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Folha de S. Paulo: Projeto de Bolsonaro é destruir a imprensa livre, diz Eugênio Bucci
Vitória dele implica destruição da imprensa livre, declara o professor da USP
Maurício Meireles, da Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - O primeiro debate do 3º Encontro Folha de Jornalismo, que aconteceu nesta quarta-feira (19), contou com falas contundentes de Eugênio Bucci, professor da USP e colunista do jornal O Estado de S. Paulo. Bucci comparou o presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores aos bonapartistas do século 19 e aos fascistas do século 20.
“São pregadores do fascismo. São machistas, misóginos, militaristas. Não suportam a ciência. Não suportam o jornalismo. A vitória do projeto dele implica a destruição da imprensa livre, e a vitória da imprensa livre coloca em sítio o projeto de poder autoritário que ele tem”, afirmou.
Com mediação da ombudsman, Flavia Lima, Bucci debateu com Mônica Bergamo, colunista da Folha, e Ana Cristina Rosa, assessora-chefe de comunicação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Como tema da mesa, a pergunta: “Jornalistas são mesmo animais em extinção?”
Flavia iniciou o encontro mencionando levantamento da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), que computou mais de cem ataques à imprensa cometidos pelo governo Bolsonaro em seu primeiro ano de governo. Lembrou alguns, como o insulto com insinuação sexual contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha, registrado nesta terça-feira (18).
“É um desprazer discutir uma fala tão desqualificada”, afirmou Bucci sobre o ataque. “É um desprazer considerar essas palavras como passíveis de interlocução. Elas não são, são ultrajes, são golpes verbais. Têm o objetivo de nos calar, nos humilhar.”
Bergamo afirmou que, no começo de sua carreira, a única preocupação era conseguir informações exclusivas. Agora, disse, há maior escrutínio do trabalho dos jornalistas —o que é positivo, ressaltou —, mas também uma rápida disseminação de mentiras e tentativas de desqualificação dos repórteres.
“O fato de haver um governo com essa animosidade contra a imprensa aumenta o número de ataques e a pressão contra nós. Há vários elementos de tensão [profissional], mas não daquela tensão com a qual deveríamos estar nos preocupando. Deveríamos nos preocupar em fazer matérias, não em nos defender de ataques”, afirmou, lembrando que o tempo gasto com tais ataques poderia ser usado, por exemplo, para apurar as circunstâncias da morte de Adriano da Nóbrega, miliciano ligado a Flávio Bolsonaro que foi morto pela polícia na Bahia.
Para Ana Cristina Rosa, do TSE, o papel de órgão públicos é usar as notícias negativas como instrumento para aprender e melhorar sua atuação. “[Mesmo] em relação aos erros, não é aceitável que se demonize profissionais. Erros fazem parte.”
Na parte aberta à plateia, um participante perguntou se a imprensa não teria contribuído para a ascensão de Bolsonaro ao supostamente apoiar o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e a Operação Lava Jato.
“O primeiro cuidado que precisamos tomar é saber o que estamos chamando de imprensa”, ressalvou Bucci. “A imprensa tem inúmeras contradições. Ela tem tensões internas, ela têm pluralidade. Não é bem ‘a imprensa apoiou o impeachment’. Podemos dizer que a linha editorial opinativa de alguns veículos aderiu [ao processo] de maneira declarada.”
Mônica Bergamo discordou da avaliação sobre o impeachment que a pergunta embutia, mas afirmou ver tal paradoxo na forma como a imprensa tratou o hoje ministro da Justiça Sergio Moro.
“[Ele] é o centro e o mais importante apoio de um projeto autoritário. Acho que ele foi tratado de maneira não crítica pela imprensa, e ele é o grande suporte de tudo isso. Mas excluo a Folha, que foi o único órgão a ir para cima dele”, afirmou.
O debate integrou evento que marca o início das comemorações dos centenário da Folha, que ocorre em 2021.
Bernardo Mello Franco: O jornalismo no faroeste
Na fronteira com o Paraguai, pistoleiros mataram um repórter que investigava o crime organizado. Em Brasília e na Bahia, outros episódios de agressão à imprensa
A fuga de 76 presos, a maioria ligada ao PCC, acirrou a tensão na fronteira seca do Brasil com o Paraguai. Os bandidos estavam presos em Pedro Juan Caballero, cidade colada a Ponta Porã (MS). Escaparam no mês passado, com a aparente conivência de guardas e da direção da cadeia.
A região é dominada pelo narcotráfico e registra altos índices de violência armada. Em dezembro, o Ministério Público Federal tomou uma medida drástica para se proteger. Abandonou a sede em Ponta Porã e transferiu os servidores para Dourados, a 120 quilômetros de distância.
Num faroeste em que nem procuradores estão seguros, o jornalismo virou atividade de alto risco. Na noite de quinta-feira, o repórter Léo Veras foi executado quando jantava com a família no lado paraguaio da fronteira. Ele tocava o site Porã News, que investigava a infiltração do crime organizado no poder local.
Veras foi entrevistado no documentário “Quem Matou? Quem Mandou Matar?”, de Bob Fernandes e João Wainer. Disponível no YouTube, o filme conta as histórias de seis jornalistas assassinados no interior do país. Eles foram mortos após denunciar políticos corruptos e policiais que integravam grupos de extermínio.
A semana foi marcada por outros episódios de ataque ao jornalismo. Em Brasília, uma testemunha da CPI das Fake News, instalada para apurar a atuação de milícias virtuais, mentiu e insultou a repórter Patricia Campos Mello.
Ex-funcionário de uma agência de marketing digital, Hans River do Rio Nascimento alegou que teria sido assediado pela profissional da “Folha de S.Paulo”. Ele forneceu informações para reportagens sobre os disparos em massa que alavancaram a campanha de Jair Bolsonaro.
A jornalista rebateu as mentiras com documentos, mas não conseguiu escapar do bombardeio na internet. O deputado Eduardo Bolsonaro atiçou a tropa ao difundir ofensas de cunho sexista contra a repórter. No ano passado, ele sugeriu a edição de um “novo AI-5”. O original, baixado pela ditadura militar, instituiu a censura prévia à imprensa.
Na sexta-feira, a PM da Bahia deteve dois jornalistas da revista “Veja”. Os profissionais se identificaram, mas foram conduzidos à delegacia e submetidos a interrogatório. Eles apuravam as circunstâncias da morte do miliciano Adriano da Nóbrega, ligado ao senador Flávio Bolsonaro.
Com ataques constantes, a extrema direita no poder fomenta o clima de violência e intimidação ao jornalismo. O caso de Léo Veras mostra que as ameaças às vezes têm consequências. No documentário filmado há três anos, ele disse: “Sempre peço que não seja tão violenta a minha morte. Espero que seja só um disparo, para não estragar a pele”. O repórter foi executado com 12 tiros.
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“Eu não conheço a milícia no Rio de Janeiro. Desconheço. Não existe nenhuma ligação minha com a milícia do Rio de Janeiro”. Palavras de Jair Bolsonaro, que já defendeu a atuação dos grupos paramilitares em discurso e entrevistas.
Demétrio Magnoli: Repórter cometeu o pecado capital de expor fábrica da 'guerra da informação'
Nesse passo, Patrícia Campos Mello mostrou o caminho que a imprensa precisa seguir, se pretende sobreviver
O governo Bolsonaro odeia o jornalismo profissional. No caso da jornalista Patrícia Campos Mello, porém, o caso é visceral. Na campanha de 2018, Bolsonaro declarou uma “guerra” à imprensa, dando a senha para uma enxurrada de calúnias e ameaças à repórter que investigava a máquina eleitoral de difusão de fake news.
Agora, na CPMI das Fake News, Eduardo Bolsonaro apoiou-se nos ombros de um pulha para, num exercício de covardia, atingir sua integridade pessoal. Não é casual: Patrícia cometeu o pecado capital de invadir uma redoma proibida, expondo os contornos da fábrica da “guerra da informação”. Nesse passo, mostrou o caminho que a imprensa precisa seguir, se pretende sobreviver.
Fake news são o complexo de notícias falsas, operações de difamação e campanhas de promoção do ódio que ganhou dimensões inéditas com a universalização da internet. O fenômeno novo é a sofisticação do arsenal empregado na guerra virtual da informação.
No início, mais de uma década atrás, tudo se resumia a blogueiros de aluguel recrutados por partidos políticos para o trabalho sujo na rede. A imprensa, ainda soberana, decidiu ignorar o ruído periférico. Hoje, o panorama inverteu-se: a verdade factual sucumbe, soterrada pela difusão globalizada de fake news.
Os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet. Nos EUA, entre 2007 e 2016, a renda publicitária obtida pelos jornais tombou de US$ 45,4 bilhões para US$ 18,3 bilhões. Em 2016, o Google abocanhava cerca de quatro vezes mais em publicidade que toda a imprensa impressa americana —e isso sem produzir uma única linha de conteúdo jornalístico original.
O novo sistema, baseado na elevada rentabilidade da fraude, descortinou o caminho para a abolição da verdade factual na esfera do debate público.
A fabricação de fake news tornou-se parte crucial das estratégias de Estados, governos, organizações terroristas e supremacistas. A China, que prioriza o público interno, e a Rússia, que se dirige principalmente à opinião pública europeia e americana, são atores centrais nesse palco.
Graças ao Facebook, as forças armadas de Mianmar deflagraram uma eficiente campanha de limpeza étnica contra a minoria rohingya e o governo nacionalista indiano consegue inflamar a xenofobia contra os muçulmanos de Assam.
Perde-se no passado o esforço amador do PT para criar um Pensador Coletivo por meio de núcleos de militantes treinados no que o responsável pelo setor classificou como “guerra de guerrilha da internet”.
Atualmente, no mundo todo, governos e partidos populistas, na direita e na esquerda, empregam aparatos especializados na difusão massiva de fake news. O governo Bolsonaro estabeleceu, com verba pública, dentro do Planalto, um “gabinete do ódio” destinado a coordenar sua “guerra da informação”. No fim, o que está em jogo é o funcionamento da democracia, como explica o jornalista Eugênio Bucci no livro “Existe Democracia sem Verdade Factual?”.
A imprensa também está em perigo, junto com a democracia. Se, no plano dos fatos, verdade e falsidade tornam-se narrativas indistinguíveis, o jornalismo profissional perde seu objeto. Daí, emerge uma nova missão jornalística: pautar as fake news, como se pautam políticas públicas, eleições, debates parlamentares, guerras reais, inundações.
A checagem ritual de notícias falsas, iniciativa útil, é totalmente insuficiente. No campo analítico, trata-se de iluminar os sentidos políticos das campanhas de fake news, evidenciando suas estruturas de linguagem, seus alvos imediatos e suas metas estratégicas. No campo investigativo, é preciso descerrar o véu que cobre as engrenagens de fabricação das fake news, expondo os atores políticos e empresariais envolvidos na guerra contra a verdade. Patrícia engajou-se nisso —e, por isso, virou alvo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Eugênio Bucci: ...e os ataques do poder contra a imprensa se rebaixam ainda mais
Esta campanha aberta e contumaz é um fato objetivo. E desastrosas são suas consequências
Com presteza jornalística e dignidade profissional, o Estado noticiou em sua edição de ontem, na página A8, os insultos dirigidos na terça-feira passada contra a repórter Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. Esses insultos vêm carregados de matéria infecta; a simples tentativa de narrá-los causa engulhos, mas, sem recapitulá-los nos seus aspectos mais enojantes, não há como ter a dimensão precisa da campanha difamatória que o poder deflagrou contra a imprensa neste país. O tema é nauseante e repulsivo, mas obrigatório.
Desde 2018, quando revelou esquemas de impulsionamento ilegal de mensagens de WhatsApp nas eleições de 2018 em favor do candidato da extrema-direita, a jornalista Patrícia Campos Mello se tornou alvo preferencial do bolsonarismo de bueiro, capaz das piores torpezas. Os ataques covardes contra ela não cessam. Agora, o palco da agressão foi a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), no Congresso Nacional. Lá pelas tantas, um sujeito de nome Hans River do Rio Nascimento, que depunha para os parlamentares, passou a acusar a repórter de ter proposto – isto mesmo – trocar sexo por informação. O despautério factual e moral estarreceu a parcela civilizada dos presentes (outra parcela riu e festejou). Era notória a intenção de humilhar, de espezinhar, de torturar com palavras a condição feminina, como numa reedição do “eu não estupro porque você não merece”. Só quem entende que a mulher é (ainda) uma minoria política identifica o horror contido nessa fala. O acusador se aproveita daquilo que o machismo considera uma fragilidade e, fustigando esse “ponto fraco” (a condição feminina), investe contra a imprensa.
Não foi só isso. Pouco depois da cena deplorável na CPMI, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) foi às suas redes sociais e postou nada menos que o seguinte: “Eu não duvido que a senhora Patrícia Campos Mello, jornalista da Folha, possa ter se insinuado sexualmente, como disse o senhor Hans, em troca de informações para tentar prejudicar a campanha do presidente Jair Bolsonaro. Ou seja, é o que a Dilma Rousseff falava: fazer o diabo pelo poder”.
A mensagem do deputado consumou, com total explicitude, mais uma investida do poder contra a mulher e contra a imprensa. Portanto, o que se passou em Brasília na terça-feira não foi apenas mais um surto de misoginia abjeta dando mais uma prova cabal da falta de decoro e de preparo das autoridades que encontram abrigo nos palácios da República; o que se passou lá foi o novo lance da cruzada fanática do governo federal contra os jornais. Enfim, o que se passou em Brasília na terça-feira era (e é) notícia do mais alto interesse público.
Em sua edição de ontem, a Folha repudiou oficialmente a mentira do acusador e as “insinuações ultrajantes” do deputado Bolsonaro. Quanto ao Estado, ao dar o devido destaque ao assunto, deixou claro que o tema não se reduz aos interesses do jornal concorrente e cumpriu o dever de levar ao seu leitor o que há de mais preocupante no País: o empenho alucinado do poder em destruir o jornalismo. A vítima desta vez foi uma repórter da Folha, mas o objetivo final deste coro de intolerantes – e mentirosos – é desacreditar não apenas a Folha, e sim todos os jornais. O objetivo é desmoralizar as redações profissionais independentes, todas elas.
Vistos em conjunto, esses ataques contra a imprensa, sucessivos e crescentes, conformam este fato irrefutável do nosso tempo: o poder que aí está, mais do que não gostar, rejeita visceralmente a função investigativa dos jornalistas e, se pudesse, gostaria de sumir com eles. Outro dia mesmo o presidente se referiu aos jornalistas como “espécie em extinção”. Não há um só momento em que um representante do governo federal tenha saído em defesa da liberdade de imprensa.
Quando muito – e isso rarissimamente –, uma autoridade governista reconhece alguma utilidade nos jornais para, logo em seguida, com a ajuda de uma conjunção adversativa, de preferência um “mas”, disparar um desaforo qualquer, como “jornalista tem de ir para a cadeia” ou “a imprensa só produz fake news”.
Esta campanha aberta e contumaz é um fato. Não é uma questão de opinião do observador. É fato objetivo. Suas consequências são desastrosas. Quem consegue aquilatar os efeitos de tamanha prepotência na formação das mentalidades das novas gerações? Essa postura animalesca ajuda ou atrapalha a cultura política no Brasil? Promove ou inibe a compreensão dos direitos? Se a autoridade, em lugar de ensinar a liberdade, dá exemplo de calúnia, de infâmia e de intolerância, o que acontece com os princípios democráticos? Ficam mais fortes ou mais fracos?
Será tão difícil perceber esse fato notório? O Brasil ainda não está numa ditadura, é óbvio, mas a democracia brasileira vai mal, e vai mal porque o bolsonarismo de bueiro, com o apoio do Planalto, milita para fazê-la sangrar diariamente. O fato é que o governo não cessa de trabalhar contra a imprensa, contra os valores democráticos, contra as mulheres, contra a razão.
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
Eugênio Bucci: Sob ataque o regime da liberdade de imprensa
Em 2019 o presidente moveu sua guerra suja contra o jornalismo. Como será 2020?
Entre os balanços negativos que o governo federal deixa em 2019, não nos esqueçamos da campanha estridente para desmoralizar a imprensa. Poucas vezes um presidente da República se empenhou tanto em difamar as redações profissionais. Segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a autoridade máxima do Poder Executivo alcançou, entre 1.º de janeiro e 30 de novembro de 2019, a marca de 111 ataques à imprensa. A campanha infamante cravou a média de um insulto a cada três dias.
No cômputo da Fenaj aparecem episódios da mais tosca brutalidade verbal. Mesmo quem não gosta de jornalismo se sente vexado. Num post de 9 de agosto, por exemplo, o presidente reclamou da ausência de punição contra “excessos” dos jornalistas. Além de mal-educado, o chilique é desinformado, pois todas as legislações democráticas, desde a histórica Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, na França, preveem a responsabilização dos que abusam da liberdade de expressão (está lá, no artigo 11 da declaração).
Naquele mesmo dia 9 de agosto, no Palácio do Alvorada, ao lado do ministro da Justiça, o presidente permitiu-se uma agressão suplementar (essa, aliás, nem consta do rol organizado pela Fenaj). Dirigindo-se a um grupo de repórteres, fez uso de sua rispidez habitual: “Se excesso jornalístico desse cadeia, todos vocês estariam presos agora, tá certo?”.
O que vem a ser “excesso jornalístico”? Ninguém sabe. A lei conhece a figura do abuso de um direito, assim como conhece o abuso de poder, mas não estabelece nada sobre “excesso jornalístico”. Nem teria como estabelecer. A locução adjetiva carece de objeto. É só na escuridão das fantasias tanáticas do sujeito que a pronuncia que ela ganha sentido: para esse sujeito, o jornalismo não passa de um impulso desagradável (como a raiva, como as explosões de mau humor), é uma forma de demência que precisa ser vigiada e contida. No léxico presidencial, o jornalismo não é profissão ou função social, mas uma neurose que acomete indivíduos desviantes. Por isso o presidente, que nunca diria “excesso advocatício”, “excesso médico” ou “excesso arquitetônico”, sai por aí falando em “excesso jornalístico”. Para ele, o jornalismo encerraria uma disfunção tóxica. Em doses moderadas, já faz um mal danado. Em “excesso”, deveria dar cadeia.
Excessos à parte, não há muito a fazer quanto ao despreparo do governante de turno. Temos de conviver com isso. Cumpre-nos, isso sim, entender sua lógica ilógica. Se seus discursos desinformam os brasileiros e deformam as linhas de equilíbrio da opinião pública, o que nos cabe, dentro de todos os limites, é escrever para esclarecer, mesmo que em vão. A gente pode (e deve) perguntar: o que pretende essa caótica retórica que atira randomicamente contra repórteres, órgãos de imprensa (que ele ocasionalmente chama de “inimigos”) e quem mais estiver na frente? Seria sua finalidade quebrar um jornal especificamente ou caluniar este ou aquele profissional de forma seletiva?
A resposta é “não”. O propósito dos 111 ataques em 11 meses é quebrar a vigência da liberdade de imprensa. O presidente parece saber, mesmo sem saber como sabe, que sem liberdade de imprensa a sociedade estará entregue às mentiras e, de modo especial, às piores mentiras, as que são enunciadas pelo poder. Ele quer menos liberdade para os jornalistas checarem os fatos porque – ao menos é o que parece – quer mais espaço para mentir.
Inconscientemente coerente com seu propósito pulsional, ele esconde que a liberdade de imprensa, mais do que uma prerrogativa burocrática do profissional, é um direito de toda a sociedade. Fala como se a liberdade de imprensa fosse a “exclusão de ilicitude” dos jornalistas. Nada mais mentiroso. O jornalista é, sim, quem em primeiro lugar exerce a liberdade de imprensa, mas o jornalista não é o beneficiário da liberdade de imprensa. O beneficiário é a sociedade. O jornalista exerce a liberdade como um dever e, agindo assim, assegura que a sociedade possa desfrutar a liberdade de imprensa como um direito. Se não pudesse contar com o direito à liberdade de imprensa, a sociedade não teria como se proteger contra as inverdades que aparecem na propaganda do poder. Ficaria indefesa.
Contra tudo isso o discurso presidencial convida a sociedade a repudiar a imprensa. Culpa os jornalistas por todos os relatos inverídicos que circulam, caracteriza os repórteres e os articulistas como vilões e, por meio desses artifícios, procura angariar apoio para, intimidando os jornalistas, esvaziar esse direito essencial de toda a sociedade.
Um jornal sozinho não entrega a verdade de mão beijada a ninguém, sabemos disso. Mas, repetindo, uma sociedade com órgãos de imprensa sérios, profissionais e independentes está mais protegida contra fraudes e estratégias de tapeação. A melhor forma de entendermos a liberdade de imprensa é concebê-la como um regime geral para o fluxo das ideias na sociedade democrática. A liberdade de imprensa é o princípio norteador do regramento que autoriza os jornalistas a verificarem diariamente os indícios da verdade factual e assim realizar um trabalho que, se não encontra a verdade pronta e acabada, impõe limites decisivos contra as propagandas do poder.
Se cumprirem seu dever de exercer a liberdade, os órgãos de imprensa ajudam a sociedade a se proteger contra os mentirosos que tentam primeiro tapeá-la para depois oprimi-la. Será por isso que o presidente está em campanha contra a liberdade? Talvez.
Fiquemos com os fatos. Quando ataca pessoalmente uma repórter do Estado, quando tenta afastar ilegalmente a Folha de S.Paulo de uma licitação, quanto chama a Rede Globo de “inimiga”, o chefe de Estado não quer apenas ofender o Estado, a Folha ou a Globo. Ele quer ferir o regime da liberdade de imprensa. Por isso em 2019 moveu sua guerra suja contra a imprensa. Como será 2020?
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Marcelo Tognozzi: Um retrato da decadência da grande imprensa brasileira
Qualidade da informação ofertada caiu. Estado insiste em controlar emissoras. Enquanto público migra para a internet
Caiu a qualidade da informação ofertada ao público e ganhou espaço um jornalismo engajado. A ponto de, na semana passada, dois marmanjos velhos de guerra trocarem sopapos num estúdio de rádio, cada um em nome da sua militânciaReprodução/YouTube/Jovem Pan
A imprensa brasileira enfrenta sua pior crise. As mudanças são radicais e profundas. Redes e mídias sociais transformaram o cidadão comum em produtor de conteúdo e formador de opinião, a ponto de surgir uma nova profissão: influencer. Alguém que ganha a vida influindo no comportamento dos outros. A maioria dos influencers – profissionais ou amadores – não são jornalistas e nem querem ser. Enquanto mudanças como esta estão cada vez mais presentes no nosso dia a dia, as empresas jornalísticas continuam vendendo suas edições em papel.
Desde sempre governos alimentaram a mídia com generosas rações de dinheiro público sob a forma de publicidade, eventos, palestras e mais as famosas marretas, como eram conhecidas algumas transfusões financeiras típicas da época de Assis Chateaubriand. Este tipo de prática está acabando, porque não faz sentido um país com 13 milhões de miseráveis abrir a bolsa da viúva e gastar dinheiro dos impostos para sustentar veículos de comunicação com publicidade de empresas estatais ou da própria administração pública. O governo tem apanhado muito porque deu às empresas de capital aberto liberdade de publicar seus balanços de graça no Diário Oficial, acabando com a obrigação de pagar pela publicação nos jornais. Ora, por que uma empresa tem de ser obrigada a pagar pedágio ao baronato da imprensa para prestar contas à sociedade?
Há mais de um século a mídia brasileira se estabeleceu como um negócio familiar, opaco e distante do capitalismo clássico, formal, ao negar-se desde seus primórdios a abrir seu capital e sentar praça na Bolsa de Valores. Dela sempre fugiu como o diabo da cruz. Mas quer morder algum de quem lá está e que, por isso mesmo, precisa ser transparente. Por que as empresas jornalísticas, as redes de TV e rádio não divulgam publicamente seus balanços? Isto deveria ser uma obrigação de quem se vende para a sociedade como um prestador de um serviço para o público, comprometido com a transparência e a liberdade de informação.
Mas na prática não é nada disso. O moralismo, a permissividade e a hipocrisia variaram de acordo com as circunstâncias, o interesse e a oportunidade. No Brasil temos a hipocrisia das concessões públicas de canais de rádio e TV, uma aberração sem sentido em plena era da internet e da produção caseira de conteúdo, onde qualquer um, rico ou pobre, pode publicar textos, fotos e vídeos, conquistar seu público, vender seu peixe. O estado insiste em controlar emissoras do mesmo jeito que controla taxis, quando o público está migrando em massa para o YouTube e o Uber. A TV tradicional está em franca decadência, perdendo muita audiência e dinheiro desde o surgimento dos serviços de streaming como Netflix. Outros gigantes estão entrando no mercado, como a Disney e a Apple e o consumidor vai fazer a festa. As pessoas veem o que querem, e esta escolha passa cada vez menos pela TV tradicional.
Nossa imprensa perdeu muito em qualidade nas últimas duas décadas, insistindo em jogar dinheiro fora apostando num modelo de negócio falido, onde a atividade fim, a produção de notícias, saiu mais prejudicada. Caiu a qualidade da informação ofertada ao público e ganhou espaço um jornalismo engajado, militante, cuja regra de ouro é esquecer princípios básicos como ouvir os dois lados, apurar a informação, cruzar, checar, levantar circunstâncias, atores, situações e evitar a todo custo julgar, condenar e, acima de tudo, militar. A ponto de, na semana passada, dois marmanjos velhos de guerra trocarem sopapos num estúdio de rádio, cada um em nome da sua militância. Este é o retrato da decadência da grande imprensa brasileira, doente e histérica.
Outro sintoma da crise é o jornalismo de fontes. Contar a notícia sem dizer o nome do informante virou coisa corriqueira. O sujeito entra no ar e diz que uma fonte deu uma informação a qual na maioria das vezes não é checada. No governo Bolsonaro este tipo de jornalismo foi atropelado pela falta de fontes qualificadas. O repórter diz uma coisa no ar e acontece o contrário. O crescimento do jornalismo de opinião, uma feira de palpites, contaminou as redações, mas não o público. Simplesmente porque estas opiniões são irrelevantes para a maioria absoluta das pessoas. O público quer notícias e serviços. Não está nem aí para o que pensam os sábios da imprensa. Se estivessem, Bolsonaro não teria vencido as eleições.
Cada vez mais as pessoas trocam a TV aberta e a TV a cabo por conteúdos do YouTube e Vimeo, como programas de humor, jornalismo, documentários, pornografia. São 130 milhões de brasileiros conectados, dos quais 90% acessam a internet todos os dias. Portais de notícias como este Poder360 ganham mais credibilidade a cada dia investindo em jornalismo saudável, sem histeria ou militância.
O mercado brasileiro também está sendo disputado por veículos estrangeiros como o espanhol El País e a americana CNN. Concorrem com empresas brasileiras e prestam contas aos seus acionistas nas bolsas de Madrid e Nova Iorque, enquanto as daqui seguem brigando por uma parte do dinheiro de empresas públicas como Banco do Brasil, Caixa Econômica, Petrobras, Correios ou os anúncios do governo federal. Esta é a diferença entre financiar jornalismo com a Bolsa de Valores e viver dependurado na bolsa da viúva.
Eugênio Bucci: A missão antipática da imprensa democrática
Jornalismo que ajuda o Brasil é o jornalismo que desafina as narrativas governamentais
À medida que o governo federal sobrevive a si próprio, normalizando o que era impensável, vozes a favor se desinibem em algumas redações jornalísticas. Alegam que os “pontos positivos” do novo poder também precisam ser noticiados.
Até aí, nada de tão grave. Ninguém em sã consciência vai propor que a reportagem esconda fatos nos quais o governo se saia bem. Sendo assim, devemos receber com naturalidade o coro contente que começa a se soltar. Estamos dentro do esperado. Era previsível. Qualquer que seja o mandatário, sempre haverá os que nele veem luzes, mesmo que pálidas. Quem quer que se instale na cadeira e lance mão da caneta – cujo tamanho e cuja potência excitam imaginações despreparadas – contará com amigos a granel dispersos em editorias triviais ou exóticas.
Além de previsível, o diapasão desse otimismo localizado é também legítimo. Jornalistas que reportem méritos no governante de turno não ferem os fundamentos da democracia. Além disso, podem estar buscando uma relação privilegiada com as fontes do Planalto. Autoridades adoram elogios, mesmo que moderados, e, quando satisfeitas, retribuem entrevistas exclusivas no lugar de palavrões.
Há que levar em conta, ainda, que garimpar e difundir notícias edificantes sobre a cúpula do Executivo não é o mesmo que contar mentiras. Com efeito, há um lado bom em tudo nesta vida: nos amores que acabam, no diagnóstico de câncer, no caráter do Neymar e, por que não?, no presidente da República. Em suma, além de legítimo, é relativamente fácil explorar um viés quiçá positivo no meio das tragédias em curso.
Agora vamos ao que mais importa. Tirando a previsibilidade e a legitimidade desse tipo de atitude, a quem ajuda um jornalismo que busque angulações favoráveis ao governo? “Jornalismo a favor” – isso interessa para a opinião pública?
Antes de responder, convém adotarmos uma cautela de método. Para que nosso debate não fique excessivamente contaminado pelas paixões políticas, mudemos de objeto. Imaginemos que, em vez de um governo, o objeto de cobertura fosse mais técnico, menos figadal. Imaginemos que fosse um assunto mais anódino, como, digamos, a aviação comercial. A quem ajudaria um jornalismo que procurasse falar bem das companhias aéreas e mostrar preferencialmente o lado positivo do vaivém dos aviões? A quem serviriam as redações que se empenhassem em noticiar, em detalhes, todos os voos que terminam bem, sem incidentes nem acidentes?
De novo, antes de responder, façamos outra pausa. Tentemos conjecturar como seria a cobertura completa das boas notícias da aviação. Se fizermos essa tentativa, logo veremos que teríamos uma enorme dificuldade de escala, uma vez que são deveras numerosas as viagens aéreas que chegam normalmente ao seu destino.
O site Flightradar24, que rastreia voos em todo o mundo, dá um número estratosférico. No dia 30 de junho de 2018, contou nada menos que 202.157 decolagens em todos os países, um recorde. Pois então. De posse de tamanha cifra, perguntemo-nos: como seria se todas essas boas notícias (“o avião não caiu”) recebessem o justíssimo destaque meritório? Quantos anos deveria durar uma única edição de um telejornal? Quantos quilômetros quadrados deveria ter a primeira página de um diário?
Por aí aprenderíamos, instantaneamente, que o nosso hipotético “jornalismo a favor” tem um problema de escala simplesmente insolúvel. E esse nem seria o maior problema. Além dele, teríamos um descalabro muito mais grave, o da inutilidade social. A quem interessariam tantas reportagens positivas sobre as aeronaves e seus tripulantes maravilhosos? Talvez aos familiares e amigos das aeromoças e dos comissários de bordo, não ao público.
Este é o ponto. As sociedades democráticas inventaram jornalismo não para se deleitar com relatos das coisas que aconteceram conforme o esperado, mas para saber, e rápido, do que deu errado. Notícia é o que fugiu do script. Notícia é o avião que cai. Notícia é o que o poder tenta esconder. É chato, é desagradável, é antipático, mas é o que é. “Agenda positiva” a gente encontra em revista de bordo – ou no discurso de empresários, líderes religiosos, generais ou capitães. No jornalismo independente, “agenda positiva” não tem serventia.
Agora chega de aviação. Voltemos ao nosso objeto original: o governo. Será missão da imprensa reportar as boas ações de ministros? Você pagaria a sua assinatura de jornal para ler os nomes de todos os professores de todas as aulas que começaram e terminaram no horário devido em todas as escolas públicas do País? Ou para ler longos perfis de conselheiros de autarquias que não cometem erros de Português nos memorandos e não praticam o esporte de desviar dinheiro público? É claro que não.
Imprensa só é útil quando aponta indícios de ilícitos e condutas estranhas. Só ajuda quando incomoda quem manda. O melhor que podemos esperar de um jornal é que ele seja o pior pesadelo na rotina de um governante. É claro que jornalistas não devem ser arrogantes ou presunçosos, claro que não devem destratar os entrevistados, prejulgar os suspeitos ou desprezar a boa-fé alheia. Profissionais responsáveis observam os protocolos da elegância e da boa educação. Mas, na essência, jornalistas são pagos para duvidar e para achar defeitos onde o fanatismo vê virtudes miraculosas.
Se queremos um jornalismo que ajude o Brasil, queremos um jornalismo que desafine as narrativas governamentais. O jornalista sério é uma pedra no sapato dos jogos de cena com os quais todos os governos se adornam inevitavelmente. Estamos falando, aqui, de qualquer governo – incluindo o presente.
Jornalistas fortalecem a democracia quando se esmeram no ceticismo – e são verdadeiramente brilhantes quando reconhecem de longe (por mais perto que ocasionalmente estejam) o governante que quer encantoar a liberdade de imprensa para enfraquecer a democracia.
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
Andrea Jubé: "Imprensa brasileira, tamo junto aí!"
Não tem céu de brigadeiro na guerra da comunicação
Para quem acompanha as vicissitudes do relacionamento de Jair Bolsonaro com a imprensa, surpreendeu o armistício proposto na semana passada, na esteira do debate sobre censura e liberdade de expressão: "Imprensa brasileira, tamo junto aí! Esse namoro, esse braço estendido estará sempre à disposição de vocês, um abraço a todos aí!"
O presidente reconheceu os "percalços" na relação, mas argumentou que governo e jornalistas precisam se entender "para que a chama da democracia não se apague". Ensinou: "Melhor uma imprensa capengando do que sem ter imprensa". Um contraste ante as declarações do candidato recém eleito, que contrariado com uma sequência de matérias investigativas, ameaçou cortar verbas de publicidade de um jornal de grande circulação. "Na propaganda oficial do governo, imprensa que se comportar dessa maneira, mentindo descaradamente, não terá apoio do governo federal", ameaçou.
O pano de fundo da aparente nova postura é a batalha da comunicação, que tem de um lado o grupo alinhado ao filósofo Olavo de Carvalho e ao vereador Carlos Bolsonaro, e do outro, a ala militar que responde institucionalmente por essa área no governo.
Desde o incidente do famigerado vídeo da "golden shower" no Carnaval, a cúpula militar interveio para que o presidente adequasse sua conduta à liturgia do cargo. O cessar-fogo, o tom moderado adotado nas sete "lives" que protagonizou em sua conta no Facebook, resultam das diretrizes de comunicação instituídas pelos generais responsáveis pela área: o ministro da Secretaria de Governo, Santos Cruz, e o porta-voz, Otávio do Rêgo Barros.
Ambos são egressos da "escola de comunicação" do general Eduardo Villas Bôas, que sempre defendeu relações amistosas com a imprensa no posto de comandante do Exército (2015-2019). Villas Bôas hoje despacha no Gabinete de Segurança Institucional, ao lado do ministro, general Augusto Heleno. Ambos são bússolas de Bolsonaro no governo.
Foi por indicação de Villas Bôas que Rêgo Barros tornou-se o porta-voz do governo. Seu bordão remete a São Francisco de Assis: "Paz e bem".
Logo após o episódio da "golden shower", os generais tomaram as rédeas da comunicação. Por isso, é sintomático que a interação ao vivo de Bolsonaro com os eleitores - por meio das "lives" no Facebook - tenha começado dois dias após a postagem desastrosa do vídeo obsceno. E foi significativo que Bolsonaro aparecesse no vídeo entre Augusto Heleno e Rêgo Barros, como avalistas da chamuscada imagem do presidente.
E foi nessa conjuntura de aparente pacificação que eclodiu a nova crise de comunicação, provocada por uma publicação de Carlos Bolsonaro, contrapondo Olavo à ala militar. Um vídeo com novas ofensas do professor aos militares foi postado - e depois apagado - na conta de Bolsonaro no YouTube. O conteúdo foi replicado pelas contas de Carlos.
No vídeo, o guru dos Bolsonaro diz que a última contribuição das escolas militares para o ensino brasileiro foram os livros de Euclides da Cunha. Acusa os "milicos" de entregaram o Brasil aos comunistas, de criarem o PT e não terem coragem de confessar.
Foi o estopim de uma tensão que vinha numa escalada havia semanas, com a subsequente postagem de insultos do filósofo ao vice-presidente Hamilton Mourão e ao ministro Santos Cruz.
Houve duas consequências: a primeira, uma nota oficial de Bolsonaro divulgada ontem respondendo as críticas de Olavo aos militares. "Suas recentes declarações contra integrantes dos poderes da República não contribuem para a unicidade de esforços e consequente atingimento de objetivos propostos em nosso projeto de governo".
A segunda consequência foi o novo anúncio de Carlos - considerado o filho mais influente - de se afastar do controle das redes sociais do pai. A publicação do vídeo de Olavo é atribuída a ele nos bastidores. O aviso foi publicado em tom enigmático na noite de domingo, com uma estocada na cúpula militar. "Começo uma nova fase em minha vida. Longe de todos que de perto nada fazem a não ser para si mesmos. O que me importou jamais foi o poder. Quem sou eu neste monte de gente estrelada?"
O "monte de gente estrelada" é uma possível referência aos generais que, mais do que titulares de ministérios relevantes, consolidaram-se como fiadores do governo.
O controle de Carlos sobre as contas pessoais do pai sempre incomodou a ala militar, pelo conteúdo muitas vezes incompatível com o cargo de presidente. A primeira crise foi quando Carlos chamou o então ministro Gustavo Bebianno de "mentiroso" no Twitter. A conta do presidente replicou a ofensa. A segunda grande polêmica foi a publicação do vídeo pornográfico no Carnaval.
O problema é que no meio dessa guerra, não tem céu de brigadeiro pela frente. A promessa de Carlos de se afastar das redes sociais do pai é reprise de um filme velho: na transição, especulou-se que ele assumiria a Secretaria de Comunicação Social, com status de ministério. Mas sua nomeação configuraria nepotismo. Então ele declarou que não queria cargo, e avisou: "desde ontem não tenho mais, por iniciativa própria, qualquer ascensão [sic] às redes sociais de Jair Bolsonaro". A ameaça nunca se confirmou.
Há duas semanas, Bolsonaro admitiu em entrevista à rádio Jovem Pan que o filho controlava suas contas nas redes sociais. "Ah o pitbull? Tá atrapalhando o quê, não me atrapalhou em nada, acho até que devia ter um cargo de ministro", disse o presidente. "Ele que me botou aqui, foi realmente a mídia dele que me botou aqui, e muita gente quer afastá-lo de mim", lamentou.
Por isso, apesar do anúncio no Twitter, Carlos dificilmente se afastará das redes sociais do pai. Como bom pitbull, ele ladra e morde.
Resta às alas conflagradas no governo seguir a recomendação do presidente em sua última "live", a propósito da Páscoa: "É para refletir, pensar no próximo e perdoar". Ele se despediu com "um grande abraço nos homens e um beijo nas mulheres".
Luiz Carlos Azedo: O quarto poder
“O Estado não tem poder algum (…) de restringir e de inviabilizar o direito fundamental do jornalista de informar, de pesquisar, de investigar, de criticar e de relatar fatos e eventos de interesse público”
O papel de “poder moderador” que o Supremo Tribunal Federal (STF) avocou para si, a partir do princípio de que é o guardião da Constituição de 1988, está sendo gradativamente volatilizado pela Operação Lava-Jato, com a ajuda dos próprios integrantes da Corte. Nunca antes o Supremo esteve numa situação em que seu presidente passou do estado líquido para o gasoso, como no episódio da proibição da divulgação de uma reportagem da revista Crusoé e do site O Antagonista, pelo ministro Alexandre de Moraes.
A decisão decorreu do fato de o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, ter sido apontado como suposto investigado pela Operação Lava-Jato, e provocou uma reação em cadeia nas redes sociais, na mídia e no Congresso em defesa da liberdade de imprensa. Depois da enxurrada de críticas, Moraes suspendeu a decisão, com o argumento canhestro de que se comprovou a real existência do documento citado pela reportagem. E Toffoli revogou decisão do ministro Luiz Fux que havia proibido a Folha de São Paulo de entrevistar, na prisão, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Como a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Supremo tomaram conhecimento do conteúdo do documento anexado em um dos processos em que Marcelo Odebrecht é alvo na Justiça Federal de Curitiba, segundo Moraes, se tornou “desnecessária” a manutenção da medida que ordenou a retirada da reportagem do ar. “Diante do exposto, revogo a decisão anterior que determinou ao site O Antagonista e à revista Crusoé a retirada da matéria intitulada ‘O amigo do amigo de meu pai’ dos respectivos ambientes virtuais”, justificou. Moraes investiga vazamentos de documentos de caráter sigiloso da delação premiada do empresário Marcelo Odebrecht, supostamente por parte de integrantes da força-tarefa da Lava-Jato.
Todo mundo tirou uma casquinha do Supremo, até o presidente Jair Bolsonaro, que ontem participou de uma solenidade militar na sede do Comando Militar do Sudeste, na Zona Sul de São Paulo: “Prezados integrantes da mídia, em que pesem alguns percalços entre nós, nós precisamos de vocês para que a chama da democracia não se apague. Precisamos de vocês cada vez mais. Palavras, letras e imagens que estejam perfeitamente imanadas com a verdade. Nós, juntos, trabalhando com esse objetivo, faremos um Brasil maior, grande e reconhecido em todo o cenário mundial. É isso que nós queremos”, discursou.
Censura
O recuo ocorreu porque a maioria dos ministros pressionou Moraes e o presidente do Supremo, Dias Toffoli, para que a decisão fosse sustada sem necessidade de uma manifestação do pleno da Corte. Coube ao decano Celso de Mello expressar a posição da maioria, por meio de uma nota oficial: “A censura, qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição da República.”
Celso de Mello reiterou o papel da liberdade de imprensa na democracia: “O Estado não tem poder algum para interditar a livre circulação de ideias ou o livre exercício da liberdade constitucional de manifestação do pensamento ou de restringir e de inviabilizar o direito fundamental do jornalista de informar, de pesquisar, de investigar, de criticar e de relatar fatos e eventos de interesse público, ainda que do relato jornalístico possa resultar a exposição de altas figuras da República.” E abominou “a prática da censura, inclusive da censura judicial, além de intolerável, constitui verdadeira perversão da ética do Direito e traduz, na concreção do seu alcance, inquestionável subversão da própria ideia democrática que anima e ilumina as instituições da República”. Nas democracias do Ocidente, a liberdade de imprensa é uma espécie de “quarto poder”.
No Brasil, o “poder moderador” é uma herança do Império. Foi incorporado à Constituição de 1824 por Dom Pedro I, inspirado no esquema clássico de separação de poderes de Montesquieu, que os dividiu em Executivo, Legislativo e Judiciário, mas acrescentou mais um: o poder real. Em 1889, com a proclamação da República, o Poder Moderador foi extinto no Brasil, mas, na prática, seu papel passou a ser exercido pelos militares, o que provocou uma sucessão infindável de crises políticas. Desde a questão militar, após a Guerra do Paraguai, na década de 1890, até 1988, quando foi promulgada a atual Constituição, militares e políticos se digladiaram em vários momentos (1889, 1920, 1930, 1935, 1937, 1945, 1954, 1958, 1962, 1964, 1968, 1985), com episódios dramáticos.
Os militares sempre se acharam moralmente superiores aos políticos civis, porque se consideram os “salvadores da pátria”; e os políticos sempre temeram os militares, porque atuaram na política com a força das armas na maioria das vezes. As exceções foram as eleições de Floriano Peixoto (1891), Hermes da Fonseca (1910) e Eurico Gaspar Dutra (1946), que chegaram ao poder pelo voto. Todos passaram a Presidência para civis igualmente eleitos: Prudente de Moraes (1898), Venceslau Brás (1914) e Getúlio Vargas (1951). Bolsonaro, que mal começou seu mandato, apesar de certo dejà vu, faz parte de um novo ciclo democrático.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-quarto-poder/
Míriam Leitão: Ataque à imprensa e o autoritarismo
Há diversas formas de ameaçar a liberdade de imprensa. O governo Bolsonaro está estimulando ataques a jornalistas
Há várias formas de ameaçar a liberdade de imprensa. O governo Bolsonaro tenta um novo tipo, que é expor na rede os jornalistas como forma de tolher, ameaçar, intimidar pessoas que estão no exercício da profissão. Já fez isso várias vezes usando a rede de sites, perfis e bots que controla desde a campanha. Neste caso que atingiu uma repórter do “Estadão”, ele usou o cargo de presidente para divulgar uma mentira, e isso é um crime duplo porque a Presidência tem poderes que não podem ser usados com essa leviandade.
O presidente Jair Bolsonaro não gosta dos jornais e jornalistas que não lhe seguem cegamente e de forma acrítica. Acha que pode, através das redes sociais, substituir entrevistas por lives do Facebook, trocar os anúncios oficiais da Presidência por disparos no Twitter, e que ele e seus filhos podem promover falsos jornalistas e perseguir os profissionais dos quais eles não gostam. Não dará certo, como outras investidas autoritárias também fracassaram.
Eu escrevi em 2004 várias colunas criticando duramente as investidas contra a imprensa pelo governo Lula, em seu início. Elas estão publicadas no meu primeiro livro, “Convém Sonhar”. O então ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu propôs a criação de duas agências para controlar os jornalistas. Na exposição de motivos para o Congresso, argumentou que sua iniciativa se devia ao fato de não haver uma instituição capaz de “fiscalizar e punir as condutas inadequadas dos jornalistas”.
Os poderosos de então, como os de hoje, estão errados. Os jornalistas estão submetidos a todas as leis do país. E principalmente ao escrutínio de quem nos lê, ouve, assiste, segue. Se naquela época o PT queria inventar uma agência que punisse os discordantes, agora o presidente Bolsonaro cria milícias digitais que simulam o movimento natural da opinião pública, e às quais ele pessoalmente dá a senha de atacar.
O caso deste fim de semana deve ser analisado cuidadosamente para se entender a forma Bolsonaro de ameaçar a liberdade de imprensa. Um blog assinado pelo jornalista e documentarista marroquino Jawab Rhalib, hospedado no site francês chamado Mediapart, publica trechos de uma suposta entrevista de Constança Rezende e inventa a frase “a intenção é arruinar Flávio Bolsonaro e o governo”. Rhalib não entrevistou a repórter do “Estadão”. Recorreu a uma conversa que ela teve com uma pessoa que se apresentou como estudante para entrevistá-la. Na própria transcrição que o blog faz não aparece a frase atribuída a ela e ressaltada na postagem do presidente brasileiro. Bolsonaro deu curso a uma mentira e insuflou seguidores a atacar a jornalista.
A Agência Lupa fez a verificação e mostrou que era falso, o “Estadão” também desmentiu, mas o linchamento virtual continuou, já que teve o aval do próprio presidente. Ontem à tarde, o Mediapart publicou em português, em sua conta no Twitter, que não tem responsabilidade sobre a seção de blogs — destinada a leitores — e que a informação que Bolsonaro divulgou não era verdadeira. A propósito, quem ameaça o senador, filho do presidente, é ele próprio e seu amigo Fabrício Queiroz. Quando esclarecerem as movimentações bancárias estranhas, cessará o problema.
Não é a primeira vez que o bolsonarismo ataca jornalistas. Os métodos já são conhecidos: ameaças, xingamentos, uso de pedaços de verdade para construir uma grande mentira, intimidação, exposição do rosto do repórter com o aviso de que aquela pessoa é o alvo da vez. Isso já foi feito várias vezes nestes poucos meses que vão da campanha, transição e exercício do poder.
O ataque virtual é idêntico ao que fazia o então presidente Hugo Chávez. Ele era capaz, como vi em Caracas, de no meio de uma multidão que o aclamava apontar para um jornalista presente ao evento e acusá-lo de ser um inimigo do bolivarianismo, colocando-o em risco físico. Como agora se aponta na rede quem supostamente é inimigo do bolsonarismo.
Em abril de 2004, escrevi neste espaço contra governantes autoritários. “São perigosos, estejam eles na esquerda ou na direita, seja de que partido forem”. Naquela época me referia a essa tentativa do PT de criar agências para controle da imprensa, projeto que acabou sendo retirado diante das muitas críticas. O governo usou então sites aos quais repassava grandes somas de dinheiro para criticar alguns jornalistas. Aquela coluna escrita há 15 anos tem frases que parecem atualíssimas, como por exemplo, a que dizia: “Senhores governantes, por favor governem”. É o que está faltando a Bolsonaro. Dedicar-se ao exercício do cargo para o qual foi eleito e que tem usado de forma tão abusiva.
O Estado de S. Paulo: Museu Nacional abre as portas pela primeira vez após incêndio
Imprensa acompanhou trabalhos de arqueologia da equipe de resgate em meio aos escombros deixados pelo fogo
Roberta Jansen, O Estado de S.Paulo
RIO - O meteorito Bendegó segue incólume no hall de entrada do Museu Nacional, a despeito de toda a destruição a sua volta. Com 4,56 bilhões de anos, a rocha espacial, claro, sobreviveu ao incêndio que destruiu a instituição em setembro do ano passado. Hoje, é o símbolo maior dos trabalhos de reconstrução do prédio e da resiliência da ciência no País.
Oriundo de uma região do Sistema Solar entre os planetas Marte e Júpiter, o meteorito viajou até Monte Santo, no sertão da Bahia, onde foi achado em 1784. O transporte da rocha de 5,36 toneladas para o Rio de Janeiro no século XIX foi algo muito próximo de uma epopeia espacial. É uma das peças mais antigas da coleção do museu, onde está desde 1888, e, segue sendo uma espécie de âncora do acervo que vem sendo recuperado em meio aos escombros deixados pelo fogo.
Museu Nacional abre as portas pela primeira vez depois do incêndio
"O meteorito não sofreu quase nenhuma alteração por conta de suas características: essas estruturas vêm do espaço, enfrentando temperaturas muito mais altas do que qualquer incêndio que possa ocorrer aqui na Terra", explicou o paleontólogo Sérgio Azevedo. "O Bendegó é uma peça muito importante, que está na exposição desde o início e agora é um símbolo da resistência do museu, um testemunho de todo o trabalho que está sendo feito aqui."
Nesta terça-feira, a direção do museu abriu as portas à imprensa pela primeira vez desde o incêndio, que acompanhou, durante toda a manhã, os trabalhos de arqueologia da equipe de resgate em meio aos escombros deixados pelo fogo. É um trabalho meticuloso, delicado, e, sobretudo, de muita paciência.
O trabalho que está sendo concluído este mês é o de estabilização do prédio, que perdeu teto, muitas paredes e vários andares. O escoramento permite, agora, que as pessoas andem dentro do prédio, trabalhando no resgate arqueológico. Até o fim de março, será instalada uma cobertura provisória do prédio, cujo objetivo é proteger as peças que ainda estão por ser resgatadas.
Meteorito Bendegó sobreviveu às chamas e virou símbolo da resistência do Museu Foto: Wilton Junior/Estadão
"Assim que todo o trabalho de estabilização estiver concluído e a cobertura pronta, vamos focar o trabalho nas áreas que precisam de escavação sistemática", explicou a arqueóloga Cláudia Carvalho, líder da equipe de resgate. "É um trabalho delicado, a gente identifica um objeto, analisa a situação, determina uma estratégia de abordagem; o material vai para a área de triagem, recebe um número de registro e, dependendo da situação, vai para o laboratório, para limpeza e armazenamento, até podermos fazer um inventário mais detalhado."
Cláudia contou que já foram feitos dois mil registros de peças achadas dentro do museu. "A maioria é de objetos que, por sua natureza, são mais resistentes, como cerâmicas, rochas, minerais, fósseis", disse.
Mas esse trabalho ainda é muito superficial. Trata-se apenas de registrar o achado e guardar, basicamente. Somente num segundo momento, haverá uma avaliação mais aprofundada do que pode ser resgatado em termos de porcentual do acervo original.
Uma exposição - ainda sem data para acontecer - será aberta ao público para exibir, justamente, esse trabalho de resgate e as peças já encontradas.
Já se sabe que parte significativa do crânio de Luzia - o fóssil mais antigo das Américas, com cerca de 11 mil anos - foi resgatado. E que o Bendegó seguirá impávido em seu lugar na entrada do museu, saudando o público ainda por muitos anos.
Carlos Alberto Di Franco: A imprensa e Bolsonaro
É necessário superar o clima de briga de adolescentes e achar o ponto de equilíbrio
Bolsonaro não gosta da imprensa. Acredita, equivocadamente, que as redes sociais são a bola da vez. Não percebe que agenda pública continua sendo determinada pelas empresas jornalísticas tradicionais. O que você conversa com os amigos, goste ou não, foi sussurrado por uma pauta de jornal. As redes sociais reverberam, multiplicam. Mas o pontapé inicial é dado por um repórter. Bolsonaro precisa conversar com a mídia. As críticas aos governantes, mesmo injustas, fazem parte do jogo. Não é possível recriar uma versão indesejável do “nós contra eles”. Não é bom para o País.
Mas a imprensa, reconheçamos, está uma arara com o estilo agressivo do presidente, sobretudo dos seus filhos. Por isso tem sido exagerada e superficial no seu olhar crítico a um governo que está dando os primeiros passos. Um governo só pode ser avaliado depois que se constate se as coisas melhoraram ou pioraram em consequência das decisões que pôs em prática. É necessário superar o clima de briga de adolescentes e encontrar o ponto de equilíbrio: respeito e independência.
Governo e imprensa não podem ter uma relação promíscua. É salutar certa tensão entre as instituições. Mas precisam conversar. São peças essenciais da estrutura democrática. Espero que Bolsonaro desça do palanque e assuma o papel de presidente de todos os brasileiros. Espero, também, que nós, jornalistas, deponhamos as armas da militância e façamos jornalismo.
Jornalismo é a busca do essencial, sem adereços, adjetivos ou adornos. O jornalismo transformador é substantivo. Sua força não está na militância ideológica ou partidária, mas no vigor persuasivo da verdade factual e na integridade da sua opinião. A credibilidade não é fruto de um momento. É o somatório de uma longa e transparente coerência.
A ferramenta de trabalho dos jornalistas é a curiosidade. A dúvida. A interrogação. Há um ceticismo ético, base da boa reportagem investigativa. É a saudável desconfiança que se alimenta de uma paixão: o desejo dominante de descobrir e contar a verdade.
Outra coisa, bem diferente, é o jornalismo de suspeita. O profissional suspicaz não tem “olhos de ver”. Não admite que possam existir decência, retidão, bondade. Tudo passa por um crivo negativo que se traduz numa incapacidade crescente de elogiar o que deu certo. O jornalista não deve ser ingênuo. Mas não precisa ser cínico. Basta ser honrado, trabalhador, independente.
A fórmula de um bom jornal reclama uma balanceada combinação de convicção e dúvida. A candura, num país marcado pela tradição da impunidade, acaba sendo um desserviço à sociedade. Essa atitude, contudo, não se confunde com o cinismo de quem sabe “o preço de cada coisa e o valor de coisa alguma”. O repórter, observador diário da corrupção e da miséria moral, não pode deixar que a alma envelheça. Convém renovar a rebeldia sonhadora do começo da carreira. Todos os dias. O coração do repórter deve pulsar em cada matéria.
Alguns desvios podem comprometer o resultado final do trabalho. A precipitação é um vírus que ameaça a qualidade informativa. Repórteres carentes de informação especializada e de documentação apropriada ficam reféns da fonte. Sobra declaração, mas falta apuração rigorosa. O poder público tem notável capacidade de pautar jornais. Fonte de governo é importante, mas não é a única. O jornalismo de registro, pobre e simplificador, repercute o Brasil oficial, mas oculta a verdadeira dimensão do País real. Muitas pautas estão quicando na nossa frente. Muitas histórias interessantes estão para ser contadas. Precisamos fugir do show político e fazer a opção pela informação que realmente conta. Só assim, com didatismo e equilíbrio, conseguiremos separar a notícia do lixo declaratório.
O culto à frivolidade e a submissão à ditadura dos modismos estão na outra ponta do problema. Vivemos sob o domínio do politicamente correto. E o dogma do politicamente correto não deixa saída: de um lado, só há vilões; de outro, só se captam perfis de mocinhos. E sabemos que não é assim. A vida tem matizes. O verdadeiro jornalismo não busca apenas argumentos que reforcem a bola da vez, mas também, com a mesma vontade, os argumentos opostos. Estamos carentes de informação e faltos da boa dialética. Sente-se o leitor conduzido pela força de nossas idiossincrasias.
Registremos, ademais, os perigos do jornalismo de dossiê. Os riscos de instrumentalização da imprensa são evidentes. Por isso é preciso revalorizar, e muito, as clássicas perguntas que devem ser feitas a qualquer repórter que cumpre pauta investigativa: checou? Tem provas? A quem interessa essa informação? Trata-se de eficiente terapia no combate ao vírus da leviandade.
O esforço de isenção, no entanto, não se confunde com a omissão. O leitor espera uma imprensa combativa, disposta a exercer o seu intransferível dever de denúncia. Menos registro e mais apuração. Menos fofoca e mais seriedade. Menos espetáculo de marketing político e mais consistência.
Finalmente, precisamos ter transparência no reconhecimento de nossos equívocos. Uma imprensa ética sabe reconhecer os seus erros. As palavras podem informar corretamente, denunciar situações injustas, cobrar soluções. Mas podem também esquartejar reputações, destruir patrimônios, desinformar. Confessar um erro de português ou uma troca de legendas é fácil. Porém admitir a prática de atitudes de prejulgamento, de manipulação informativa ou de leviandade noticiosa exige coragem moral. Reconhecer o erro, limpa e abertamente, é o pré-requisito da qualidade e, por isso, um dos alicerces da credibilidade.
A força de uma publicação não é fruto do acaso. É uma conquista diária. A credibilidade não combina com a leviandade. Só há uma receita duradoura: ética, profissionalismo e talento. O leitor, cada vez mais crítico e exigente, quer notícia. Quer informação substantiva.
*Carlos Alberto Di Franco é jornalista.