Míriam Leitão: O ministro dos conflitos exteriores

‘Alívio’ era a palavra que se ouvia ontem na Fiocruz pela notícia de que a Índia embarcará hoje para o Brasil o lote de dois milhões de doses.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 ‘Alívio’ era a palavra que se ouvia ontem na Fiocruz pela notícia de que a Índia embarcará hoje para o Brasil o lote de dois milhões de doses. Também nesta sexta-feira a Anvisa deve liberar as 4,8 milhões de doses a mais da CoronaVac. Isso não apaga os erros do ministro Ernesto Araújo, que nos levou a uma situação surreal, em que a diplomacia bloqueia os canais, apesar de ela existir para limpar os caminhos. As agressões à China foram muitas, azedou o diálogo, e o preço a pagar por esse erro é em vidas humanas.

Até o ex-presidente Michel Temer se mobilizou ontem para falar com autoridades chinesas. O ministro da Saúde falou com o embaixador e depois disse que não havia problemas diplomáticos. Segundo ele, é a burocracia que explica a demora do envio do IFA. Ora, o embaixador não iria admitir que os problemas são “diplomáticos”. O pretexto é sempre outro. Evidentemente os expedientes burocráticos podem ser mais rápidos ou mais lentos dependendo do contexto.

O fato em si de estarem tantas autoridades tentando fazer diplomacia — Michel Temer, Hamilton Mourão, Tereza Cristina, Rodrigo Maia — é o atestado do colapso da diplomacia de Ernesto Araújo. Neste caso, a demissão dele seria até um passo óbvio. Se o ministro, em vez de fazer seu trabalho, cria impasses e conflitos que outros têm que resolver, não deveria ficar no cargo até por uma razão prática.

O Brasil está na seguinte situação: paga o custo de manter os salários de pessoas altamente qualificadas, e elas não podem exercer as habilidades para as quais foram treinadas no serviço público. Nenhum país perde da noite para o dia um ativo desses, que é ter um corpo de diplomatas eficientes, reconhecidos no mundo inteiro. E por que os bons diplomatas, e eles são inúmeros, não conseguem fazer seu trabalho? A gestão caótica e delirante de Ernesto Araújo não os deixa. Um embaixador, por exemplo, aguarda instruções para agir. Ernesto Araújo ou não dá instruções ou elas não têm lógica, nem ganho palpável para o Brasil. Porque o ministro vive em luta contra inimigos imaginários, como o “globalismo” e o “comunismo” que estariam ameaçando, como escreveu outro dia, os valores dos Estados Unidos.

O trabalho diplomático tem vários códigos. Uma embaixada não deixa uma autoridade ligar diretamente para o seu correspondente em outro país para ouvir um não. Para evitar constrangimentos, ela faz uma ação antecipada para sentir o terreno e desatar os nós antes que eles apareçam. O ministro Eduardo Pazuello ligou na primeira semana do ano para o ministro da Saúde da Índia pedindo o envio das doses compradas pela Fiocruz, e o indiano, que é diplomata de carreira, teve que avisar, delicadamente, que o Brasil precisava pagar antes, dado que o Serum é uma empresa privada. Depois veio o vexame de anunciar a ida do avião já adesivado sem combinar com os indianos. O amadorismo está em cada iniciativa, simplesmente porque existem regras do jogo diplomático que não são seguidas. Ernesto virou o ministro dos conflitos exteriores. E paralisa o corpo de funcionários do Itamaraty. Ontem finalmente anunciou-se a vinda.

A boa política externa antecipa-se aos problemas, como um xadrez bem jogado. E desde o começo desta pandemia estava claro que o Brasil precisaria se posicionar estrategicamente no mercado de compra de vacinas. Como contei na coluna “Diplomacia sem pé nem cabeça”, do dia nove, houve um episódio em que Araújo foi procurado pelo ministro das Relações Exteriores de um país grande desenvolvedor de vacinas, meses atrás. A conversa tinha um interesse comercial, mas o nosso ministro preferiu discorrer sobre o “globalismo da Organização Mundial da Saúde”. Nada foi adiante. 

Quando Araújo escreveu uma sucessão de tuítes sobre o ataque ao Capitólio, praticamente endossando o movimento extremista, rasgando todo o manual da boa diplomacia e do bom senso, houve uma reação da Associação dos Diplomatas. Nas mensagens coletivas que trocaram por um aplicativo, um integrante da carreira escreveu que a defesa da Casa não pode ficar apenas sobre os ombros dos aposentados.

A chegada dos dois milhões de doses da vacina importadas pela Fiocruz da AstraZeneca da Índia é excelente, a liberação pela Anvisa do uso dos 4,8 milhões de doses do Butantan é outra boa notícia. O país terá a partir deste fim de semana mais 6,8 milhões de doses. Mas o fundamental agora é fabricar aqui, nos dois institutos, com os IFAs que virão da China. Quanto mais cedo, melhor.

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