frente democrática

Os democratas devem pautar o debate público

Dedicado à memória do jornalista Marco Antônio Tavares Coelho.

Cláudio de Oliveira

As forças democráticas precisam pautar o debate público do país. Esse debate não pode girar em torno da agenda de Jair Bolsonaro, pois ela não representa, em grande parte, os interesses e as necessidades da maioria da sociedade brasileira.

Naturalmente, quem está na chefia do Executivo tem grande força política para definir os termos do debate. O presidencialismo brasileiro concentra grande poder na mão do presidente, que detém a iniciativa política.

Também contribuem para tal fato, a fragmentação partidária e a fraqueza dos partidos políticos no Brasil. As oposições estão divididas e algumas delas voltadas para os seus problemas.

Mas, recentemente, no início da pandemia do coronavírus, a Câmara dos Deputados, então presidida pelo deputado Rodrigo Maia, mostrou capacidade política de propor os termos do debate e liderar, de algum modo, o enfrentamento da pandemia. Foram muitas as iniciativas dos deputados para a condução da crise sanitária, em contraste com o negacionismo, o boicote e a inação do governo federal.

Depois de esperar por duas semanas por uma proposta oficial de auxílio-emergencial, anunciada verbalmente pelo ministro Paulo Guedes no valor de R$ 200, Rodrigo Maia colocou em votação a proposta de auxílio da própria Câmara, inicialmente no valor de R$ 500 e aprovada depois para R$ 600. Como sabemos, o auxílio foi fundamental para socorrer parcela expressiva da população que se viu sem fonte de renda por conta da pandemia.

Também partiram da Câmara dos Deputados diversas iniciativas necessárias ao enfrentamento da Covid-19, como a aprovação de um orçamento extraordinário da pandemia, que autorizava o chefe do Executivo a desconsiderar o teto de gastos.

Mesmo a reforma da Previdência de 2019 deveu-se sobretudo à ação parlamentar, da aprovação de um tema que estava na pauta do país desde pelos menos 1998, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso apresentou sua proposta visando garantir a higidez da Previdência pública, derrotada por um voto.

Como analisou a economista Laura Carvalho, assessora econômica do candidato a presidente pelo PSOL, Guilherme Boulos, o texto da reforma da Previdência aprovado “ficou a anos-luz do original no que tange ao impacto sobre os mais pobres”(1). Uma diferença fundamental: foi mantido o atual sistema previdenciário de repartição, como propuseram os constituintes de 1987/1988, diferentemente do modelo de capitalização do Chile, desejado pelo ministro Paulo Guedes.

A decisão do Senado de instalar a CPI da Pandemia deu às forças democráticas a iniciativa de pautar os termos do debate em torno da crise sanitária, deixando o governo Jair Bolsonaro na defensiva e provocando alterações significativas no executivo federal.

As forças democráticas devem agora tentar pautar o debate de forma positiva, apresentando suas propostas para o Brasil pós-pandemia. Como já ficou demonstrado desde 2019, o governo Bolsonaro não tem um projeto de desenvolvimento para o país.

Ajustar as contas públicas e fazer reformas do Estado são medidas necessárias porém insuficientes para relançar o Brasil em um novo ciclo de desenvolvimento que o qualifique para a grande competição global. Lembrando ainda que os ajustes realizados e as reformas propostas pela atual equipe econômica, com poucas exceções, foram de qualidade e efeitos duvidosos.

Some-se à falta de projeto do governo, o isolamento internacional que o Brasil foi jogado por Jair Bolsonaro, por sua política externa ideológica de extrema-direita, a ação em prol do “lupem-empresariado” como madeireiros, garimpeiros e grileiros, e o desmonte de importantes instituições do país, inclusive em setores estratégicos como ciência, pesquisa, tecnologia, educação e cultura.

O afastamento do presidente Jair Bolsonaro é um imperativo que se impõe, não só por essas questões como principalmente pela tentativa de erosão das instituições democráticas e do Estado de Direito. As forças democráticas devem, portanto, pautar o impedimento do presidente da República como primeiro item do debate público.

Além disso, devem apresentar a agenda que realmente interessa ao país: como aperfeiçoar as instituições e os órgãos de controle da corrupção no país, como democratizar e melhorar a representação político-partidária, como retomar o crescimento econômico, como retomar e ampliar a inclusão social, como acelerar a transição para uma economia verde de carbono zero, como melhorar os programas de proteção social, como avançar na questão crucial da educação, como aperfeiçoar o SUS – que deu provas de vitalidade no enfrentamento da pandemia, apesar da pouca coordenação em nível federal.

É em torno de uma pauta progressista que as forças democráticas devem fazer com que o debate público gire, apresentando à sociedade brasileira propostas concretas para os grandes desafios nacionais e as soluções positivas para os problemas que afligem a nossa gente.

* Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista e autor dos livros ERA UMA VEZ EM PRAGA – Um brasileiro na Revolução de Veludo e LÊNIN, MARTOV A REVOLUÇÃO RUSSA E O BRASIL, entre outros.

PS: Para ilustrar este artigo usei imagem que recebi pelas redes sociais de um chamado Bloco Democrático, do qual, defendo, nenhum partido ou movimento do campo democrático deve ser excluído.

NOTA
(1) Laura Carvalho - A previdência pública sobrevive
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2019/07/a-previdencia-publica-sobrevive.shtml?origin=folha


Ricardo Noblat: Presidente só pode o que a lei permite e o Congresso aceite

Liberdade de expressão ganha mais uma

Guardo, emoldurada, minha ficha do Serviço Nacional de Informações, o órgão de espionagem da ditadura de 64. Tão poderoso que dos seus quadros saíram dois presidentes da República: os generais Garrastazu Médici e João Figueiredo.

Ao rever a ficha, dei-me conta das vezes que já fui alvo da Lei de Segurança Nacional em 54 anos de jornalismo. A primeira foi em 1968 por ter participado do congresso da União Nacional dos Estudantes, entidade amaldiçoada pelo regime militar.

A segunda vez foi quando eu e mais 25 colegas, em março de 1969, fomos expulsos da universidade por “atividades” qualificadas de “subversivas” – tais como fazer passeatas e discursos contra a ditadura. Por um ano fomos proibidos de estudar.

Os processos que respondi com base na famigerada lei não deram em nada. Como deu em nada o mais recente – desta vez por publicar na versão deste blog no Twitter uma charge do cartunista Aroeira sobre Bolsonaro. Ambos respondemos a inquérito.

O inquérito foi aberto pela Polícia Federal a pedido do ministro André Mendonça, da Justiça, e a mando do presidente da República que defendeu a tortura de presos políticos e está pronto para celebrar, em breve, mais um aniversário do golpe militar.

Perguntaram-me se pretendi ofender a figura do presidente, injuriá-lo, caluniá-lo ou difamá-lo. Respondi que não, Deus me livre. Respeito as autoridades públicas, principalmente as eleitas, por mais que as critique, dever de todo jornalista que se preza.

Perguntaram-me então por que postei a charge. Respondi que ela já havia sido postada centenas de vezes antes, alcançando merecido sucesso nas redes. A meu ver, jornalismo serve para satisfazer os aflitos e afligir os satisfeitos – é o caso de Bolsonaro.

Devo satisfações ao meu patrão – o distinto público de todas as cores, credos e ideologias. Se ele me dá as costas, perco o emprego. Já perdi algumas vezes porque foram meus empregadores que, incomodados, me deram as costas. Fazer o quê? Vida que segue.

O jornalismo não é diferente de qualquer outra profissão. Cobra talento, disciplina, paixão, suor e sorte. Mas não é igual a qualquer outra profissão. E por causa de um detalhe crescentemente desvalorizado desde a erupção das redes sociais: a verdade.

A missão do jornalista é buscar a verdade ou a melhor versão dela e oferecê-la ao público de maneira compreensível e honesta. É só para isso que serve o jornalismo. Se servir para outras coisas, não serve ao público. E se não serve, é um simulacro de jornalismo.

Antes de se eleger deputado federal pela primeira vez, Miro Teixeira foi jornalista. Como político, destacou-se por combater a ditadura com firmeza, sempre em defesa das melhores causas. Foi ele que advogou agora a meu favor e a favor de Aroeira.

O despacho da procuradora da República Marina Selos Ferreira, favorável ao arquivamento do inquérito, deu razão integral aos argumentos usados por Miro. Depois de citar farta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ela concluiu:

“Assim, sem descurar da compreensão de que o direito à manifestação não se reveste de caráter absoluto, tem-se que a liberdade de expressão, concretizada através da produção e publicação de charge devidamente contextualizada, e como fundamento do pluralismo de ideias, deve se sobrepor a interpretações punitivistas que buscam por meio da sanção penal intimidar ou mesmo suprimir a força do pensamento crítico e da oposição, os quais são indispensáveis à dialética do regime democrático”.

Mais do que informações, o jornalismo deve transmitir entendimento. Porque é do entendimento que deriva o Poder. Numa democracia, o Poder é dos cidadãos. E para que funcione na sua plenitude, a democracia depende de cidadãos bem informados.

Todas as pessoas têm direito à própria opinião, mas não têm direito aos próprios fatos, ensinou um senador americano. Fatos são fatos, não escolhas aleatórias. O vírus só poderá ser vencido com vacina, é fato! A terra é plana não é fato, é opinião de idiota.

É fato que Bolsonaro foi eleito pela maioria dos brasileiros. Como é fato que foi eleito por apenas 39% dos eleitores aptos a votar. Poderiam ter votado 147 milhões, e ele teve menos de 58 milhões dos votos. Não recebeu o poder para fazer o que quiser.

O Presidente da República só pode o que a Constituição permite e o Congresso aceite. Não foi eleito para esmagar a minoria. Não pode interpretar as leis ao seu bel prazer, e muito menos valer-se delas para tentar intimidar quem quer que seja.


Merval Pereira: Lockdown emergencial

Centenas de economistas, entre eles quatro ex-ministros da Fazenda (Marcilio Marques Moreira, Pedro Malan, Mailson da Nóbrega e Rubem Ricupero), cinco ex-presidentes do Banco Central (Afonso Celso Pastore, Arminio Fraga, Gustavo Loyola, Ilan Goldfajn e Pérsio Arida), ex-presidentes do BNDEs (Edmar Bacha, Eleazar de Carvalho) dentre outros, abrangendo diversas gerações de economistas, pessoas da academia, do mercado financeiro, ex-membros de governos diversos, e empresários lançaram uma Carta intitulada “País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo”, a propósito da atual crise brasileira, com sugestões concretas do que deve ser feito para tentarmos superar a pandemia da Covid-19.

Diante de situação econômica e social “desoladora”, e de um governo que “subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia”, eles sugerem até mesmo a possibilidade de adoção de um lockdown nacional. Calculam que a redução do nível da atividade nos custou menos do que o atraso na vacinação:

“Uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em dois trimestres”.

Segundo os economistas, “o efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social” e, além do auxílio emergencial, “não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais”.

O documento destaca que “a experiência internacional com programas de aval público para financiamento privado voltado para pequenos empreendedores durante um choque negativo foi bem-sucedida na manutenção de emprego, gerando um benefício líquido positivo à sociedade”. A retomada de linhas avalizadas pelo Fundo Garantidor para Investimentos e Fundo de Garantia de Operações é uma medida importante de transição entre a segunda onda e o pós-crise.

As medidas imediatas seriam:

1 - Acelerar o ritmo da vacinação, usando a política externa para apoiar a obtenção de vacinas, seja nos grandes países produtores, seja nos que têm ou terão excedentes em breve.

2 - Incentivar o uso de máscaras, tanto com distribuição gratuita quanto com orientação educativa. O Brasil poderia distribuir máscaras à população de baixa renda, explicando a importância do seu uso na prevenção da transmissão da Covid. Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Center for Disease Control do EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial.

3 - Implementar medidas de distanciamento social no âmbito local, com coordenação nacional. As decisões devem ser de responsabilidade das autoridades locais. É urgente que os diferentes níveis de governo estejam preparados para implementar um lockdown emergencial, definindo critérios para a sua adoção.

O fechamento de escolas no Brasil atingiu de forma mais dura as crianças mais pobres e suas mães. Portanto, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir em um esquema de distanciamento social.

4 - Criar mecanismo de coordenação do combate à pandemia em âmbito nacional – preferencialmente pelo Ministério da Saúde e, na sua ausência, por consórcio de governadores – orientada por uma comissão de cientistas e especialistas.

“O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos em que o país incorre”.

Integra da carta:

O País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo

Carta Aberta à Sociedade Referente a Medidas de Combate à Pandemia

O Brasil é hoje o epicentro mundial da Covid-191, com a maior média móvel de novos casos.

Enquanto caminhamos para atingir a marca tétrica de 3 mil mortes por dia e um total de mortes acumuladas de 300 mil ainda esse mês, o quadro fica ainda mais alarmante com o esgotamento dos recursos de saúde na grande maioria de estados, com insuficiente número de leitos de UTI, respiradores e profissionais de saúde. Essa situação tem levado a mortes de pacientes na espera pelo atendimento, contribuindo para uma maior letalidade da doença.

A situação econômica e social é desoladora. O PIB encolheu 4,1% em 2020 e provavelmente observaremos uma contração no nível de atividade no primeiro trimestre deste ano². A taxa de desemprego, por volta de 14%, é a mais elevada da série histórica, e subestima o aumento do desemprego, pois a pandemia fez com que muitos trabalhadores deixassem de procurar emprego, levando a uma queda da força de trabalho entre fevereiro e dezembro de 5,5 milhões de pessoas.

A contração da economia afetou desproporcionalmente trabalhadores mais pobres e vulneráveis, com uma queda de 10,5% no número de trabalhadores informais empregados, aproximadamente duas vezes a queda proporcional no número de trabalhadores formais empregados³.

Esta recessão, assim como suas consequências sociais nefastas, foi causada pela pandemia e não será superada enquanto a pandemia não for controlada por uma atuação competente do governo federal. Este subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia. Sabemos que a saída definitiva da crise requer a vacinação em massa da população. Infelizmente, estamos atrasados. Em torno de 5% da população recebeu ao menos uma dose de vacina, o que nos coloca na 45ª posição no ranking mundial de doses aplicadas por habitante.

O ritmo de vacinação no país é insuficiente para vacinar os grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI) no 1º semestre de 2021, o que amplia o horizonte de vacinação para toda a população para meados de 2022.

As consequências são inomináveis. No momento, o Brasil passa por escassez de doses de vacina, com recorrentes atrasos no calendário de entregas e revisões para baixo na previsão de disponibilidade de doses a cada mês. Na semana iniciada em 8 de março foram aplicadas, em média, apenas 177 mil doses por dia.

No ritmo atual, levaríamos mais de 3 anos para vacinar toda a população. O surgimento de novas cepas no país (em especial a P.1) comprovadamente mais transmissíveis e potencialmente mais agressivas, torna a vacinação ainda mais urgente. A disseminação em larga escala do vírus, além de magnificar o número de doentes e mortos, aumenta a probabilidade de surgirem novas variantes com potencial de diminuir a eficácia das vacinas atuais.

Vacinas são relativamente baratas face ao custo que a pandemia impõe à sociedade. Os recursos federais para compra de vacinas somam R$ 22 bilhões, uma pequena fração dos R$ 327 bilhões desembolsados nos programas de auxílio emergencial e manutenção do emprego no ano de 2020.

Vacinas têm um benefício privado e social elevado, e um custo total comparativamente baixo. Poderíamos estar em melhor situação, o Brasil tem infraestrutura para isso. Em 1992, conseguimos vacinar 48 milhões de crianças contra o sarampo em apenas um mês.

Na campanha contra a Covid-19, se estivéssemos vacinando tão rápido quanto a Turquia, teríamos alcançado uma proporção da população duas vezes maior, e se tanto quanto o Chile, dez vezes maior. A falta de vacinas é o principal gargalo. Impressiona a negligência com as aquisições, dado que, desde o início da pandemia, foram desembolsados R$ 528,3 bilhões em medidas de combate à pandemia, incluindo os custos adicionais de saúde e gastos para mitigação da deteriorada situação econômica. A redução do nível da atividade nos custou uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em 2 trimestres.

Nesta perspectiva, a relação benefício custo da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na sua aquisição e aplicação. A insuficiente oferta de vacinas no país não se deve ao seu elevado custo, nem à falta de recursos orçamentários, mas à falta de prioridade atribuída à vacinação.

O quadro atual ainda poderá deteriorar-se muito se não houver esforços efetivos de coordenação nacional no apoio a governadores e prefeitos para limitação de mobilidade. Enquanto se busca encurtar os tempos e aumentar o número de doses de vacina disponíveis, é urgente o reforço de medidas de distanciamento social. Da mesma forma é essencial a introdução de incentivos e políticas públicas para uso de máscaras mais eficientes, em linha com os esforços observados na União Europeia e nos Estados Unidos.

A controvérsia em torno dos impactos econômicos do distanciamento social reflete o falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável. Na realidade, dados preliminares de óbitos e desempenho econômico sugerem que os países com pior desempenho econômico tiveram mais óbitos de Covid-19. A experiência mostrou que mesmo países que optaram inicialmente por evitar o lockdown terminaram por adotá-lo, em formas variadas, diante do agravamento da pandemia – é o caso do Reino Unido, por exemplo. Estudos mostraram que diante da aceleração de novos casos, a população responde ficando mais avessa ao risco sanitário, aumentando o isolamento voluntário e levando à queda no consumo das famílias mesmo antes ou sem que medidas restritivas formais sejam adotadas.15 A recuperação econômica, por sua vez, é lenta e depende da retomada de confiança e maior previsibilidade da situação de saúde no país.

Logo, não é razoável esperar a recuperação da atividade econômica em uma epidemia descontrolada.

O efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social. Em particular, os trabalhadores informais, que constituem mais de 40% da força de trabalho, não têm proteção contra o desemprego. No ano passado, o auxílio emergencial foi fundamental para assistir esses trabalhadores mais vulneráveis que perderam seus empregos, e levou a uma redução da pobreza, evidenciando a necessidade de melhoria do nosso sistema de proteção social. Enquanto a pandemia perdurar, medidas que apoiem os mais vulneráveis, como o auxílio emergencial, se fazem necessárias. Em paralelo, não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais. Uma proposta nesses moldes é o programa de Responsabilidade Social, patrocinado pelo Centro de Debate de Políticas Públicas, encaminhado para o Congresso no final do ano passado.

Outras medidas de apoio às pequenas e médias empresas também se fazem necessárias. A experiência internacional com programas de aval público para financiamento privado voltado para pequenos empreendedores durante um choque negativo foi bem-sucedida na manutenção de emprego, gerando um benefício líquido positivo à sociedade.

O aumento em 34,7% do endividamento dos pequenos negócios durante a pandemia amplifica essa necessidade. A retomada de linhas avalizadas pelo Fundo Garantidor para Investimentos e Fundo de Garantia de Operações é uma medida importante de transição entre a segunda onda e o pós-crise.

Estamos no limiar de uma fase explosiva da pandemia e é fundamental que a partir de agora as políticas públicas sejam alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica. Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive.

Medidas indispensáveis de combate à pandemia: a vacinação em massa é condição sine qua non para a recuperação econômica e redução dos óbitos.

1 - Acelerar o ritmo da vacinação. O maior gargalo para aumentar o ritmo da vacinação é a escassez de vacinas disponíveis. Deve-se, portanto, aumentar a oferta de vacinas de forma urgente. A estratégia de depender da capacidade de produção local limitou a disponibilidade de doses ante a alternativa de pré-contratar doses prontas, como fez o Chile e outros países. Perdeu-se um tempo precioso e a assinatura de novos contratos agora não garante oferta de vacinas em prazo curto. É imperativo negociar com todos os laboratórios que dispõem de vacinas já aprovadas por agências de vigilância internacionais relevantes e buscar antecipação de entrega do maior número possível de doses. Tendo em vista a escassez de oferta no mercado internacional, é fundamental usar a política externa – desidratada de ideologia ou alinhamentos automáticos – para apoiar a obtenção de vacinas, seja nos grandes países produtores seja nos países que têm ou terão excedentes em breve.

A vacinação é uma corrida contra o surgimento de novas variantes que podem escapar da imunidade de infecções passadas e de vacinas antigas. As novas variantes surgidas no Brasil tornam o controle da pandemia mais desafiador, dada a maior transmissibilidade.

Com o descontrole da pandemia é questão de tempo até emergirem novas variantes. O Brasil precisa ampliar suas capacidades de sequenciamento genômico em tempo real, de compartilhar dados com a comunidade internacional e de testar a eficácia das vacinas contra outras variantes com máxima agilidade. Falhas e atrasos nesse processo podem colocar em risco toda a população brasileira, e também de outros países.

2 - Incentivar o uso de máscaras tanto com distribuição gratuita quanto com orientação educativa. Economistas estimaram que se os Estados Unidos tivessem adotado regras de uso de máscaras no início da pandemia poderiam ter reduzido de forma expressiva o número de óbitos. Mesmo se um usuário de máscara for infectado pelo vírus, a máscara pode reduzir a gravidade dos sintomas, pois reduz a carga viral inicial que o usuário é exposto. Países da União Europeia e os Estados Unidos passaram a recomendar o uso de máscaras mais eficientes – máscaras cirúrgicas e padrão PFF2/N95 – como resposta às novas variantes. O Brasil poderia fazer o mesmo, distribuindo máscaras melhores à população de baixa renda, xplicando a importância do seu uso na prevenção da transmissão da Covid.

Máscaras com filtragem adequada têm preços a partir de R$ 3 a unidade. A distribuição gratuita direcionada para pessoas sem condições de comprá-las, acompanhada de instrução correta de reuso, teria um baixo custo frente aos benefícios de contenção da Covid-1923. Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Center for Disease Control do EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial. Embora leis de uso de máscara ajudem, informar corretamente a população e as lideranças darem o exemplo também é importante, e tem impacto na trajetória da epidemia. Inversamente, estudos mostram que mensagens contrárias às medidas de prevenção afetam a sua adoção pela população, levando ao aumento do contágio.

3 - Implementar medidas de distanciamento social no âmbito local com coordenação nacional. O termo “distanciamento social” abriga uma série de medidas distintas, que incluem a proibição de aglomeração em locais públicos, o estímulo ao trabalho a distância, o fechamento de estabelecimentos comerciais, esportivos, entre outros, e – no limite – escolas e creches. Cada uma dessas medidas tem impactos sociais e setoriais distintos. A melhor combinação é aquela que maximize os benefícios em termos de redução da transmissão do vírus e minimize seus efeitos econômicos, e depende das características da geografia e da economia de cada região ou cidade. Isso sugere que as decisões quanto a essas medidas devem ser de responsabilidade das autoridades locais.

Com o agravamento da pandemia e esgotamento dos recursos de saúde, muitos estados não tiveram alternativa senão adotar medidas mais drásticas, como fechamento de todas as atividades não-essenciais e o toque de recolher à noite. Os gestores estaduais e municipais têm enfrentado campanhas contrárias por parte do governo federal e dos seus apoiadores. Para maximizar a efetividade das medidas tomadas, é indispensável que elas sejam apoiadas, em especial pelos órgãos federais. Em particular, é imprescindível uma coordenação em âmbito nacional que permita a adoção de medidas de caráter nacional, regional ou estadual, caso se avalie que é necessário cercear a mobilidade entre as cidades e/ou estados ou mesmo a entrada de estrangeiros no país. A necessidade de adotar um lockdown nacional ou regional deveria ser avaliado. É urgente que os diferentes níveis de governo estejam preparados para implementar um lockdown emergencial, definindo critérios para a sua adoção em termos de escopo, abrangência das atividades cobertas, cronograma de implementação e duração.

Ademais, é necessário levar em consideração que o acréscimo de adesão ao distanciamento social entre os mais vulneráveis depende crucialmente do auxílio emergencial. Há sólida evidência de que programas de amparo socioeconômico durante a pandemia aumentaram o respeito às regras de isolamento social dos beneficiários. É, portanto, não só mais justo como mais eficiente focalizar a assistência nas populações de baixa renda, que são mais expostas nas suas atividades de trabalho e mais vulneráveis financeiramente.

Dentre a combinação de medidas possíveis, a questão do funcionamento das escolas merece atenção especial. Há estudos mostrando que não há correlação entre aumento de casos de infecção e reabertura de escolas no mundo26. Há também informações sobre o nível relativamente reduzido de contágio nas escolas de São Paulo após sua abertura.

As funções da escola, principalmente nos anos do ensino fundamental, vão além da transmissão do conhecimento, incluindo cuidados e acesso à alimentação de crianças, liberando os pais – principalmente as mães – para o trabalho. O fechamento de escolas no Brasil atingiu de forma mais dura as crianças mais pobres e suas mães. A evidência mostra que alunos de baixa renda, com menor acesso às ferramentas digitais, enfrentam maiores dificuldade de completar as atividades educativas, ampliando a desigualdade da formação de capital humano entre os estudantes.

Portanto, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir em um esquema de distanciamento social. Há aqui um papel fundamental para o Ministério da Educação em cooperação com o Ministério da Saúde na definição e comunicação de procedimentos que contribuam para a minimização dos riscos de contágio nas escolas, além do uso de ferramentas comportamentais para retenção da evasão escolar, como o uso de mensagens de celular como estímulo para motivar os estudantes, conforme adotado em São Paulo e Goiás.

4 - Criar mecanismo de coordenação do combate à pandemia em âmbito nacional – preferencialmente pelo Ministério da Saúde e, na sua ausência, por consórcio de governadores – orientada por uma comissão de cientistas e especialistas, se tornou urgente. Diretrizes nacionais são ainda mais necessárias com a escassez de vacinas e logo a necessidade de definição de grupos prioritários; com as tentativas e erros no distanciamento social; a limitada compreensão por muitos dos pilares da prevenção, particularmente da importância do uso de máscara, e outras medidas no âmbito do relacionamento social. Na ausência de coordenação federal, é essencial a concertaçãoentre os entes subnacionais, consórcio para a compra de vacinas e para a adoção de medidas de supressão.

O papel de liderança: Apesar do negacionismo de alguns poucos, praticamente todos os líderes da comunidade internacional tomaram a frente no combate ao Covid-19 desde março de 2020, quando a OMS declarou o caráter pandêmico da crise sanitária. Informando, notando a gravidade de uma crise sem precedentes em 100 anos, guiando a ação dos indivíduos e influenciado o comportamento social.

Líderes políticos, com acesso à mídia e às redes, recursos de Estado, e comandando atenção, fazem a diferença: para o bem e para o mal. O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos que o país incorre.

O país pode se sair melhor se perseguimos uma agenda responsável. O país tem pressa; o país quer seriedade com a coisa pública; o país está cansado de ideias fora do lugar, palavras inconsequentes, ações erradas ou tardias. O Brasil exige respeito.

Assinam esta carta (até às 15.30hs de sábado (20/03):

1 - Affonso Celso Pastore
2 - Alexandre Lowenkron
3 - Alexandre Rands
4 - Alexandre Schwartsman
5 - Álvaro de Souza
6 - Amanda de Albuquerque
7 - Ana Carla Abrão
8 - André de Castro Silva
9 - André Luis Squarize Chagas
10 - André Magalhães
11 - André Portela
12 - Andrea Lucchesi
13 - Angélica Maria de Queiroz
14 - Aod Cunha
15 - Armínio Fraga
16 - Beny Parnes
17 - Bernard Appy
18 - Bráulio Borges
19 - Braz Camargo
20 - Carlos Alberto Manso
21 - Carlos Ari
22 - Carlos Brunet Martins Filho
23 - Carlos Góes
24 - Carolina Grottera
25 - Cassiana Fernandez
26 - Christiano Penna
27 - Claudia Sussekind Bird
28 - Claudio Considera
29 - Cláudio Frischtak
30 - Claudio Ribeiro de Lucinda
31 - Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt
32 - Daniel Cerqueira
33 - Daniel Gleizer
34 - Danielle Carusi Machado
35 - Danilo Camargo Igliori
36 - Demósthenes Madureira de Pinho Neto
37 - Dimitri Szerman
38 - Edmar Bacha
39 - Eduardo Amaral Haddad
40 - Eduardo Augusto Guimarães
41 - Eduardo Mazzilli de Vassimon
42 - Eduardo Pontual
43 - Eduardo Souza-Rodrigues
44 - Eduardo Zilberman
45 - Eduardo Zylberstajn
46 - Eleazar de Carvalho
47 - Elena Landau
48 - Fabiana Rocha
49 - Fábio Barbosa
50 - Fabio Giambiagi
51 - Felipe Salto
52 - Fernando Genta
53 - Fernando Postali
54 - Fernando Veloso
55 - Flávio Ataliba
56 - Francisco Ramos
57 - Francisco Soares de Lima
58 - Gabriella Seiler
59 - Genaro Lins
60 - Giovanna Ribeiro
61 - Guilherme Irffi
62 - Guilherme Tinoco
63 - Guilherme Valle Moura
64 - Gustavo Gonzaga
65 - Gustavo Loyola
66 - Helcio Tokeshi
67 - Helena Arruda Freire
68 - Henrique Félix
69 - Horácio Lafer Piva
70 - Humberto Moreira
71 - Ilan Goldfajn
72 - Isacson Casiuch
73 - Joana C.M. Monteiro
74 - Joana Naritomi
75 - João Mário de França
76 - José Augusto Fernandes
77 - José Monforte
78 - José Olympio Pereira
79 - José Roberto Mendonça de Barros
80 - José Tavares de Araujo
81 - Josué Alfredo Pellegrini
82 - Juliana Camargo
83 - Juliano Assunção
84 - Laísa Rachter
85 - Laura de Carvalho Schiavon
86 - Laura Karpuska
87 - Leandro Piquet Carneiro
88 - Leane Naidin
89 - Leany Barreiro Lemos
90 - Leonardo Monteiro Monasterio
91 - Leonardo Rezende
92 - Lucas M. Novaes
93 - Lucia Hauptmann
94 - Luciano Losekann
95 - Luciene Pereira
96 - Luís Meloni
97 - Luis Terepins
98 - Maílson da Nóbrega
99 - Manoel Pires
100 - Manuel Thedim
101 - Marcela Carvalho Ferreira de Mello
102 - Marcelo André Steuer
103 - Marcelo Barbará
104 - Marcelo Cunha Medeiros
105 - Marcelo de Paiva Abreu
106 - Marcelo F. L. Castro
107 - Marcelo Fernandes
108 - Marcelo Justus
109 - Marcelo Kfoury
110 - Marcelo Leite de Moura e Silva
111 - Marcelo Pereira Lopes de Medeiros
112 - Marcelo Trindade
113 - Marcílio Marques Moreira
114 - Márcio Garcia
115 - Márcio Holland
116 - Márcio Issao Nakane
117 - Marco Bonomo
118 - Marcos Lederman
119 - Marcos Ross Fernandes
120 - Maria Alice Moz-Christofoletti
121 - Maria Cristina Pinotti
122 - Maria Dolores Montoya Diaz
123 - Mário Ramos Ribeiro
124 - Marisa Moreira Salles
125 - Maurício Canêdo Pinheiro
126 - Mauro Rodrigues
127 - Miguel Nathan Foguel
128 - Mônica Viegas Andrade
129 - Naercio Menezes Filho
130 - Natália Nunes Ferreira-Batista
131 - Nilson Teixeira
132 - Octavio de Barros
133 - Otaviano Canuto
134 - Patrícia Franco Ravaioli
135 - Paula Carvalho Pereda
136 - Paula Magalhães
137 - Paulo Hartung
138 - Paulo Hermanny
139 - Paulo Ribeiro
140 - Paulo Tafner
141 - Pedro Bodin de Moraes
142 - Pedro Cavalcanti Ferreira
143 - Pedro Henrique Thibes Forquesato
144 - Pedro Malan
145 - Pedro Moreira Salles
146 - Persio Arida
147 - Priscilla Albuquerque Tavares
148 - Rafael B. Barbosa
149 - Rafael Dix-Carneiro
150 - Regina Madalozzo
151 - Renato Fragelli
152 - Renê Garcia Jr.
153 - Ricardo de Abreu Madeira
154 - Ricardo Markwald
155 - Roberto Bielawski
156 - Roberto Iglesias
157 - Roberto Olinto
158 - Rodrigo Menon S. Moita
159 - Rogério Furquim Werneck
160 - Ruben Ricupero
161 - Ruy Ribeiro
162 - Sabino da Silva Porto Júnior
163 - Samira Schatzmann
164 - Samuel Pessoa
165 - Sandra Rios
166 - Sérgio Besserman Vianna
167 - Sergio Margulis
168 - Silvia Matos
169 - Solange Srour
170 - Stephanie Kestelman
171 - Synthia Santana
172 - Thomas Conti
173 - Tiago Cavalcanti
174 - Tomás Urani
175 - Vagner Ardeo
176 - Vilma da Conceição Pinto
177 - Vinicius Carrasco
178 - Vinícius de Oliveira Botelho
179 - Vitor Pereira
180 - Walter Novaes
181 - Wilfredo Leiva Maldonado


Alon Feuerwerker: Os desafios políticos no curto prazo. E o inglório boxe da ideologia contra os fatos

As forças políticas estão diante de desafios imediatos. Na oposição, o trágico agravamento da epidemia de Covid-19 é uma oportunidade, talvez a melhor, para tentar enfraquecer decisivamente o governo Jair Bolsonaro. Para removê-lo já, ou ao menos fazê-lo chegar a outubro de 2022 tão emagrecido que se torne incapaz de reunir a maioria do eleitorado no segundo turno presidencial, ou até impossibilitado de ir à rodada final.

A remoção imediata tornou-se mais difícil após a eleição de aliados do presidente para comandar a Câmara dos Deputados e o Senado. Mas a política não é estática, então a pressão também recai sobre os comandantes do Legislativo. Que, entretanto, podem escorar-se nas maiorias ali dispostas a respaldar o núcleo econômico da agenda governamental em troca de espaços de poder, lato sensu

Daí certa tendência ao “morde e assopra”: uma hora agradam aos críticos, mas nunca faltam ao Planalto.

A janela de oportunidade para enfraquecer o presidente e o governo, ao menos com vistas a 2022, acabou unindo o que estava difícil de juntar: a esquerda com a direita não bolsonarista. Ainda que uma parte desta continue aferrada ao discurso de “luta contra os extremos” e prefira ser chamada de “centro”, ou pelo menos “centro-direita”. Mas tanto faz: uma parte do bloco bolsonarista de 2018 está se deslocando.

O “caminhar juntos” da esquerda com a centro-direita (vamos então caracterizar assim) na luta de momento contra Jair Bolsonaro também se alimenta da grande esperança maximalista desta última: tirar o presidente até do segundo turno. No qual, a esse grupo se apresentaria finalmente uma possibilidade material de aparecer como a tal alternativa viável aos “extremos”. Aliás, o desafio do “centro” é só esse, ir ao segundo turno.

Pois ali estaria em posição excelente para eleger-se com base apenas na rejeição ao oponente. Qualquer um.

Já para a esquerda, a ampla convergência antibolsonarista de agora é chance de ouro para o “reset”, para sair do isolamento. A elegibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva ajuda, na medida em que desenha alguma expectativa de poder, sempre fator de atração. Mas chegará a hora em que esse mesmo “centro” voltará a brandir a “ameaça da volta do lulopetismo”. Pode ser no primeiro ou no segundo turno. É uma narrativa já contratada.

Já no lado do governo, a missão é atravessar o desfiladeiro, à espera de que a curva de vacinação neutralize, ao menos amorteça, a de mortes registradas diariamente pela Covid-19. As informações do Butantã do governador João Doria e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) são moderadamente animadoras. A política é mesmo cheia de contradições misteriosas: bate-boca à parte, o governo de São Paulo está objetivamente ajudando o federal no momento mais difícil deste.

Pois o único trunfo, ou boia, do Planalto nesta hora é a vacinação.

Mais ironias? O governo Bolsonaro faz há dois anos um esforço descomunal para desacoplar o Brasil da lógica Sul-Sul e engatar nosso vagão no que chama de Ocidente, ou “mundo livre”. Mas, no pior aperto sanitário da nossa história, só podemos contar mesmo é com chineses, indianos e, se a Anvisa deixar, russos. Ideologia é agradável, mas quando ela sobe ao ringue para bater de frente com os fatos nunca tem muita chance.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Luiz Carlos Azedo: É autoritarismo mesmo

Não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes em apuros, que começam a recorrer à força do Estado contra a opinião pública

O professor e historiador Alberto Aggio é um estudioso da política latino-americana, seu livro Um lugar no mundo (Fundação Astrojildo Pereira/ Fondazione Instituto Gramsci) dedica especial atenção à discussão do conceito de populismo. É um crítico tanto de sua “banalização”, como um termo que expressa estilos políticos de caráter depreciável, quanto do seu uso como “teoria explicativa” do desastrado percurso histórico latino- americano rumo à modernidade, “na qual a presença do Estado na vida social e econômica se fixa como seu elemento mais negativo e que necessita ser superado ou destruído”. Na sua avaliação, o populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo, buscava a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, incorporando as massas à cidadania pela via dos direitos sociais. Foi “uma fuga para frente”.

Tratava-se de promover transformações sem rupturas violentas, revolucionárias, como em outros processos de industrialização. Interditou a via clássica de passagem à modernidade, caracterizada pela incorporação dos trabalhadores à democracia liberal. No caso brasileiro, o populismo emergiu após a Revolução de 1930, com Getúlio Vargas, e ganhou feições democráticas em seu segundo governo, na década de 1950. Caracterizou-se como um Estado de bem-estar social incompleto, com programa nacionalista que estatizava alguns setores da economia e legislação trabalhista e corporativista, que organizou e concedeu direitos sociais aos trabalhadores, mas também lhes retirou a autonomia.

O que isso tem a ver com o governo Bolsonaro? Nada! Por isso mesmo, não tem sentido as preocupações com uma possível “guinada populista” do atual governo. O risco é outro: a transformação de um governo bonapartista, com clara hegemonia de um determinado grupo de militares, num governo autoritário que confronta os demais Poderes e, de certa forma, o regime democrático no qual se instalou e funciona. O presidente Jair Bolsonaro não esconde de ninguém que seu espelho é o regime militar instalado após o golpe de 1964, que fará aniversário no último dia deste mês, cujas comemorações estão sendo preparadas por seus aliados, dentro e fora dos quartéis.

Desastre sanitário
No momento mais dramático da pandemia de covid-19, Bolsonaro insiste em suas teses negacionista, apesar de forçado a substituir o general Eduardo Pazuello no comando do Ministério da Saúde, em razão do seu fracasso. Colocou no cargo o médico cardiologista Marcelo Queiroga, que ainda não substituiu os militares neófitos em saúde pública corresponsáveis pelo desastre sanitário que estamos vivendo. Sua mais recente decisão sobre a pandemia foi entrar com uma ação contra governadores e prefeitos que adotaram o “toque de recolher”, que são medidas de restrição de circulação noturna dos habitantes das cidades nas quais a pandemia está fora de controle, preconizadas por sanitaristas, não se compara a um “estado de sítio”. Bolsonaro sabe que está afrontando o pacto federativo, a autonomia de estados e municípios. Sua intenção é responsabilizar o Supremo pela crise econômica provocada pela pandemia. Prefeitos e governadores também não são responsáveis pelo colapso sanitário e a crise econômica, a grande responsabilidade é do presidente da República, pessoal e indivisível.

Há outros fatos ainda mais graves em relação aos impulsos autoritários de Bolsonaro, como as ações da Advocacia-Geral da União (AGU), do Ministério da Justiça e da Polícia Federal com intuito de processar, investigar e prender oposicionistas. O uso político e abusivo desses aparatos de coerção do Estado para intimidar àqueles que criticam seu governo e sua atuação, com base numa anacrônica Lei de Segurança Nacional herdada da ditadura, é muito preocupante. Não, não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes autoritários em apuros, que começam a recorrer à força do Estado para exercer o poder contra a opinião pública, sem considerar os direitos das minorias e a legitimidade do dissenso numa ordem democrática.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-e-autoritarismo-mesmo/

Luiz Sérgio Henriques: Os bárbaros entre nós

Há setores da esquerda dispostos a sacrificar os direitos humanos se as ditaduras são ‘amigas’

Nem mesmo quando a pandemia grassava nos Estados Unidos sem perspectiva de controle, e o então presidente Donald Trump perdia o trunfo de alguns ganhos econômicos que podia alardear, era totalmente certa sua derrota nas urnas. Não importava muito que os democratas houvessem encontrado em Joe Biden uma saída equilibrada e confiável, de resto quase sempre à frente na maioria das pesquisas pré-eleitorais. Na verdade, tão espalhado é o mal-estar difuso nas democracias, tão grande a crise do político, mais além das crises convencionais da política, que o campo aberto à disposição dos demagogos parece inesgotável, possibilitando-lhes passes de mágica e ilusionismos vários até há pouco próprios só do realismo fantástico.

Convém ter isso claro ao analisar o momento atual do presidente Bolsonaro no penúltimo ano de mandato, já se podendo prever, sem margem a dúvida razoável, o quadro catastrófico que se abriria em caso de reeleição. Os números negativos sobre seu desempenho no (não) enfrentamento da pandemia – um evento excepcional – ou na administração regular dos problemas do País podem até subir consistentemente, como parece ser a tendência, mas sempre sobrará para esse tipo de líder a tentação do desatino fatal: o ataque frontal às instituições, iconicamente representado no assalto ao Capitólio.

Além disso, a derrota de Trump ao fim do primeiro mandato – como assinalou Yasha Mounk, que de populismo autoritário entende – não seguiu o padrão habitual. É que, em média, tais líderes tendem a ficar mais tempo no poder do que primeiros-ministros e presidentes comprometidos com as regras da alternância, e os eleitores só os defenestram depois de já seriamente comprometidas as instituições.

Nada simples desvendar o segredo de tal resiliência, mas o fato é que esses dirigentes autoritários expressam e estimulam um contexto em que há imensas falhas tectônicas entre os territórios da política e da economia. A primeira, ainda basicamente vivida e pensada em termos nacionais; a segunda, crescentemente globalizada, sem instituições que a regulem e garantam a correção dos desequilíbrios provocados por seu movimento “cego”. Retomar o controle nacional sobre o movimento da “máquina do mundo”, fechar fronteiras, destruir os fóruns de cooperação mundial e, por certo, acirrar conflitos externos e a guerra interna de classes, eis a substância da distopia que incendiou a imaginação de políticos e ideólogos do novo populismo.

Por isso o léxico de que se valem os nacionalistas autoritários é impressionantemente monótono: a “América primeiro”, de Trump, é o lema que tentaram, ou tentam, retraduzir em suas nações Salvini, Erdogan, Orban, Le Pen. Entre nós, o “Brasil acima de tudo” trouxe em si o aspecto irônico de ser um nacionalismo contraditoriamente dependente de outro, e ademais, com a vitória de Joe Biden, agora órfão na parte ocidental do mundo. E o “Deus acima de todos”, independentemente do que pensarmos sobre a profundidade da vida espiritual de quem nos governa, sintetiza no plano retórico a disposição de usar, sem moderação e a despeito dos processos de secularização que supúnhamos consagrados, a arma do fundamentalismo religioso.

O cardápio envenenado implica a volta aos valores de um passado muitas vezes pré-iluminista, a proposição de uma modernidade reacionária e amputada da dimensão do individualismo democrático, para nada falar do marxismo, seja lá a extensão ou o sentido a ser atribuído a esse termo. O recuo às fronteiras nacionais, por óbvio, tem como consequência abdicar da capacidade de pôr de pé uma ordem mundial minimamente cooperativa e pacificada: até o comércio entre as nações se torna a continuação da guerra por outros meios. Em cada país individualmente considerado, as marcas evidentes são a democracia sem liberalismo, o Führerprinzip como a realidade por trás do slogan do “povo no poder”, bem como o recurso permanente às rançosas lutas culturais, na falta de projeto hegemônico consistente. E naturalmente, com o isolacionismo, a intensificação do racismo e da xenofobia.

Tudo seria simples demais, os campos estariam bem demarcados e só restaria partir para o bom combate do voto e das ideias, não fosse o fato perturbador de que também há setores da esquerda de orientação “soberanista” e antiliberal, dispostos a sacrificar o legado iluminista e até os direitos humanos, quando os ditadores são “nossos” e as ditaduras, amigas. Não se trata só de crasso erro prático, capaz de minar a prática das alianças e das amplas frentes em prol dos valores democráticos. Trata-se, também, de insuficiência teórica que impede ver em toda a sua amplitude os processos de democratização política e social, bem como o papel que neles tiveram os “subalternos”, em geral representados por socialistas em conflito – mas também em colaboração – com liberais e mesmo conservadores.

É essa dinâmica aberta e generosa, historicamente decisiva, que convém restaurar o quanto antes, mesmo porque os bárbaros estão às portas e, ai de nós, em alguns casos já as derrubaram.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Paulo Fábio Dantas Neto:Democracia como vacina política e as cloroquinas de ocasião

Dedico a coluna de hoje ao Dr. Severino Elias, médico com profundo sentido de missão, que nos deixou ontem, depois de semanas de luta pessoal contra a Covid. Essa foi, porém, apenas a sua batalha final. Antes desse desfecho, chorado por quem perdeu o amigo e a referência profissional, houve um ano de dedicação e bravura cotidianas para não abandonar seus pacientes, apesar dos mais de 70 anos de idade e quase 50 de serviços prestados. Dele é possível dizer, sem exagero, que doou sua vida a uma vocação. Eis a razão desta homenagem, que me vale, também, de estímulo para escrever o que segue.

Peço perdão a Cabral (o João) por passar agora da evocação de uma morte e vida severina, alegórico exemplar do seu poema imortal da humanidade brasileira, para uma alusão à mais abjeta negação de qualquer humanidade. Incluo, a contragosto, entre as reflexões de hoje, as mais recentes agressões psicopáticas do presidente da República à dor infinita do povo que ele deveria defender. Evocar seus ares debochados com as vítimas da falta de ar e o seu incentivo perverso a saques e outras violências incalculáveis é um introito necessário ao argumento que aqui procurarei desenvolver.

O desespero de incontáveis pessoas está fazendo com que se disponham a pagar qualquer preço para que Bolsonaro seja tirado, o quanto antes, do lugar de poder que ele desonra. Compreensível desejo que não pode, contudo, nos distrair da hipótese de que um Putin militar esteja nos aguardando na esquina. O que o Dr. Marcelo Queiroga está prometendo fazer caso assuma mesmo o Ministério da Saúde pode dar ideia do que seria o resultado da substituição do presidente por seu vice, se feita de modo imprudente, sob pressão desse desespero, ou por sua manipulação. Seria cloroquina, nada mais.

Confirmam-se, no MS, sombrias conjecturas. O que era péssimo com o general Pazuello, ensaia piorar. Sua queda banal - que para muitos parecia ser cirurgia providencial, a ponto de se apostar fichas numa CPI de tempestividade e eficácia duvidosas - não diminuiu a premência da vigilância constante da fera, pela  comunidade da saúde, imprensa e sociedade, assim como não provou ser medida mais eficaz do que o tratamento paliativo, tópico, atenuante, conservador, com que a atitude prudencial do Congresso e do sistema político de um modo geral, contém efeitos dos impulsos de morte emanados do palácio. 

O médico que se quer impor ao ministério é mais perigoso do que o general destrambelhado. Ele pode destilar o veneno da dúvida na opinião técnica, dividi-la, isso resultar em maior desorientação ainda da população e essa desorientação, por sua vez, alimentar ainda mais aglomerações e outras atitudes de risco, às quais terão que corresponder atitudes mais duras de polícias estaduais. Tudo isso gera um altíssimo potencial de conflito político entre poderes e de confrontos de rua, inclusive físicos, entre pessoas. Em síntese, o caos social expresso em desordem. Essa é, ao fim e ao cabo, a meta que Bolsonaro persegue, enquanto finge preocupar-se apenas com as urnas. Resistamos ao autoengano: se urnas prometem, cada dia mais, ser um pesadelo para ele, não se deve esperar que marchará para elas como se fosse um líder democrático, porque ele é a antítese disso. É claro que precisamos estar cientes de que o subversivo fará tudo que estiver ao seu alcance para virar a mesa antes disso.  E que quem comanda nossas instituições não pode vacilar um só dia na vigília para impedi-lo de tornar seus planos realidade.

Impedir não é, contudo, virar a mesa antes dele, permitindo que o impulso autocrático que ele encarna retorne ao jogo com força. O tratamento conservador, da democracia sem atalhos, continua sendo crucial para a saúde política e social desse paciente em estado crítico que é o nosso país, por mais enervante e angustiante que essa linha de conduta seja.  Democracia é a vacina, tudo o mais, cloroquina.

Embora a queda de Pazuello sequer tenha sido consumada na prática, as primeiras pistas oferecidas pelo agente Queiroga, um projeto de Dr. No (personagem de romance de Ian Fleming, popularizado pelo cinema, ao fazê-lo antagonista de James Bond, o agente 007), permite também imaginar o que seria um pós-bolsonaro antecipado sob a batuta salvacionista do ex-general Mourão. Ou mesmo a investidura desse último, como quer a procuradoria do MPF junto ao TCU, na gestão do combate à pandemia. Nenhuma morte já marcada para ocorrer, por falta de remédios, oxigênio, ou leitos, deixaria de ocorrer. Mesmo se um anti-bolsonarista autêntico (que nem de longe é o perfil do ex-general em causa) chegasse ao MS, levaria semanas, talvez meses, para conseguir o que hoje falta para salvar vidas de novas dezenas, talvez centenas, de milhares de brasileiras e brasileiros marcados para morrer anonimamente.

É preciso ver que se torna cada dia mais difícil conter a revolta e a suposição de alívio que a ideia de Bolsonaro ser logo afastado produz. Nessas condições, a solução proposta ao TCU, se considerada, poderá produzir mesmo algum alívio, se for uma tentativa de, ao menos, impedir o prolongamento da atual tragédia seguindo semestre afora, que é a missão dada, pelo visto, ao ministro que consta estar prestes a assumir. Ficam, mesmo assim, dúvidas, que nada têm de laterais, sobre o que ou quem levaria Mourão - caso assumisse a gestão da pandemia e até cancelasse a virtual nomeação de Queiroga - a tirar os militares do Ministério da Saúde e sobre até onde iria o seu poder para tirar, de agências governamentais externas ao MS, outros agentes que poderiam ajudar Bolsonaro a minar uma suposta nova política sanitária para perpetrar a próxima etapa do seu plano macabro. Questões em aberto.

A partir dessas dúvidas, alguém poderá argumentar, com alguma razão, que esse paliativo não resolve, sendo preciso afastar Bolsonaro, não apenas da gestão da pandemia, como do próprio cargo que ocupa. Mas ainda que sigamos esse raciocínio aparentemente pragmático, respaldado pela intensidade da atual tragédia sanitária, é preciso indagar, de saída, em que bases poderia surgir, de fato, um novo governo e não apenas a troca do ex-capitão por um ex-general no comando do mesmo governo. Quem, nessa situação ditada pelo desespero, poderia exigir de Mourão o desmonte do atual governo e do dispositivo paramilitar que foi nele introduzido e, com isso, constituir um governo de transição? Mais provável seria que tomássemos o caminho da Rússia, mudando expectativas e regras, para manter a situação.

Com isso não quero dizer que alternativas intermediárias arriscadas devam ser preliminarmente afastadas, em qualquer hipótese. Algo que se considera provável não é sempre uma fatalidade, claro. A política democrática pode criar caminhos onde parece haver apenas muros e precipícios. Essa é a sua missão legítima, desde que se respeite a Constituição, a premissa que a legitima. Mas o que não se pode é ser afoito, ou ingênuo, diante dos perigos. Para evitar risco de Rússia, o melhor é aguentar as pontas até 2022, no limite máximo do possível. E correr o risco de que tentem invadir, antes, o nosso capitólio. Será custoso defendê-lo, mas igualmente preciso.

O desafio à resiliência democrática já era grande, antes da reentrada de Lula no primeiro plano da cena política. Agora, a situação torna-se ainda mais complexa e precisa ser analisada por ângulos diversos. De um lado, é óbvio que mais gente do topo, do establishment, seja civil ou militar, tende a ser tomada, como se fossem ultra-esquerdistas voluntariosos, por uma súbita e suspeitíssima pressa de livrar logo o país de Bolsonaro e entregá-lo a um guardião que atalhe o caminho até as urnas, não para calar a voz do demos soberano, mas para modular a sua fala. De outro lado, a visibilidade que ganhou, há dez dias, uma primeira alternativa pré-eleitoral concreta a Bolsonaro pode fortalecer e animar democratas de várias orientações políticas a persistirem na aposta na democracia, apesar das tentativas de bloqueio a essa reta visão que, por vezes, tornam sinuoso esse caminho.

No horizonte está, como é óbvio, uma eleição daqui a um ano e meio. Ainda bem que assim é. Ligada a esse horizonte, sem se prender exclusivamente a ele, é que pode prosperar uma política de unidade democrática. Com o cuidado de não se fazer dela um evangelho oco, desligado da realidade cotidiana das pessoas comuns. Tão importante quanto pregar unidade é deixar claro o que se quer dizer com ela.

Proclama-se a torto e a direito a necessidade de uma “frente única” contra Bolsonaro. Essa frente única não é e nunca foi provável, do ponto de vista eleitoral. O que se pode ter, ou melhor, o que temos tido é uma frente amplíssima em defesa da democracia contra as investidas golpistas e autocráticas do palácio e de suas cercanias espúrias, visíveis e invisíveis. E mais recentemente nota-se também a formação de uma frente política e social igualmente ampla, em prol de vacinas, de vacinação e do provimento, na contramão da desorientação deliberada que Bolsonaro dá ao governo federal, de mínimas condições de governabilidade e de amparo médico, hospitalar e social nesse instante crítico da pandemia.

Mas isso é uma coisa e a questão pré-eleitoral é outra. Não há como juntar as forças políticas democráticas, de direita, centro e esquerda em torno de uma única candidatura já no primeiro turno das eleições presidenciais.  Se pensarmos bem, isso nem seria desejável, pois anteciparia o segundo turno para o primeiro sem que os eleitores pudessem captar o posicionamento atual de cada força política. Essa visão turva tenderia a reeditar o script de 2018 e o resultado dele, como sabemos, é o desastre que vivemos hoje. Lula e o PT podem até ser protagonistas no novo cenário, sem que isso signifique flertar com a tragédia. Flertar com a tragédia será, sim, repetir, não tanto os atores, mas aquele script. Entre a proliferação de candidaturas ao centro e à esquerda (como houve em 2018) e a antecipação de um segundo turno ainda durante o primeiro, um meio termo é desejável e possível.

Dois processos de agregação oposicionistas podem ocorrer, um na centro-direita, outro na centro-esquerda e ambos tenderem ao centro, com seus candidatos evitando, ao máximo, trocar farpas e assim prepararem terreno a uma aliança no segundo turno. A agregação da esquerda ao centro dificilmente se fará em torno de outro nome que não Lula e de outro partido que não o PT. Já a que pode ir da centro-direita ao centro é só incerteza se o critério for a intenção de voto, cuja medição, hoje, só pode refletir o recall de 2018. Se o critério for o capital político estimado como potencial de voto, a incerteza diminui e sobressai, como já comentei aqui na semana passada, o nome ex-ministro Luiz Mandetta. 

A possibilidade de uma saída desse tormento por uma via democrática torna legitimo que se fale, sim, abertamente, de política, em plena pandemia. Sei que o preço em vidas para manter a democracia está sendo muito alto. Mas os países que conhecem o seu valor, pagam, porque sabem que ela, a democracia, é a única vacina disponível e que, fora dela, não há solução melhor e mais sustentável do que as lentas e penosas soluções que, através dela, a política pode construir. Essa convicção - sem a qual uma sociedade se torna escrava – é que impede elites políticas e sociedade civil de alienarem a condução do país a autocratas, cloroquinas que estão sempre de plantão. Saber recusar, no meio de uma tragédia social, esse barato que afinal sairá mais caro, é teste definitivo de maturidade democrática. A sociedade que passa por esse teste não só se livra do inimigo - ainda que tarde e chore muitas perdas severinas - como submete à justa punição, na devida hora, quem a ele se aliou na hora de batalhas decisivas. 

 *Cientista político e professor da UFBA


Cristovam Buarque: Turno único

Democracia em risco

Diversos candidatos se propõem a impedir a reeleição do atual presidente. Na medida que a eleição se aproxime, disputarão mais entre eles do que contra o opositor deles. Porque vão concentrar a disputa na busca de chegar ao segundo turno. Seus adversários serão seus aliados. Ao concentrarem a disputa entre eles, os candidatos criarão antagonismos que serão levados até o segundo turno, por eles próprios e por seus eleitores.

Vimos isto em 2018, quando os candidatos que perderam no primeiro turno não se empenharam na campanha de Haddad, quando este chegou ao segundo turno. Muitos dos eleitores preferiram votar nulo ou branco ou simplesmente se ausentarem. Isto ocorre em qualquer tempo, muito mais em momentos de confrontos e acusações radicalizadas, como atualmente. Apesar de que Bolsonaro hoje assusta e indigna mais do que em 2018, depois de tantas acusações, será o envolvimento pleno dos perdedores, apoiando quem chegar no segundo turno.

Os candidatos democratas que percebem este risco têm a obrigação de evitar um segundo turno e consequentemente o risco de um novo mandato para o presidente atual. Devem perceber também que o papel desempenhado pelas Forças Armadas nestes dois anos e a farta disseminação de armas entre bolsonarista podem levar a um “terceiro turno” nas ruas, caso ele perca por uma margem estreita no segundo turno. As afirmações de que não acredita nas urnas eletrônicas e de que prevê fraudes indica uma possibilidade de se manter no poder, usando milícias para invadir Congresso e Tribunal Eleitoral, prender ou eliminar adversários.

As forças democráticas devem evitar este risco: construir uma aliança que una os partidos e os candidatos para vencerem logo no primeiro turno, por uma diferença indiscutível, e em função disto estruturarem um governo de concertação nacional, sem o qual será difícil levar adiante o novo governo diante das sequelas das epidemias e malditos que afligem o país.

É preciso colocar o país na frente dos interesses e posições de cada partido e de seus líderes, seus programas e ambições. Construírem uma unidade vencedora e capaz de conduzir o país. Para tanto, é preciso reconhecer os erros cometidos no passado, aceitar que não foi dada a devida prioridade para reformas estruturais que servissem às necessidades das camadas pobres, nem aquelas necessárias para ajustar o Brasil ao futuro, além de que foram mantidas indecentes mordomias e privilégios. Sobretudo, houve aparelhamento partidário da máquina do Estado que permitiram a corrupção avassaladora sobre as estatais.

Nada disto pode ser ignorado, e a Justiça deve ser feita. Cumprida a Justiça em relação aos crimes do passado, a Política precisa olhar o futuro. Os juízes devem prender quem for preciso prender, os políticos devem dialogar com quem for preciso para salvar o País. Em busca de vencer Bolsonaro no primeiro turno, por uma margem que acalme seus fanáticos desarmados e constranja suas milícias armadas.

Se não for possível o impeachment antes, ainda é tempo de construir-se um turno único contra Bolsonaro em 2022.

*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro


Rosângela Bittar: O tempo Huck

Empresário tem a candidatura mais consistente fora da política e tem de tomar uma decisão

Entre a máxima de que há vida pensante fora do fisiologismo do Centrão e a constatação de que setenta por cento dos brasileiros não querem mais quatro anos do extremista Jair Bolsonaro, o tempo de tolerância concedido a Luciano Huck está se esgotando. Ele tem a mais consistente das candidaturas fora dos eixos da política partidária e está sendo forçado a se decidir, o que fará em meados do ano.

Não se trata de prazo da lei eleitoral, nem de atender às conveniências pessoais e profissionais do empresário. Mas de uma exigência imposta pelo cenário dinâmico. Huck, que parecia atravessar olimpicamente as preliminares de resistência, inclusive aos preconceitos, está diante da hora da verdade. Avança, em silêncio. Os movimentos políticos de fevereiro não levaram o potencial candidato a mudar sua estratégia. Nem mesmo o revés da submissão do DEM, partido com quem vinha se alinhando, a Bolsonaro.

Ele tem exposto aos colaboradores sua teoria dos três tempos. Há o tempo dos políticos, e os movimentos de hoje nele se encaixam. Há o tempo do jornalismo político, que precisa de definições para trabalhar suas análises. E há o tempo das ruas. Huck acredita estar no tempo certo.

Superou a fase de conhecer o Brasil, reunir as melhores pessoas para ter a melhor visão de cada área e construir, também em discreta ação, um projeto. Sem este, acredita, não poderá se apresentar.

Poucos possíveis candidatos desfrutaram desta regalia e a etapa passou, com sucesso.

A questão agora é transferir para a realidade política estas escolhas. Identificar as afinidades de partidos e líderes, aprofundar as conversas e fechar compromissos. Reúne-se com o PSB e o PSD, dois novos parceiros que se somaram a Podemos, Cidadania, PSDB, PCdoB. A ideia é estimular os “players” destas legendas, para usar um termo do vocabulário empresarial do futuro candidato.

A marca oposicionista essencial é quase um lema: “Quem achar que é Bolsonaro o presidente que o Brasil merece, está fora”.

A própria pandemia exclui o bolsonarismo de um projeto que acene com compromissos políticos racionais. E é a questão número um da agenda da desconstrução do negacionismo, obrigatória para quem vencer. Tal como o modelo Joe Biden, ao remover o entulho deixado por Donald Trump.

Bolsonaro retomou agora um arremedo de governo assinando uma série de medidas insanas que exigem supressão, ao mesmo tempo em que se inicia novo projeto. A vedete é o inoportuno pacote da liberação irresponsável de armas e munições, que as ruas podem definir como “fique em casa e tranque a porta”. Qualquer brasileiro será um atirador em potencial ou vítima provável. Por razões irrelevantes, inclusive nenhuma. Os amigos do rei ficam protegidos, haverá o excludente de ilicitude.

Para a saúde, mantém-se a crença de que o Brasil estará vacinado até o fim do ano, apesar de Bolsonaro. Uma premissa nos encontros preparatórios dos quais participa Huck. Há muito o que revogar nesta área e, também, a transpor nos escombros da Educação e do Meio Ambiente. Bem como muito a desfazer em matéria de constrangimentos nas relações internacionais.

Mas tarefa tão árdua quanto delicada é o necessário resgate das formas apropriadas do Estado de Direito, hoje desfigurado. A desmilitarização de áreas civis de governo é necessária tanto por razões de competência como para afastar temores de golpe. O Supremo, como se viu esta semana, já vem discutindo isto.

É inegável que a atual Presidência dá, a cada dia, mais espaço à expansão de medidas autoritárias e de culto à violência, de conflitos institucionais e desprezo pela vida. AI-5 não é só fechar o Congresso e o Supremo, embora isto esteja no horizonte da família presidencial. Muitos ‘AIs-5’ de Bolsonaro, como os citados, estão em vigor. Mas ele quer mais.


O Estado de S. Paulo: Réu na linha sucessória não é 'o melhor para o País', afirma Fux

Presidente do Supremo Tribunal Federal fala sobre situação de Arthur Lira e diz que impeachment de Bolsonaro seria um 'desastre' para o Brasil

Rafael Moraes Moura e Andreza Matais, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, avalia que não é o "melhor quadro para o Brasil" ter um réu na linha sucessória da Presidência da República. Em entrevista ao Estadão, Fux foi questionado sobre a situação do novo presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), que responde a denúncias na Corte por corrupção passiva e organização criminosa – ainda em análise de recursos.

"Eu acho que realmente uma pessoa denunciada assumir a Presidência da República, seja ela qual for, é algo que até no plano internacional não é o melhor quadro para o Brasil", afirmou o ministro.

Segundo na linha sucessória, Lira pode ser impedido de substituir o presidente Jair Bolsonaro e o vice Hamilton Mourão. Um precedente do tribunal já impediu o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), de ocupar interinamente a cadeira no Planalto por ser réu na época.

Em sua primeira entrevista após a abertura do Ano Judiciário, Fux disse que o impeachment de Bolsonaro seria "um desastre" para o País.

O deputado Arthur Lira pode, eventualmente, substituir Bolsonaro e Mourão, mesmo com denúncias já recebidas pelo STF?

Nessas questões limítrofes, você tem duas posições. Uma que entende que, se já teve a denúncia recebida, e a nossa Constituição elege a moralidade no âmbito da política e das eleições como um valor principal, ele não possa assumir. E tem outro aspecto importante, a ação penal não teve ainda a eficácia de torná-lo réu porque há (em análise) embargos de declaração (um tipo de recurso) que impedem que a decisão (de tornar Lira réu) seja considerada definitiva.

E qual a opinião do senhor?

Eu falo em geral, abstrato. Pelo princípio da moralidade, eu entendo que os partícipes da vida pública brasileira devem ter ficha limpa. Sou muito exigente com relação aos requisitos que um homem público deve cumprir para a assunção de cargos de relevância, como a substituição do presidente. Eu acho que, realmente, uma pessoa denunciada assumir a Presidência da República, seja ela qual for, é algo que até no plano internacional não é o melhor quadro para o Brasil.

O STF tem tido um papel fundamental no sistema de freios e contrapesos. Com dois aliados de Bolsonaro no comando do Congresso, o protagonismo da Corte vai ser ainda maior?

É preciso que o Parlamento se autovalorize e saiba exercer as suas competências, em vez de empurrar para o Supremo uma função que não é dele. O Parlamento tem de procurar resolver os seus problemas.

Mas um Congresso alinhado a Bolsonaro não pode obrigar o Supremo a exercer ainda mais esse papel de contraponto?

Bem ou mal, o presidente foi eleito com 60 milhões de votos. Por que não se permitiu a reeleição (na cúpula do Congresso) agora, muito embora tanto Davi Alcolumbre quanto Rodrigo Maia tenham sido bons na função que exerceram? Porque, se o STF abrir a brecha da violação da Constituição, realmente nós perdemos todos os critérios. Aquela ação não deveria nem ter chegado ao Supremo.

A atuação do governo na pandemia reforçou o discurso a favor do impeachment de Bolsonaro. Qual a opinião do senhor?

O impeachment é um processo político que o Supremo não pode nem se intrometer no mérito. Mas, em uma pós-pandemia, em que o País precisa se reerguer economicamente, atrair investidores e consolidar a nossa democracia, eu acho que seria um desastre para o País. O Brasil não aguenta três impeachments. O Brasil tem de ouvir o povo e o povo é ouvido através de seus representantes que estão no Parlamento. Acho que o impeachment seria desastroso.

O senhor vê mobilização popular para o impeachment?

Pela leitura acadêmica e histórica que a gente faz, você verifica que o impeachment é uma situação política que também depende muito da mobilização social. 

Bolsonaro já disse que, sem voto impresso, “nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, em referência à invasão do Capitólio. No Brasil, as instituições serão fortes para evitar qualquer tipo de golpe?

Não tenho a menor dúvida. Eu não acredito que ocorra 10% do que aconteceu nos Estados Unidos. Uma minoria inexpressiva não vai ter apoio. Absolutamente, não. Em conversas espontâneas, os generais têm uma posição muito firme de que a democracia brasileira não pode sofrer nenhum tipo de moléstia. Todos eles. Eu acho o voto impresso uma coisa muito antiquada, completamente desnecessária, porque as urnas são superseguras. E o voto impresso gera uma despesa bilionária para o Brasil. A palavra do Supremo está dada (contra o voto impresso). Uma despesa bilionária, depois da decisão do Supremo, é inaceitável. Não tem sentido.

Bolsonaro repete que não pode fazer nada para enfrentar a pandemia porque foi impedido pelo STF. Não é um equívoco?

O que o STF disse foi o seguinte: todas as Unidades da Federação têm responsabilidade em relação à pandemia. É uma gestão compartilhada, mas tem um aspecto maior, porque a Constituição atribui à União uma competência de coordenação nos casos de calamidade pública. O STF nunca eximiu o governo federal, absolutamente. Ninguém exonerou ninguém de responsabilidade.

O STF virou uma espécie de bode expiatório dos negacionistas, que tentam culpar a Corte pelos efeitos da pandemia?

Houve má interpretação da decisão judicial por parte do estafe do governo. O Supremo tem função precípua de esclarecer aquilo que efetivamente julgou. A decisão ficou tão clara que não houve embargos de declaração do aparato jurídico do governo, que é muito bom. Foi uma decisão claríssima.

O senhor enxerga má-fé ou uma tentativa de usar isso politicamente?

Enxergo como uma percepção alternativa de uma ciência que foi preconizada até alhures pelo (então) presidente dos Estados Unidos (Donald Trump), alguns líderes mundiais também. Em um primeiro momento, eram contra o lockdown, contra o isolamento, e pagaram preço caro por isso. 

É preciso uma apuração rápida no inquérito que investiga se houve omissão do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, no colapso da rede pública de Manaus?

É preciso deixar bem claro que o Supremo absolve inocentes e condena culpados. Não se tem ainda elemento para se formar uma convicção. O que houve, no meu modo de ver, foi o fator-surpresa, porque alguns países também foram surpreendidos com falta de oxigênio.

Esse inquérito deveria ser prioridade?

A prioridade no momento é decidirmos tudo que possa influir na questão da saúde. Saúde primeiro, e depois a verificação de fatos ilícitos que ocorreram de maneira despudorada. Na verdade, era inimaginável, num momento de pandemia, que os homens públicos ainda tivessem a ousadia de cometer ilícitos diante dessa dor e desse flagelo da população.

Um dos pontos destacados para investigar Pazuello é a distribuição de hidroxicloroquina, medicamento sem eficácia comprovada. Isso não pode ser crime?

A grande verdade é que autoridades médicas do País, até médicos famosos, disseram que passaram pela doença e tomaram hidroxicloroquina. Eu fiquei doente e não tomei. Tive uma covid caprichada. Levei três, quatro meses para voltar a me exercitar, e ainda não estou no auge, não.

O senhor defende a volta do auxílio emergencial?

Tem de haver uma Justiça caridosa, e uma caridade justa. Nós hoje estamos pagando o preço de termos deixado 50 milhões de brasileiros à deriva. Isso era para ter sido visto há muito tempo. Não dá para ser feliz sem pensar no outro. Foi o consumo dessa gente que recebeu o auxílio emergencial que movimentou a economia. Se eu pudesse imaginar a possibilidade de o Brasil continuar com esse auxílio, eu seria superfavorável. É temerário nesse momento deixar essas pessoas à deriva. Nós já as deixamos há muito tempo.

Os escândalos de corrupção não cessam no País. Não é frustrante?

Quando terminou o julgamento do mensalão, eu dizia ‘o Brasil nunca mais vai voltar a ser o que era’. Depois da Lava Jato, eu falei, ‘bom, agora realmente o Brasil nunca mais vai voltar a ser o que era’. Agora, esse flagelo da corrupção, que desmoraliza o Brasil, parece que está introjetado na cultura de determinadas pessoas, porque a falta de amor à coisa pública é aberrante. É inaceitável que uma pessoa queira maximizar suas rendas através do desvio de bens públicos.

A Lava Jato nunca foi tão atacada quanto agora. Teme pelos resultados obtidos na investigação?

A Lava Jato trouxe transformações sem precedentes para o Brasil, que passou a ser respeitado internacionalmente pela atuação contra desvio de dinheiro público. É verdade que, ao longo dos últimos anos, esse movimento teve perdas. Mas o País já mudou. E, na minha avaliação, o combate à corrupção não vai retroceder.

O Judiciário acaba sendo um grupo privilegiado perante o País. O senhor defende uma reforma administrativa que também envolva a magistratura?

Tem de haver uma reforma com relação ao tamanho do Estado. O Estado é muito grande e as despesas públicas são muito grandes. Eu acho que a reforma administrativa tem de obedecer ao princípio da igualdade, tem de obedecer ao princípio da isonomia. O que é ruim para o Brasil tem de afastar para todo mundo também.

O que o senhor acha da ideia do presidente Jair Bolsonaro de escolher um nome “terrivelmente evangélico” para o STF?

Isso é uma prerrogativa do presidente da República. Agora, o Supremo é um tribunal pluri-religioso, tem gente de todas as religiões aqui. O que faria um juiz, terrivelmente evangélico, num colegiado de dez não evangélicos? É preciso ter em mente que, depois da assunção ao cargo, a independência jurídica do membro do Supremo é absolutamente olímpica.


O Globo: Centrão investirá em projetos contra o legado da Lava-Jato

Fazem parte dessa agenda não propagandeada ainda a proibição de buscas em escritórios de advocacia

Bruno Góes e Natália Portinari, O Globo

BRASÍLIA - Fora da lista de projetos citados como prioritários pelo presidente Jair Bolsonaro, em um documento direcionado a deputados e senadores, uma pauta “oculta” deverá ganhar corpo no Congresso, impulsionada pela ascensão do centrão. Aliados do presidente da Câmara, Arhur Lira (PP-AL), e até integrantes da oposição enxergam o novo momento como propício para o avanço de propostas que afrouxam a punição para crimes associados ao mau uso de dinheiro público e à corrupção. Fazem parte dessa agenda não propagandeada a limitação da punição em casos de improbidade administrativa e lavagem de dinheiro, além da proibição de buscas em escritórios de advocacia.

Na outra ponta, duas Propostas de Emenda à Constituição — a da prisão após a condenação em segunda instância e a que extingue o foro privilegiado — seguirão a passos lentos, na mesma toada da gestão do ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Uma das prioridades do centrão é um projeto que diminui o alcance da lei de improbidade administrativa e elimina a forma “culposa” — sem intenção — do ato. De acordo com o relatório do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), já entregue, as violações que não gerassem prejuízos ao Erário ou enriquecimento ilícito deixariam de ser enquadradas como improbidade.

— Essas matérias não estão na lista de prioridades do governo, então podem entrar na pauta caso os líderes (partidários) queiram. Pessoalmente, sou a favor de mudar a lei de improbidade, para incluir só o que causa prejuízo ao Erário. Hoje, qualquer coisa é improbidade, e as penas são muito altas — diz o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR).

Liberação das armas e escola em casaveja quais são os projetos prioritários de Bolsonaro

Zarattini frisa que, com as mudanças, a lei vai continuar a permitir o bloqueio de bens e suspensão de direitos políticos daqueles que cometem improbidade:

— A lei não pode ser tão ampla. Há casos em que há condenações mesmo sem ter havido irregularidades.

No ano passado, a Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal classificou as alterações pretendidas como “um dos maiores retrocessos no combate à corrupção e na defesa da moralidade administrativa”.

Em 2020, a Câmara criou ainda uma comissão de juristas para discutir a tipificação da lavagem de dinheiro. Nos primeiros debates, advogados fizeram sugestões para amenizar as punições previstas na lei e tornar mais difícil a condenação por lavagem, que passaria a exigir um crime antecedente.

Aliados de Lira ouvidos pelo GLOBO avaliam que esse tema deve caminhar mais lentamente — ainda não há previsão de quando o colegiado vai voltar a se reunir —, mas que há boas chances de avanço. Quando os encontros forem retomados, é provável que o número de pessoas envolvidas no debate seja reduzido, o que facilitaria o andamento.

Também no fim do ano passado, a Câmara aprovou a urgência da proposta que impõe obstáculos a mandados de busca e apreensão em escritórios de advocacia. O projeto, portanto, pode ir a plenário a qualquer momento.

O texto torna praticamente inviolável o escritório ou local de trabalho do advogado. Não poderão ser expedidas buscas com fundamento em indício, depoimento ou colaboração premiada, sem a presença de provas periciadas e validadas.

— Não agrada 100% a todos, mas tem espaço para consenso e votação. É preciso buscar o que a Constituição já estabelece para proteger o exercício da advocacia, mas não é respeitado — diz o deputado Paulo Abi Ackel (PSDB-MG).

Atuação anti-moro

Crítico da Lava-Jato e réu em duas ações penais no Supremo Tribunal Federal (STF) — ele nega os crimes —, Lira sempre foi um dos parlamentares mais empenhados no Congresso a impor obstáculos à pauta do ex-ministro Sergio Moro. Em 2019, atuou para aprovar a Lei do Abuso de Autoridade e para modificar pontos do pacote anticrime, proposto por Moro. Agora, a avaliação no Congresso é que há consenso para a aprovação de uma quarentena eleitoral para juízes, integrantes do Ministério Público e policiais. Para o cientista político Carlos Pereira, professor da FGV, o pacote de intenções do centrão não necessariamente encontrará apoio majoritário entre os parlamentares.

— É fundamental lembrar que a situação do governo com o centrão não é majoritária, nada garante que a última vitória será reproduzida e convertida em políticas concretas no Parlamento. Acredito ser muito mais fácil a progressão de pautas econômicas, alinhadas à centro-direita, do que temas sobre costumes ou mesmo conectados com a Lava-Jato.

(Colaborou Filipe Vidon) 


Folha de S. Paulo: Acordo com centrão não é sólido, diz Santos Cruz

Para Santos Cruz, falta um plano de ação que dê sentido à aliança com o bloco no Congresso

Ricardo Balthazar, Folha de S. Paulo

Ex-ministro de Jair Bolsonaro, o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz acha que a aliança construída pelo Palácio do Planalto com os partidos políticos que dão as cartas no Congresso terá vida breve se não houver mudanças no governo e no comportamento do presidente.

Para Santos Cruz, que chefiou a Secretaria de Governo por seis meses e foi demitido após sofrer críticas do escritor Olavo de Carvalho e dos filhos de Bolsonaro, falta um plano de ação que dê substância aos acertos feitos com os políticos do centrão que passaram a comandar a Câmara dos Deputados e o Senado.

"Se a motivação principal [do acordo com o centrão] é a reeleição do presidente, o pessoal vai ter que pensar mais no Brasil", diz o ex-ministro. "O governo precisa mostrar uma capacidade de organização e planejamento que até hoje não demonstrou, e oferecer tranquilidade ao país."

Santos Cruz tornou-se um crítico ácido do governo Bolsonaro após sua demissão, mas acha que não existem condições para viabilizar um processo de impeachment e afastá-lo do cargo. "O melhor para o país é o presidente eleito governar", afirma o general. "Mas ele também tem que entender isso."

Desde o início da pandemia do coronavírus, o ex-ministro tem passado a maior parte do tempo recolhido numa chácara a 40 quilômetros de Brasília, indo até a capital apenas para compromissos eventuais. Fez melhorias na estrada que leva à propriedade, na cerca e no galpão. "Trabalho não falta", diz.

Como o sr. viu a aliança do presidente Bolsonaro com o centrão? 

Na época em que buscava cativar os eleitores, ele falava barbaridades do centrão. Tratava o grupo como uma aglomeração de pessoas que não tinham compromisso nenhum e só se preocupavam em preservar a própria impunidade. Agora, ele faz uma virada como essa aí. Há uma incoerência, e fica difícil estabelecer uma relação de confiança quando você faz esse tipo de coisa.

A verdade é que o governo não se preparou para fazer alianças. Negociação política não é crime. Mas você tem que negociar políticas públicas, não benefícios particulares. Na realidade, o que houve foi uma compra. Vão gastar bilhões de reais com as emendas dos parlamentares. Então não me parece uma coisa consistente, porque a influência do dinheiro é muito pesada. Uma negociação política desse tipo, para gerar confiança, precisa se sustentar em outros princípios, para produzir algo mais sólido.

O que acha que Bolsonaro fará com a base de apoio formada no Congresso? 

Um alinhamento maior entre o Executivo e o Legislativo obviamente traz vantagens e pode viabilizar algumas coisas, mas vamos ter que esperar para ver. Falta pouco mais de um ano e dez meses para o governo acabar. Se a motivação principal é a reeleição do presidente, o pessoal vai ter que pensar mais no Brasil. Precisa mostrar uma capacidade de organização e planejamento que até hoje não demonstrou, e oferecer tranquilidade ao país.

A pandemia ainda não acabou. Há muita coisa a fazer, mas a gente fica até hoje escutando mensagens contra a vacinação, como se tudo se transformasse numa disputa política. Essas coisas têm que parar. [O presidente] tem que saber falar com a população, e não só com os extremistas à sua volta. Ele não soube conduzir o processo. Agora tem que ajustar tudo isso se quiser a reeleição.

O acordo com o centrão garante proteção contra o avanço dos pedidos de impeachment que se acumulam contra Bolsonaro? 

Se o objetivo é esse, pode ser que tenha conseguido alguma proteção, temporariamente. Esse tipo de aliança, quando depende de um fluxo de recursos desse porte, como se falou nesses dias, não sei até onde é confiável. Infelizmente, tem gente que daqui a pouco vai querer mais e mais e mais. O modelo não é baseado em fidelidade e harmonia de objetivos, mas no dinheiro. Então, não sei até onde vai essa garantia.

Existem condições para abertura de um processo de impeachment agora? Precisa ter base jurídica, embasamento contra a autoridade. Há vários pedidos na Câmara dos Deputados. Não li, mas imagino que sejam sustentados por considerações nesse sentido. Você tem uma perda de apoio popular do presidente, mas não tão significativa que leve a essa situação. As condições não existem neste momento.

O afastamento do presidente seria desejável? 

Nunca é desejável. Até pode ser, se você tiver uma pessoa desequilibrada no cargo. Aí tem que impedir que prossiga, por uma questão de saúde mental. Mas no geral não. Temos eleições a cada quatro anos, e dá para corrigir qualquer coisa no voto.

O melhor para o país é o presidente eleito governar. Mas ele também tem que entender isso. Se está fazendo alguma coisa errada, dá uma corrigida. Se está falando demais, fala menos. Se está se comunicando de forma belicosa, baixa a bola.

Agora, se [o presidente] faltar, não tem segredo. A linha sucessória está prevista em lei, tem gente responsável por tocar para frente. Não vejo problema nenhum se ele ficar, ou se ele sair. O país não vai parar por causa disso. Passa por aquele trauma e vai em frente. Já tivemos duas vezes essa situação, e o Brasil andou.

O general Luiz Eduardo Ramos, que assumiu a Secretaria de Governo após sua saída, teve papel destacado nas articulações com o centrão. Que consequências terá para o país a volta dos militares à política? 

A população vê os ministros que são generais como generais, não como ministros. Isso não é bom, porque compromete a imagem institucional das Forças Armadas. No Exército, a gente sabe que não tem ninguém envolvido com a negociação com o centrão. Mas, para a população, parece que tem. A quantidade de militares no governo é muito grande e alimenta essa percepção.

O Ramos fazer essa articulação está na função dele. Eu não gosto desse tipo de articulação. Gosto de articulação política, mas não dessa qualidade, baseada em recursos financeiros, e principalmente com um grupo que o próprio governo criminalizava. Seria desconfortável para mim.

Quando a imagem da instituição é comprometida, ela se torna responsável pelos erros e pelos acertos, e muito mais pelos erros. As Forças Armadas são instituições de Estado. Podem dar suporte a políticas públicas, levar oxigênio para Manaus, completar a estrada onde a ponte caiu, mas não participam da rotina política. Ainda mais essa, baseada em bate-boca, extremismo, discursos na churrascaria.

Acha que o prestígio das Forças Armadas junto à população será abalado? 

Não. A queda de popularidade do presidente resulta do seu comportamento político e do mau desempenho. Pode haver algum reflexo, mas a instituição militar é tão sólida que acho que não foi arranhada.

Nem pelo mau desempenho do general Eduardo Pazuello como ministro da Saúde? 

Ele deve ser avaliado como ministro, não como general. Ele não exerce função militar. Pegou o bonde andando, assumindo uma estrutura que já vinha funcionando mal. A administração da pandemia é falha desde o início, porque o governo não assumiu a liderança do processo.

De vez em quando o pessoal fala que está cumprindo uma missão. Missão coisa nenhuma. Você só está cumprindo uma missão quando as Forças Armadas te dão uma tarefa. Quando é como foi no meu caso, ou no dele, ou qualquer outro que foi convidado para participar do governo e aceitou, o problema é seu. Não tem nada a ver com a instituição.

Quando Pazuello assumiu o cargo e foi criticado por sua inexperiência na área, seus defensores justificaram a escolha apontando a formação militar e sua especialidade, logística. 

É verdade, mas a logística militar é completamente diferente da logística civil. E ali o problema não era esse. A questão é de política pública de saúde. Ele podia ter segurado a parte logística se continuasse como secretário executivo do ministério, mas ao se tornar ministro passou a ser o responsável pela política de saúde. Aí é que a coisa dá zebra.

O que justificou a reaproximação da cúpula das Forças Armadas com Bolsonaro durante a campanha eleitoral, após décadas de desconfiança por causa do seu histórico de indisciplina? 

O presidente Bolsonaro percebeu ali que estávamos no fim de um ciclo iniciado pelos governos do PT e investiu nisso. A aproximação não foi só com as Forças Armadas. Foi com os eleitores, a sociedade. Ele falou tudo que a população queria ouvir, trouxe esperança, criou boa expectativa. Mas seu comportamento no governo tem sido lastimável. Ele não tinha ideia de como fazer, e por isso a prática é diferente do discurso.

Foi mesmo uma surpresa? Na campanha eleitoral, ele nunca escondeu o que era. 

Sem dúvida. Mas uma coisa é levar as coisas na brincadeira e fazer grosserias para capturar a atenção do eleitor numa campanha. Quando você ganha e assume a função, você tem responsabilidade num nível muito maior e tem que dar o exemplo.

Você pode emocionar uma parte do eleitorado quando diz que bandido bom é bandido morto. Quando assume, tem que ter um plano de segurança pública. Tem que seguir a lei, verificar o orçamento, aperfeiçoar as instituições, mesmo que sua política seja para valorizar o policial e aumentar sua proteção.

Por que, apesar de tudo isso, a oposição continua tão desarticulada? 

O PT se manteve na liderança por muito tempo e só tinha um líder, o ex-presidente Lula. Na hora que ele caiu, ficou sem liderança. Quem ainda fala no PT e em Lula todo dia são os bolsonaristas. O PT tem até que agradecer a propaganda. Mas o partido perdeu a eleição e não consegue mais se organizar como centro da oposição. O que não é bom, porque precisamos de uma oposição ativa, que faça o contraponto [ao governo]. Sem isso, e com todo esse dinheiro, vão passar o trator por cima. Foi o que ocorreu agora na Câmara e no Senado.

No início da pandemia, quando Bolsonaro fez ameaças aos outros Poderes e disse que tinha os militares a seu lado, havia algum risco de ruptura institucional? 

De jeito nenhum. Alguns parlamentares, o pessoal civil, a imprensa e parte da população podem ter essa sensação, vendo que tentaram arrastar o Exército como arma para ameaçar. Mas foi puro blefe. Não tem nada disso.

Teve até jurista defendendo a tese de que o Exército podia ser o moderador dos Poderes. Invenção pura. O que existe é a Constituição, e a obrigação que os Poderes têm de se ajustar. Fechem a porta e discutam até chegar a um acordo. As Forças Armadas não têm nada a ver com isso.

RAIO-X

Carlos Alberto dos Santos Cruz, 68
General da reserva do Exército, foi ministro da Secretaria de Governo de janeiro a junho de 2019. No governo Michel Temer, foi secretário de Segurança Pública do Ministério da Justiça. Comandou tropas da Organização das Nações Unidas (ONU) em missões para estabilização do Haiti e do Congo