceu com o ensino a distância, além do comércio eletrônico.

A necessidade de deslocamentos vai se reduzir permanentemente, com claros benefícios para a qualidade do ar nos grandes centros urbanos, como as fotografias dos satélites nos mostram. Os benefícios para a saúde, com a diminuição das doenças respiratórias, não foram quantificados ainda, mas certamente ocorrerão. Além disso, as emissões de gases de efeito estufa, cuja redução já se está verificando, não voltarão aos níveis anteriores, o que dará mais tempo para a adoção de medidas de adaptação ao aquecimento global.

O sonho dos ambientalistas de reduzir o consumo de petróleo parece tornar-se realidade graças à covid-19.

O que não vai se reduzir, provavelmente, é o consumo de eletricidade, porque as atividades domésticas (incluindo o home office) requerem mais eletricidade. Daí os grandes planos, já propostos nos Estados Unidos, para aumentar a produção de eletricidade a partir de fontes renováveis. Nos pacotes de recuperação econômica que estão sendo adotados naquele país, esse é um ingrediente importante.

No Brasil, perderão prioridade as ideias de que o País poderia ser um grande exportador de petróleo, uma vez que produzi-lo do pré-sal custa muito mais do que na Arábia Saudita. Esperar que os royalties da produção de petróleo “salvem” a economia de vários Estados, como o Rio de Janeiro, provavelmente será em vão.

Mais grave ainda, a produção de etanol da cana-de-açúcar – com todas as vantagens ambientais que tem – vai ser afetada seriamente, mas talvez force o setor a fazer duas coisas que deveria ter feito no passado e não fez:

• Instalar grandes reservatórios para estocar etanol, que seria, então, disponível o ano todo, o que permitiria fazer contratos para exportação de longo prazo, o que o setor nunca fez, preferindo vender o álcool no mercado spot.

• Investir pesadamente em pesquisa para aumentar a produtividade da cana-de-açúcar, que deixou de crescer há vários anos. Essa seria a única forma de baixar os custos do etanol, que poderia, então, competir melhor com a gasolina a preços baixos.

O movimento ambiental pós-covid-19 enfrentará também dilemas sérios, pois a urgência de atacar problemas ligados à saúde, como saneamento básico, vai aumentar. As preocupações com mudanças climáticas – que só se concretizarão a logo prazo – parecerão menos prioritárias.

Diante da tragédia causada pela covid-19 há, contudo, expectativas de importantes modificações nas percepções das sociedades atingidas, com reflexos culturais e políticos positivos.

Essas expectativas se baseiam na condução exemplar da crise por governantes como Angela Merkel, na Alemanha, que adotou políticas públicas que reduziram consideravelmente o número de vítimas, em contraste com outros dirigentes, como o presidente Donald Trump, dos Estados Unidos – e seus seguidores, como o presidente do nosso país –, que minimizaram a gravidade do problema do isolamento social. Angela Merkel percebeu o vulto do problema antes dos outros e preparou seu país para enfrentar a crise, seguindo rigorosamente as estratégias recomendadas por seus cientistas.

É notório que, ao enfrentar problemas complexos, há incertezas e pode haver divergências entre os cientistas, mas a própria natureza do método científico corrige esses problemas. A experiência acaba eliminando as teorias incorretas. Por essa razão, desqualificar o trabalho dos cientistas e o método científico é o pior que dirigentes obscurantistas poderiam fazer no caso da covid-19.

Um maior respeito pela ciência e pelos cientistas poderá ser uma das consequências mais positivas da tragédia humanitária da crise atual.

*Professor emérito e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP)


Jose Goldemberg: Ciência em tempos de crise

Grandes líderes do século 20 sempre se cercaram de cientistas do mais alto nível

A crise mundial causada pelo coronavírus está fazendo muitas vítimas, mas provavelmente vai passar à História como uma crise que contribuiu para a recuperação da credibilidade da ciência.

A ascensão de governos populistas nas últimas décadas em vários países, sobretudo no Brasil e nos Estados Unidos, estava nos levando para um novo “período de trevas”, como na Idade Média, em que a evidência científica era aceita ou negada dependendo do interesse de grupos sociais, religiosos ou políticos, em prejuízo do conjunto da sociedade.

Foram necessários cientistas como Nicolau Copérnico e Galileu Galilei, há cinco séculos, para comprovar que a Terra não é plana e também não é o centro do universo, o que abalou profundamente o poder da Igreja Católica e abriu caminho para o descobrimento da América.

Foi preciso, também, um Charles Darwin, no século 19, para demonstrar, de maneira clara, que os seres vivos evoluem e não foram criados todos ao mesmo tempo, há 5 mil anos.

A descoberta da existência do código genético, por James Watson e Francis Crick, abriu caminho para a “revolução verde” na agricultura, que eliminou a fome no mundo.

Os trabalhos de Louis Pasteur e o desenvolvimento de vacinas praticamente eliminaram o sarampo, a poliomielite e diversas outras doenças devastadoras.

Ainda assim, existem políticos e grupos religiosos que negam a realidade desses avanços, inventando teorias conspiratórias ou fazendo uma leitura incorreta das Escrituras, que foram escritas há milhares de anos, refletindo uma realidade social que não é a realidade de hoje numa sociedade altamente tecnológica.

Nestas sociedades é indispensável uma divisão de tarefas e de respeito pelo conhecimento técnico de especialistas baseada na melhor ciência disponível em todas as áreas. Líderes populistas sistematicamente desprezam a evidência apresentada por esses especialistas quando ela se choca com seus interesses ou suas próprias visões, já que muitos deles vivem num “universo paralelo”.

Foi o que aconteceu no caso da pandemia de covid-19, que enfrentamos hoje.

As recomendações dos especialistas eram claras: na ausência de uma vacina que nos proteja do vírus, a única defesa é evitar que ele nos contamine, por meio do “distanciamento social” e da quarentena. Essa orientação, todavia, conflita com interesses econômicos e pode levar ao desemprego. Como era previsível, líderes populistas tentaram negar as evidências da gravidade da crise até que a realidade se impusesse brutalmente, com milhares de mortos por dia.

Felizmente, porém, existe a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma agência da ONU criada em 1948 para coordenar os esforços internacionais destinados a controlar e erradicar doenças como a malária, a tuberculose, a varíola e agora a covid-19. Em consequência, todos os países – alguns relutantemente, como os Estados Unidos, a Inglaterra e o Brasil – estão seguindo as recomendações da OMS, aceitando sua autoridade científica incontestável na área da saúde.

A proposta original de criação da OMS partiu de diplomatas brasileiros, em 1946, e seu diretor-geral durante 20 anos (de 1953 a 1973) foi o médico brasileiro Marcolino Candau.

Participam dos comitês técnicos da OMS os melhores cientistas provenientes dos países-membros e suas recomendações e seus protocolos são usados como base das ações de todos os órgãos ligados à saúde no mundo todo.

Recentemente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, tentou desqualificar a OMS e seu atual diretor-geral, Tedros Adhanom, ao argumentar que ele não foi eleito pelo povo brasileiro, o que é verdade. Sucede que nem o secretário-geral da Organização das Nações Unidas nem o papa são eleitos pelo povo, o que não significa que não tenham legitimidade e autoridade nas suas áreas de atuação. Pilotos de aviões comerciais também não são eleitos pelos passageiros. No caso da OMS, é a competência técnica e científica da instituição, criada há mais de 70 anos, que lhe dá autoridade e credibilidade.

Recuperar a credibilidade, aliás, é a expressão correta, porque os grandes líderes do século 20 sempre se cercaram de cientistas do mais alto nível, o que foi particularmente importante durante a 2.ª Guerra Mundial.

O presidente Franklin Delano Roosevelt, dos Estados Unidos, recebeu até a colaboração de Albert Einstein. E Winston Churchill, primeiro-ministro do Reino Unido, tinha um assessor científico permanente. Depois da guerra, o Congresso americano criou o Gabinete de Política Científica e Tecnológica na própria Casa Branca. O titular desse gabinete é um cientista escolhido pelo presidente, mas o nome tem de ser aprovado pelo Senado americano, o que mostra a importância do cargo.

Esse seria um bom exemplo a ser seguido em nosso país.

*Professor emérito e ex-Reitor da Universidade de São Paulo (USP), foi ministro de Ciência e Tecnologia


José Goldemberg: A Conferência de Madrid, fracasso ou sucesso?

Revolução silenciosa no mundo está evitando um aumento assustador das emissões de gases-estufa

A 25.ª Conferência das Partes da Convenção do Clima (COP 25), que se realizou em Madrid, na Espanha, em dezembro de 2019, tem sido descrita frequentemente como um completo fracasso, porque as decisões mais importantes a serem tomadas foram adiadas para a COP 26, neste ano de 2020, em Glasgow, na Inglaterra.

Essas decisões dizem respeito, basicamente, a recursos financeiros, tais como a transferência de recursos dos países mais ricos para os países em desenvolvimento para ajuda-los a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa e reconhecer créditos por ações já realizadas no passado por esses países.

Há anos que as discussões sobre esses temas se arrastam. A impressão que se pode ter, portanto, é de que os temas essenciais estão sendo transferidos de ano para ano e que as reuniões da COP são realmente convescotes em que se reúnem diplomatas, ativistas ambientais, celebridades e ministros do meio ambiente, nos quais a retórica é elevada, mas não tem consequências práticas.

A realidade é bem mais complexa: apesar das emissões estarem aumentando, elas teriam aumentado muito mais sem as decisões tomadas pela Convenção do Clima assinada no Rio de Janeiro em 1992 e pelas COPs subsequentes, realizadas desde então, que alertaram o mundo todo para os problemas do aumento das emissões de carbono e o consequente aumento da temperatura global.

Essa conscientização estimulou inovações tecnológicas (e sua adoção) que tornaram a economia mundial mais eficiente e, por conseguinte, reduzindo as emissões de carbono. Por exemplo, automóveis produzidos hoje podem rodar 15 quilômetros com um litro de gasolina, os produzidos há 20 anos atrás necessitavam 1,5 litro para rodar a mesma distância. Lâmpadas LED iluminam muito mais com menos consumo de eletricidade.

O sucesso da globalização da atividade industrial que se verifica no mundo contribuiu para a redução das emissões: não existem mais automóveis produzidos no México, no Brasil ou nos Estados Unidos, mas uma cadeia internacional de componentes que permite que eles sejam fabricados em vários países.

Em outras palavras, enquanto os diplomatas se reúnem nas COPs durante duas semanas, todos os anos, e parecem não chegar a um acordo – como não chegaram na Conferência de Madrid –, uma revolução silenciosa está acontecendo no mundo e evitando um aumento assustador das emissões de carbono e de outros gases responsáveis pelo aquecimento global.

Não entender essa realidade é que tornou difícil a implementação das medidas acertadas no Rio de Janeiro em 1992 e em Kyoto em 1997 para reduzir as emissões de carbono. Esse não é apenas um problema ambiental, mas um problema de política industrial e comercial, que só foi resolvido com a adoção do Acordo de Paris, em 2015, na COP 21. Nesse acordo ficou acertado que cada país decidiria de forma soberana o que pretende fazer no que se refere à redução das suas emissões, adotando metas e prazos para cumpri-las. Apesar de voluntárias, elas se tornariam mandatórias uma vez comunicadas ao Secretariado da Convenção das Partes e seriam revisadas a cada cinco anos. O Brasil fez isso sem exigir recursos para cumprir suas metas, como, por exemplo, reflorestar 12 milhões de hectares.

A China, o maior emissor mundial e cujas emissões estão crescendo, comprometeu-se a reduzi-las substancialmente substituindo o uso de carvão por gás natural e estimulando o uso de energias renováveis. Ao fazê-lo, o governo chinês pretende resolver também o problema urgente da poluição urbana, cuja causa principal é o uso de combustíveis fósseis.

Transferência de recursos para ajudar os países mais pobres a tomar medidas para reduzirem emissões se destina, realmente, a países da África, do Sudeste da Ásia e das ilhas do Oceano Pacífico, e não a países mais avançados e aspirantes a membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), como o Brasil.

Essas promessas – que inicialmente eram muito vagas – tomaram a forma de um aporte prometido de US$ 100 bilhões anuais na COP de Copenhague, em 2009. Mas esses US$ 100 bilhões se referem a “investimentos relacionados ao clima”, como os que o Banco Mundial faz todos os anos e atingiriam US$ 43,1 bilhões em 2012. A Índia e outros países argumentam que esses recursos seriam transferidos para os seus governos, o que é considerado um entendimento equivocado.

Além disso, foi criado o Fundo Verde para o Clima, em 2015, que levou anos para ser estruturado e só tem desembolsado alguns bilhões de dólares por ano em 123 projetos – apenas três deles no Brasil. Acelerar a apresentação de projetos a esse fundo é a principal ação que o Brasil deveria tomar, além de insistir para que ele se torne mais ágil.

Esse parece ser um caminho muito mais promissor do que se envolver em intermináveis discussões sobre a expectativa de receber créditos por ações realizadas no passado, que parece muito problemática. Esse programa de créditos foi mal formulado e o seu valor de mercado se tornou irrisório. Insistir neles parece ser uma estratégia pouco construtiva.

*Professor emérito e ex-Reitor da Universidade de São Paulo (USP), foi ministro do Meio Ambiente


José Goldemberg: O ‘fim da História’ e da inovação

Analistas questionam se não atingimos os limites do nosso conhecimento científico

Em 1992 Francis Fukuyama, um renomado cientista político norte-americano, publicou um livro intitulado O Fim da História, que teve enorme repercussão. Nele o autor argumenta que a queda do Muro de Berlim e o fim do império soviético significavam a vitória final do capitalismo com liberalismo econômico e democracia. A globalização da economia mundial nas últimas décadas e a redução dos conflitos provocados pelo nacionalismo exacerbado, que levou às grandes guerras mundiais do século 20, parecem confirmar a análise de Fukuyama.

O único desafio real a essa visão da História foi a ascensão do Estado Islâmico, que, apesar do grande impacto que teve, não abalou a estrutura mundial. Até a China, que poderia mudar o curso do desenvolvimento da História com um novo socialismo, se incorporou à grande corrente mundial da globalização, apesar das suas restrições internas à democracia.

Em outras palavras, parece plausível a visão de Fukuyama de que o desenvolvimento social e econômico mundial teria atingido um nível tal que evitaria as grandes revoluções e guerras do passado, que, em geral, são o objeto do que se chama de História.

Mais recentemente surgiram outras análises que mostram que o mesmo pode estar acontecendo com a tecnologia e até com a própria ciência. Estudos sobre o “fim da tecnologia” e mesmo sobre o “fim da ciência” estão se tornando populares.

O primeiro desses estudos, feito por Robert Gordon, professor de uma universidade americana, atribui a estagnação da economia dos EUA nas últimas décadas ao fato de que a produtividade deixou de crescer na segunda metade do século passado. O professor Gordon argumenta que isso se deve ao fato de que os avanços tecnológicos mais recentes – principalmente na área da computação e informática – não são tão impressionantes como os que ocorreram na primeira metade do século 20, quando máquinas de lavar roupa, geladeiras, ar-condicionado, automóveis e aviões mudaram o mundo de uma maneira revolucionária e o que estamos presenciando hoje são apenas pequenos aperfeiçoamentos, muitos dos quais de caráter puramente comercial.

As ideias que captam hoje as manchetes dos jornais são inteligência artificial, automóveis sem motorista e viagens espaciais, que ainda não tiveram grande impacto na vida das pessoas e até sua necessidade está sendo questionada.

A qualidade de vida de boa parte da humanidade melhorou tanto no século 20 em comparação com as condições do século 19 que é o caso de perguntar se a tecnologia necessária para garantir um nível de vida adequado a todos não teria também atingido seus limites.

Mais recentemente, outros analistas começaram a questionar também se não teremos atingido os limites nos nossos conhecimentos científicos sobre a natureza.

John Horgan, em livro recente, O Fim da Ciência, argumenta que a física avançou de forma tão dramática na primeira metade do século 20 que não é razoável esperar que esses avanços continuem depois que desenvolvemos transistores, lasers, GPS, energia nuclear e tantas outras tecnologias baseadas nas descobertas revolucionárias da mecânica quântica e da relatividade.

Haverá, ainda, inúmeras investigações em ciência dos materiais ou biotecnologia que nos permitirão fazer fotossíntese artificial e substituir petróleo por novos combustíveis. Além disso, a captação da energia solar em painéis fotovoltaicos ou a energia dos ventos poderão gerar toda a eletricidade de que necessitamos, mas nada de fundamentalmente novo.

A visão de Horgan é contestada por muitos porque, por incrível que pareça, depois de todos os progressos alcançados pela física ainda não está claro o que se entende por matéria, já que a maior parte do universo é formada por “matéria escura” que não conseguimos detectar.

Há poucas dúvidas também de que este não seja o caso no que se refere à identificação das causas e da cura de doenças como malária ou câncer. Entender completamente como funciona o código genético e como modificá-lo parece ser a nova fronteira, o que pode até nos ensinar o próprio processo de criação da vida.

As ideias sobre o fim da História, da inovação e até da física têm, contudo, um traço em comum: elas se baseiam em descrições que são feitas com base em realizações de grandes personagens. A produção de bombas atômicas, que foi conseguida num tempo recorde de dez anos após a descoberta da fissão nuclear, em 1935, sob a direção do físico americano Oppenheimer, é um bom exemplo.

No caso da História, elas giram em torno de Alexandre, o Grande, no século 3.º antes de Cristo, Júlio César, Napoleão Bonaparte, Lenin, Hitler e Stalin. No caso da inovação, Watt, Darwin, Faraday, Ford, Gates. E no caso da física, Newton, Einstein, Planck e Heisenberg, entre outros.

Essa, a nosso ver, é uma maneira incorreta de analisar a evolução em todas as áreas: os grandes líderes, as grandes invenções e as grandes descobertas científicas não ocorrem apenas em ações dramáticas, como as realizadas por Alexandre, o Grande, que destruiu o exército dos persas numa batalha, ou quando Einstein propôs a Teoria da Relatividade. Em geral, elas são apenas o ato final de esforços que foram feitos ao longo de muitos anos por muitas pessoas (generais no caso das guerras, tecnólogos no caso da inovação, pesquisadores na área de ciências) que vão construindo exércitos, desenvolvendo máquinas ou formulando teorias e realizando experiências que eventualmente têm consequências extraordinárias.

É por essa razão que não há um fim da história da inovação e da ciência. Essa história poderá ser mais monótona, sem emoções como as provocadas pelo assassinato de César ou a tomada da Bastilha pelo povo de Paris na Revolução Francesa, em 1789. Ela se tornará talvez mais monótona, mas nem por isso menos interessante, como é a vida de todos nós.

*Professor emérito e ex-Reitor da Universidade de São Paulo


José Goldemberg: Meritocracia e desigualdades sociais

Origem dos problemas que enfrentamos está nas características do capitalismo do século 21

As causas das grandes manifestações populares, recentemente, no Equador, no Chile, no Líbano, no Iraque, na Checoslováquia e em Hong Kong, que abalaram governos e instituições, são complexas, mas não há dúvida de que boa parte dos protestos se origina no aumento da desigualdade de renda que está ocorrendo no mundo todo.

Esse é também um dos temas centrais das eleições presidenciais dos Estados Unidos no próximo ano. Apenas 0,1% dos americanos – cerca de 300 mil pessoas, numa população de mais de 300 milhões – controlam 20% da riqueza nacional. A renda dessas pessoas nos últimos 40 anos cresceu muito mais rapidamente que a renda do restante da população.

O fosso entre ricos e pobres está aumentando não apenas nos Estados Unidos, como também no Chile, na Argentina, entre outros países, como o Brasil, conforme mostram dados recentes do IBGE. A desigualdade econômica, porém, é apenas parte do problema: desde os primórdios da civilização, 10 mil anos atrás, existem aristocracias que governam e se beneficiam do trabalho da população: as famílias imperiais da Antiguidade, os senhores feudais da Idade Média e o sistema colonial vigente até o século 20. Em todos esses sistemas, o mérito foi uma consideração secundária diante das relações de sangue, favoritismo e corrupção.

A Revolução Francesa, de 1789, extinguiu a monarquia e implantou o regime republicano, que abriu caminho para a emergência dos mais capazes, escolhidos pelo mérito. As vantagens da meritocracia foram compreendidas pelo rei Luís XV, da França, antes da revolução. Ele criou, em 1760, uma escola militar para treinar oficiais oriundos de famílias que não pertenciam à nobreza. Foi nela que Napoleão Bonaparte, vindo de uma província secundária como a Córsega, se distinguiu e iniciou sua meteórica carreira militar, o que então era raro.

A meritocracia para o serviço público foi introduzida na Inglaterra em 1830 e um dos sucessos indiscutíveis da colonização da Índia pelos ingleses foi a organização de um excelente serviço público, que dura até hoje.

Surgiram, contudo, recentemente nos Estados Unidos teorias de que a causa dos problemas da desigualdade de renda é a nova aristocracia de superdotados e supercapacitados, que substituiu a velha aristocracia do “sangue”, isto é das grandes famílias do passado, como Vanderbilt, Carnegie e Rockefeller. Os novos bilionários, como Bill Gates (Apple), Mark Zuckerberg (Facebook), Jeff Bezos (Amazon) e outros, passaram a ser membros da aristocracia do país. As universidades de elite como Stanford, Harvard, MIT, nas quais estudaram, estariam, portanto, alimentando a concentração de fortunas.

Mais ainda, os filhos desta nova aristocracia, que são excepcionalmente bem preparados para a corrida da meritocracia, reproduzem o que se chama de “casta hereditária”. Nessas universidades, a maioria dos estudantes vem efetivamente de famílias ricas.

Essas ideias se originaram na noção de que na Inglaterra o sistema educacional perpetuava o domínio da aristocracia nas posições do governo por meio dos egressos das grandes universidades, como Oxford e Cambridge, às quais as classes menos favorecidas não tinham acesso.

Um educador inglês de tendência socialista, Michael Young, escreveu em 1958 uma sátira sobre os efeitos que o sistema educacional vigente poderia ter no futuro. Na época os jovens de 11 anos eram submetidos a exames que mediam o seu QI (quociente de inteligência) e de acordo com seu desempenho eram encaminhados para os diferentes tipos de escolas: os melhores para as universidades, os piores para escolas profissionais para a indústria, o comércio e a agricultura.

A tese fundamental de Young é que faz sentido escolher pelo mérito as pessoas mais adequadas a uma atividade específica (como pilotar aviões ou dirigir uma empresa de energia), mas permitir que elas constituam uma nova classe social que não deixa espaço para outros é um absurdo.

A sátira de Young faz uma caricatura do que poderia acontecer no futuro: uma revolução populista que destrói o governo aristocrata criado pela meritocracia. Seu livro é da categoria das “distopias”, como o filme Metrópolis, de Fritz Lang, os livros Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, que imaginaram um futuro em que elites privilegiadas controlavam completamente a sociedade e exploravam o resto da população.

É evidente, hoje, que as previsões da distopia de Young não se concretizaram. O controverso QI como único critério para alocação de crianças em escolas foi abandonado, já que é obvio que ele poderia variar ao longo do tempo, bem como as qualificações e predicações das pessoas. Competição e esforço individual têm papel importantíssimo no sucesso das pessoas, e não apenas o seu QI.

Outras experiências de “engenharia social” foram tentadas, também sem sucesso: os comunistas, após a revolução russa de 1917, aboliram os exames de seleção (vestibulares) nas universidades, abrindo suas portas aos “filhos dos trabalhadores”. Passados alguns anos o próprio Lenin se deu conta de que a construção do socialismo precisava de técnicos competentes e reintroduziu a meritocracia.

Meritocracia não é a causa das desigualdades econômicas que existem atualmente em muitos países, o que pode e deve ser resolvido pelo sistema de taxação das grandes fortunas. Os problemas que enfrentamos hoje se originam das características do capitalismo do século 21: a tecnologia moderna, largamente baseada na informática, depende muito mais de pessoal superqualificado do que o sistema industrial do passado – mineração, siderurgia, transporte e produção de bens de consumo –, que exigia grande quantidade de mão de obra e de materiais, ao passo que a informática depende fundamentalmente da inteligência que se cultiva e desenvolve nas universidades.

* Professor emérito e ex-Reitor da Universidade de São Paulo (USP)


José Goldemberg: As universidades e um projeto para a Nação

Há que estimulá-las a fazer estudos e debates sobre os grandes problemas nacionais

O ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, fez no evento O que é o Poder?, realizado em outubro por este jornal, uma declaração contundente sobre o papel que as corporações e a burocracia ocupam hoje no cenário político do País. “Nós não temos uma elite nacional. A burocracia ocupou este espaço. Infelizmente, os partidos políticos não fazem projetos de nação. Infelizmente, as universidades não fazem projetos de nação”, disse ele.

Há tempos não se ouve no Brasil um chamado tão importante como este para que as universidades ocupem um papel mais importante no cenário nacional. O que temos visto, ao contrário, são, por um lado, declarações desarrazoadas e até truculentas de ministros da Educação desqualificando as universidades públicas e, por outro, grupos parassindicais dentro delas concentrados na defesa de seus interesses corporativos.

Sucede que universidades não são apenas locais em que se aprende uma profissão, mas um espaço em que se tenta entender o mundo que nos cerca, tanto do ponto de vista físico como humano e social.

Foi assim que elas surgiram, há mais de 800 anos Começando com a Universidade de Bolonha, em 1088, onde grupos de estudantes de várias regiões da Europa se agruparam em torno de grandes professores estudando humanidades e Direito Civil.

Sucede que o imperador Frederico I (Barbarossa) do Sacro Império Romano-Germânico (1122-1190) reconheceu a importância desses estudos, sobretudo os que diziam respeito ao Direito Romano, que ele considerava fundamental para legitimar seu poder. Frederico deu autonomia e proteção à nascente universidade.

Ao longo dos séculos inúmeras outras universidades foram criadas em toda a Europa e sua autonomia – de modo geral – era respeitada como forma de garantir a qualidade dos estudos e pesquisas que realizava. Também ao longo dos séculos a procura do conhecimento e uma melhor compreensão da natureza, promovida por homens como Bacon, Galileu, Newton, Rousseau e muitos outros provocaram uma grande efervescência cultural e científica, que deu origem ao Iluminismo, o qual solapou as ideias retrógradas da Igreja Católica da época, que legitimavam monarquias absolutistas e os privilégios da aristocracia. O resultado foi a Revolução Francesa, de 1789, que criou o regime republicano que se espalhou pelo mundo todo.

Foram as grandes universidades, como Oxford (na Inglaterra), Harvard (nos Estados Unidos), Humboldt (na Alemanha) e Paris (na França), que consolidaram o avanço do progresso no mundo todo e foi nelas que se inspiraram brasileiros esclarecidos como Armando de Salles Oliveira, que criou a Universidade de São Paulo (USP), em 1934. A Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro) seguiu o mesmo caminho. Essas universidades educaram gerações de profissionais e homens públicos que contribuíram muito para a formulação de políticas públicas no País.

Na USP, o reitor Miguel Reale, na década dos 1970, deu-lhe uma dimensão tal que teve influência decisiva na organização do sistema universitário brasileiro. A Escola Politécnica, antes disso, teve enorme papel na consolidação da engenharia nacional. Na área médica, o prestígio da Faculdade de Medicina e o trabalho do professor (e ministro) Adib Jatene e de Sergio Arouca, da Fiocruz, foram essenciais para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), um dos mais abrangentes do mundo. E na área ambiental o professor Paulo Nogueira Neto criou não só a legislação, como também a estrutura de todo o sistema de proteção ambiental do País.

Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o professor Alberto Luiz Coimbra criou a Coordenadoria de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), que é a espinha dorsal da pesquisa tecnológica na área de petróleo do Brasil.

Em 1987 o presidente José Sarney estimulou na USP a discussão sobre o papel dos partidos políticos e a convocação de uma Assembleia Constituinte.

Esses são apenas alguns exemplos do muito que já foi feito pelas universidades brasileiras na formulação de políticas públicas para o País, em que conhecimento e competência são essenciais. Um exemplo corrente é o papel que um professor como José Pastore teve na formulação da reforma trabalhista em 2018.

Contudo não se pode esperar demais das universidades. No regime presidencialista o governo escolhe suas prioridades e seus projetos para a Nação e os submete ao Legislativo, ao mesmo tempo que tenta mobilizar a sociedade para apoiá-los.

No passado recente tivemos até governos cujos projetos de Nação foram tão mal implementados que nos levaram à maior recessão que o Brasil atravessou. O atual governo não parece ter um projeto propositivo para o País, exceto na área de costumes, e seu papel acabou sendo assumido pelo Congresso Nacional, numa espécie de “parlamentarismo branco”. Em tese, isso deveria reforçar o papel dos partidos políticos, o que lamentavelmente ainda não aconteceu. Tem razão, portanto, o ministro Toffoli ao lamentar que as universidades não estejam fazendo “projetos de Nação”, como se viu no passado.

Parece oportuno tentar recuperar esse desempenho estimulando-as a realizar estudos e debates sobre os grandes problemas nacionais. O presidente Lincoln, dos Estados Unidos, fez isto 150 anos atrás (em plena Guerra Civil Americana), criando a Academia Nacional de Ciências para “prover recomendações objetivas à nação em matérias relacionadas com ciência e tecnologia”.

Essa missão é um pouco restrita para ser copiada. Um bom começo, porém, seria proceder a uma análise objetiva de algumas políticas públicas para o País, a começar por políticas educacionais, de saúde, energia e infraestrutura, áreas nas quais a competência das universidades brasileiras é indiscutível.

*Professor emérito e ex-Reitor da Universidade de São Paulo


José Goldemberg: O futuro das energias renováveis no Brasil

É essencial construir hidrelétricas com reservatório, prática que está sendo abandonada

O Ministério de Minas e Energia (MME) anunciou recentemente a publicação do Plano de Expansão de Energia para o decênio 2019-2029, que consiste de estudos e projeções realizadas pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do próprio ministério, e contém estimativas de custos das obras, mas não especifica as fontes desses recursos.

No passado distante os planos da Eletrobrás – onde eles eram preparados – tinham relação direta com os recursos da empresa ou dos aportes do Tesouro. Isso acabou, não só porque essas fontes de recursos “secaram”, mas porque as obras são agora licenciadas pelas agências reguladoras de eletricidade (Anel) e petróleo (ANP) e postas em leilão.

Apesar dessas limitações o Plano de Expansão tem influência em orientar os investidores privados e as próprias estatais como a Eletrobrás, a Cemig, a Copel e outras que podem competir nos leilões, que são diferenciados para os diferentes tipos de energia. Esse procedimento garante espaço para as diferentes fontes – energia hidrelétrica, térmica a gás e carvão, eólica, biomassa e solar fotovoltaica.

Uma novidade anunciada pelo governo é que pretende incluir nos planos de expansão seis usinas nucleares (de 1 milhão de quilowatts) do tipo da de Angra-2, a um custo estimado de US$ 30 bilhões, a serem instaladas até 2050. O custo por quilowatt seria, então, de US$ 5 mil por quilowatt, muito mais elevado do que outras opções, como energia hidrelétrica ou eólica.

A instalação de um grande parque nuclear no Brasil – mesmo no horizonte de 2050 – implica também outros investimentos, porque seria necessário garantir a produção do combustível para esses reatores nucleares. A intenção do Ministério de Minas e Energia é retomar a mineração – que se encontra praticamente paralisada – e ampliar a usina de enriquecimento de urânio. A justificativa para essas propostas é a de garantir a autonomia energética numa área considerada estratégica e tornar o País um exportador de urânio enriquecido.

Essas ideias podem ser questionadas tanto do ponto de vista político como econômico. Há um excesso de produção de urânio enriquecido no mundo e seu preço está caindo, porque as perspectivas de expansão da energia nuclear estão se reduzindo. Eletricidade nuclear, que chegou a representar mais de 15% da produção mundial de eletricidade, caiu para menos de 11% em 2019.

Planos de um “Brasil grande” produtor e exportador de urânio enriquecido existem desde o período militar e persistiram nos governos Lula-Dilma, mas, ao que parece, jamais foram analisados do ponto de vista de sua viabilidade econômica.

O mais sensato seria garantir apenas o combustível necessário para os reatores instalados no País e abandonar sonhos fantasiosos de grande potência nessa área. Urânio enriquecido pode ser comprado no exterior, como está sendo feito até hoje para suprir as necessidades dos reatores de Angra dos Reis (RJ). O Brasil pode fazê-lo porque deixou de ser suspeito de pretender fabricar armas nucleares quando assinou acordos internacionais com a Agencia Internacional de Viena e um acordo bilateral com a Argentina de inspeções mútuas.

Além disso é tempo de o governo abrir uma discussão séria sobre o que seria melhor para garantir a independência energética na produção de eletricidade no País, já que a de petróleo e gás está assegurada com a produção do pré-sal.

A verdade é que existe ainda um grande potencial inexplorado para a instalação de hidrelétricas no País, principalmente na Região Amazônica, mas os planos do governo federal mostram que ele praticamente desistiu de implementar grandes projetos hidrológicos na Amazônia por causa dos problemas que foram encontrados na construção da Usina de Belo Monte. O próximo leilão de energia a ser realizado será dominado por energia eólica, solar e térmica. Hidrelétricas, só de pequeno porte.

Esse é um grave equívoco, que terá fortes consequências no futuro.

Argumenta-se que hidrelétricas se tornaram inviáveis porque inundam grandes áreas da floresta e afetam as populações ribeirinhas e populações indígenas. Esses impactos são reais, mas, frequentemente, exagerados. Em Belo Monte a construção da usina causou o deslocamento de 22 mil pessoas que viviam às margens do Rio Xingu e na cidade de Altamira e tiveram que ser realocadas. No entretanto, a eletricidade produzida pela usina ilumina cerca de 5 milhões de residências nos grandes centros urbanos do País, que foi a razão para construir a hidrelétrica. Os danos causados pela construção devem e podem ser reparados, como é feito de forma satisfatória em muitas outras usinas, como Itaipu.

Mesmo a área da floresta inundada, de cerca de 500 quilômetros quadrados, em Belo Monte é pequena (e ocorreu apenas uma vez) se comparada com o desmatamento ilegal que é perpetrado todos os anos na Amazônia, que é de cerca de 7 mil quilômetros quadrados.

Argumenta-se, incorretamente, que outras energias renováveis, como a eólica e a solar, também produzem energia limpa e renovável, como as hidrelétricas, tornando estas desnecessárias. Contudo essas energias são intermitentes, isto é, não são disponíveis quando ventos não sopram e o sol não brilha. Elas precisam ser usadas em conjunto com energia estável, que vem das hidrelétricas (ou de reatores nucleares), economizando água nos reservatórios para ser usada quando não houver vento ou sol. Sem isso não será possível ampliar muito a contribuição das fontes intermitentes.

É por essa razão que é essencial construir usinas com reservatórios, que é uma prática que está sendo abandonada no Brasil. Se ela não for revertida, usinas nucleares ou térmicas usando combustíveis fósseis serão as alternativas.

* Professor emérito da USP, foi presidente da companhia energética de São Paulo (Cesp)


José Goldemberg: Políticas públicas e ‘modismos’

A aprovação de projetos passa sempre por uma criteriosa análise de cientistas qualificados, como fazem no Brasil o CNPq, a Capes e a Fapesp

A revolução tecnológica nas telecomunicações que se verificou nas últimas décadas, com telefones celulares, GPS e internet, deu origem ao comércio eletrônico, ao Uber e tantas outras aplicações que criou a sensação que ela não tem limites. Inteligência artificial, robôs e automóveis elétricos são apenas algumas das áreas que são hoje investigadas intensamente nas universidades com o apoio entusiástico de grandes empresas, como Google e Apple.

Esse apoio depende muito de decisões tomadas por empreendedores que tiveram enorme sucesso na revolução da informática, como Bill Gates, Jeff Bezos, da Amazon, e Ellon Musk, com um marketing que atrai investidores criando um verdadeiro “efeito manada”.

O que a História mostra, contudo, é que os grandes avanços em todas as áreas da ciência e tecnologia se originaram, em geral, em universidades e institutos de pesquisa financiados por órgãos governamentais onde os critérios de escolha e aprovação de projetos são impessoais. A liberdade na escolha dos problemas que os cientistas desejam investigar é o grande motor das inovações. A aprovação de projetos passa sempre por uma criteriosa análise de cientistas qualificados, como fazem no Brasil o CNPq, a Capes e a Fapesp.

Essas inovações são postas em prática por empreendedores que adotam duas estratégias para a expansão dos seus negócios:

• Criar laboratórios próprios onde a pesquisa é orientada aos objetivos da empresa;
• e doar vultosos recursos às universidades e aos institutos de pesquisas, sob a forma de filantropia.

Há exemplos de bilionários que praticaram filantropia em grande escala com resultados positivos, como a família Rockefeller e Andrew Carnegie, nos Estados Unidos, que no passado investiram bilhões de dólares em universidades, museus e hospitais (principalmente para pesquisas sobre câncer).

Todavia o personalismo envolvido em filantropia pode levar a sérias distorções, como é o caso do outro bilionário americano David Koch (falecido recentemente), que investiu pesadamente em fundações de caráter político de direita e particularmente em financiar “negacionistas” do aquecimento global. Estima-se que David Koch e seu irmão Charles Koch tenham gasto US$ 120 milhões nessas atividades. Bill Gates e sua esposa criaram uma fundação que tem feito grandes investimentos em saúde, mas a sua preferência por trabalho na área da malária é considerada controvertida.

É por essas razões que o enorme entusiasmo criado em torno de “automóveis autônomos” deve ser analisado com cuidado, como fez um artigo do [ITALIC]New York Times [/ITALIC]de 17 de julho, que lança dúvidas quanto à viabilidade dos projetos em andamento, apesar de as empresas que produzem automóveis (Ford, Chrysler, General Motors, Honda, Tesla, Jaguar e Baidu, na China) e as gigantes do Vale do Silício (Uber, Google, Apple, Amazon) estarem empenhados nessa opção.

Uma das razões para crer que automóveis elétricos sejam um “modismo”, e não uma tendência inevitável, é que eles não são compatíveis com o comportamento humano e a sua impredictibilidade. Para que um automóvel circule sem motorista ele necessita de um computador que analise a informação que vem do GPS e de câmeras de televisão e radar instalados nele. Teoricamente, se a informação for completa o computador comanda o carro, evita colisões, pedestres e outros obstáculos porque tem na sua memória inúmeras situações que poderiam acontecer e que ele manobra para evitar.

O problema é que é impossível antecipar certas situações: exemplo são ciclistas que aparecem subitamente e até os que estão se movimentando na contramão. Inteligência artificial pode servir para reconhecimento facial porque a memória de computadores é muito maior do que a nossa. Estima-se que cada um de nós seja capaz de reconhecer cerca de mil faces diferentes. Na memória do computador é possível colocar centenas de milhares de rostos diferentes e ele, então, pode identificar faces novas, o que seres humanos não conseguiriam fazer.

Existem ainda outros problemas, que não são tecnológicos, mas têm que ver com preferências e valores humanos. Dirigir um automóvel está intimamente ligado à liberdade de ir e vir na velocidade que se deseja (dentro dos limites legais). Já existem hoje em circulação no mundo cerca de 1 bilhão de automóveis (um para cada sete habitantes) e não é obvio que as pessoas que hoje dirigem automóveis viessem a preferir deixar de fazê-lo e entregar sua segurança a um computador, cuja capacidade de tomar decisões é discutível.

Além disso, outro problema decorre do fato de que automóveis sem motorista não vão ajudar a resolver a questão dos engarrafamentos de trânsito, que são um problema social da maior importância nos grandes centros urbanos. Ao contrário, poderão agravá-los, porque os computadores adotarão métodos de dirigir mais cautelosos do que os motoristas.

A adoção de automóveis autônomos cai, portanto, na categoria de pseudossoluções para as dificuldades que os países industrializados atravessam com a queda da produtividade. Ela aumentou muito no século 20, mas recentemente estagnou. Isso se deve ao fato de que os avanços tecnológicos do século 20 foram tão espetaculares e melhoraram de tal forma a vida de boa parte da população que não é nem necessário nem possível conseguir um aumento maior da produtividade, como houve no passado.

Os principais progressos que transformaram o mundo do século 19 no mundo que temos hoje foram o desenvolvimento de eletricidade, iluminação, elevadores, máquinas de uso doméstico, como lavadoras de roupa, geladeiras, ar-condicionado, e automóveis.

Repetir essa verdadeira revolução da tecnologia criando soluções para problemas que não existem, como automóveis sem motorista, não parece ser um caminho muito promissor.

*Professor emérito da USP


José Goldemberg: Movimento ambientalista é de esquerda ou direita?

É preciso redobrar esforços para evitar que o aquecimento global seja ‘politizado’ de novo

Preocupações com a preservação do meio ambiente datam da mais remota Antiguidade. Platão, há 2.500 anos, comparou o desmatamento na Grécia do seu tempo com “o esqueleto de um homem doente: toda a gordura e a carne tenra se foram, deixando apenas a moldura nua da Terra”.

Alguns governantes, ao longo da História, se deram conta das consequências negativas da destruição das florestas. Os antigos egípcios penalizavam quem cortasse árvores e na civilização inca essa prática era punível com a morte.

Apesar disso, a expansão do Império Romano varreu as florestas de quase toda a Europa e da Inglaterra. O mesmo foi feito pelos colonizadores portugueses, que devastaram a Mata Atlântica até esgotar a produção de pau-brasil.

A situação começou a mudar no século 16, por diversas razões: em alguns países, como a Áustria, um reflorestamento foi feito por questões econômicas; em outros, pelo interesse dos aristocratas europeus em preservar as florestas em torno dos seus castelos para garantirem espaço para suas caçadas. Aliás, essa é a razão pela qual Londres tem hoje tantos parques. Na enorme expansão da conquista do território da América do Norte, reservas naturais foram criadas até por motivos estéticos, sob a influência de intelectuais como Thoreau.

Surgiram no século 19 as primeiras associações ambientalistas do mundo, como a Open Society, na Inglaterra, em 1865, o Sierra Club, nos Estados Unidos, em 1892, e a Audubon Society, também dos Estados Unidos, em 1905.

O caráter básico delas era a conservação da natureza, o que levou à criação, em 1952, da União Internacional para a Conservação da Natureza.

No fundo, eram todas elas organizações inspiradas em nobres propósitos, bem aceitos pelo establishment e próximas da “direita”, mas pouco eficazes em evitar a degradação ambiental decorrente da industrialização selvagem do século 19, devida à utilização de carvão em grande escala. Nos países menos desenvolvidos, a expansão colonial dos séculos 19 e 20 levou a degradação ambiental ao resto do mundo.

Foi só a partir da metade do século 20 que surgiram na Europa e nos Estados Unidos movimentos sociais e organizações que começaram a questionar seriamente os modelos de desenvolvimento econômico que levavam à degradação ambiental. Esses movimentos, que se organizaram em parte pela repulsão à Guerra do Vietnã, acabaram se expandindo para a luta contra o apartheid na África do Sul, a discriminação racial nos Estados Unidos, a cruzada contra o uso da energia nuclear, depois do acidente de Chernobyl, e a emancipação feminina, que a pílula anticoncepcional acelerou.

Algumas dessas organizações, como o Greenpeace, introduziram um tipo de ativismo que não existia no movimento ambientalista do início do século 20, que era até então tolerado pela “direita”. Por essa razão a revolução cultural dos anos 1970 ganhou aspectos mais próximos do que se rotula como “esquerda” do movimento ambientalista, crítico da economia capitalista dos países do Ocidente e da economia dos países da área socialista, uma vez que a União Soviética não revelou preocupações maiores com a preservação ambiental do que seus adversários ocidentais na guerra fria.

O que estamos presenciando agora neste início do século 21 é um movimento de “contracultura” ao que se poderia considerar exageros da revolução cultural dos anos 70. Ele se manifesta no renascimento da valorização da família, no nacionalismo e nas restrições à entrada de imigrantes de Estados islâmicos e africanos, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Neste país em particular, a eleição de Donald Trump tem sido interpretada como uma reação ao “politicamente correto” dos anos de Bill Clinton e Barack Obama.

Ele se manifesta também por meio de ideologias evangélicas cristãs (não católicas), baseadas na sua interpretação pessoal dos Evangelhos, e atrai também grupos de protestantes, mórmons e judeus. Eles têm em comum um forte apoio à economia de mercado (sem controle governamental), questionam a Teoria da Evolução, são contrários à manipulação genética, eutanásia, homossexualidade, educação sexual, ao aborto; e são céticos em relação ao aquecimento global, além de terem uma forte suspeita das elites científicas que questionam as interpretações literais da Bíblia.

Uma vítima dessa descrença no conhecimento científico é a recusa em aceitar o fato notório de que a atividade humana é a causa principal do aquecimento global, o que favorece grupos econômicos importantes nos países produtores de combustíveis fósseis e, principalmente, empresas de petróleo e de carvão.

Existe, porém, um elemento novo que surgiu nesse debate, com o trabalho dos cientistas de grandes universidades americanas como Princeton, Universidade da Califórnia, e também de alguns pesquisadores brasileiros. Esses cientistas analisaram as causas da degradação ambiental, como certos tipos de tecnologias – comuns a todos os países industrializados, capitalistas ou comunistas – e o uso de combustíveis fósseis. E identificaram os verdadeiros vilões, os responsáveis pelos problemas.

Esses trabalhos tiveram o mérito de “despolitizar” o debate e abrir caminho para a adoção de tecnologias limpas, como o uso de energias renováveis. Exemplo de sucesso nessa área foi a melhora da qualidade do ar, da água e a disposição do lixo, cujas consequências positivas são visíveis a olho nu.

Contudo o aquecimento global é mais difícil de explicar, porque não é visível, seus impactos não são imediatos – somente se dão no longo prazo – e combatê-lo tem custos elevados. É por essa razão que é preciso, nesse caso, um esforço redobrado dos cientistas para evitar que o tema do aquecimento global seja novamente “politizado” e deixar muito claro que não é sensato adiar as medidas que poderão resolvê-lo.

*Professor emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente