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Terrence McCoy: Bolsonaro insultou grande parte do mundo. Agora, o Brasil precisa de ajuda

RIO DE JANEIRO – Dois países em desenvolvimento, enormes em população e em extensão geográfica, são vítimas da devastação do coronavírus. Os hospitais esgotaram seus suprimentos. Pacientes são mandados de volta. Em todo lugar, uma nova variante. Precisa-se desesperadamente de ajuda externa.

No caso da Índia, derrubada por taxas recordes de infecção, o mundo se apressou a responder. Esta semana, a Casa Branca divulgou a entrega de mais de US$ 100 milhões em equipamentos e material hospitalar. Cingapura Tailândia enviaram oxigênio. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, anunciou que o Reino Unido fará “tudo o que puder”.

Mas no caso do Brasil, que enterrou 140 mil vítimas nos dois últimos meses, a resposta internacional tem sido mais moderada. Em março, o presidente Jair Bolsonaro solicitou a ajuda das organizações internacionais. Um grupo de governadores pediu à ONU “ajuda humanitária”. Há duas semanas, o embaixador brasileiro na União Europeia implorou por ajuda. “É uma corrida contra o tempo para salvar muitas vidas no Brasil”.

Mas a resposta tem sido em grande parte ou falta de interesse, ou críticas aos erros do Brasil – e muito pouca ação, até o momento.

“O que está acontecendo no Brasil é uma tragédia que poderia ter sido evitada,” afirmou um membro do Parlamento Europeu ao embaixador brasileiro em uma audiência, este mês. “Mas esta tragédia foi baseada em decisões políticas erradas”.

“Em lugar de declarar guerra ao coronavíurs”, afirmou outro, “Bolsonaro declarou guerra à ciência, à medicina, ao senso comum, à vida”.

Desde terça-feira, a presidente do Parlamento Europeu, Ursula von der Leyen, tuitou três vezes sobre a ajuda à Índia. No entanto, pouco ela falou sobre o Brasil.

O contraste entre o tratamento dispensado pela comunidade internacional ao enfrentamento da crise na Índia e no Brasil mostra que as crescentes batalhas diplomáticas de Brasília complicaram a resposta do país contra o coronavírus. A imagem internacional que o Brasil passou décadas cultivando – focalizada no respeito do meio ambiente, amistosa, multilateral – foi solapada por um presidente cuja administração insultou grande parte do mundo no momento em que mais necessitava de ajuda.

Bolsonaro, um nacionalista de extrema direita, que chegou ao poder zombando do globalismo, acusou países europeu inclinados ao respeito do meio ambiente de colonialismo e desmatamento ilegal. Amplificou uma mensagem nas redes sociais usando termos depreciativos contra a aparência da esposa do presidente francês Emmanuel Macron. Reiterou as afirmações infundadas do presidente Donald Trump sobre fraude eleitoral, e foi o último líder do G-20 a reconhecer a vitória do presidente Joe Biden. Durante meses, membros do seu governo e apoiadores dispararam ataques racistas contra a China e zombaram de sua vacina. Na terça-feira, seu ministro da Economia afirmou que a China “inventou o vírus”.

Desde o começo da pandemia, o governo federal do Brasil menosprezou a gravidade de um vírus que aleijou este país de 210 milhões de habitantes. Bolsonaro conclamou as pessoas a viverem sua vida normalmente. Muitos lhe deram ouvidos – por causa da pobreza, da política ou do cansaço – o suficiente para comprometer medidas de contenção pouco uniformes. Mais de 400 mil brasileiros já morreram de covid-19, o pior desastre humanitário da história da nação, e o segundo maior do mundo, depois dos Estados Unidos.

Agora, ainda mergulhado no período mais mortal de sua pandemia – outros 3.001 morreram na terça-feira, segundo informações – um país que há muito gabava de ser amigo de quase todo mundo, agora se encontra em grande parte sem amigos.

“O mundo inteiro está tentando ajudar a Índia”, disse Maurício Santoro, cientista político da UERJ. “Mas Bolsonaro tornou-se um problema internacional tão grande que ninguém está disposto a ajudá-lo.”

“Ninguém fala em dar grande ajuda ao Brasil.”

À pergunta da razão pela qual os Estados Unidos não se mexeram para ajudar o Brasil com a urgência demonstrada em relação à Índia, um porta-voz do Departamento de Estado apresentou uma lista de contribuições dos EUA ao Brasil antes da fase pior da pandemia, por um total de mais de US$ 20 milhões em assistência fornecida pelo governo. O porta-voz acrescentou ainda os US$ 75 milhões de “ajuda do setor privado”. A contribuição, grande parte da qual foi enviada durante a administração Trump, incluiu mil ventiladores e 2 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina.

“Continuamos ativamente dispostos a discutir com o governo brasileiro suas necessidades e a encontrar maneiras de continuarmos nossa parceria com o Brasil a fim de ajudar a satisfazer as suas necessidades”, afirmou o porta-voz do Departamento de Estado.

Outros países também contribuíram. A Alemanha enviou ventiladores depois que o sistema médico da cidade de Manaus fracassou. A Organização Mundial da Saúde começou a enviar vacinas por meio de um programa que visa sanar as de imunizantes. A União Europeia e seus países membros concederam cerca de US$ 28 milhões em doações desde o início da pandemia, segundo um porta-voz. Em resposta a uma solicitação do Brasil em março, o bloco contribuiu para o envio de “80 mil unidades de medicamentos criticamente necessários” ao Brasil.

Mas a falta de mais assistência internacional – ou mesmo de uma maior expressão de solidariedade – durante os meses de maior desespero no Brasil, confirmou os temores de que o país venha a pagar um preço internacional pela atitude de confronto de Bolsonaro em matéria de política externa e de zombaria em relação às medidas contra o coronavírus aceitas pelos líderes globais.

“O País perdeu influência em inúmeros níveis”, afirmou Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.

O Brasil nunca irritou o mundo. Vasto, tranquilo e em desenvolvimento, seguiu tradicionalmente o que Stuenkel descreveu como uma política externa “previsível”, baseada na construção de alianças. Ano após ano, procurou estender o seu corpo diplomático, um dos maiores do mundo em desenvolvimento.

Voltar-se contra a sua história foi uma jogada que o Brasil não podia se permitir.

“Os EUA conseguiram tirar um Trump porque não precisam tanto do mundo”, disse Stuenkel. “Eles podem produzir suas próprias vacinas. Mas no Brasil, tal comportamento foi particularmente imprudente porque dependia da comunidade internacional. Nós não temos poder forte. Nós precisamos de multilateralismo“.

Em vez disso, o governo Bolsonaro menosprezou a fé na China e em suas vacinas ao mesmo tempo em que o Brasil dependia do país para obter material para as vacinas. Em abril passado, o ex-ministro da Educação de Bolsonaro tuitou uma mensagem racista provocando uma violenta censura da China e da Suprema Corte brasileira. O filho do presidente, membro do Congresso brasileiro, culpou a China pela pandemia, depois a acusou de usar o sistema 5G para espionagem.

O governo chinês advertiu que haveria “consequências negativas” se tal retórica continuasse. Em janeiro, o embarque de material da China para a produção de vacinas sofreu um considerável atraso, provocando uma série de especulações. Para alguns veículos de informação, os insultos do governo tiveram consequências.

Esta semana, enquanto as autoridades de saúde do país recusavam a vacina Sputnik V da Rússia, alegando falta de transparência, o ministro da Economia, Paulo Guedes, criticou a vacina chinesa que o Brasil tem.

“Os chineses inventaram o vírus”, afirmou, “e sua vacina é menos eficiente do que a americana”.

O embaixador chinês revidou: “Até este momento, a China é a principal fornecedora de vacinas e de material básico ao Brasil”.

Os que estão pagando o custo destas disputas diplomáticas são os brasileiros comuns, afirmou Michael Shifter, presidente do Diálogo Interamericano sediado em Washington.

“O povo brasileiro está sofrendo e morrendo a taxas absurdas,” ele disse. “E esta é a parte mais trágica”. /

 

Tradução de Anna Capovilla

Fonte:

O Estado de S. Paulo/ The Washington Post

https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-insultou-grande-parte-do-mundo-agora-o-brasil-precisa-de-ajuda,70003701761


Dorrit Harazim: Joe, Jair e Modi

Esta semana Joseph Robinette Biden Jr. trocou de roupa e de imagem oficial. Sai de cena “Uncle Joe”, a grife caseira do democrata conciliador, afável e algo distraído por ele cultivada ao longo de 4 décadas de vida pública. Esta semana Joe Biden se apresentou perante o Congresso com nova roupagem — a do arrojado visionário 46º presidente dos Estados Unidos — e detalhou como pretende reformatar já no presente a vida da nação sob seu comando. Também descreveu os planos, metas e projetos com que planeja moldar o futuro das gerações seguintes, sem esquivar-se de alocar cifras concretas a cada item do pacotão. Se aprovada na totalidade pelo Senado, o que é pouco provável, sua agenda de resgate da economia, força de trabalho e seguridade familiar custará astronômicos US$ 4,1 trilhões. Mas, mesmo que venha a ser fatiada, a visão de Biden sobre o papel do Estado ficou clara: o Estado deve funcionar como zelador da infraestrutura humana e do bem-estar social. Soou quase revolucionário e revela quanto o mundo está carente de bom senso.

A surpresa com esse Biden arrojado se justifica, uma vez que, durante a campanha eleitoral, ele se apresentara como mero homem de transição capaz de aquietar o país tarja preta que sobrevivera a Donald Trump. Uma vez sentado no Salão Oval, porém, o mandatário de 78 anos e alguns lapsos já fez saber que não exclui tentar a reeleição dentro de quatro anos. Sai de cena o gestor conciliador, como Biden foi retratado enquanto candidato, para dar lugar a quem pretende ser lembrado como líder mundial transformador. Para tanto, mantém algumas características pétreas — é disciplinado, metódico e prefere ficar abaixo do radar para não escorregar.

Na verdade, por mais que Biden queira envergar simultaneamente o manto do New Deal de Franklin D. Roosevelt, da Grande Sociedade de Lyndon Johnson, importar algumas ideias de Barack Obama e outras mais arretadas de Bernie Sanders, bastará que consiga liderar a urgente arrancada ambiental para fazer um governo de dimensão histórica. Sem isso, o restante de sua visão para uma sociedade menos desigual, de maior justiça racial, econômica e jurídica ficará embaçada. Sem isso, até mesmo a espetacular invertida que imprimiu ao combate e controle da Covid-19 nos EUA, por meio de uma vacinação maciça e ordenada, acabará parecendo natural à medida que a vida por lá retomar alguma normalidade. O vírus pode até ressuscitar em novas ondas, mas nada roubará de Biden a gratidão nacional pela tranquilidade vacinal que injetou no país.

Enquanto isso, Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, terão, para sempre, seus nomes e sobrenomes vinculados ao epíteto Covid-19. Ambos se condenaram à morte política e à desgraça histórica por abandonar suas gentes a morrer sem oxigênio. Abatidos feito moscas, aos montes, milhares, centenas de milhares, mal enterrados ou incinerados em piras humanas, pranteados no medo e em silêncio. Na capital indiana, as autoridades florestais tiveram de emitir uma autorização especial para o abate de árvores, pois a lenha dos crematórios acabara. A ativista política e escritora Arundhati Roy publicou no “Guardian” um testemunho pungente da desolação que tomou conta do país. “No lugar mais baixo da mercadagem pela vida”, escreveu Roy, “você suborna o atendente para poder jogar um derradeiro olhar sobre o embrulho que foi sua pessoa amada, agora estocado na morgue hospitalar”. Há quem venda terras ou propriedades, ou junte as últimas rúpias em busca de atendimento em hospital privado — sem garantia de internação, apenas como depósito.

No último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, quando Europa e Estados Unidos mergulhavam na segunda mortandade da pandemia, o líder indiano não expressou nenhum sentimento, empatia ou compreensão com a aflição de seus pares. Ao contrário, arrostou soberba. “Amigos”, discursou na ocasião, “convém não comparar a Índia a qualquer outra nação… Abrigamos 18% da população mundial e salvamos a Humanidade de um imenso desastre, pois conseguimos conter o vírus”. Como se sabe, o país, hoje, mais se assemelha a um inferno de 1,4 bilhão de almas errantes, largadas à própria sorte.

No cômputo dos crimes cometidos por mandatários contra seus povos, será difícil elencar a quem ficará reservado o opróbio maior da era Covid-19 — se a Jair Bolsonaro ou Narendra Modi. Por serem filhos de culturas tão diversas, também suas respectivas formas de desprezo pelo bem comum, a índole autoritária, a ignorância, as medidas repressivas, o escárnio pelo outro, se manifestam de formas díspares. Porém ambos comungam da mesma incapacidade de compreender o que aprendemos a chamar de civilização, felicidade, progresso, humanidade.

Não defendem a vida, qualquer espécie de vida, de quem não lhes seja de imediata utilidade. A Covid-19 apenas serviu de oportunidade para isso ficar claro.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/joe-jair-e-modi.html


Hélio Schwartsman: Viés de imunidade

Contra os vieses lutam os próprios deuses em vão. Uma das ilusões cognitivas mais danosas e esquisitas de que se tem notícia é a falácia do planejamento, que pode ser definida como a tendência de pessoas e instituições de subestimar o tempo e os recursos necessários para a realização de um projeto.

Ela é danosa porque leva governos, empresas e indivíduos a comprometer-se com orçamentos e cronogramas que não conseguirão cumprir, incorrendo em custos adicionais. E é esquisita porque, mesmo sabendo que o viés existe —qual governo ignora que orçamentos estouram e obras atrasam?—, temos enorme dificuldade para compensá-lo —e é por isso que orçamentos continuam estourando e obras atrasando.

Algo parecido ocorre em relação à Covid-19. Ao menos desde outubro, quando países europeus começaram a apresentar expressivos aumentos de casos, sabíamos que segundas ondas eram possíveis. Aqui no Brasil, mesmo cientes desse perigo, escolhemos ignorá-lo e relaxamos os cuidados assim que os números da primeira onda trouxeram um alívio.

Não somos só nós. Os indianos, mesmo tendo assistido ao que aconteceu na Europa, nos EUA e no Brasil, julgaram-se imunes ao problema e decretaram a volta à normalidade antes da hora. O resultado é a tragédia numa escala que ainda não havíamos visto.

A falácia do planejamento foi identificada pela dupla de psicólogos Daniel Kahneman e Amos Tversky e é uma das modalidades do viés de otimismo que afeta nossa espécie quando julgamos nossas próprias capacidades. Mesmo sabendo que não há razões objetivas para tal, nos comportamos como se operássemos sempre acima da média e não precisássemos nos preocupar com os cenários mais negativos.

O melhor modo de escapar ao excesso de otimismo é incorporar o princípio da mediocridade. Não temos nada de especial. Se em algum lugar do mundo houve terceira onda, temos de estar prontos para ela.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/04/vies-de-imunidade.shtml


Monica de Bolle: Índia, Rússia e China reinventaram a economia com foco na saúde pública para a covid-19

Cabe pensar como os países devem se organizar para não apenas se adequar à nova realidade, mas também para aproveitar as oportunidades que ela oferece

Nesses primeiros dias de fevereiro a Anvisa suspendeu a exigência de que ensaios clínicos de fase III sejam conduzidos no país para qualquer empresa farmacêutica que queira solicitar o uso emergencial de vacinas. Diferentemente do que circulou, a agência não deixou de exigir os ensaios de fase III, que nos fornecem as informações sobre a segurança e a eficácia das vacinas, sendo, portanto, críticos. O que a Anvisa fez foi remover a exigência de que eles sejam feitos em território nacional. A decisão produz efeitos de pronto. Abre espaço para que o Governo negocie a compra de mais doses de outras vacinas, ampliando o leque de imunizantes disponível à população.

O Ministério da Saúde, por exemplo, está em vias de negociar a compra de doses da vacina Sputnik V, produzida pelo Instituto Gamaleya, da Rússia, e da Covaxin, produzida pelo laboratório Bharat Biotech, da Índia. A Sputnik V jáestá sendo usada em cerca de 16 países, embora os ensaios de fase III ainda estejam na fase final de conclusão. A Índia, por sua vez, começou a vacinar sua população com a Covaxin, vacina de vírus inativado (como a Coronavac), mesmo sem os dados dos ensaios clínicos. Caso a Anvisa venha a aprovar o uso dessas vacinas —e espero que os faça tendo disponíveis os dados dos ensaios de fase III—, o Brasil passará a usar vacinas de três países emergentes com os quais compunha os BRICs: China, Índia, Rússia.

Tenho pensado muito na importância desses três países nas campanhas de vacinação dos países emergentes, que não tiveram acesso às vacinas gênicas, as da Pfizer e da Moderna, ou mesmo a outros imunizantes. É fato documentado, inclusive por mim e coautores em artigo recém-publicado pelo Peterson Institute for International Economics, que os países ricos adotaram a estratégia de comprar o máximo de doses que podiam de tais imunizantes, sem dar muita atenção à necessidade de cooperação global. Nesse contexto, países como Rússia, China e Índia perceberam a saúde pública como eixo reconfigurante da economia e viram nessa reconfiguração a oportunidade de serem fornecedores de vacinas para o resto do mundo, em que a escassez vacinal é a realidade.

O movimento dos três países suscita outras inquietações. A pergunta que todos se fazem é: quando a pandemia irá acabar? Penso, no entanto, que a pergunta é equivocada. Não temos resposta para ela, o que ficou ainda mais evidente com o surgimento de variantes virais preocupantes, as chamadas VOCs (Variants of Concern). O SARS-CoV-2, o vírus causador da covid-19, é ardiloso. O mais provável é que tenhamos de lidar com ele por tempo prolongado, atualizando vacinas à medida que ele encontre novas formas de escapar às nossas respostas imunológicas. Desse ponto de vista, podemos passar de uma pandemia aguda para uma pandemia crônica, ou seja, talvez tenhamos de aprender a conviver com o vírus e suas inevitáveis novas formas. Foi assim com outro vírus causador de doença distinta, a aids. Embora muitos não pensem tanto no assunto hoje em dia, a aids ainda é uma pandemia de acordo com as definições da Organização Mundial da Saúde (OMS). A diferença é que passamos de uma pandemia aguda para uma crônica.

Sendo esse o cenário adiante de nós, cabe pensar como as economias devem se organizar para não apenas se adequar à nova realidade, mas também para aproveitar as oportunidades que ela oferece. Porque, sim, há muitas oportunidades nesse cenário, como mostram no presente as ações da Rússia, da China, da Índia.

Como disse, os três países reorganizaram sua economia com centro na saúde pública, e isso faz sentido por motivos diversos: da segurança nacional à proteção social, da ordenação dos gastos públicos ao meio ambiente. No caso do meio ambiente, ter a saúde pública como eixo de políticas públicas significa garantir a existência de uma rede abrangente de saneamento básico, reduzir a poluição do ar, as emissões de carbono, preservar as reservas naturais para, inclusive, evitar o contato com novos vírus zoonóticos, aqueles capazes de pular espécies chegando a nós.

No caso do Brasil, não faltam vantagens comparativas para uma reorganização da economia nesses moldes. Temos um sistema de saúde público bem montado, dispomos de recursos naturais, possuímos alguma capacitação tecnológica. Nossas competências e experiências sanitárias sobram, já tendo sido motivo de orgulho nacional. A reorientação da nossa economia para a saúde pública sob o pano de fundo de uma pandemia crônica possibilitaria o renascimento da nossa indústria farmacêutica, voltada para as necessidades domésticas e para o abastecimento do mercado internacional, como têm feito a Rússia, a Índia, a China.

Novos empregos seriam criados, assim, na indústria e se abririam chances reais de inserção no comércio internacional, nas cadeias de valor ligadas à saúde. Tal inserção, por sua vez, ajudar-nos-ia a ampliar as possibilidades de saltos tecnológicos, que hoje inexistem. Economias voltadas para a saúde necessitam de serviços diversos, que vão de cuidadores e acompanhantes a profissionais de alta qualificação. O setor de serviços, tão abalado pela pandemia, teria a oportunidade de se reerguer a partir desse eixo, sobretudo com as necessidades que já surgem. São muitas as pessoas afetadas por sequelas de covid-19 e a elas muitas mais se somarão. Essas pessoas precisarão de atendimentos diversos.

Deixaríamos de fazer as reformas necessárias para o país? Pelo contrário. Faríamos essas reformas, agora com objetivo claro: sustentar e aprimorar o eixo central da saúde pública. O objetivo da reforma administrativa? A saúde pública. O objetivo da reforma tributária? A saúde pública. O objetivo de outras reformas fiscais? A saúde pública.

A pandemia nos tem apresentado muitas tragédias, dificuldades, dilemas, conflitos. Em meio à gestão de uma crise humanitária aguda, não é fácil elaborar o que sobrevirá. Mas é muito importante começar a fazê-lo, e isso implica abrir mão dessa espécie de pensamento mágico de que a pandemia vai acabar. A pandemia aguda, sem dúvida, acabará. Mas dela virá a pandemia crônica, essa que nos oferece o desafio e a oportunidade de uma transformação real da economia brasileira. A economia do cuidado é aquela que tem na saúde pública o eixo central e que se desenha explorando a reconfiguração do mundo que o vírus nos está apresentando. É claro que não acredito que o Brasil irá trilhar esse caminho nos próximos dois anos, com um Governo antibrasileiro. É mais provável que o país seja testemunha do que outros farão para pôr a saúde pública no centro das suas políticas. Mas quem sabe se os assistindo dessa vez, pela primeira vez, nós não nos articulamos para aproveitar a oportunidade visível, mesmo que tardiamente.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins e pesquisadora-sênior do Peterson Institute for International Economics.


Míriam Leitão: O ministro dos conflitos exteriores

 ‘Alívio’ era a palavra que se ouvia ontem na Fiocruz pela notícia de que a Índia embarcará hoje para o Brasil o lote de dois milhões de doses. Também nesta sexta-feira a Anvisa deve liberar as 4,8 milhões de doses a mais da CoronaVac. Isso não apaga os erros do ministro Ernesto Araújo, que nos levou a uma situação surreal, em que a diplomacia bloqueia os canais, apesar de ela existir para limpar os caminhos. As agressões à China foram muitas, azedou o diálogo, e o preço a pagar por esse erro é em vidas humanas.

Até o ex-presidente Michel Temer se mobilizou ontem para falar com autoridades chinesas. O ministro da Saúde falou com o embaixador e depois disse que não havia problemas diplomáticos. Segundo ele, é a burocracia que explica a demora do envio do IFA. Ora, o embaixador não iria admitir que os problemas são “diplomáticos”. O pretexto é sempre outro. Evidentemente os expedientes burocráticos podem ser mais rápidos ou mais lentos dependendo do contexto.

O fato em si de estarem tantas autoridades tentando fazer diplomacia — Michel Temer, Hamilton Mourão, Tereza Cristina, Rodrigo Maia — é o atestado do colapso da diplomacia de Ernesto Araújo. Neste caso, a demissão dele seria até um passo óbvio. Se o ministro, em vez de fazer seu trabalho, cria impasses e conflitos que outros têm que resolver, não deveria ficar no cargo até por uma razão prática.

O Brasil está na seguinte situação: paga o custo de manter os salários de pessoas altamente qualificadas, e elas não podem exercer as habilidades para as quais foram treinadas no serviço público. Nenhum país perde da noite para o dia um ativo desses, que é ter um corpo de diplomatas eficientes, reconhecidos no mundo inteiro. E por que os bons diplomatas, e eles são inúmeros, não conseguem fazer seu trabalho? A gestão caótica e delirante de Ernesto Araújo não os deixa. Um embaixador, por exemplo, aguarda instruções para agir. Ernesto Araújo ou não dá instruções ou elas não têm lógica, nem ganho palpável para o Brasil. Porque o ministro vive em luta contra inimigos imaginários, como o “globalismo” e o “comunismo” que estariam ameaçando, como escreveu outro dia, os valores dos Estados Unidos.

O trabalho diplomático tem vários códigos. Uma embaixada não deixa uma autoridade ligar diretamente para o seu correspondente em outro país para ouvir um não. Para evitar constrangimentos, ela faz uma ação antecipada para sentir o terreno e desatar os nós antes que eles apareçam. O ministro Eduardo Pazuello ligou na primeira semana do ano para o ministro da Saúde da Índia pedindo o envio das doses compradas pela Fiocruz, e o indiano, que é diplomata de carreira, teve que avisar, delicadamente, que o Brasil precisava pagar antes, dado que o Serum é uma empresa privada. Depois veio o vexame de anunciar a ida do avião já adesivado sem combinar com os indianos. O amadorismo está em cada iniciativa, simplesmente porque existem regras do jogo diplomático que não são seguidas. Ernesto virou o ministro dos conflitos exteriores. E paralisa o corpo de funcionários do Itamaraty. Ontem finalmente anunciou-se a vinda.

A boa política externa antecipa-se aos problemas, como um xadrez bem jogado. E desde o começo desta pandemia estava claro que o Brasil precisaria se posicionar estrategicamente no mercado de compra de vacinas. Como contei na coluna “Diplomacia sem pé nem cabeça”, do dia nove, houve um episódio em que Araújo foi procurado pelo ministro das Relações Exteriores de um país grande desenvolvedor de vacinas, meses atrás. A conversa tinha um interesse comercial, mas o nosso ministro preferiu discorrer sobre o “globalismo da Organização Mundial da Saúde”. Nada foi adiante. 

Quando Araújo escreveu uma sucessão de tuítes sobre o ataque ao Capitólio, praticamente endossando o movimento extremista, rasgando todo o manual da boa diplomacia e do bom senso, houve uma reação da Associação dos Diplomatas. Nas mensagens coletivas que trocaram por um aplicativo, um integrante da carreira escreveu que a defesa da Casa não pode ficar apenas sobre os ombros dos aposentados.

A chegada dos dois milhões de doses da vacina importadas pela Fiocruz da AstraZeneca da Índia é excelente, a liberação pela Anvisa do uso dos 4,8 milhões de doses do Butantan é outra boa notícia. O país terá a partir deste fim de semana mais 6,8 milhões de doses. Mas o fundamental agora é fabricar aqui, nos dois institutos, com os IFAs que virão da China. Quanto mais cedo, melhor.


Míriam Leitão: Conspiração Bolsonaro

A oposição ao governo Bolsonaro só não pode dizer que não entendeu aonde ele quer chegar. Conspiradores como Donald Trump e Jair Bolsonaro fazem tudo às claras, e o daqui repete o roteiro com alguma defasagem. A distância que existe é entre original e cópia. Quando parlamentares do PT, PDT, PSDB se alinham ao candidato que Bolsonaro defende para presidir o Senado sabem o que estão fazendo. Compactuam. Os votos serão no escurinho, onde Tancredo ensinou que é o lugar das traições, mas os oposicionistas fazem às claras achando que todos entenderão o pragmatismo.

A História olhará esse distópico tempo nosso de forma implacável. Não adiantará explicar que foram oferecidos bons lugares na mesa diretora, distribuídas presidências de comissões. Não há nada contra o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), em si. Não é pessoal. É porque na situação em que ele se encontrará terá que pagar o apoio. O presidente se mobilizou, seu padrinho Davi Alcolumbre (DEM-AP) negocia lugar no Ministério. Pacheco se abrigou sob esse teto. Isso terá de ser pago. E o preço é o apoio à pauta que o presidente acha relevante para o seu projeto.

Bolsonaro quer tumultuar a próxima eleição, reduzir o poder dos estados sobre as polícias para aumentar sua força sobre os efetivos armados, quer armar seus seguidores, quer bloquear recursos para a ciência, quer estimular o desmatamento da Amazônia, quer incentivar garimpeiros e invasores em terras indígenas, quer enfraquecer instituições de controle do combate à corrupção. Bolsonaro sonha, como diziam as faixas dos atos que estimulou e dos quais participou, com o fechamento do Congresso e do STF. Esse é o plano, essa é a pauta.

Nenhuma candidatura, seja de Baleia Rossi (MDB-SP) na Câmara, seja de Simone Tebet (MDB-MS) no Senado, se propôs a fazer oposição. A promessa é mais simples. É de autonomia. O poder legislativo precisa ser autônomo para garantir a governabilidade. Há quem defenda candidatos governistas com o argumento da governabilidade, mas é o exato oposto. O equilíbrio dos freios e contrapesos nos ajudará a atravessar este momento tão pantanoso.

O poente presidente Donald Trump está diante da acusação de incitação à insurreição contra a democracia. Ele construiu o plano lentamente. Começou dizendo em 2016 que a eleição que ele ganhou era fraudada. Muita gente achou que era apenas uma esquisitice. Era movimento feito de caso pensado. Se soa familiar, é porque é o mesmo que se passou aqui em 2018. A lista das similitudes é imensa. Chega a ser monótono.

Os americanos têm a tradição de pessoas armadas. Aqui, Bolsonaro ordenou numa reunião ministerial a liberação do acesso às armas. Até quando o país vai acreditar que são “colecionadores e caçadores”? A caça é proibida no Brasil. Bolsonaro quer uma milícia. Por que tirar poderes dos governadores sobre as polícias e criar o generalato nas PMs? Por que distribuir tantos mimos às Forças Armadas, da ativa ou da reserva? Ora, direis, por ideologia, para seguir a ala ideológica. Não. Não há uma ideologia, há um projeto autoritário em curso. O presidente quer se cercar de vários efetivos armados, legal ou ilegalmente, para intimidar adversários. No dia D e na hora H. Como fez Trump, quando mandou seus mal-intencionados seguidores marcharem sobre o Capitólio. Na celebrada democracia americana foram vistas cenas de enorme selvageria. Os gritos de “enforquem Pence” e “onde está Nancy Pelosi” foram descritos na imprensa americana e entendidos pelo seu valor de face.

Na casa dos conchavos, tudo se passa como se não vissem o que há pelo Brasil. O presidente conduz de forma criminosa a gestão da pior pandemia que já se abateu sobre o país, mas o PT acha que pode se alinhar ao candidato que Bolsonaro defende, e o PDT, também. O PSDB acha que pode continuar em cima desse muro e permanecer nunca decidindo em tempos de decisão. O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) falou em trincar os dentes. Quando trincarão os dentes? Quando for tarde demais.

Trump conspirou durante quatro anos, e o resultado foi visto por todos. Bolsonaro conspira, e temos visto o resultado. É da natureza de governantes autocratas que chegam ao poder pelo voto na democracia enfraquecer por dentro as instituições que os hospedam. Querem se espalhar pelo organismo, enfraquecê-lo e destruí-lo. Como um vírus oportunista e mortal.


Elio Gaspari: O chaveco do Chavismo bolsonariano

Treze anos de poder petista não fizeram estragos nas Forças Armadas semelhantes ao que o capitão Bolsonaro conseguiu em dois anos

Treze anos de poder petista não fizeram estragos nas Forças Armadas semelhantes ao que o capitão Bolsonaro conseguiu em dois anos. Durante os governos de Lula e de Dilma Rousseff, nenhum general foi demitido de forma constrangedora e sem motivo razoável. Os oficiais-generais nomeados pelos presidentes petistas para funções civis tiveram desempenhos discretos. Bolsonaro jogou militares em torvelinhos, associando a disciplina da carreira às suas fantasias. O que sucede ao general Eduardo Pazuello é prova disso.

As cerejas desse bolo anárquico, reveladas pelo repórter Felipe Frazão, são os projetos de parlamentares bolsonaristas que tramitam no Congresso. Teriam jogado meia dúzia de jabutis em cima da ideia de reorganizar as polícias civil e militar. Olhando-se os detalhes, nem jabutis são. Transformaram a ideia num terreno baldio, onde cada um que passa joga o que quer.

É conhecida a admiração de Bolsonaro pelas PMs, apimentada pela simpatia de oficiais do pelotão palaciano diante de alguns motins.

Pelos projetos, os comandantes das PMs deveriam ser escolhidos a partir de listas tríplices saídas da corporação. (Os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica são de livre escolha do presidente, dentro do quadro de quatro estrelas.)

Esses comandantes teriam mandatos de dois anos. Vale ouvir o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro: “Dentro da estrutura militar, ninguém pode ter mandato”.

As PMs e os Corpos de Bombeiros teriam generais. É o caso de se perguntar porque os Corpos Marítimos de Salvamento não devem ter almirantes.

A fiscalização das empresas de segurança privada sairiam da alçada da Polícia Federal, passando para a jurisdição das Polícias Militares. O perigo embutido nesse sofá velho jogado no terreno é simples: Basta lembrar a carreira do capitão Adriano da Nóbrega, o miliciano foragido morto na Bahia. Ou o caso do PM Ronnie Lessa, acusado de ter matado a vereadora Marielle Franco. Nenhum dos dois era um bandido iniciante. Ronnie havia sido guarda-costas de um bicheiro e perdeu uma perna numa briga de quadrilhas. O ex-capitão Adriano comandava a milícia batizada de Escritório do Crime.

Projetos legislativos de deputados governistas não têm necessariamente o apoio do governo, mas Bolsonaro, que é tão rápido no gatilho, jamais disse uma palavra contra os pneus velhos e colchões sujos jogados nesse terreno baldio.

O comandante Hugo Chávez desgraçou a Venezuela distribuindo boquinhas para militares da ativa e criando uma milícia.

Urucubaca

Bolsonaro dizia que, se os argentinos elegessem Alberto Fernández para a presidência da Argentina, os gaúchos veriam um fluxo de hermanos atravessando a fronteira. Seria uma repetição do que sucedeu em Roraima com a migração dos venezuelanos

Passou o tempo, e brasileiros gostariam de ir para a Argentina, onde há vacinas. Além disso, a montadora Ford anunciou que sairá do Brasil, mas ficou na Argentina, onde investe cerca de R$ 3 bilhões.

O general Eduardo Pazuello, o estrategista da logística no acolhimento dos venezuelanos, assumiu o Ministério da Saúde e está dando o que está dando. Na segunda-feira, ele foi a Manaus, falou pouco, mas fez propaganda da cloroquina. Na quarta-feira, pacientes morriam em hospitais da cidade por falta de oxigênio.

Diante da falta de oxigênio nos hospitais de Manaus, o governo do Amazonas e empresas pediram ajuda à Venezuela.

Brandão no Banco do Brasil

André Brandão fez carreira na banca privada antes de aceitar a presidência do Banco do Brasil. Lá, um executivo tem sua qualificação medida pelo discernimento com que assume riscos. O doutor comprou o Risco Bolsonaro e deu no que deu.

Se der tempo, deveria telefonar para o médico Nelson Teich, que aceitou o Ministério da Saúde e foi-se embora 28 dias depois.

As pessoas entram nos governos pelos mais diversos motivos, mas são poucos aqueles que sabem sair deles. Joaquim Levy, por exemplo, aceitou a presidência do BNDES em janeiro de 2019, viu-se enfarinhado em maio e saiu frito em junho.

Marquetagem

Quem sabe ouvir nas entrelinhas percebeu há três semanas que o índice de eficácia geral da Coronavac passava pouco dos 50%. (Ficou em 50,38%.)

Em vez de abrir a discussão em torno dos diversos aspectos desse índice, preferiu-se o caminho do emparedamento da Anvisa. A agência estava fragilizada pelo negacionismo do governo, que jogou seu almirante em mar tempestuoso.

Piada de caserna

Quando o general Eduardo Pazuello disse que a vacina começará a ser aplicada na hora H do dia D, ele recorreu a um tipo de humor da caserna, para disfarçar o fato de que não sabia uma coisa nem a outra.

Algumas piadas de caserna são engraçadas, mas quase sempre ironizam a ignorância.

Pazuello apresentou uma variante de uma velha piada: toda árvore tem uma altura aproximada.

Os cadetes diziam isso quando não sabiam a altura da árvore.

O Dia D virou quarta-feira, e hoje ele é uma data aproximada.

Trump e Hitler

Para quem discute o futuro de Donald Trump: em novembro de 1923, a milícia nazista tentou um golpe de estado a partir de uma cervejaria de Munique. Robert Murphy era um jovem diplomata americano baseado em Berlim e saiu em busca de informações.

Foi ao Núncio Apostólico e ouviu dele uma sentença: acabou a carreira política de Adolf Hitler. Deu no que deu.

Em 1945, ele reencontrou o Núncio Eugenio Pacelli, que àquela altura atendia pelo nome de Pio XII. Cobrou-lhe a previsão e ouviu:

“Você está falando da infalibilidade do Papa, mas naquela época eu era um simples monsenhor.”

A morte de um patrono

Morreu o bilionário americano Sheldon Adelson, de 87 anos, uma das pessoas mais ricas do mundo, com US$ 35,1 bilhões.

Dono de resorts com cassinos em Las Vegas, Macau e Singapura, ele financiava o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, Donald Trump e iniciativas de direita pelo mundo afora. Adelson contou que pretendia gastar US$ 100 milhões para derrotar Barack Obama.

Ele deixou rastro na campanha eleitoral brasileira de 2018. Veio em seu avião, hospedou-se no Copacabana Palace e encontrou-se com o candidato Jair Bolsonaro, que estava acompanhado pelo “Posto Ipiranga”, Paulo Guedes. Ambos chegaram à suíte do magnata entrando pela cozinha do hotel.

Um eco do que conversaram ressoou no ano passado, quando Guedes defendeu a abertura de grandes cassinos, durante a tétrica reunião ministerial de abril.

Naquele encontro, Bolsonaro garantiu a Adelson que transferiria a embaixada brasileira para Jerusalém.

Filho de um taxista, Adelson ralou cada dólar que ganhou e viveu na defesa intransigente de sua herança familiar. Em 1988, já bilionário, visitou Israel calçando um velho par de sapatos. Eram de seu pai, um descendente de judeus da Lituânia, que não viveu para visitar Israel.


Dorrit Harazim: Misericórdia

Numa cidade agonizante chamada Manaus, um cilindro de oxigênio pode valer ainda mais do que a vacina

 ‘Bem-vindo ao inferno’ anunciava em inglês a gigantesca faixa levada por policiais no Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, numa manhã radiosa de julho de 2016. Na Cidade Maravilhosa que escancarava seu abraço a turistas e atletas olímpicos do mundo inteiro, o protesto informava que, devido ao atraso no salário dos agentes de segurança, a Rio-2016 era um território sem lei. “Estamos morrendo. Os criminosos olham para a nossa identidade e nos matam”, acrescentava a faixa.

Neste início de 2021, basta substituir “criminosos” por “governantes” ou, ainda melhor, juntá-los como “governantes criminosos”, e temos o retrato do horror nacional. O inferno é aqui . O Brasil inteiro está no direito de se insurgir, de cobrar responsabilidade, ação, vergonha na cara — não de quem já é criminoso, mas de quem silencia apesar de ter voz e poder. A começar pelo Congresso Nacional.

De Jair Bolsonaro nada há a esperar. Como escreveu a jornalista Eliane Brum, “afirmar que Bolsonaro é incompetente ao tratar da Covid-19 é colaborar com ele. A negligência é deliberada. Não é incompetência para enfrentar a Covid, e sim, competência para o extermínio”. Gritar contra a montanha de inépcias das três esferas do poder (prefeituras, estados, Brasília) no combate ao coronavírus aplaca momentaneamente nossa consciência, alivia por um átimo a sensação de impotência. Mas até para gritar é preciso ter ar, conseguir respirar, sair da asfixia interior na qual estávamos confinados até sermos sacudidos pelo sufocamento real de Manaus.

“Fizemos nossa parte”, diz Bolsonaro sobre as pilhas de cadáveres que haverão de alicerçar seu lugar na história. “Imposição de disciplina em cima do brasileiro não funciona”, emenda o general da reserva e dublê de vice Hamilton Mourão, como se a obrigatoriedade do cinto de segurança e a proibição de fumar não vigorassem no país. O que não funciona em cima do brasileiro , general, é o descaso com a vida física para aniquilar a vida democrática do país.

 “Temos aqui um mundo em desordem/ Quem então está pronto/ Para lhe devolver ordem?”, perguntava Bertolt Brecht na estrofe cantada de uma peça que jamais concluiu. Na semana passada, faltando apenas duas semanas para Donald Trump deixar o poder, o Legislativo dos EUA deu seu passo para interromper a desordem revolta: mesmo sitiados no Capitólio, democratas e alguns republicanos ratificaram a vitória de Joe Biden na eleição de novembro. Quatro dias depois, aprovaram o impeachment do Aprendiz de Déspota. A desordem e a violência emanada da Casa Branca haviam atingido níveis alarmantes de sedição e violência.

O mais alarmante, no caso de Trump, talvez tenha sido a extorsão que o 45º presidente e seus celerados haviam tentado impor aos legisladores: a ameaça de que a violência poderia ser ainda maior e mais errática, caso mexessem com o líder do culto. Quase deu certo por lá. E pode parecer sedutora para outros aprendizes agarrados ao poder. Tragicamente, no Brasil, foi preciso testemunharmos a asfixia nos hospitais, lares e ruas de Manaus para o despertar da sociedade antes da débâcle nacional.

Poucos dias atrás, o alemão Jürgen Stock, secretário-geral da Interpol, alertava o mundo para o fato de vacinas contra a Covid terem se tornado “o ouro líquido do momento”. Contrabando, mercado ilegal, contrafações, roubos audaciosos e leilões clandestinos estarão na mira da agência de 194 países-membros. Mas Stock certamente nunca imaginou que, num país moribundo chamado Brasil, e numa cidade agonizante chamada Manaus, um cilindro de oxigênio pode valer ainda mais do que a vacina. Até porque é preciso estar vivo para almejar a chegada da vacina.

E, por falar nela, roga-se o impossível a prefeitos, governadores e ao presidente da República que veem na vacina o cabo eleitoral supremo: sumam da foto. Nenhum país civilizado inaugurou o tão ansiado processo de imunização com protagonismo político personalista. O governador em exercício no Rio planeja um “ato” no Cristo Redentor. O de São Paulo e o capitão de Brasília só pensam em obscurecer o outro na foto. Talvez seja hora de a imprensa responsável não embarcar nessas pataquadas. O braço estendido de um cidadão comum recebendo a vacina por um profissional de saúde também anônimo num hospital público do SUS é o maior incentivo para injetar o Brasil de esperança. E retratar o que o país tem de melhor.


Merval Pereira: Novo atraso na vacinação

Há a perspectiva de um novo atraso, esse ainda mais grave, no calendário nacional de vacinação, pois o envio do IFA ( Ingrediente Farmacêutico Ativo) para a produção na Fiocruz das doses de vacinas da AstraZeneca/Oxford ainda não foi liberado pelas autoridades da China. O primeiro carregamento deveria chegar na próxima semana, mas problemas burocráticos impedem a liberação.

O Brasil já está cobrando da matriz da AstraZenaca na Inglaterra, se essa documentação não for liberada pela China em tempo de chegar aqui ainda este mês, como estava previsto, que a remessa seja feita através de outros países. Eles têm o compromisso por contrato de nos entregar a IFA de outro lugar, ou a vacina pronta. A multa prevista no contrato não é em dinheiro, mas em vacinas. Como a vacinação está com problemas em vários países, não é certo que a farmacêutica tenha doses extras para o Brasil.

A linha de produção da Fiocruz já está pronta para produzir, depois desses 2 milhões de doses simbólicas a serem importadas da Índia, em fevereiro mais 5 milhões de doses e iniciar em abril a produção de mais 50 milhões de doses. Outros 50 milhões estão  previstos até julho, com acerto de entrega de IFA a cada quinze dias, o que, a esta altura, não é garantido.

Mas esse cronograma pode ser alterado dependendo da chegada da IFA. Os problemas burocráticos giram em torno do protocolo internacional de transporte biológico de vírus vivo, mas técnicos da Fiocruz estranham que somente agora, quando já deveria estar sendo enviada a primeira remessa do IFA, esse problema tenha surgido, já que o contrato foi feito em agosto.

A Fiocruz escolheu o “sítio” (na linguagem técnica) da China como responsável pelo contrato do envio porque temia que os Estados Unidos de Trump pudessem criar obstáculos caso a vacinação por lá tivesse problema. A vacina da AstraZeneca foi uma das selecionadas para receber investimento do governo dos Estados Unidos através do programa “Warp Speed”, vinculado à Secretaria de Saúde do governo americano.

A vacina teve ampliada sua ação, pois a segunda dose pode ser aplicada até 12 semanas depois, ou três meses. Isso quer dizer que os 50 milhões de doses que a Fiocruz pretende produzir até abril vão vacinar o dobro das pessoas inicialmente previstas. Esses dois milhões iniciais, que estão sendo trazidas da Índia, não estavam previstos, mas equivalem à vacinação de dois milhões de pessoas, porque a dose está sendo aprovada como na Inglaterra.

Os 6 milhões de doses que o Instituto Butantan  tem no momento podem vacinar 3 milhões de pessoas, pois, ao contrário da AstraZeneca, o intervalo da vacina da CoronaVac é de de duas semanas. O governo federal já requisitou o total de doses da CoronaVac que o governo paulista tem estocadas para poder dar inicio à vacinação ainda em janeiro, se as doses não chegarem da Índia a tempo.

O governo mais uma vez trabalhou errado nessa negociação com o governo indiano. O Primeiro-Ministro Modi acertou com Bolsonaro a liberação desse lote de vacinas, mas não contava com a indiscrição do governo brasileiro, que festejou o acordo e irritou a oposição na Índia. O avião da Azul com um enorme adesivo falando sobre o plano de vacinação no Brasil teve que adiar o vôo, orientado pelo governo indiano, pois sua presença no aeroporto de Mumbai poderia provocar tumultos. Havia até mesmo a possibilidade de o avião brasileiro ser arrestado pelo governo indiano para dar uma satisfação à opinião pública.

O governo, que inicialmente renegou a “vacina chinesa”, agora se agarra a ela para começar simbolicamente a vacinação em massa ainda em janeiro. Mas, ao que tudo indica, se fizer isso estará cometendo outro erro, pois a primeira etapa da vacinação prevê atender grupos de risco como idosos morando em asilos, trabalhadores de saúde, idosos acima de 75 anos, população indígena e ribeirinha, que perfazem cerca de 15 milhões de pessoas. Só teremos vacinas para no máximo 5 milhões de pessoas, isso se contarmos com os dois milhões de doses únicas da AztraZeneca.

Se, como se teme, a importação da Índia demorar duas semanas, o início da vacinação só ocorrerá otimisticamente em fevereiro. Antes disso, porém, são previsíveis novos embates políticos entre os governos de São Paulo e Federal. Se a ANVISA aprovar hoje a vacina CoronaVac, o governo de São Paulo quer começar a vacinação amanhã mesmo, o que o Ministério da Saúde vai querer impedir. Essa disputa vai acabar no Supremo Tribunal Federal, além de provocar revolta entre os habitantes de São Paulo, que serão impedidos de se vacinarem com as vacinas prontas e aprovadas.


Míriam Leitão: Diplomacia sem pé nem cabeça

O presidente Bolsonaro mandou uma carta ao primeiro-ministro da Índia pedindo ajuda para receber as vacinas da Serum. É mais um erro da diplomacia. Esta semana o ministro Eduardo Pazuello telefonou para o ministro da Saúde indiano, Dr. Harsh Vardhan, para pedir o envio das doses, dois milhões ao todo. Tudo o que ouviu foi que esse era um assunto comercial. Educadamente, o ministro indiano indicou que era preciso concluir primeiro a negociação com a empresa. A Serum é privada, e não havia recebido o pagamento e o governo da Índia não tinha o que fazer a respeito. Ontem, o Brasil programou o pagamento.

Esse é só um pequeno exemplo da falta de noção do governo brasileiro, que despreza a tradição da nossa diplomacia profissional. Quem conversa com representantes de outros países em Brasília ouve uma série de histórias das falhas nas regras básicas. Uma delas é a de que nenhum ministro liga para ouvir um não. Para isso existem os contatos precursores. E o que Vardhan disse foi que Pazuello se acertasse com a empresa e se houvesse algum entrave burocrático na exportação aí o governo indiano poderia ajudar. Não disse assim com essas palavras porque ele é diplomata de carreira. Conhece os códigos.

Quem não conhece é a cúpula do Itamaraty que erra o tempo todo. Primeiro, a chancelaria tinha que ter ido na frente preparando o terreno para que a área especializada já encontrasse o terreno preparado. A Fiocruz é que fez os contatos com a Serum. O presidente da Serum chegou a falar que havia uma proibição de exportação. Mas foi desmentido pelo governo indiano. Esse até poderia ter sido o assunto da conversa com o ministro da Saúde. Mas cobrar do governo a entrega do produto de uma empresa privada antes de pagar pela compra não fazia sentido. A Serum produz 60 milhões de doses por mês. E está com contratos fechados há meses com inúmeros países.

Durante os últimos meses, de luta pela vacina, o Itamaraty poderia ter fechado acordos com países produtores. O ministro Ernesto Araújo, se colocasse a cabeça no lugar e o pé no chão, poderia ter ajudado negociando acordos de cooperação. Um dos casos que se conta em Brasília mostra que Ernesto acha que é um evangelista. Um ministro de país desenvolvedor de vacinas o procurou meses atrás. E na conversa levantou a bola para ele cortar. Disse que o seu país estava investindo muito na produção de vacina, inclusive para Covid. Qual seria a resposta certa de Ernesto? Dizer que o Brasil tinha interesse em cooperação e que tem dois grandes institutos científicos que poderiam estabelecer parcerias. Não. Ernesto passou dez minutos pregando sobre o combate ao globalismo da Organização Mundial de Saúde. Até que seu interlocutor desistiu.

Assim, o Brasil foi perdendo lugar na fila. De um lado a cabeça desorganizada do ministro da Saúde, de outro a atitude de cruzado do ministro das Relações Exteriores. Acima de todos, o negacionismo do presidente. O resultado é a perda de reputação da nossa diplomacia e pior, atrasos na vacinação do povo brasileiro.Os tweets de Ernesto Araújo esta semana sobre o ataque ao capitólio rasgam qualquer manual básico de diplomacia. Na série “há que”, Ernesto abraçou a teoria de que havia infiltrados no ato e justificou os vândalos dizendo que “há que reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída pela classe política e desconfia do processo eleitoral”.

Há que se ter modos Ernesto, aprender o elementar sobre política externa. Esse tweet é uma agressão ao presidente que vai assumir o poder no maior país do mundo dentro de alguns dias. O chanceler brasileiro defendeu os agressores dizendo que não se pode chamar de fascistas “cidadãos de bem”. Um deles envergava uma camiseta com inscrições que se referiam aos seis milhões de judeus mortos na Segunda Guerra e uma sigla que significa que isso não é o suficiente. Outro tinha uma camiseta escrito “Campo de Auschwitz”. De fato, a palavra melhor é nazista.

A sequência de absurdos cometidos por Ernesto Araújo deixa horrorizados os representantes estrangeiros em Brasília e os inúmeros bons diplomatas brasileiros. Diplomacia abre portas, a do atual governo, fecha. Depois de hostilizar a China, o Brasil está brigando com os Estados Unidos. Em cada posto-chave da administração Biden haverá alguém disposto a cobrar do governo Bolsonaro respeito aos valores que ele tem ofendido diariamente.


O Estado de S. Paulo: Bolsonaro diz que a 'chance é zero' de dividir ministério de Moro

Presidente disse não ver possibilidade de divisão do Ministério da Justiça, mas afirmou que 'em política, tudo pode mudar'

Paulo Beraldo, Enviado Especial

NOVA DÉLHI - O presidente Jair Bolsonaro descartou nesta sexta-feira, 24, a chance de desmembrar o Ministério da Justiça e Segurança Pública em duas pastas. As declarações foram dadas em sua chegada a Nova Délhi, na Índia, para uma missão de quatro dias.

"A chance no momento é zero, tá bom? Não sei amanhã, na política tudo muda, mas não há essa intenção de dividir", disse. "Em segurança pública, os números demonstram que estamos no caminho certo. E é a minha máxima, né, em time que está ganhando não se mexe".

O presidente negou ainda a existência de atritos com seus ministros, principalmente Sérgio Moro. "Não existe qualquer atrito entre eu e o Moro, entre eu e o Guedes, eu e qualquer outro ministro", disse. "O governo está unido, sem problemas. Em segurança pública, os números demonstram que estamos no caminho certo. E é a minha máxima, né, em time que está ganhando não se mexe".

Na quarta-feira, 22, Jair Bolsonaro recebeu de secretários estaduais de Segurança Pública cinco sugestões para políticas na área em uma reunião. De todas elas, ele anunciou publicamente apenas uma – a divisão do Ministério da Justiçacom a recriação da pasta da Segurança Pública. A opção de destacar a demanda mais polêmica chamou atenção dos próprios secretários, que viram na iniciativa um endosso de Bolsonaro à proposta.

Interlocutores de Moro disseram que aconselharam ele a deixar o governo caso a mudança se concretizasse. A investida contra o ex-juiz da Operação Lava Jato ocorre no momento em que sua popularidade supera a do presidente e que seu nome passa a ser cotado como eventual candidato à Presidência. Em entrevista ao programa Roda Viva, nesta segunda, 20, o ministro disse que o candidato do governo é o presidente Bolsonaro, mas refutou assinar um documento dizendo que não disputaria a vaga.

No ano passado, o presidente cogitou a recriação da pasta, mas enfrentou resistências justamente devido às críticas de que a medida poderia esvaziar a pasta de Moro.

Se Bolsonaro optasse por repetir o mesmo modelo de Ministério da Segurança Pública do seu antecessor, Michel Temer, Moro perderia o comando da Polícia Federal, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), os três órgãos mais importantes da sua pasta.

Na quarta, ainda no Brasil, ao ser questionado sobre o assunto, Bolsonaro disse que estudava a sugestão dos secretários estaduais.“É comum (o governo) receber demanda de toda a sociedade. E ontem (terça-feira) os secretários estaduais da Segurança Pública pediram para mim a possibilidade de recriar o Ministério da Segurança (Pública). Isso é estudado. É estudado com o Moro. Lógico que o Moro deve ser contra, mas é estudado com os demais ministros”, disse o presidente.

Um dos nomes cotados para a eventual pasta é o ex-deputado Alberto Fraga (DEM-DF), que é próximo de Bolsonaro e um dos políticos que mais frequentam o Palácio da Alvorada. Em entrevista ao Estado, Fraga contestou a capacidade técnica de Moro para cuidar da área de Segurança Pública.