Itamaraty

Alon Feuerwerker: Uma característica dos países vizinhos é que eles estarão aí para sempre

É bom um pé atrás quando se ouve falar em “política de Estado e não de governo”. Costuma ser boa rota de fuga para quem, tendo perdido a eleição, ou uma disputa qualquer de poder, precisa ganhar na paz o que não conseguiu na guerra. Acontece no debate sobre a política exterior.

Os formuladores e executores dela levam uma vantagem na discussão: é fraco o argumento de que tem de ser de tal jeito porque há muito tempo vem sendo assim. Como é fraco o argumento de que não pode mudar porque atravessou governos de diferentes orientações.

O ponto é saber se ela atende o interesse nacional. Mas quem define o que é “interesse nacional”? Mesmo coisas supostamente consensuais podem não ser. Por exemplo, manter a América do Sul livre de armas de destruição em massa e da presença militar extra-continental.

Na política exterior bolsonarista, a prioridade regional parece outra: estreitar a relação com os Estados Unidos ao ponto de estabelecer uma aliança, inclusive militar, que se mostre escudo e vacina contra transformações políticas indesejadas aqui e nos demais países do continente.

Há precedente. Durante a Guerra Fria estava vedado ao forte Partido Comunista Italiano participar do governo, também porque o país era membro da Otan, a aliança militar ocidental criada para confrontar a URSS. Mesmo com o papel decisivo do PCI na resistência ao nazi-fascismo.

As tentativas de resumir a atual política externa a aspectos puramente “ideológicos” parece insuficiente. Num exercício de especulação, talvez projete o desejo de ingressar numa “Otas”, uma aliança no Atlântico Sul similar à que Washington lidera na parte norte do oceano.

Já houve conversas sobre isso no passado e o Brasil torpedeou.

Seria um gol e tanto para os Estados Unidos, estabeleceria aqui uma área de domínio militar (e portanto político) praticamente indisputável. Sem contar a projeção para a África Ocidental-Meridional. Um “Trampolim da Vitória” como o da Segunda Guerra, mas para o século 21.

O foco da política externa americana é conter a influência econômica da China pelo mundo. Os sinais são abundantes. Deixadas as coisas como estão, os chineses vão ultrapassar e dar tchauzinho logo logo. Então Washington simplesmente não pode deixar como está.

Daí o cerco a empresas chinesas de presença global, as ameaças a quem pensa em estreitar relações econômicas com Pequim, o esforço para derrubar governos que não rezem pela cartilha, mesmo que o método de governar seja igualzinho ao de aliados convenientemente deixados em paz.

Um presidente americano disse no século passado que para onde pendesse o Brasil penderia a América do Sul. Na época houve chiadeira, mas a experiência mostra que tinha algum fundamento. Ele só não explicou se a tendência viria na paz ou precisaria ser imposta no braço.

Outro dia o Alexandre Garcia me contou que perguntou durante a Guerra das Malvinas ao então presidente João Figueiredo por que o Brasil estava com a Argentina contra o Reino Unido. Figueiredo mostrou o mapa. “Está vendo a Argentina? Ela vai estar aqui perto para sempre.” #FicaaDica.

A Europa curtiu a Otan porque havia a URSS. Como os vizinhos brasileiros vão receber uma política que estabelece na prática uma hegemonia total americana coadjuvada pelo Brasil? Essa pergunta tem sua importância porque, afinal, esses vizinhos estarão aí para todo o sempre.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Demétrio Magnoli: O Itamaraty, segundo Ernesto

Durante quase 14 anos, nos governos lulopetistas, o diplomata Paulo Roberto de Almeida experimentou o que chama de “exílio involuntário”. Excluído pela chefia de qualquer atividade, instalou seu “escritório de trabalho” numa mesa da biblioteca do Itamaraty. O intervalo entre um “exílio” e outro durou menos de dois anos. Exonerado da direção do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri), ele se prepara para seguir rumo à Sibéria: “Vou ter de voltar à biblioteca para poder trabalhar”. O bolsonarista Ernesto Araújo imita Celso Amorim, chanceler lulista, rebaixando o Itamaraty ao estatuto de ferramenta de uma facção.

“Personalidades autoritárias não apreciam espíritos libertários como o meu”. O diagnóstico aplica-se tanto a Araújo como a Amorim. Nos tempos do segundo, ondas de expurgos afastaram dezenas de diplomatas experientes que não aceitavam a condição de sabujos do ministro de turno. Hoje, a pretexto de promover jovens diplomatas, o primeiro cerca-se de bajuladores dispostos a aplaudir com igual fervor suas asneiras retóricas e suas insanas iniciativas de política externa. A corrupção moral não figura no Código Penal, mas suas consequências são tão danosas quanto a corrupção política.

Na democracia, uma fronteira nítida separa a conquista do governo da colonização partidária do Estado. O bolsonarismo aprendeu com o lulopetismo a ultrapassar a linha divisória, excluindo os “espíritos libertários” para não ouvir vozes dissonantes. Daí, nasce o governo de facção, isolado numa concha de certezas ideológicas, protegido da crítica por espessos cordões de puxa-sacos. A demissão de Almeida é mais um sintoma de que a eleição presidencial produziu um giro de 360 graus, colocando-nos de volta no ponto de partida.

Araújo plagia Amorim. O chanceler lulista anunciou um novo começo para nossa política externa, que se tornaria “ativa e altiva”, substituindo a orientação supostamente subserviente de seus antecessores. O chanceler bolsonarista promete “libertar a política externa” dos grilhões do “globalismo” para que ela represente o “Brasil verdadeiro”. A ideia de inaugurar a História, enterrando um passado de impurezas e escrevendo capítulos imaculados no mármore branco, é marca invariável das “personalidades autoritárias”. Mas o paralelo entre os dois chanceleres tem limites —e as circunstâncias da demissão de Almeida lançam luz sobre uma diferença fundamental.

O ato de exoneração — comunicado depois que o diplomata publicou, em seu blog pessoal, as críticas formuladas por FH e Rubens Ricupero à atuação de Araújo na crise venezuelana — derivou efetivamente das críticas de Almeida a Olavo de Carvalho. A polêmica emergiu no 23 de fevereiro, dia do “cerco humanitário” a Maduro, quando Araújo sugeriu a abertura de um corredor de invasão em Roraima, a ser utilizado por forças dos EUA. A ideia evidenciou que o chanceler despreza as leis brasileiras e nossa tradição de política externa. Ao mesmo tempo, revelou que ele comprara, pelo valor de face, o blefe vazio da Casa Branca.

O desatino de Araújo provocou uma intervenção branca no Itamaraty. Um cordão sanitário formado pelo vice, Hamilton Mourão, e pelos generais Augusto Heleno (GSI) e Villas Bôas, ex-comandante do Exército, rodeou silenciosamente o ministro de Relações Exteriores. Então, na impossibilidade de demitir os generais que o sitiaram, o “Zeus de subúrbio” (apud Almeida) direcionou seu raio contra um espírito livre situado no interior de sua casamata.

Todo o episódio distingue, sob um aspecto crucial, o chanceler bolsonarista de seu predecessor lulista. A política externa de Amorim obedecia a centros de comando claros: Lula e o PT. Já a política externa de Araújo emana de um centro de comando clandestino, constituído por Olavo de Carvalho, Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon, o ex-assessor de Trump que tenta construir uma “Internacional dos nacionalistas”.

No fim, a sorte sorriu para Almeida: as amplas vidraças da biblioteca Azeredo da Silveira são o melhor ponto de observação do incêndio que devasta o Itamaraty.


Míriam Leitão: O centro da crise do Itamaraty

A hierarquia no Itamaraty, como nas Forças Armadas, é a forma de transmitir experiência. Quebrá-la é um risco

A crise no Itamaraty é muito mais do que as ideias exóticas defendidas pelo chanceler Ernesto Araújo, na intenção de agradar ao presidente. Fosse só isso, a chancelaria saberia como lidar com o assunto. O pior problema é que ele quebrou a hierarquia dentro da instituição que, a exemplo das Forças Armadas, precisa dela. “Os diplomatas, assim como os militares, funcionam sob instruções, que vêm de alguém mais qualificado, por isso ele tem legitimidade para transmiti-la”.

Essa explicação dada por um diplomata reflete o coração do dilema atual. Mudar isso é subverter a lógica interna mais profunda, com efeitos imprevisíveis. Não bastou ao ministro Ernesto Araújo chegar ao primeiro posto sem ter comandado embaixada. Ele se cercou de pessoas que também não tiveram essa experiência. É normal que o ministro queira ter seu próprio time, mas como ele se deixa levar pelo fígado, acabou não criando uma diversidade nesse grupo.

— Nunca houve uma situação em que tantas pessoas mais graduadas estivessem sob o comando de gente de nível hierárquico inferior. Você ser embaixador lhe confere uma outra experiência. A chefia de posto mostra como são as coisas na prática. É normal ter um ou outro dirigindo uma subsecretaria sem ter chefiado uma representação, mas aí ele ouvirá os outros, que já comandaram postos, sobre como proceder. Assim funcionam os check and balances internos. Mas é inédito ter todos os subsecretários sem esta experiência — informa um integrante da Casa.

Tenho conversado com diplomatas que estão fora do Brasil. Eles relatam que andam confusos. As instruções não chegam. As que chegam ignoram nossas posições ou a natureza das instituições internacionais. O que acontecerá com a postura conservadora do governo em relação à mulher? Com todos os problemas que o país tem nesta área, o Brasil sempre teve uma posição de vanguarda, na área de direitos humanos e direitos da mulher.

— O que faremos agora? Se vamos abandonar a posição tradicional e os aliados naturais nesta questão, vamos ficar com quem? Com os árabes? Eles têm todo um passivo na área de direitos da mulher — avalia um diplomata brasileiro.

Há questões concretas acontecendo neste momento que criam paralisia nas representações e impedem o diálogo entre os mais experientes com os menos experientes, porque tudo é visto como uma cruzada entre o passado pecaminoso e o futuro virtuoso que será inventado agora. Isso leva ao improviso, que é um perigo em relações internacionais. Na diplomacia regional, a grande lição do Itamaraty sempre foi a de evitar conflito. Temos dez vizinhos com fronteira seca. Tudo é muito delicado.

A chancelaria brasileira sempre foi considerada um exemplo, tanto na América Latina quanto no mundo. Uma das razões é que foi capaz de criar um corpo coeso, no meio das diferenças de opinião, ou de níveis na carreira, para defender os interesses nacionais, conjugando aspectos políticos e técnicos. O Itamaraty sempre fez esforço de qualificar seus quadros nos inúmeros temas técnicos. Há as questões econômicas, de investimento, ambientais, de política comercial, de tecnologia, de energia. Vários outros. Normalmente, o Itamaraty integra grupos interministeriais para negociações que exigem capacitação técnica. O próprio Ernesto Araújo fez parte da negociação de tarifas no começo da sua vida profissional. E seus colegas o descrevem como um diplomata focado e sem qualquer das ideias que exibe hoje. Ouvi pessoas que estiveram com ele em etapas diferentes da carreira. Foram unânimes em dizer que ele mudou. As ideias que proclama hoje foram aquisição recente. Vieram-lhe à mente no momento oportuno para agradar aos novos poderosos.

Ernesto Araújo realizou sua ambição. O problema é o que ele fez em seguida, com uma reforma ainda não totalmente implantada, mas que já concentrou tarefas de forma excessiva em algumas áreas. Há perseguição interna, caça às bruxas, discurso ideológico. A grande questão, contudo, é a quebra da hierarquia, porque rompe-se o fluxo de transferência de conhecimento e experiência. Não se consegue ter uma boa imagem externa, com a frente interna desorganizada. É fácil posar de inovador. Mas o risco é quebrar a estrutura da instituição, e o temor é que isso esteja em curso.


William Waack: Lição americana

Toda política externa sofre quando profissionais são desprezados e vence a gritaria na internet

Para interessados em diplomacia e política externa, vale a pena ler The Back Channel, as memórias profissionais de William Burns, um dos mais importantes diplomatas americanos dos últimos 30 anos. Ele serviu a cinco presidentes e dez secretários de Estado e acompanhou todos os principais momentos que vão da vitória na Guerra Fria à concepção de mundo de Trump. É uma rica descrição da transição da diplomacia da era pré para a era pós-Twitter.

É uma obra com importantes lições para o debate atual sobre política externa brasileira, desatado pela crise da Venezuela. Burns serviu a republicanos e democratas e sua principal crítica a figuras como George W. Bush ou Barack Obama é basicamente a mesma: a de que o profissionalismo de diplomatas (e suas escolas) cedeu lugar à esfera do Twitter e ficou em segundo plano a ideia de que diplomacia serve sobretudo para comunicar, convergir e manobrar para obter vantagens futuras, especialmente por meio de alianças. Lição para o Brasil.

Burns contribui para provar que um “staff” profissional bem conduzido é capaz de identificar tendências com grande antecedência, como demonstra memorando que ele enviou a Bill Clinton, em 1992, afirmando que a vitória americana na Guerra Fria traria maior fragmentação e o mundo recuaria para nacionalismos e extremismo religioso, ou uma combinação dos dois – é uma boa descrição de parte das crises internacionais atuais. Como governantes se preparam ou reagem a contingências é outra história. Nesse sentido, Burns é duro com Obama, mas a paulada maior é na política da “America First” de Trump. “Uma sopa nojenta de unilateralismo beligerante, mercantilismo e nacionalismo bruto”, caracterizada por “posturas de força e afirmações desvinculadas de fatos”, escreve Burns. Lição para o Brasil.

O maior problema de Trump, porém, é o que Burns chama de “sabotagem ativa” contra o Departamento de Estado, ou seja, o “staff” profissional. Mais uma lição para o Brasil. Quando Lula assumiu em 2003 o Itamaraty foi subordinado à influência de um guru com ideias totalmente desvinculadas da realidade (e presas ainda ao esquerdismo infantil dos anos cinquenta) e um chanceler dedicado a vendetas contra qualquer um identificado com o “ancien regime” na casa, ou seja, que não fosse da turma dele. É muito similar ao que acontece agora, e as consequências começam a se desenhar da mesma maneira: perda de foco, ênfase no espetáculo em torno de um líder “infalível” e a confusão entre postulados ideológicos de franja do espectro político com interesse nacional de longo prazo.

A “lacração” típica do comportamento de militantes, empenhados em ganhar no grito “debates” em redes sociais, leva a afirmações do tipo “o Brasil guiou os Estados Unidos” na crise da Venezuela. A frase fica valendo como argumento para o qual não há fatos – a não ser que se despreze o fato básico de que só os americanos têm recursos para bater (com poderio militar sem rival no planeta) e para pagar (com o músculo financeiro para impor sanções ou conseguir alívio para amigos). E são eles os que batem e/ou pagam, que teriam sido conduzidos numa crise de amplas proporções internacionais por quem não consegue nem um nem outro.

A atual crise da Venezuela não foi uma “escolha” brasileira. Mas demonstra como a falta de profissionalismo na condução da política externa, ideias erradas e cumplicidade oportunista de classes empresariais (não só no episódio da molecagem diplomática que colocou a Venezuela no Mercosul) criam problemas de difícil solução. A época do Twitter, lamenta o veterano Burns, sepultou o frio racionalismo da diplomacia de contatos, informação e influência. Pior ainda quando a política externa fica a cargo de amadores arrogantes.


José Casado: Plano de invadir Venezuela causa choques no Planalto

Militares adotam moderação, ao contrário de civis

O colapso da ditadura venezuelana expôs uma situação paradoxal em Brasília. Militares da ativa e aposentados empregados no Planalto têm expressado mais convicção na saída política do que civis representantes do Brasil na mesa diplomática.

A cacofonia deriva do embate entre a curadoria militar do governo Jair Bolsonaro e o agrupamento civil em torno do chanceler Ernesto Araújo, que é amparado por um dos filhos do presidente, o deputado Eduardo.

Os choques ocorrem na definição de limites ao alinhamento do Brasil com os EUA. Existe interesse nas ofertas americanas para tecnologias bélicas inéditas no país. Mas há, também, ambiguidades que as Forças Armadas acham útil preservar. Por exemplo, em negociações na área nuclear, onde se explora um acordo.

Não incomoda a cruzada contra o “domínio cultural esquerdista-marxista”, como define o deputado Bolsonaro. Até porque nada se cria do nada. O centro da divergência está na condução da política externa a reboque do ideário fundamentalista.

O debate sobre a hipótese de invasão da Venezuela tem sido exemplar, com veto unânime dos militares. Em contraste, a chancelaria tem elevado o tom nos ultimatos ao condomínio de cleptocratas da “revolução” chavista —a “robolución”, como é conhecida em Caracas.

Araújo insiste na sintonia com a ala mais belicista de Washington, que vê na queda da ditadura de Maduro, com reflexos em Havana e Manágua, fator de influência no voto latino majoritário na Flórida, estado decisivo à reeleição de Trump.

No domingo, o Itamaraty atacou o “caráter criminoso” de Maduro, pelo “brutal atentado aos direitos humanos”, injustificável “no direito internacional”. Se adjetivos são úteis à diplomacia, substantivos errados em política externa ampliam cemitérios.

Na premissa, a chancelaria flerta com a admissão de guerra civil na Venezuela. Na lógica de Estado, esse raciocínio leva à legitimação do intervencionismo. A base está nos protocolos da Convenção de Genebra que proíbem a submissão da população civil à fome, como método de combate.


O Globo: Governo brasileiro condena 'atos de violência de ditador ilegítimo Maduro' e pede apoio a Guaidó

Em nota, Itamaraty convoca países a 'somarem-se ao esforço de libertação da Venezuela'.

CÚCUTA, COLÔMBIA — O Governo do Brasil condenou, por meio do Ministério das Relações Exteriores, os "atos de violência perpetrados pelo regime ilegítimo do ditador Nicolás Maduro"  nas fronteiras da Venezuela com o Brasil e com a Colômbia neste sábado. Em nota oficial, a pasta ressaltou que a atitude de Maduro causou mortes e deixou dezenas de feridos.

No sábado, o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, chegou a gravar um vídeo informando que camionetes com alimentos destinados aos venezuelanos haviam entrada no país pela fronteira em Pacaraima, Roraima, mas o carregamento não foi autorizado a passar e agora está armazenado na base militar da cidade brasileira.

"O uso da força contra o povo venezuelano, que anseia por receber a ajuda humanitária internacional, caracteriza, de forma definitiva, o caráter criminoso do regime Maduro. Trata-se de um brutal atentado aos direitos humanos, que nenhum princípio do direito internacional remotamente justifica e diante do qual nenhuma nação pode calar-se", diz a nota do Itamaraty.

No mesmo pronunciamento, o Brasil apelou à comunidade internacional, sobretudo aos países que ainda não reconheceram o opositor Juan Guaidó como presidente interino, "a somarem-se ao esforço de libertação da Venezuela, reconhecendo o governo legítimo de Guaidó e exigindo que cesse a violência das forças do regime contra sua própria população".

A entrega da ajuda internacional foi, até agora, a grande aposta da oposição para levar os militares a abandonar a lealdade a Maduro e abrir as fronteiras. No entanto, apesar de 23 integrantes das Forças Armadas e da Polícia Nacional bolivariana terem desertado para a Colômbia, outras centenas de agentes das forças de segurança, fiéis ao Palácio de Miraflores, avançaram contra os manifestantes. Quatro pessoas morreram e mais de 20 ficaram feridas a bala, em Santa Elena, cidade venezuelana perto da fronteira com o Brasil. Na fronteira com a Colômbia, 285 pessoas ficaram feridas em confrontos com as forças de Caracas.


Celso Lafer: Sobre a identidade internacional do Brasil

Manifestações iniciais do governo Bolsonaro revelam dificuldade em orientar o País no mundo

O tema da identidade é parte da pauta da política externa dos países. Diz respeito à relação de continuidade e mudança, seja por razões internas ou externas, da sua ação diplomática. Busca esclarecer, como observa Karl W. Deutsch, em que medida as transformações da conduta externa mantêm o fio da continuidade que permite falar em identidade internacional.

No trato da identidade internacional do Brasil, tenho utilizado a lógica organizadora do que Renouvin e Duroselle denominam “forças profundas”. São explicativas dos elementos históricos da continuidade de nossa política externa desde a independência que mantêm uma coerência, de duração longa, não obstante as mudanças compreensíveis e as incoerências conjunturais, provenientes das contradições da vida e das ações políticas. É essa dimensão de coerência que esclarece, como mostrou Rubens Ricupero, o relevante papel da diplomacia na construção do Brasil, incluída a constituição mais pacífica da nossa escala continental, uma singularidade que nos diferencia de outros países de escala continental, como EUA e Rússia.

A política externa e a atividade diplomática têm como item permanente da agenda defender os interesses de um país no plano internacional. Identificar esses interesses para traduzir necessidades internas em possibilidades externas, diferenciando-os dos interesses e perspectivas dos demais atores que operam na vida internacional, é um exercício diário de representação da identidade internacional de um país.

Ortega y Gasset realçava que a perspectiva organiza a realidade. Nesse contexto, numa acepção mais abrangente, a política externa articula a expressão de um ponto de vista de um país sobre o mundo e seu funcionamento. No caso do Brasil, os fatores de persistência esclarecem a dimensão da continuidade deste ponto de vista que resulta da memória de uma tradição diplomática que o Itamaraty preserva.

San Tiago Dantas esclarecia que a continuidade é um requisito da política externa, observando que isto não acontece da mesma maneira em relação aos problemas administrativos do país, no âmbito dos quais mudanças de rumo não têm os mesmos inconvenientes do que ocorre em matéria de ação exterior do Estado: é fundamental “que a projeção da conduta do Estado no seio da sociedade internacional revele um alto grau de estabilidade e assegure crédito aos compromissos assumidos”.

Essa dimensão de continuidade, estabilidade e coerência está sendo posta em questão pelas manifestações diplomáticas do governo Bolsonaro e do seu chanceler, com impacto na credibilidade internacional do nosso país.

Observo, em primeiro lugar, a inserção da religião e seus desdobramentos na pauta da agenda diplomática. O Brasil não é um Estado confessional. É, desde a República, um Estado laico. A Constituição veda à União estabelecer cultos religiosos ou igrejas e manter com eles ou seus representantes relação de dependência ou aliança. Não é do interesse público da política externa suscitar, de maneira inédita, o tema da religião na vida internacional, posto que contribui para as tensões da intolerância da geografia das paixões religiosas, inserindo o nosso país numa problemática em que não precisa se envolver. É uma visão equivocada do papel do campo dos valores na ação diplomática.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de titularidade coletiva do povo brasileiro, e cabe ao poder público defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, nos termos da Constituição (artigo 225). Meio ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta todos os que vivem na Terra. A sustentabilidade é uma exigência de uma economia internacionalmente competitiva, necessária para o comércio internacional dos produtos, incluídos os agrícolas, já que o acesso a mercado de outros países passa crescentemente por produtos e processos que atendam a requisitos de sustentabilidade ambiental.

O Brasil tem desde a Rio-92 uma construtiva e ativa participação na agenda internacional do meio ambiente, que se tornou um ingrediente de continuidade e coerência da política externa brasileira. As manifestações de recuo nessa matéria do governo Bolsonaro comprometem a projeção do Brasil na sociedade internacional e põem em questão compromissos assumidos. Isso não atende aos interesses nacionais.

Vivemos num mundo interdependente, que se globaliza no ciberespaço da era digital, que acentua a porosidade das fronteiras e propaga tensões difusas em todas as esferas. Para lidar com os desafios inerentes a essas tensões pelo caminho da efetivação dos princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil - entre eles a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (Constituição, artigo 4, IX) - é preciso participar do mundo e de suas instâncias intergovernamentais, no âmbito das quais o Brasil sempre atuou, atento à relevância do multilateralismo para os interesses da ação diplomática brasileira. Recuar dessa participação a partir da rejeição autocentrada do “globalismo” ignora, como dizia Hannah Arendt, que somos do mundo e não apenas estamos no mundo, mesmo em matéria de atualidade dos problemas dos refugiados e de correntes migratórias. Isso, aliás, contrasta com o princípio da prevalência dos direitos humanos e da abertura à concessão de asilo político, diretrizes constitucionais da política externa.

Em síntese, esses exemplos, entre muitos outros, são indicações de que as manifestações iniciais do governo Bolsonaro e do seu chanceler revelam uma dificuldade na capacidade de orientar o Brasil no mundo. É de esperar que no confronto com a realidade interna e externa essas manifestações sejam ajustadas para, sem rupturas inadequadas, levar em conta a coerência da política externa brasileira em linha com a sua identidade internacional.

* Celso Lafer, professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Elio Gaspari: De Guerreiro@edu para Bolsonaro

Senhor presidente,

Fui empregado do Itamaraty durante 45 anos, seis dos quais como ministro das Relações Exteriores do general João Figueiredo (1979-1985). Ouvi o que o senhor disse em Davos, esperando que o governo da Venezuela “mude rapidamente”. Por cá, tenho ouvido a mesma coisa, pois o presidente Nicolás Maduro arruinou o país. Escrevo-lhe para sugerir que nossa diplomacia trate a crise desse país com quem temos dois mil quilômetros de fronteira seca tirando as meias sem tirar o sapato. Para as pessoas comuns, isso parece impossível, mas no Itamaraty sabemos fazê-lo.

Tenho horror a falar de qualquer coisa, sobretudo de mim. Na Casa corre o chiste segundo o qual eu sou capaz de dormir durante meus próprios discursos. Costumo adormecer os outros mas, mesmo acordado, falo pouco.

Quando sugiro que tiremos a meia sem tirar o sapato, lembro que a hostilidade verbal de seu governo em relação a Nicolás Maduro já foi explicitada. Nossas precauções devem se relacionar com o dia seguinte a uma eventual queda do bolivarianismo. O que advirá? Isso ninguém sabe. Tomara que não aconteça nada e que os venezuelanos resolvam a própria crise.

Em 1965, o Brasil apoiou a intervenção militar americana na República Dominicana, mandou tropas para uma força multilateral de paz e chegou a comandá-la. Mesmo assim, veja a frequência com que se fala das nossas missões militares recentes no Haiti e no Congo. Da República Dominicana, fala-se pouco. O que começou como uma operação destinada a evacuar cidadãos americanos transformou-se numa ocupação, e a tropa brasileira ficou por lá durante 18 meses. Até hoje, a diplomacia americana discute o processo de decisão que levou o presidente Lyndon Johnson a invadir o país. De qualquer forma, a Dominicana fica a dois mil quilômetros das nossas fronteiras.

O Itamaraty tirou a meia sem tirar o sapato em 1982, quando o general argentino Leopoldo Galtieri invadiu as Ilhas Malvinas, ocupada pelos ingleses desde 1833. O general achava que os Estados Unidos ficariam neutros e a primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher absorveria o golpe. Não aconteceu uma coisa nem a outra. Se o Brasil apoiasse Galtieri, seria sócio de uma aventura. Se apoiasse a Inglaterra, alimentaria um ressentimento que duraria gerações. Ficamos no fio da navalha, apoiando o direito argentino à posse da ilha e dissociando-nos da invasão. Lembro-me de que o general Figueiredo foi a Washington e disse ao presidente Ronald Reagan que o Brasil não admitiria um ataque ao continente argentino. Ele não ocorreu, até porque não foi necessário.

Um ano depois do caso das Malvinas, pousou em Brasília um avião americano com o diretor da CIA, William Casey. Ele trazia um recado para Figueiredo: os Estados Unidos planejavam uma invasão ao Suriname e queriam nosso apoio, inclusive com tropas. O governo local era esquerdista, tinha ajuda cubana e perseguia a oposição. Conseguimos dissuadi-lo, dizendo-lhe que deixassem o Suriname por nossa conta. Figueiredo fez saber a Reagan que a condição de país limítrofe determinava que quaisquer efeitos negativos repercutiriam em primeiro lugar sobre nossos próprios interesses.

Nunca contei essa história, mas ela foi revelada no diário de Reagan. Outro dia reclamei com ele da indiscrição. Como ensinou o Barão do Rio Branco, diplomata não sai por aí cantando vitórias.

Perdoe-me a impertinência, mas o último presidente que pensou em mover tropas na nossa fronteira norte, para a Guiana Inglesa, foi Jânio Quadros.

Com meu profundo respeito, Ramiro Saraiva Guerreiro.


Rubens Barbosa: Prioridades da diplomacia nos primeiros cem dias

Repetindo promessas de campanha, medidas de política externa não surgem como surpresa

De acordo com o texto que teria sido apresentado em reunião ministerial, as propostas feitas pelo ministro Ernesto Araújo para os primeiros cem dias do governo Bolsonaro foram:

1) Visita do presidente Bolsonaro aos EUA e lançamento das bases de Acordo de Parceria Brasil-EUA ou instrumento similar, que incluirá o lançamento de um acordo comercial, bem como entendimentos em segurança, tecnologia e defesa;

2) visita do presidente Bolsonaro a Israel, com a criação de parcerias em segurança, tecnologia e defesa;

3) início do processo e revisão do Mercosul para aperfeiçoamento de instrumentos favoráveis ao setor produtivo, redução tarifária e dinamização da agenda externa;

4) retorno ao modelo de passaporte com o Brasão da República;

5) implementar a isenção unilateral de vistos para cidadãos norte-americanos e canadenses;

6) realização de auditorias nas embaixadas brasileiras que possam ter sido instrumentos de desvios durante os governos do PT.

Repetindo promessas de campanha e declarações depois das eleições, as medidas não surgem como uma surpresa. São prioridades genéricas que precisam ser trabalhadas para que se transformem em diretrizes para a ação diplomática.

A aproximação com os EUA pode ser um elemento muito positivo para o Brasil, caso siga uma agenda clara de defesa de nossos interesses. Espera-se que na viagem presidencial os temas do ingresso do Brasil na OCDE, o Acordo de Salvaguarda Tecnológica, que permitirá a utilização comercial do Centro de Lançamentos de Satélites de Alcântara, e o de bitributação sejam tratados positivamente e aprovados pelo governo de Washington. Alinhamento automático, base militar americana no Brasil, associação à Otan não são de nosso interesse.

Quanto às bases de acordo comercial bilateral, ainda não está clara qual a diretriz do governo brasileiro: flexibilizar as regras do Mercosul para permitir uma negociação bilateral? Os EUA certamente proporão que eventual negociação terá como modelo o acordo com o México e o Canadá. Estará o Brasil preparado para aceitar as condições impostas a esses países, não só quanto ao acesso ao mercado agrícola, mas também às regras (propriedade intelectual, investimento)?

Com relação à visita a Israel, o principal objetivo é ampliar a cooperação também em tecnologia, segurança e defesa. Não há uma diretriz em relação à transferência da embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém, anunciada como definitiva pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, durante a posse do presidente Bolsonaro. Caso efetivada, apesar das manifestações de cautela de altos assessores presidenciais (militares), e de preocupação da Câmara de Comércio Brasil-Países Árabes e da própria Liga Árabe, será consumada uma das uma das maiores quebras na atuação da política externa brasileira. Desde 1947, quando nas Nações Unidas foi aprovada resolução criando o Estado de Israel e o Estado de Palestina, o Brasil defende a política de dois Estados para resolver o conflito na região, que ficaria superada.

O início do processo de revisão do Mercosul não poderá mais ser adiado. Criado em março de 1991, o grupo regional nunca sofreu um exame profundo da parte de seus membros. Como se farão o enxugamento e a flexibilização do bloco? Uma das formas para proceder a esse exercício seria a convocação de conferência diplomática, prevista no Protocolo de Ouro Preto, que criou a união aduaneira. Nessa oportunidade poderia ser discutida a ideia brasileira e argentina de modificar as regras vigentes de maneira a permitir negociações bilaterais para os novos acordos e reduzir os “penduricalhos” do Mercosul.

Três itens incluídos nas prioridades dos cem primeiros dias certamente despertarão controvérsia em maior ou menos grau. A abolição de vistos para cidadãos norte-americanos e canadenses passaria a ser permanente e seria uma decisão unilateral, sem reciprocidade, o que modificará a política seguida até aqui pelo Itamaraty, mas poderá facilitar o turismo. A realização de auditorias nas embaixadas brasileiras foi antecipada pelo ministro Ernesto Araújo ao declarar que iria examinar em detalhe a política ativa e altiva do governo Lula para apurar as falcatruas do ministro Celso Amorim. Certamente estarão sob escrutínio as embaixadas em Havana, Caracas, Lima, Quito, Bogotá e, na África, em Angola, Moçambique, Nigéria e República do Congo, países aos quais foram concedidos empréstimos do BNDES por influência política. O retorno ao modelo de passaporte do Mercosul, substituindo o Cruzeiro do Sul, será parte da revisão do grupo e terá repercussão entre os países-membros.

A visita do presidente Mauricio Macri ao Brasil na semana passada mostrou convergência de visões quanto a mudanças no Mercosul e à crise na Venezuela. Ficou claro que nas negociações comerciais em curso (com União Europeia, Canadá, Cingapura, Efta) o Mercosul continuará a negociar com uma única voz. Os novos entendimentos, contudo, passariam a ser conduzidos individualmente pelos membros do grupo. Com relação à Venezuela, sob liderança brasileira está em curso uma agressiva escalada retórica, mas não há indicação de “ações concretas” de como Bolsonaro “tudo fará para ajudar o povo venezuelano a voltar a viver em liberdade”.

Por outro lado, não foram ainda anunciadas as diretrizes e prioridades em relação aos organismos multilaterais e regionais. Tampouco se conhece a orientação do governo, entre outras, acerca das negociações comerciais (se permanecem no Itamaraty), da promoção comercial e do Brics, que se reunirá em nível presidencial no Brasil em novembro.

Espera-se que o ministro aplaque as dúvidas do vice presidente Hamilton Mourão, que teria sugerido: “Terá Ernesto condições de tocar e dizer o que é a política externa?”.

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice)


O Globo: Mourão coloca em dúvida capacidade do chanceler de conduzir política externa

Vice-presidente afirmou à revista 'Época' que Ernesto Araújo 'não falou o que pretende fazer'

Juliana Dal Piva e Guilherme Evelin, de O Globo

O vice-presidente Hamilton Mourão colocou em dúvida, em entrevista à revista "Época", a capacidade do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, de conduzir a política externa brasileira. De acordo com Mourão, o chanceler "não falou o que pretende fazer".

O vice foi entrevistado para um perfil de Araújo, publicado na última edição da revista. No final da conversa, ele sugeriu uma chamada de capa para a reportagem:

— Acho que uma boa seria: "Terá Ernesto condições de tocar e dizer o que é a política externa do Brasil?". Porque ele não falou o que pretende fazer — disse.

Mourão ironizou o destaque aos Estados Unidos e a Israel dado pelo chanceler nas relações diplomáticas.

— Vai todo mundo virar israelense desde criancinha? Vai todo mundo virar fã dos americanos de qualquer jeito? — indagou, em tom de troça. — A diplomacia são métodos e objetivos, não um fim. É preciso inserir conceitos claros, não interferir em assuntos de outros países. E ainda não está claro.

O vice-presidente tem se reunido com embaixadores de diversos países, como Argentina, Rússia, Ucrânia, Holanda e França — sem a presença do ministro das Relações Exteriores, como é de praxe.

Ele se disse preocupado com as notícias negativas sobre o Brasil, sobre a confusão na nomeação feita por Araújo para a presidência da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (Apex) — primeira demissão do governo Bolsonaro — e com o recuo de falar em construir uma base militar no Brasil — coisa que é contra.


Cláudio de Oliveira: Esquerda democrática italiana contra Cesare Battisti

Como se sabe, Cesare Battisti foi membro do Proletários Armados pelo Comunismo, um grupo de extrema esquerda que praticou terrorismo na Itália na década de 1970.

Nessa época, o país sofreu com o terrorismo de extrema esquerda, sendo o caso mais famoso o sequestro e assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro, do Partido Democrata Cristão, pelas Brigadas Vermelhas, em 1978.

Tais grupos atentavam contra a Constituição antifascista da Itália, duramente conquistada pelos partidos da resistência à ditadura de Benito Mussolini. Promulgada em 1948, a Constituição democrática da Itália foi obra do PDC, de Alcide De Gasperi; do Partido Comunista, de Palmiro Togliatti; e do Partido Socialista, de Pietro Nenni.

LEIA também
https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1041
https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1340

PDC, PCI e PSI se separaram com a guerra fria, mas se juntaram em uníssono para defender a Constituição antifascista e combater o terrorismo de extrema esquerda nos anos 1970.

O primeiro-ministro Aldo Moro havia respondido positivamente à proposta do líder comunista Enrico Berlinguer de um governo conjunto do PDC, PCI e PSI para modernizar a Itália. A proposta tinha a oposição dos setores mais conservadores dos democratas-cristãos.

Uma comissão do parlamento chegou à hipótese de que os grupos de extrema esquerda estivessem infiltrados por militantes de extrema direita com o propósito de tumultuar o ambiente político e evitar um governo com a participação do PCI, o segundo maior partido da Itália.

Com a morte de Moro, assumiu a liderança do PDC e o cargo de primeiro-ministro Giulio Andreotti, da ala contrária ao diálogo com o PCI. Em 1993, Andreotti foi acusado de ligação com a Máfia e de receber propina pela Operação Mãos Limpas. O eleitorado puniu severamente o PDC, que desapareceu da cena política.

Os setores progressistas do PDC, liderado por Romano Prodi, mais remanescentes do PSI se juntaram ao PCI para formar o atual Partido Democrático da Itália, situado na centro-esquerda e cujos líderes cobraram de Lula, em 2009, a extradição do terrorista Cesare Battisti.

Segundo Massimo D'Alema, ex-membro do PCI, então deputado pelo PD e ex-primeiro-ministro, Cesare Battisti ''é uma pessoa condenada em nosso país e é justo que cumpra a pena em nosso país. É normal. Ele está condenado por graves crimes, não por razões políticas'' [1].

A esquerda italiana, de longa tradição democrática, nunca tergiversou quando o Estado de Direito democrático estava em jogo. Battisti deve ser extraditado e cumprir pena na Itália, conforme a Constituição antifascista italiana.

Nota

[1] Lula diz que acatará decisão sobre Battisti

https://www.folhadelondrina.com.br/politica/lula-diz-que-acatara-decisao-sobre-battisti-699937.html


Eliane Brum: O chanceler quer apagar a história do Brasil

Como o ideólogo do governo Bolsonaro usa José de Alencar para pregar a assimilação dos indígenas e justificar a abertura de suas terras para o agronegócio

“Vamos ler menos The New York Times, e mais José de Alencar e Gonçalves Dias”, afirmou o chanceler do bolsonarismo, Ernesto Araújo, em seu discurso de posse. Por quê?

Prestar atenção ao que diz o chanceler Ernesto Araújo tem sem mostrado tarefa penosa, mas fundamental para compreender como a ideologia do Governo Bolsonaro está sendo construída. O diplomata foi indicado por Olavo de Carvalho, considerado o “guru da nova direita” brasileira, desde sua casa nos Estados Unidos. Claramente, Araújo tem a pretensão de dar a base intelectual ao que o bolsonarismo chama de “nova era”. Se integrantes mais preparados do governo concordam, há dúvidas robustas para suspeitar que não. Araújo, porém, segue firme em seu propósito, publicando artigos onde consegue espaço.

discurso de posse como novo ministro de Relações Exteriores é uma falsificação da história, com o objetivo de justificar o presente e o futuro próximo. Para fazer parecer que a estrutura parava em pé, o chanceler usou seu grego, seu latim e até mesmo seu tupi, abusou do recurso do name-dropping (ótima expressão em língua inglesa para aqueles que desfiam nomes e citações para impressionar o interlocutor), dos clássicos à cultura pop. Todos já bem mortos, para que nenhum deles pudesse contestar a citação. Nenhuma de suas escolhas é um acaso. Vale a pena se deter em cada uma delas porque, como já escrevi neste espaço, os malucos agora sapateiam no palco — e sapateiam com poder de destruição.

Ernesto Araújo é um personagem ainda obscuro para o Brasil, embora seja um diplomata de carreira do Itamaraty. Em seu discurso, ele dispôs de figuras e acontecimentos históricos, assim como artistas contemporâneos, como se eles estivessem misturados como bonecos de plástico numa prateleira, para serem usados ao gosto do freguês — e para o propósito do freguês. Arrancados de seu contexto e esvaziados de conteúdo, eles foram manipulados pelo chanceler para produzir a sua falsificação. Cada frase tem ali um objetivo.

Me detenho apenas em uma, que chamou particular atenção e foi reproduzida várias vezes na imprensa e nas redes sociais, com a qual abro esse artigo: “Vamos ler menos The New York Times, e mais José de Alencar e Gonçalves Dias”. Por quê?

Não é preciso ter inteligência acima da média para perceber que não faz nenhum sentido contrapor um dos mais importantes jornais do mundo, com edição diária, e dois escritores do romantismo brasileiro do século 19. O objetivo é exacerbar um nacionalismo que se ajoelha diante de Donald Trump, mas despreza a independência do New York Times; idolatra o WhatsApp e o Facebook de Mark Zuckerberg, mas achincalha a imprensa brasileira.

O chanceler quer menos denúncias bem apuradas e checadas contra Bolsonaro e contra os abusos do seu governo, documentados pelo Times e pelos principais jornais do mundo onde a imprensa é livre. Menos imprensa, convertida declaradamente em “inimiga pública”, por Bolsonaro e seus papagaios, porque querem falar diretamente com seus seguidores sem serem perturbados. Do contrário, teriam que responder perguntas difíceis e explicar depósitos de Queiroz na conta da primeira-dama.

Para não terem que prestar contas de seu governo ao público, é preciso destruir a credibilidade da imprensa. Sim, porque um tuíte ou um “live” no Facebook não é prestar contas, é apenas dizer o que quer, como faz a maioria, sem correr o risco de ser contestado com fatos e provas. O que os bolsonaristas querem fazer parecer democracia é apenas autoritarismo e já foi usado antes por governos totalitários, mas sem a enorme facilidade das redes sociais da internet.

O bolsonarismo quer inventar seus próprios fatos

A imprensa só faz sentido se fiscalizar o governo, qualquer governo. A frase do senador americano Daniel Patrick Moynihan (1927-2003) já se tornou clichê, mas ela é precisa: “Você tem direito a suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos”. A luta dos bolsonaristas é para inventar seus próprios fatos, de modo que a realidade não importe nem atrapalhe seu projeto de poder.

Mas por que José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Dias (1823-1864), dois escritores do Brasil do século 19, que escreveram no Brasil imperial, durante o reinado de Dom Pedro II?

Essa escolha é capciosa, como todas as outras. E se refere a uma suposta identidade nacional. Alencar e Dias são expoentes do romantismo na literatura brasileira — um na prosa, o outro na poesia. Eles viveram e escreveram sua obra num momento muito particular do Brasil. O país se tornara independente de Portugal, o que significava que deixava de ser colônia dos portugueses.

Na visão dos homens daquela época (e eram majoritariamente homens, porque as mulheres, exceto raríssimas exceções, não tinham voz pública), era necessário criar uma identidade nacional. Para isso, seria preciso marcar essa identidade no campo da cultura. O Brasil deveria ter, ao mesmo tempo, uma literatura que o colocasse no mesmo patamar da Europa, que vivia a fase do romantismo, e ser ele próprio um novo que emergia após os séculos de domínio português. Gonçalves Dias e José de Alencar entregaram-se a essa tarefa. Não foram os únicos, mas tornaram-se referências do romantismo que inaugurava o que se chamou de literatura brasileira.

Para o ideólogo do governo, Bolsonaro seria uma espécie de Dom Pedro I declarando a segunda independência do Brasil

O chanceler de Bolsonaro exalta um momento da história do Brasil em que as elites se empenham em criar uma identidade nacional depois de o país ter sido colônia de Portugal. Araújo parece acreditar — ou quer que acreditemos — que o governo Bolsonaro está promovendo “o renascimento político e espiritual” do Brasil, como ele escreveu em um artigo. Ou, como afirmou em seu discurso de posse: “Reconquistar o Brasil e devolver o Brasil aos brasileiros”. Araújo quer que acreditemos que tudo o que aconteceu entre a independência do Brasil, a de 1822 — e a nova independência do Brasil, a que ele acredita estar sendo liderada pelo seu chefe, em 2019 — não existiu.

O ideólogo do governo parece sugerir que esse hiato de dois séculos foi um tempo de perdição do Brasil de si mesmo. “O presidente Bolsonaro disse que nós estamos vivendo o momento de uma nova Independência. É isso que os brasileiros profundamente sentimos”, afirma Araújo, que acredita ainda que suas cordas vocais libertam a voz do povo. Bolsonaro seria então uma versão contemporânea de Dom Pedro I, com sua espada em riste para libertar o Brasil. Não mais diante do riacho Ipiranga, agora no espelho d’água do Planalto.

O chanceler acessa esse episódio em dois momentos de sua vida, como ele mesmo relata no discurso de posse: “Eu me lembro da emoção que eu senti pela primeira vez, quando era Terceiro Secretário (do Itamaraty), que subi as escadas para este terceiro andar, e vi, logo ao subir a escada, o quadro da Coroação de Dom Pedro 1º e o quadro do Grito do Ipiranga. Imediatamente, eu, que tinha 22 anos, me lembrei de quando tinha 5 anos e assisti maravilhado no cinema ao filme ‘Independência ou Morte’, com Tarcísio Meira e Glória Menezes. E pensei: então tudo isso existe, né? Tudo isso existe... e tudo isso é aqui!”.

Pois é. Em outro ponto, com a sutileza de dar alguns parágrafos de intervalo, o admirador de Dom Pedro I e de Tarcísio Meira usa um tuíte para comparar Bolsonaro à rainha Elizabeth II, da Inglaterra: “Vou dar um exemplo do que temos para ouvir. É o comentário de uma pessoa que segue a minha conta do Twitter, que diz o seguinte... li isso ontem: ‘Antes eu não entendia o amor do povo da Inglaterra pela rainha. Agora entendo. Quando temos alguém que ama seu país e seu povo e os defende, ganha amor e respeito. Não conhecíamos isso antes de Bolsonaro’”.

Em nenhum momento os indígenas são citados nominalmente no discurso de posse do ideólogo do governo de extrema direita, o que em si já diz bastante coisa. Mas uma das línguas indígenas, o tupi, se faz presente. De que modo, porém? Na Ave Maria em tupi do padre José de Anchieta, jesuíta canonizado santo pela Igreja Católica. A língua do indígena usada para catequizá-lo numa religião alienígena às suas crenças. A escolha não é um detalhe. Sem a experiência da cultura, que confere carne à língua e conteúdo às palavras, a língua nada é. Apenas casca, como casca era o indígena do romantismo do século 19.

O bolsochanceler exalta José de Alencar, o escritor que fez do índio “um cavaleiro português no corpo de um selvagem”

O escritor José de Alencar é o principal expoente da prosa do que se chama “indianismo” na literatura brasileira. Em três livros — O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874) —, ele busca construir uma identidade nacional fiel aos princípios do romantismo. Como o romantismo europeu é marcado por uma ideia heroica do cavaleiro medieval, Alencar torna o indígena um cavaleiro medieval ambientado na exuberante paisagem tropical do Brasil.

O indígena, habitante nativo que vivia na terra antes do domínio europeu, seria o herói genuinamente brasileiro da nação que se declara independente da metrópole. Mas com todas as qualidades atribuídas à cavalaria, na Idade Média, transplantadas para seu corpo e sua alma. A coragem, a lealdade, a generosidade, a partir de um ponto de vista que servia à manutenção do sistema feudal, e o amor cortês. Para escritores da época de José de Alencar e de Gonçalves Dias, que viviam o período pós-independência do Brasil, escrever era um ato de patriotismo. Eles teriam de dizer com sua obra o que é “ser brasileiro”. É também essa referência que o ideólogo do governo procura resgatar e enaltecer.

Os negros, corpos escravizados que moviam a economia do Brasil e serviam às suas elites, não estavam presentes como formadores de uma identidade nacional nestes romances de fundação. Se os escritores buscavam uma identidade nacional, ela era forjada dentro da matriz europeia. Como seria possível escrever em língua portuguesa, a do colonizador, sem ser colonizado na linguagem, foi uma questão crucial para a qual Alencar e outros também tentaram dar uma resposta no século 19. Mas este é um tema longo para outra conversa.

Em artigo no Nexo, Vinícius Rodrigues Vieira, professor-visitante do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), afirma: “Araújo — assim como as alas mais conservadoras do governo — ambiciona o retorno a uma identidade nacional pré-freyriana, ou seja, antes das ideias que ficaram associadas a Gilberto Freyre. Em suma, o ideal de sincretismo encarnado na malfadada expressão ‘democracia racial’. Não à toa o ministro citou em seu discurso de posse o romancista José de Alencar, cujas obras claramente buscavam no indígena harmonizado com o colonizador as raízes de nossa nacionalidade, sem considerar o legado africano”.

“Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um selvagem!” A frase é de D. Antônio de Mariz, fidalgo português e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro na obra de José de Alencar. Assim o personagem é descrito em O Guarani, primeiro romance indianista do escritor, publicado na época como folhetim, com grande sucesso: “Homem de valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo. Em recompensa do seu merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre o sertão, a qual depois de haver explorado, deixou por muito tempo devoluta”.

O “cavaleiro português no corpo de um selvagem” é Peri, um indígena do povo Goytacá, que desde que salvou da morte Cecília, a filha do fidalgo, um “anjo louro de olhos azuis”, é adotado pelo clã dos Mariz. Peri passa a viver numa cabana perto da casa da família, uma espécie de castelo onde o escritor reproduz as relações de vassalagem do feudalismo que o Brasil nunca teve, mas parte da Europa sim.

Peri faz todas as vontades da moça, a quem serve como um cão de estimação. Diz Isabel, outra personagem: “Pedirás a meu tio para caçar-te outro que farás domesticar, e ficará mais manso do que o teu Peri”.

Peri era manso, domesticado. Mas valente. Quando D. Diogo, filho do fidalgo, mata por acidente uma Aymoré, este povo indígena tenta vingar-se matando Ceci, mas é impedido por Peri. A tensão cresce entre a família portuguesa e o povo indígena. Peri arma então a estratégia de envenenar-se para combater os Aymoré. Como essa etnia mantém o ritual de canibalismo, devorando os valentes vencidos, ele será comido depois de morto e assim exterminará também o inimigo.

A pedido de Ceci, Peri suspende seu sacrifício heroico. Ao final do romance, Dom Antônio entrega Ceci a Peri para que ela seja salva. Mas só entrega a filha se Peri converter-se ao cristianismo: “O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, que impôs-lhe as mãos sobre a cabeça. — Sê cristão! Dou-te o meu nome. Peri beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe apresentou, e ergueu-se altivo e sobranceiro, pronto a afrontar todos os perigos para salvar sua senhora”.

O “bom selvagem” é aquele que pode ser assimilado pela “civilização”

Peri e Ceci fogem então numa canoa e são surpreendidos por uma tempestade. Depois, os dois somem no horizonte. José de Alencar termina sua obra com a ideia de que o casal formará a identidade do novo Brasil. “Horizonte”, a última palavra do romance, é ao mesmo tempo futuro e o país que se descobre.

Este é o indígena que aparece no discurso do chanceler, ao citar José de Alencar. Uma identidade nacional forjada por um “cavaleiro português no corpo de um selvagem”, que luta contra um povo indígena diferente do seu para salvar sua adorada senhora branca, filha do colonizador, e que se converte ao cristianismopara fundar com ela o futuro nos trópicos. Peri, o indígena, é o “bom selvagem” que oferta seu corpo para ser assimilado pela civilização.

Ao criar esse herói romântico no século 19, supostamente indígena, Alencar sofreu críticas por desprezar a realidade. Mas o escritor deve ser compreendido no seu contexto. Que Araújo o faça no século 21, usando José de Alencar e desprezando todos os debates culturais daquela e de outras épocas, poderia ser apenas um ataque contra a inteligência. Mas o chanceler do bolsonarismo também precisa ser entendido no contexto do governo que ele tenta justificar não apenas como um governo, mas como uma “nova era”.

O bolsonarismo é um projeto de poder em que até mesmo Bolsonaro pode ser tornar um mero adereço – ou nem isso

O bolsonarismo é um projeto de poder com diferentes forças internas e possivelmente antagônicas, em alguns temas, como o futuro próximo deve mostrar. Como todo projeto de poder, está em disputa. Em algum momento, talvez o próprio Bolsonaro, que dá nome à ideologia em construção, seja apenas um adereço — ou nem mesmo isso.

Há um tema, porém, em que os diversos grupos que formam o capitalismo messiânico que governa o país parecem coincidir, guardando uma eventual ressalva por parte de uma parcela dos militares, cuja posição ainda não está totalmente clara. Este tema é o futuro dos indígenas. Ou, mais especificamente, o futuro das terras indígenas.

A escolha deste indígena com atributos morais europeus, representado pela alusão a José de Alencar, não é um acaso. Este indígena, que na obra do escritor manteve apenas as características do corpo e a cor, vai ser branqueado pela matriz europeia da loira Ceci dos olhos azuis para fundar o Brasil pós-independência. É amor cortês, mas também é assimilação brutal. Sobre Peri, a quem não conhecemos porque Alencar também não conhecia, nada sabemos.

Vale a pena lembrar a declaração do hoje vice-presidente, Hamilton Mourão. Ao justificar ter dito durante a campanha que o país herdou a “indolência” dos indígenas e a “malandragem” dos negros, o general resgatou sua mestiçagem e a colocou a serviço do apagamento do racismo estrutural do Brasil: “Em nenhum momento eu quis estigmatizar qualquer um dos grupos, até porque nós somos um amálgama de raças. É só olharem para mim. Eu sou filho de amazonense, minha vó é cabocla”.

O que o bolsonarismo anuncia entender por “mestiçagem” é assimilação. É o que Bolsonaro afirmou de várias formas na campanha, com a brutalidade habitual: “O índio é ser humano como nós”. Quem será que pensava que o índio não era humano?

É importante seguir perguntando. O que é, neste contexto, “ser humano como nós”, Bolso? O populista explica que o índio “quer ter o direito de 'empreender' e 'evoluir', o índio quer poder vender e arrendar a sua terra. Mas avisa: “Os índios não querem ser latifundiários”. No entender do novo presidente, ser humano latifundiário o índio não quer ser.

Antes do bolsonarismo, a tática da direita era dizer que os índios não eram mais índios. Era duvidar da “autenticidade”. Como se um indígena usar celular o tornasse menos indígena. Ao deixarem de ser considerados indígenas, os diferentes povos perderiam o direito à terra. Essa tática ainda persiste. Mas a nova direita representada por Bolsonaro é mais esperta. Ela não nega o indígena, e sim afirma uma suposta igualdade do indígena ao branco. Não para que os indígenas mantenham seus direitos constitucionais, mas para que os percam.

Mais tarde, logo após a eleição, Bolsonaro ainda afirmaria: “E por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas como se fossem animais em zoológico? O índio é um ser humano igualzinho a nós e quer o que nós queremos, e não pode se usar a situação do índio para demarcar essas enormidades de terras que, no meu entender, poderão ser sim, de acordo com a própria ONU, novos países no futuro”. Só para constar: a ONU nunca disse que as terras indígenas serão países do futuro.

O bolsonarismo tenta transformar terra indígena em mercadoria para exploração de grupos privados

O que o discurso do “ser humano como nós” encobre? Pela Constituição de 1988, as terras dos indígenas são de domínio da União. Aos indígenas cabe o usufruto exclusivo de suas terras ancestrais, mas elas seguem sendo públicas. Uma das principais missões de Bolsonaro é justamente abrir essas terras públicas para exploração e lucros privados.

Uma parcela significativa das terras indígenas está na floresta amazônica. Fazem limite com grandes plantações de soja e criação de boi. Têm sido pressionadas — e invadidas — para o cumprimento do ciclo: desmatamento da floresta para comércio ilegal de madeira, colocação de cabeças de boi para garantir a posse da terra, venda da terra para plantação de soja. Em algum momento do processo, legalização do “grilo” pelo governo do momento, com anistia aos ladrões de terras públicas — ou aos que compram as terras públicas roubadas pelos ladrões.

Ao tornar o indígena um ser humano que quer converter a terra em mercadoria, o discurso ideológico tem como objetivo fazer com que soja e boi possam avançar sobre a floresta hoje protegida. A quem isso vai beneficiar? Não a mim e a você. Mas sim aos grandes criadores de gado e aos grandes grupos plantadores de soja para exportação.

A mudança que os bolsonaristas — o que inclui o agronegócio mais atrasado do país — querem na Constituição vai permitir também a mineração. Não por cooperativas de garimpeiros, sempre criminalizados, mas por grandes grupos transnacionais, apresentados como empreendedores. A quem isso vai beneficiar? Não a mim e a você.

Seis em cada dez brasileiros discordam da redução das terras indígenas

É fácil perceber que o melhor para o conjunto dos brasileiros é manter a terra ocupada pelos indígenas como terra pública — e a floresta em pé. Como mostrou pesquisa recente do DataFolha, a maioria já entendeu isso: seis em cada dez brasileiros discordam da redução das terras indígenas.

O objetivo do bolsonarismo com relação às terras quilombolas é o mesmo: abri-las para a exploração por grupos privados. Era essa a ideia por trás das ofensas do então candidato durante a campanha, que chegou a dizer que os quilombolas não serviam “nem para procriar”. Descendentes de escravos rebelados, os quilombolas têm o título das terras ocupadas pelos antepassados, mas seu uso é coletivo.

Quando o indígena não tem nome próprio no discurso do chanceler Ernesto Araújo é este o propósito. Ao aparecer assimilado no nome de José de Alencar, o indígena já não é. Virou “ser humano igualzinho a nós”. E suas terras ancestrais são mercadorias como as “nossas”. O chanceler de Bolsonaro sabe muito bem a quem serve quando tenta forjar uma identidade nacional para um Brasil que afirma ter renascido pelas mãos de seu chefe. Ele não cita os indígenas, mas afirma enfaticamente em seu discurso que trabalhará pelo agronegócio.

A floresta amazônica é estratégica para evitar que o aquecimento global supere os 1,5 graus Celsius nos próximos anos. Isso não é opinião, é pesquisa científica de alguns dos melhores cientistas do mundo, que trabalham há décadas com a crise climática. Para que o aquecimento global não avance, a floresta precisa ficar em pé. Como manter a floresta em pé se o bolsonarismo se comprometeu a abrir as terras indígenas para exploração?

É preciso criar uma ideologia, como faz o bolsonarismo. Nela, o indígena supostamente teria como aspiração maior da sua vida se tornar branco “como nós” e passar a tratar a terra como mercadoria, ansioso por arrendá-la aos grandes grupos exportadores de soja e carne ou às grandes mineradoras transnacionais. É preciso também afirmar que mudança climática é um complô marxista, como o chanceler de Bolsonaro já escreveu, para não encontrar resistência ao entregar a Amazônia em nome do nacionalismo.

O chanceler criou um departamento específico para o agronegócio no Itamaraty e extinguiu o departamento que cuidava do clima e de energias renováveis. A mensagem é clara. O atual presidente do Brasil fez ainda mais. Transferiu a Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, fundadora de uma ONG acusada de incitar ódio contra os indígenas. Os evangélicos, grupo que a ministra representa, têm todo o interesse em ampliar a presença da sua religião entre os povos originários. A eles também interessa que o índio seja “ser humano como nós”, o que neste caso significa ser evangélico neopentecostal.

Bolsonaro entregou o banco de sangue aos vampiros

Bolsonaro, como garoto obediente ao agronegócio mais truculento, aquele que se confunde com agrobanditismo, foi adiante: entregou a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura, comandado pela pecuarista Tereza Cristina, conhecida como “musa do veneno”, pelos serviços prestados como congressista às indústrias transnacionais de agrotóxicos. Como comentou um jornalista estrangeiro: é o mesmo que entregar o comando do banco de sangue aos vampiros.

O problema para o bolsonarismo se chama “realidade”, já que o planeta não vai parar de aquecer por causa das mentiras de Bolsonaro e de seu chanceler. Mas até isso ficar claro para seus seguidores, a destruição já estará consumada e os grupos que compõem o bolsonarismo já terão multiplicado seus lucros. Se os lucros são de poucos, o prejuízo sobrará para todos. Para os mais pobres e os mais frágeis, o sofrimento será maior e chegará primeiro. Já chegou. Basta ler a imprensa séria para descobrir. Ou lembrar quem sofreu mais com a última crise da água em São Paulo.

O ideólogo do governo afirma ser preciso ler menos o New York Times e mais José de Alencar também porque a imprensa internacional tem apontado duramente o perigo que Bolsonaro representa para o planeta. A importância do Brasil no cenário internacional é dada principalmente pela floresta amazônica. E não para exploração de produtos primários como soja, carne e minérios, mas sendo floresta.

Converter a floresta em matéria-prima de exportação é o pior negócio da história, inclusive para a agropecuária

A conversão de floresta em matérias-primas para exportação pode beneficiar a economia a curto prazo. Isso interessa aos ultraliberais do atual governo, como interessou aos governos do PT, que foram um desastre para a Amazônia. Mas é claramente o pior negócio da história para todos. Inclusive para a agricultura, como sabe o setor esclarecido do agronegócio, que, infelizmente, é minoritário no Brasil.

Nem Bolsonaro nem seu chanceler sabem quem são os indígenas, como vivem e o que fazem. Nem acham que precisam saber. Se a mentira que criaram serve a seus interesses imediatos, para que serviria a realidade?

Para os não indígenas que se interessam em conhecer os indígenas, o primeiro fato a compreender é que não existe um indígena, e sim mais de 240 povos com cultura própria. Vale lembrar que a estimativa é de que havia mil povos antes da invasão europeia, no século 16. Hoje, os povos que sobreviveram às sucessivas matanças e às epidemias transmitidas pelos brancos são, ao mesmo tempo, eles mesmos uma enorme riqueza em sua diversidade cultural e também os maiores responsáveis pela proteção da biodiversidade das terras onde vivem.

Alguns ainda conseguem viver sem saber dos brancos, ou sabendo o mínimo possível, e para todos é melhor que continue assim. Outros, cujo contato com os brancos já foi estabelecido, encontram seus caminhos para gerar renda sem destruir o ecossistema. As terras indígenas, comprovadamente, são os maiores obstáculos à derrubada da floresta amazônica. Em 2018, o desmatamento na Amazônia atingiu o índice mais alto da década. Só no período eleitoral, o desmatamento cresceu quase 50%, comparado ao ano anterior, tão confiantes os desmatadores se sentiram com a certeza da vitória de Bolsonaro.

Em editorial desta semana, o Instituto Socioambiental, que faz a publicação mais completa sobre Povos Indígenas no Brasil, atualizada regularmente e disponível na internet, conta ao governo o que o governo não está interessado em saber. O mel dos índios do Xingu foi o primeiro produto indígena de origem animal com certificação orgânica e registro no Sistema de Inspeção Federal. Já está no mercado do sudeste do país. O óleo de pequi do povo Kisêdjê representou o Brasil numa feira do movimento Slow Food em Turim, na Itália. O cogumelo Yanomami é reconhecido internacionalmente no mundo da gastronomia. A pimenta Baniwa tem 78 variedades que são utilizadas na fabricação de chocolate, molhos e cervejas no Brasil e no exterior. Os indígenas Wai Wai, Xikrin, Kuruaya e Xipaya comercializam safras com toneladas de castanha para uma fabricante de pães e produtos derivados. A borracha dos Xipaya é utilizada por outra grande indústria brasileira. Os Kayapó e Panará vendem o cumaru para empresas internacionais de cosméticos produzidos artesanalmente.

Quem não existe não pode reivindicar terra na floresta tão cobiçada pelo setor atrasado do agronegócio

O que atrapalha a economia da floresta não é a proteção da floresta. Pelo contrário. O que atrapalha a economia da floresta é a invasão dos grileiros para explorar a madeira, botar soja e pasto para boi. É a anistia destes grileiros por governos como o de Lula e o de Michel Temer, que converteram criminosos violadores de terras públicas em representantes do “agronegócio” e membros do “setor produtivo nacional”. É a demora na demarcação dos territórios ancestrais, hoje paralisada por Bolsonaro. É a instabilidade e a total falta de apoio governamental, apesar de os produtos comercializados pelos indígenas pagarem todos os impostos. É a ignorância dos governos e de seus economistas. É um chanceler que quer reinventar o índio de José de Alencar para inventar um índio que não existe. Quem não existe não pode reivindicar a demarcação de suas terras na floresta tão cobiçada pelo setor atrasado do agronegócio.

O discurso de posse do chanceler é a tentativa de lançar as bases ideológicas do que está sendo chamado de bolsonarismo, aquelas que pretendem justificar tanto o armamento da população quanto a exploração predatória das terras indígenas e quilombolas. Seria importante que os professores das universidades, instituições tão atacadas por Bolsonaro e seus seguidores, usassem seu conhecimento para dissecar esse discurso naquilo que diz e naquilo que omite. E o fizessem na internet, onde todos têm acesso.

Foi na internet que os malucos passaram a dançar e um deles se tornou presidente. O debate tem que ser travado (principalmente) ali, como já perceberam uns poucos intelectuais. Da tarefa de resgatar a importância dos fatos, a prevalência da realidade e a honestidade do debate ninguém tem o direito de se omitir. Em especial quem é pago com recursos públicos.

Termino com outro trecho do discurso do ideólogo do bolsonarismo: “É só o amor que explica o Brasil. O amor, o amor e a coragem que do amor decorre, conduziram os nossos ancestrais a formarem esta nação imensa e complexa. Nós passamos anos na escola, quase todos nós, eu acho, escutando que foi a ganância ou o anseio de riqueza, ou pior ainda, o acaso, que formou o Brasil, mas não foi. Foram o amor, a coragem e a fé que trouxeram até aqui, através do oceano, através das florestas, pessoas que nos fundaram”.

O projeto de poder em curso quer inventar um passado apagando o passado que efetivamente existiu

Ernesto Araújo torna explícito que o “renascimento” proposto pelo bolsonarismo é criminoso. Seu projeto de poder não busca apenas moldar o presente a partir de premissas falsas como “ideologia de gênero” e “climatismo”, mas sim inventar um passado apagando o passado que efetivamente existiu. Antes será preciso explicar como “o amor” matou milhões de indígenas, extinguiu povos inteiros, e colocou à força no Brasil quase 5 milhões de escravos africanos, durante mais de três séculos. Seus descendentes ainda hoje vivem pior e morrem mais cedo.

José de Alencar sonhava com construir uma identidade nacional no século 19, em um país que acabara de se tornar independente da metrópole e precisava de um rosto para se legitimar como nação. Em seu discurso inaugural, Ernesto Araújo violenta dois séculos de debates culturais e ofende até mesmo a memória de Alencar. O chanceler quer, no início do século 21, apagar todo o passado. Como se o Brasil fosse uma página em branco que o bolsonarismo vai passar a escrever a partir do ponto zero da independência.

Nenhuma novidade. A “nova era” do bolsonarismo apenas copia os piores exemplos dos totalitarismos do século 20, que também quiseram forjar seu próprio mito e sua própria mitologia para justificar as atrocidades que cometeriam logo adiante. Como os dias mostraram, os cadáveres daqueles que destruíram teimam em viver como memória. Não esqueceremos. Nem deixaremos esquecer.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da LendaA Vida Que Ninguém vêO Olho da RuaA Menina QuebradaMeus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum