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Correio Braziliense: 'Vacina imediatamente para todos os brasileiros', defende Pacheco

Adepto da melhor tradição política mineira, o senador do DEM confia no diálogo para superar entraves nacionais como o acesso a vacinas, a definição de um auxílio aos desassistidos e as medidas para estimular o crescimento econômico

Denise Rothenburg, Guilherme Peixoto, Bertha Maakaroun e Carlos Marcelo, Correio Braziliense

Rodrigo Pacheco (DEM-MG) nunca viveu dias tão intensos. Eleito presidente do Senado Federal com amplo leque de apoios circunstanciais em 1º de fevereiro, acumulou compromissos ao longo da semana. Em Brasília, reuniu-se com o também recém-eleito presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e o minisro da Economia, Paulo Guedes. Na sexta-feira, de volta a Belo Horizonte, “peregrinou” por diversas instituições: esteve com o governador Romeu Zema (Novo) e o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD). Foi à Assembleia Legislativa e passou pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Depois, visitou a seccional estadual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No fim do dia, no seu escritório em BH, respondeu perguntas de jornalistas do Correio Braziliense e do Estado de Minas. Na visão dele, o tripé de prioridades para o próximo biênio já está traçado: saúde, assistência social e crescimento econômico.

Pacheco quer imunização imediata contra covid-19 a todos os brasileiros. Ele reconhece a necessidade de dar apoio aos vulneráveis e crê que a definição dos termos da transferência de renda precisa ocorrer de modo ágil. “Se isso se dará em um novo programa análogo ao auxílio emergencial ou em incremento do Bolsa Família, é uma decisão que será tomada o mais rapidamente possível pelo Congresso, junto à equipe econômica do governo”, disse. Uma das reformas econômicas em pauta é a tributária, que o comandante do Congresso estima entregar em outubro. “A distribuição de renda precisa existir no país, mas passa por um protocolo fiscal e por um sistema tributário mais justo”, explicou. O pacote de mudanças, que engloba alterações na máquina pública e Propostas de Emenda à Constituição (PECs), é visto por Pacheco com olhos esperançosos. “Temos que ter compromisso com as futuras gerações. Medidas amargas e antipáticas precisam ser tomadas para corrigir distorções”, acredita Pacheco.

Em tempos em que os limites da democracia são testados e pressionados por narrativas da extrema direita, Rodrigo Pacheco é enfático ao assinalar o modo que conduzirá a presidência do Congresso Nacional, em “defesa intransigente do estado democrático de direito”. Este foi um dos temas centrais em seu discurso de posse. Apesar disso, contudo, ele considera não haver, neste momento, ameaça concreta contra a estabilidade democrática. “Pelo menos assim considero. As instituições estão fortalecidas e em funcionamento. A democracia está na essência do Brasil hoje”, pontuou, garantindo reação imediata do Congresso caso se configurem situações em contrário. Ele promete buscar a “pacificação” da sociedade, entre instituições e da classe política, adotando, para isso, os fundamentos da ciência, os fundamentos econômicos, sociais e os princípios da Constituição Federal. “Não há muito segredo nisso: é obedecer a Constituição, fazer com que as instituições cumpram seus papéis sem interferir no papel das outras e que respeitemos as posições de cada qual”, afirmou.

Admirador confesso de Juscelino Kubitschek, Pacheco elegeu-se deputado federal em 2014, assumindo pela primeira vez um cargo de representação popular. Quatro anos depois, conquistou a cadeira do Senado Federal. Obteve apoio pluripartidário e circunstancial de partidos da esquerda à extrema direita para dirigir o Congresso Nacional, interlocução esta que pretende manter na condução dos trabalhos legislativos. Nesse sentido, é cuidadoso ao abordar temas que polarizam o debate, como, por exemplo, a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, proposta pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), para investigar as ações do governo federal ante a pandemia. “Randolfe apresentou um requerimento com 31 assinaturas, cumprindo as exigências constitucionais e regimentais. Há a necessidade de se avaliar o fato determinado do requerimento, algo que, como presidente do Senado, ainda não fiz”, afirmou, assinalando que foi aprovado pelo plenário requerimento de Rose de Freitas (MDB-ES) convidando o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, a ir ao Senado nos próximos dias para dar explicações necessárias sobre as políticas do Ministério da Saúde no enfrentamento à pandemia.

Em seus últimos pronunciamentos, o senhor destacou a necessidade de pacificação na política, chegando a fazer uma intervenção do tipo na abertura dos trabalhos do Congresso, diante de manifestações de deputados contra e a favor do presidente Bolsonaro, que estava ao seu lado. Qual a origem dessa guerra? O que há para ser pacificado?

O que precisa ser pacificado é o Brasil, a sociedade, as instituições e a classe política. Há um nível de acirramento, que deveria ser normal da democracia — atrito, divergência —, mas, infelizmente, isso se potencializou. Um atrito de rispidez, de intolerância, de desrespeito à divergência e de não compreender as diferenças. O caminho para a solução de muitos problemas é a ciência, os fundamentos econômicos, sociais, os princípios e a Constituição Federal. O que faz com que isso esteja interligado é um ambiente de pacificação, compreensão e respeito às divergências. Não consigo atribuir, exatamente, a gênese disso. A primeira eleição que tive, em 2014, já foi muito acirrada e polarizada, à beira do desrespeito. De lá para cá, o que acontece na política brasileira é muito esse desrespeito. Mas não é só essa intolerância e disputa muito acirrada da classe política.

Tem algo mais?

É, também, a dificuldade de compreensão dos poderes, de que cada um tem o seu papel — e que têm de ser cumpridos, (pois são) constitucional e legalmente previstos, sem interferir no poder do outro. O ambiente de pacificação deve ser buscado dentro da compreensão de que os poderes são autônomos, livres, e têm que conviver harmoniosamente. Não há muito segredo nisso: é obedecer a Constituição, fazer com que as instituições cumpram seus papéis sem interferir nas outras e que respeitemos as posições de cada qual. Sempre haverá caminhos para solucionar quando não há consenso. Vamos buscar sempre o consenso. Se não há consenso, há os caminhos para estabelecer a vontade da maioria.

Em seu discurso aos senadores, antes da eleição para a Mesa, há ênfase aos princípios constitucionais, à soberania, à cidadania e ao pluralismo, além de defesa intransigente do estado democrático de direito. Há, em sua avaliação, risco às instituições democráticas para que sua defesa intransigente volte à pauta?

Não há ameaça concreta ao estado democrático de direito no Brasil. Pelo menos assim considero. As instituições estão fortalecidas e em funcionamento. A democracia está na essência do Brasil hoje. Se houvesse riscos concretos à democracia, o Congresso Nacional reagiria prontamente. A defesa do estado democrático de direito tem que ser falada insistentemente, justamente para que não surjam riscos concretos. É uma tecla em que temos que bater constantemente. No dia a dia do Senado, temos que incutir, nos projetos, a lógica de defesa da Constituição, que é fundamental

Há previsão para a conclusão da reforma administrativa?

A reforma administrativa está na Câmara dos Deputados. Houve uma opção, entre as casas legislativas, de que a Câmara deveria iniciar essa discussão. Um ponto muito importante: não se pode ter um discurso demonizando servidores públicos ou achando que eles são os problemas do Brasil. Não são. Na verdade, os servidores públicos são a solução dos problemas do Brasil. Quem está fazendo o enfrentamento no dia a dia da pandemia, especialmente àqueles que não têm condições de pagar médicos e hospitais particulares, são os servidores do Sistema Único de Saúde (SUS). Não podemos achar que o funcionalismo é a causa do problema. É preciso ter respeito ao funcionalismo, mas, por outro lado, é preciso exigir produtividade, que o serviço público seja ambiente de competitividade, busca por resultados e jornadas de trabalho efetivas.

O que é preciso mudar então?

A reforma administrativa busca corrigir algumas distorções que existem no sistema brasileiro, que é muito inchado em termos de serviço público, e buscar otimizar para que o servidor seja bem valorizado, mas dentro de uma estrutura em que o país não tenha, a partir de sua arrecadação, uma carga de despesas com pessoal além do possível. Um outro ponto que deve ser discutido na Câmara é se isso deve alcançar quem já está no serviço público. É um caminho para entender a reforma administrativa no Brasil, com efeito doravante. Essa é só uma percepção. O que vai valer é a decisão da maioria do plenário da Câmara e, depois, do Senado.

A reforma vai atingir todos os setores ou certas castas não serão atingidas, como nas mudanças previdenciárias?

A lógica é que isso alcance o funcionalismo em geral. Essa é uma decisão que deve ser amadurecida em ambiente próprio: as comissões e os plenários de Câmara e Senado. Por mais que eu tenha percepções e entendimentos pessoais sobre diversos temas do Brasil, o presidente do Senado não pode impor suas vontades à maioria. Há um colégio de líderes, escolhidos pelos integrantes dos partidos, o plenário e as comissões temáticas. O presidente do Senado tem que cuidar muito para não impor sua vontade e interferir no processo legislativo.

O senhor crê que a reforma administrativa pode impulsionar a criação de um programa de transferência de renda?

Temos que ter compromisso com as futuras gerações. Medidas amargas e antipáticas precisam ser tomadas para corrigir distorções. Não que as distorções únicas estejam passíveis de correções apenas na reforma administrativa. Há a reforma tributária, o aprimoramento de reformas já feitas, outros projetos, as PECs Emergencial, dos Fundos Públicos e do Pacto Federativo, além da relação entre os entes federados. O destravamento da pauta do Senado e da Câmara e o amadurecimento servirão para ter equilíbrio fiscal — não gastar mais que o arrecadado —, ter um sistema tributário transparente, desburocratizado e simplificado, um serviço público eficiente, baseado em meritocracia, e que não seja demonizado, mas valorizado, e encontrar soluções para o Brasil. A distribuição de renda precisa existir no país, mas passa por um protocolo fiscal e por um sistema tributário mais justo.

Eduardo Bolsonaro divulgou que o presidente vai anunciar, esta semana, três decretos sobre porte e posse de armas. Essa pauta é urgente no Senado? Qual é a prioridade dos senadores ante os 35 itens enviados pelo Planalto?

A pauta prioritária do Senado haverá de ser definida pelos líderes partidários na primeira reunião, que acontecerá na terça-feira, às 10h. Minha percepção é de que a prioridade da pauta do Senado deve ser baseada no trinômio saúde pública, desenvolvimento social e crescimento econômico. Ou seja: vacina imediatamente para todos os brasileiros, e todos os procedimentos para permitir que as vacinas cheguem aos brasileiros. O desenvolvimento social é a preocupação que temos com a camada muito vulnerabilizada, que precisa de assistência social. Se isso se dará em um novo programa análogo ao auxílio emergencial ou em incremento do Bolsa Família, é uma decisão que será tomada o mais rapidamente possível pelo Congresso, junto à equipe econômica do governo. O crescimento econômico são as pautas que precisam ser estabelecidas para que o Brasil seja um ambiente seguro de investimentos, com segurança jurídica e estabilidade econômica, social e política.

Por que o senhor menciona estabilidade política?

Neste momento, a estabilidade política é muito importante. A eleição das duas Mesas do Congresso alinhadas entre si e colaborativas reciprocamente com o governo e o Supremo Tribunal Federal (STF), obviamente resguardando a independência dos poderes, é algo muito importante para um caminho de crescimento econômico, gerando o mais importante para uma nação civilizada: emprego e renda por meio da força de trabalho. Esse trinômio deve ser foco imediato de atuação. As outras pautas, legitimamente defendidas por partidos, blocos e senadores — e o Poder Executivo e Bolsonaro também têm suas prioridades —, mas o sentimento do Senado é avaliar cada item e proposta vinda dos senadores, da Câmara, do Executivo e do STF. (As armas de fogo) já foram discutidas no primeiro biênio da legislatura no Senado, em relação ao decreto que acabou sendo revogado. É uma pauta do presidente e dos senadores. Ela deve ser discutida no colégio de líderes para avaliar se deve ser pautada ou não, mas se eu disser que isso é prioridade em momento de pandemia, estaria mentindo. Ela pode ser prioritária em algum momento para senadores, e vamos ter toda a receptividade em pautá-la se for o caso, mas neste momento o foco é o enfrentamento à pandemia.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) colheu assinaturas em prol da criação de CPI para investigar as ações do governo federal ante a pandemia. Se a comissão for aberta, como será a postura do Senado?

Randolfe apresentou um requerimento com 31 assinaturas, cumprindo as exigências constitucionais e regimentais. Há a necessidade de se avaliar o fato determinado do requerimento, algo que, como presidente do Senado, ainda não fiz. Não examinei o requerimento de instalação dessa CPI específica. Na sessão de quinta-feira, um requerimento de Rose de Freitas (MDB-ES) foi aprovado em plenário convidando o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, a ir ao Senado nos próximos dias, em data a ser definida brevemente, para que possa, ele, dar as explicações necessárias sobre as políticas do Ministério da Saúde no enfrentamento à pandemia. Esse é um primeiro ato importante.

O senhor, se fosse contaminado pela covid-19, se trataria com ivermectina e cloroquina?

Se contraísse a covid-19, e nós todos, infelizmente, estamos suscetíveis a isso, obedeceria ao médico que eu procurasse e me receitasse o procedimento adequado. Sou advogado. Se fosse médico, poderia me automedicar. Como não sou, confiaria plenamente no médico que procurasse.

Os mais recentes pedidos de impeachment de Bolsonaro consideram a omissão do governo no combate à pandemia e o receituário de medidas preventivas desqualificadas pela ciência. Há elementos para que esses pedidos prosperem?

Impeachment é algo muito grave, sério e um instituto que não pode ser banalizado. Temos dois episódios de impeachment na história recente do Brasil que foram tristes. (O impedimento) demonstra fragilidade da democracia e da República. É algo que tem que ser analisado com muita responsabilidade. Tem o apelo político, mas também o apelo jurídico. Não me permitiria apreciar nenhum pedido de impeachment, que definitivamente não os conheço em suas inteirezas, por uma razão muito simples: o presidente do Senado e do Congresso tem que ter muita responsabilidade nessa apreciação, haja vista que a análise de admissibilidade do impeachment cabe à Câmara dos Deputados e a seu presidente. Portanto, não opinarei sobre hipóteses de impeachment.

A gravidade da pandemia foi então uma fatalidade?

Independentemente desses pedidos, a pandemia atingiu o Brasil e o mundo de maneira surpreendente, muito severa e trágica. Não há um país ou um estado da federação brasileira que tenha só acertado. Sinceramente, não há qualquer comprovação científica do que deveria ser tomado há um ano sobre a pandemia. Há um estado de incertezas que nos faz ter compreensão de que a sanha de achar culpados a qualquer custo deve dar lugar a um ambiente em que a ciência prevaleça e amadureça, e que façamos um enfrentamento mais inteligente ao que nos exige o momento: facilitar, o máximo possível, o acesso à vacina. É uma obrigação do Estado e um direito do cidadão ter acesso às vacinas. De onde quer que venham, certificadas pela Anvisa, que sejam colocadas à disposição da sociedade.

O DEM, partido ao qual o senhor pertence, está em crise. Enquanto ACM Neto é cotado para ser vice de Bolsonaro em 2022, Rodrigo Maia pensa em deixar a legenda. Qual é a sua posição?

Não me permito discutir projetos eleitorais de 2022, nacional ou estadual, sentando na cadeira de presidente do Congresso. Não vou apreciar essa questão (candidatura no próximo pleito) neste momento. O foco é o mandato de presidente do Senado. Serei o mais colaborativo possível em relação aos outros poderes, obviamente resguardando a independência do Senado, além de buscar ajudar o governo a executar políticas públicas.

Arthur Lira disse que não tem protagonismo de uma Casa nas reformas e afirmou que a Câmara vai tocar a reforma administrativa, e o Senado, a PEC Emergencial. Pareceu, a alguns políticos, que ele tentou marcar uma posição. O senhor, por seu turno, estima oito meses como prazo de entrega da tributária. Qual reforma sai primeiro?

A reforma administrativa está na Câmara. Lira se comprometeu a dar andamento a ela. No Senado, há a PEC Emergencial, a PEC dos Fundos Públicos, recursos bilionários que podem ser alocados no Tesouro para pagar a dívida pública e, eventualmente, sustentar a assistência social que o Brasil precisa. E (também) a PEC do Pacto Federativo, que busca desvincular e descentralizar a política pública e orçamentos para estados e municípios, para facilitar o emprego dos recursos diretamente ao cidadão. Estamos chamando isso, junto com a equipe econômica do governo, de protocolo fiscal. (O pacote) demonstra que o Brasil tem responsabilidade fiscal, vai buscar corrigir as distorções do orçamento e combater o déficit público. Elas tramitarão concomitantemente na Câmara e no Senado.

E a reforma tributária?

A reforma tributária está em uma Comissão Mista. O que estipulamos, na reunião com Lira, foi um cronograma possível. A comissão entrega o parecer até o final de fevereiro, ele é apreciado, e se inicia por uma das casas legislativas, que terá entre três e quatro meses para deliberar, vai à outra Casa e a gente, então, amadurece uma reforma tributária no Brasil. Não é algo simples. A reforma tributária talvez seja a reforma mais complexa que temos para fazer, mas a política é a arte de escolher. Temos que, à luz da técnica, de fundamentos econômicos e ouvindo especialistas, escolher uma opção para arrecadação tributária do Brasil, de modo que o sistema que queiramos adotar seja o melhor possível.

Então não há como cravar quando todo o protocolo fiscal ficará pronto?

Ele será trabalhado como prioridade, mas, obviamente, depende do sentimento. Não é uma vontade pessoal do presidente do Senado. Deve ser trabalhado com o colégio de líderes, que se reunirá na terça-feira, às 10h.

Especialistas creem que a criação de um imposto único tende a concentrar, ainda mais, a renda na União. Qual a sua opinião?

Sobre o mérito dessas propostas, é responsável da minha parte, como presidente do Senado, reservar as instâncias de comissões, Câmara e Senado. A proposta prevê o Imposto Sobre Valor Agregado (IVA) ou o Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS). Em uma proposta, há a lógica de unificar impostos federais. Na outra, também ICMS e ISS — aí, tem que identificar a forma de repartição. A opção tem que ser dentro de uma lógica que não sacrifique mais o contribuinte e que se busque fazer, no Brasil, a simplificação, a desburocratização e o combate à sonegação. Há instrumentos próprios para isso. Temos que simplificar o sistema tributário. Não necessariamente haverá redução de encargos, mas pode haver substituição de tributos. São hipóteses que vão ser trabalhadas por técnicos. É uma reforma em que vai haver divergências. Não há como não haver divergências. Só não pode haver algo que signifique quebras de setores inteiros ou prejuízos muito acentuados a um estado em favor de outro.

Os parlamentares bolsonaristas contarão com o seu apoio para colocar em pauta a redução de poderes do STF? O que acha dessa política de enfrentamento de poderes, que mobiliza as redes sociais?

A oposição de ideias é válida e faz parte da democracia. O enfrentamento por si só, sem ideias consistentes, é só um acirramento absolutamente desnecessário que vai contra tudo o que prego: a pacificação das instituições. Não serei defensor, necessariamente, de um grupo ‘A’ ou ‘B’ de deputados. Como presidente do Congresso, vou atender todos os 513 deputados nas boas ideias que tenham. Assim como os outros 80 senadores nos bons propósitos que tenham. Não há adesão ideológica ao grupo ‘A’ ou ‘B’. Penso sempre no bem do Brasil.

O senhor citou duas vezes, em seu discurso de posse e na abertura dos trabalhos do Congresso, o nome de Juscelino Kubitschek. Por que a evocação de Juscelino?

Na minha opinião, foi o maior político da história brasileira. E, orgulhosamente, um mineiro. Pautou-se pela ética, pela decência e pela ideia de desenvolvimento do Brasil. Trouxe a interiorização, industrializou o país e abriu o Brasil para o mundo com uma lógica muito inteligente. Ele fez o que fez como prefeito de BH e presidente da República: a Pampulha e, depois, Brasília. Juscelino Kubitschek deve ser sempre lembrado, cultuado, e seu exemplo sempre sentido pelos que estão na política. Temos que ter um guia. Nosso guia político, em Minas Gerais, na minha opinião, deve ser Juscelino Kubitschek.

Como deseja ser lembrado quando deixar a presidência do Senado?

Pretendo deixar o legado de alguém que honrou suas tradições, suas origens e o estado de Minas Gerais. Que buscou dar soluções ao Brasil em um momento de crise sem precedentes, com uma pandemia que será histórica e lembrada por séculos mundo afora. E estávamos ali a defender a república, o federalismo e o estado democrático de direito, com amor à divergência, buscando encontrar soluções por meio da conciliação das diferenças. (Colaborou Luiza Rocha)


Míriam Leitão: O diplomata que virou pária

No Itamaraty, a expectativa é a de que Ernesto Araújo deixe de ser ministro em março. Seria um alívio para várias gerações de diplomatas, porque ele feriu normas essenciais da boa diplomacia. Um dos problemas para tirá-lo é saber para onde ele pode ser removido. Ele gostaria de ir para Paris, mas o risco é o governo de Emmanuel Macron não dar o agrément, que é o consentimento do país que recebe. Outro risco é o de constrangimento em sessão do Senado, que recentemente rejeitou o nome do embaixador indicado para Genebra, num recado para Araújo. Por isso, uma das possibilidades aventadas é a OCDE, posto que não exige sabatina, já que é uma espécie de embaixador alterno.

Há uma maioria sólida de adversários de Araújo dentro da carreira, mas os últimos acontecimentos aumentaram a indignação. Os olhos dos diplomatas brasileiros acompanharam com estupefação a atitude de Ernesto Araújo na cena em que Jair Bolsonaro berrou palavras sórdidas contra jornalistas numa churrascaria. O ministro aplaudiu, deu gargalhadas, gritou “mito”. Isso provocou repulsa generalizada. Não é nem mais uma questão de gostar ou não do governo, disse uma fonte diplomática, aquilo aviltou a própria Casa, até porque houve matérias no exterior descrevendo a baixeza da cena.

Ernesto Araújo tem também adversários fora do Itamaraty. O vice-presidente Hamilton Mourão recentemente falou que ele sairia, mas com isso lhe deu uma sobrevida. Na entrevista ao “Valor”, publicada na edição de sexta-feira, o senador Ciro Nogueira, presidente nacional do PP, define o centrão como “estabilizador do governo” e diz que “a condução do Itamaraty hoje prejudica o Brasil” e por isso “tem que mudar”.

Os críticos de Ernesto podem ter motivos diversos, mas existem fatos concretos contra ele. Na área científica do governo, a convicção é que o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), que acaba de chegar da China para a Fiocruz, demorou semanas a mais pelos atritos criados pelo ministro com os chineses. No caso da Índia, a trapalhada de anunciar a ida do avião antes de conversar com as autoridades indianas causou o maior ruído no país fornecedor. A diplomacia existe para aplainar terrenos, desatar nós, dissolver conflitos. O pior problema não são os delírios persecutórios de Ernesto Araújo, mas o prejuízo que ele dá aos cofres públicos, anulando o empenho de servidores qualificados para o trabalho diplomático.

— A grande maioria dos nossos colegas acha que ele não tem o direito de destruir o Itamaraty como tem feito. O problema não é ideológico. O caso dele é clínico. Já há claros sinais precursores de que o tempo dele está terminando. O problema é achar um posto que o aceite. Ele queria que o Brasil fosse um pária, ele se tornou um pária — resumiu uma fonte diplomática.

Naquela série de tuítes sobre o assalto ao Capitólio, Ernesto Araújo fez um raciocínio tortuoso, quase justificando a violência com a hipótese, nunca confirmada, de “infiltrados”. Definiu os invasores do Congresso como “cidadãos de bem” e ainda disse, num comentário descabido, que “grande parte do povo americano se sente agredida e traída pela classe política”. Queria, claro, transpor para o Brasil. Esse episódio, o reiterado embate com a China, as trapalhadas frequentes com vários parceiros obrigam muita gente a consertar seus estragos. Suas ações têm um amadorismo que envergonha uma diplomacia outrora orgulhosa do seu profissionalismo.

Quem poderia ir para o lugar de Ernesto Araújo? Há quem fale na ministra da Agricultura, Tereza Cristina, se a escolha for de fora da carreira. Ela impressiona os diplomatas pela sua habilidade em negociação, apesar da incapacidade de entender o cerne do problema ambiental, que será mais importante durante o governo Biden. Se for da carreira, há pelo menos um que faz campanha com bajulações explícitas, e há os que têm chances de reequilibrar o Itamaraty. Existem muitos que preferem distância do atual governo.

Ernesto Araújo tem levado doutrinadores extremistas para falar para os diplomatas jovens e estudantes do Instituto Rio Branco. Não tem tido sucesso nessa tentativa de lavagem cerebral, como se viu pela última turma, que escolheu o poeta João Cabral de Melo Neto como patrono. Ernesto Araújo, ao violentar tanto as normas da boa diplomacia, tem produzido sua antítese. Está aumentando no Itamaraty a defesa da diplomacia como carreira de Estado.


Bruno Boghossian: Aliança entre Bolsonaro e centrão testa abraço entre direita e extrema direita

Partidos estendem tapete para reeleição e tratam com mansidão até figuras mais reprováveis do bolsonarismo

A maioria dos deputados americanos decidiu excluir a republicana Marjorie Taylor Greene das comissões que ela integrava no Congresso dos EUA. Eles entenderam que uma extremista que propaga teorias da conspiração e apoia a violência contra políticos não deve exercer funções relevantes por lá.Eleita no ano passado, Greene defendia a rede de militantes lunáticos do QAnon. Ela afirmava que os atentados de 11 de Setembro eram uma farsa, que democratas participavam de rituais satânicos e que empresários judeus A deputada só vai ficar fora das comissões de orçamento e educação do Congresso porque os democratas votaram em peso para removê-la. 

Apesar do repertório delirante de Greene, 199 dos 211 parlamentares republicanos tentaram manter a O Partido Republicano aplaudiu por quatro anos um populista como Donald Trump e acreditou que conseguiria tirar proveito de sua presidência. Apesar de todos os prejuízos, esses políticos ainda são capazes de manter laços com radicais que compõem suas fileiras. Quando o establishment político começa a dar passos para as extremidades, os limites vão ficando para trás.

A maioria dos deputados americanos decidiu excluir a republicana Marjorie Taylor Greene das comissões que ela integrava no Congresso dos EUA. Eles entenderam que uma extremista que propaga teorias da conspiração e apoia a violência contra políticos não deve exercer funções relevantes por lá.

Eleita no ano passado, Greene defendia a rede de militantes lunáticos do QAnon. Ela afirmava que os atentados de 11 de Setembro eram uma farsa, que democratas participavam de rituais satânicos e que empresários judeus usaram um laser espacial para iniciar incêndios na Califórnia.

A deputada só vai ficar fora das comissões de orçamento e educação do Congresso porque os democratas votaram em peso para removê-la. Apesar do repertório delirante de Greene, 199 dos 211 parlamentares republicanos tentaram manter a conspiracionista naquelas funções.

O Partido Republicano aplaudiu por quatro anos um populista como Donald Trump e acreditou que conseguiria tirar proveito de sua presidência. Apesar de todos os prejuízos, esses políticos ainda são capazes de manter laços com radicais que compõem suas fileiras. Quando o establishment político começa a dar passos para as extremidades, os limites vão ficando para trás.

A direita americana abraçou a extrema direita. No Brasil, a nova aliança governista vai testar essa lógica. Majoritariamente conservador, o centrão estende o tapete para o bolsonarismo e trata com mansidão até suas figuras mais reprováveis.

O acordo entre esses partidos ameaça entregar o comando da principal comissão da Câmara à deputada Bia Kicis (PSL). A parlamentar divulgou teorias conspiratórias sobre a vacina, escreveu que “a cloroquina mata o coronavírus” e arquiteta um golpe do pijama para antecipar a aposentadoria de ministros do STF.

A grande fronteira é a campanha de 2022. Em vez de mandar Jair Bolsonaro de volta para as franjas, políticos de PP, PL e DEM querem apoiar a reeleição de um presidente que sabota a saúde e degrada a democracia.


Janio de Freitas: Eleição na Câmara e no Senado deixou Bolsonaro com centenas de dívidas

Não sendo vitória política, dívida é igual a cobrança, e cobrança em política é incerteza e instabilidade

Os que viram o fim da possibilidade de impeachment na entrega da Câmara a comando bolsonarista, ou antes estavam esperançosos demais, ou agora estão conclusivos demais. Apesar da aparência, o que Bolsonaro obteve não foi uma vitória política. Antes e mais, está para negócio bem-sucedido, como podem ser os negócios que operam à margem dos formalismos legais.

Mas não faltaram os formalismos próprios de certa clandestinidade. E deles resultou que Bolsonaro está com centenas de dívidas, é provável que até perto de umas três, a pagar aos deputados que venderam seus votos por cargos e verbas. Bolsonaro não pagará essa dívida, não tem como pagá-la a mais do que uma parte dos credores.

Não sendo vitória política, fruto de liderança e não de corrupção, dívida é igual a cobrança e cobrança em política é incerteza e instabilidade. Já no primeiro momento da nova presidência, isso se mostrou: Arthur Lira não conseguiu assegurar a presidência da Comissão de Constituição e Justiça, a principal, à extremista Bia Kicis, como exigido por Bolsonaro no acordo de ambos.

Ainda assim, o butim de Bolsonaro deu-lhe o que queria —a obstrução do novo presidente a pedidos de impeachment (os problemas criminais da família, citados por muitos, na verdade transitam fora do Congresso, em mãos investigatórias e judiciais).

Controlar a Câmara, porém, é insuficiente. O procurador-geral da República, Augusto Aras, por exemplo, decidiu por uma investigação preliminar sobre a influência de Bolsonaro e do general Pazuello na formação e no desenrolar da crise asfixiante no Amazonas e no Pará. Mais político do que outra coisa, Aras se disse movido por um requerimento do PC do B. Para não mencionar a numerosa manifestação de ex-procuradores, com presenças notáveis, cobrando-lhe uma denúncia contra a conduta de Bolsonaro na pandemia.

O objetivo por trás da medida de Aras é incerto. Tanto mais por seu recente e falso argumento, para escapulir da mesma medida, de que “ilícitos de agentes políticos são da competência do Legislativo”.

Se Aras pretende criar a conclusão de inexistência de práticas puníveis, para dar por infundados novos pedidos contra Bolsonaro, é esperável que passe ele a ter dificuldade de permanecer. Há ex e atuais procuradores decididos a agir, e sabem como fazê-lo. Em outra hipótese, a investigação desenvolve-se com honestidade —logo, impeachment à vista.

No Senado, estão reunidas mais do que as assinaturas suficientes para uma CPI sobre as condutas de Bolsonaro e Pazuello relativas à pandemia. O novo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, e Arthur Lira lançaram uma nota cínica com as alegadas prioridades do Congresso: “soluções e não problemas”.

Nada de CPI, pois. Pacheco parece não querer demora para desmoralizar-se. Mas não tem controle de nada no Senado, muito menos das disputas que exprimem maior animosidade ao governo.

Bolsonaro voltou à polêmica das armas, para dirigir as atenções gerais. É sinal, mais uma vez, de que está se sentindo em dificuldade. E que a corrupção, da qual participaram generais, não afastou a assombração do impeachment. Sua vitória na Câmara e no Senado foi real em números. Não, porém, na essência da situação política.

DISTORÇÕES

Um crime de 1958 volta à tona. Na sua versão pública, esteve sempre distante da realidade. O estupro e morte da jovem Aida Curi, agora objeto do pedido judicial de direito familiar ao esquecimento, foi brutal também na deformação dos fatos tanto pela investigação como no julgamento. A figura central do crime foi favorecida pela ação articulada de três pessoas, que usaram de suas influências respectivamente no Judiciário, na opinião pública e na polícia.

Um general, Adauto Esmeraldo, ex-diretor da Divisão de Ordem Política e Social do então Distrito Federal, com ligação estreita aos outros dois. David Nasser, que lançou pela revista O Cruzeiro “reportagens” escandalosas com uma versão sua do crime, dos autores e da jovem vítima. E, muito próximo de Nasser, o famoso Zica, dono de um grande bar na praça Mauá, zona portuária, que era centro de câmbio negro de moeda, contrabando, tóxicos e, ponto da marujada, prostituição.

Enteado do general, Cássio Murilo teve reduzido à irrelevância, e transferido a um companheiro, o seu papel no crime. Esse outro, de família sem influência, foi o condenado e cumpriu pena. Cássio Murilo, não muito depois, envolveu-se em mais um caso policial, e mais outro, sempre com o mesmo resultado, pelos mesmos meios.

O assassinato a tiros da socialite mineira Angela Diniz, por seu companheiro Doca Street, numa praia de Búzios em 1976, foi muito simplificado em sua versão pública e no processo mesmo. Do contrário, muitos nomes notórios da “sociedade” seriam expostos. Foi, de fato, um crime típico do machismo enciumado.

Angela Diniz, em tudo sedutora, sacudiu o meio intelectual e jornalístico mais destacado. Ibrahim Sued chegou a quebrar todo o apartamento que custara a ele mesmo. Mas jornalista só é notícia quando morre.

Os Bolsonaro, Queiroz, Aécio Neves, peessedebistas vários, Sergio Moro, Deltan Dalagnol, entre tantos, sabem como certas realidades são fracas no Brasil.


Vinicius Torres Freire: Como Bolsonaro pode virar e ganhar o jogo da vacina

Vítimas potenciais da Covid podem estar vacinadas até maio, economia despiora

A vacina do Brasil depende da boa vontade da China e da Índia. Ainda assim, não é descabido estimar que até meados de abril seja possível vacinar aqueles grupos de pessoas em que morrem 75% das vítimas de Covid-19 neste país.

Os adversários de Jair Bolsonaro deveriam prestar atenção nessa hipótese razoável, assim como deveriam moderar ilusões sobre uma catástrofe econômica que estaria para triturar o prestígio presidencial já em 2021.

Em primeiro lugar, as vacinas. Lá pela metade de abril, talvez tenha sido possível vacinar uns 38 milhões de pessoas, aquelas de 60 anos ou mais, pessoal da saúde e indígenas. É quase um quarto da população com mais de 18 anos.

A conta considera o limite inferior da produção do Butantan, o cronograma que a Fiocruz divulgou na sexta-feira (5), as doses já disponíveis e o 1,6 milhão de doses da Covax, chutando um desperdício de 5%, otimista. Podem vir mais doses: mais da Covax ou mais 28 milhões das vacinas russa e indiana que o governo diz negociar.

Se os insumos empacarem de novo na China, será mesmo um desastre. Pode ser também que abril esteja muito longe, revoltando os três quartos sem vacina até lá. No entanto, a perspectiva e o fato da redução do número de mortes devem causar alívio social e econômico. De resto, a vacinação continuará a partir de maio, quando 90% das vítimas potenciais da Covid podem estar imunizadas.

O que se vai pensar desse copo de vacina (meio cheio ou vazio) depende da política de governo e da oposição. Bolsonaro sabotou a vacina, mas pode virar esse jogo com vacinação e propaganda em massa.

Na economia, o primeiro trimestre será de estagnação ou de ligeira retração. Haveria recuperação a partir de abril, a depender, claro, de vacinação e das variantes do vírus —ainda não sabemos quão pestilentas são, se vão se espalhar, se vão driblar as vacinas.

Por ora, a expectativa é de crescimento de 3,5% em 2021, o que, na prática, significa quase estagnação em relação ao trimestre final de 2020, mas melhora em relação à média do ano passado. Construção civil, agronegócio muito bem e reposição de estoques devem dar um tapa no desempenho do PIB. Sim, é tudo meio uma porcaria sem futuro, mas isso não quer dizer desastre imediato.

Nos últimos dias, se disse por aí que “o mercado” ficou animadinho com a vitória do centrão e a expectativa renovada de “reformas”. É uma bobice. A Bolsa está animada, embora nem tanto, por causa de juros baixos urbi et orbi, commodities em alta e vacinas. A expectativa básica da praça é que não derrubem o teto de gastos. O resto é meio lucro.

Algum resto deve vir. O centrão não quer apenas rapar cargos e emendas. Quer ampliar bancadas e ficar no poder depois de 2022. Pode jogar Bolsonaro do trem se a popularidade dele for para o vinagre, mas não deve explodir a Maria Fumaça dos ovos de ouro. Mas esse é assunto para outro dia.

Haverá mais miseráveis, mas um país selvagem como o Brasil pode não ligar muito para os caídos. Com 230 mil mortos de Covid e outros horrores, cerca de 60% do eleitorado acha que o governo é “ótimo/bom” ou “regular”. Além do mais, haverá algum novo auxílio emergencial. Um fator possível de desgaste de Bolsonaro pode ser a inflação da comida, que foi de mais de 20% em 2020 e ainda será o dobro da inflação média neste 2021.

Quem quiser, pois, pode achar que esse nosso copo sujo pode estar meio cheio. Para que se visse o vazio do nosso abismo, seria preciso haver oposição organizada. Não havia e, agora, talvez seja difícil até colar os caquinhos que sobraram


Elio Gaspari: A Lava-Jato morreu na infância

Acabou-se a força-tarefa de Curitiba que durante sete anos mostrou ao país o maior esquema de corrupção de sua História. Morreu sem choro nem vela. Empreiteiros corruptos e onipotentes foram para a cadeia, suas empresas encolheram, milhares de empregos sumiram, e nenhum deles ficou pobre. O juiz Sergio Moro tornou-se uma celebridade nacional, mumificou-se indo para o Ministério de Bolsonaro e de lá para a humilhação pública. Alguns procuradores lambuzaram-se com a fama. Ninguém saiu da Lava-Jato como entrou, e ninguém saiu bem dela.

Só a poesia de Paulinho da Viola captura o tamanho dessa tragédia:

“A marca dos meus desenganos ficou, ficou. (...)

Foi um rio que passou em minha vida, e meu coração se deixou levar.”

A Lava-Jato prendeu um ex-presidente da República e destruiu a máquina do comissariado petista que havia se associado a caciques do Centrão. Em 2004, antes que a Lava-Jato surgisse, o juiz Sergio Moro escreveu um artigo louvando a campanha de combate à corrupção que deslegitimou o sistema partidário da Itália. Com a fama que conquistou, aninhou-se num governo, que prometia uma “nova política”. Podia-se fazer tudo pelo juiz de Curitiba, menos o papel de bobo. Enquanto ele dava esse salto, seus colaboradores concebiam uma fundação bilionária. A “nova política” tornou-se o novo nome do Centrão, com suas obras e suas pompas.

Numa trapaça da História, a Lava-Jato de Curitiba morreu nos mesmos dias em que voltam a ser conhecidos, com mais detalhes, as conversas promíscuas e primitivas que tinham em suas redes. (Eles continuam dizendo que os diálogos são “supostos”. Supostas foram as falas messiânicas com que embrulhavam o devido processo legal).

Em seus quase 200 anos de História, o Brasil teve solavancos e ditaduras, mas nunca teve um governo internacionalmente comprometido com o atraso. (D. Pedro II nunca saiu pelo mundo defendendo a escravidão).

Em 1831, depois de ter assinado um tratado com a Inglaterra, o governo brasileiro proibiu a importação de escravizados. O Centrão daquele tempo mastigou a lei, e o tráfico só foi suspenso em 1850. Nesse período entraram no Brasil 800 mil escravizados. O contrabando alimentava uma economia que cevava a política de senhores vestidos como europeus. Como ensinou Mark Twain, a história não se repete, mas às vezes rima.

Registro

Sumiu do radar a privataria dos quatro milhões de vacinas que seriam comprados por um clube de empresários.

Fica o registro de que no escurinho da rede, nas conversas que envolviam o presidente da Fiesp, doutor Paulo Skaf, um magano disse que estava disposto a entrar na operação, pois havia recebido telefonemas de Fábio Wajngarten, chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência, e do senador Flávio Bolsonaro.

Harvard fez o certo, 38 anos depois

Lawrence Bacow, presidente da veneranda universidade Harvard, dirigiu-se à sua comunidade para reconhecer e condenar os assédios sexuais do professor Jorge Dominguez contra jovens colegas e alunas.

Terminou assim um caso que começou em 1983. Sempre que possível, ele foi varrido para baixo de um tapete. Dominguez, conhecido historiador da América Hispânica, assediou a jovem colega Terry Karl durante dois anos. Ela denunciou-o, ele foi afastado de decisões que a envolvessem e tirou uma licença. Karl foi para Stanford, o caso foi mantido em sigilo, e o professor seguiu sua carreira, com sucesso. Chegou a vice-diretor de assuntos internacionais da universidade.

A presidente de Harvard, a professora Drew Faust, visitou o Brasil em 2011 em grande estilo e trouxe Dominguez em sua comitiva. À época, o historiador Kenneth Maxwell expôs a bizarrice.

Em 2018, eram 18 as denúncias contra Dominguez, e ele aposentou-se. No ano seguinte, foi destituído de todos os títulos e convidado a não frequentar o campus. Resolvera-se uma questão, a dos assédios.

Faltava enfrentar a cultura do abafa de Harvard. Ela foi resolvida agora, 38 anos depois da denúncia de Terry Karl. Felizmente, as mulheres não desistiram.

Amil

Na segunda-feira, uma senhora de 90 anos, cliente da Amil há 20, pagando R$ 4 mil mensais, chegou com dores à emergência do Hospital Santa Teresa, em Petrópolis.

Ficou duas horas numa sala de espera cheia, e sua acompanhante ouviu que o sistema da operadora estava fora do ar, sem previsão de retorno.

Tentaram falar com a Amil por telefone e ouviram gravações. Conseguiram uma maca e um cubículo.

Quatro horas depois, transferiram-se para um outro hospital particular.

Estavam lá quando, às 23h55m, a Amil finalmente autorizou a internação.

Em 2014, a mão invisível das operadoras enfiou um jabuti numa Medida Provisória, graças ao qual o valor das multas cobradas às operadoras seria decrescente. Quanto mais delinquissem, menor o valor da multa. Dilma Rousseff vetou a gracinha.

À época, o pai do jabuti, dono da Amil, se explicava:

“O sistema caiu e foram negados centenas de procedimentos, não é justo que por causa disso se cobrem centenas de multas.”

“Você demitiu o diretor de TI?”

“Não.”

Esses sistemas são espertos, caem para negar atendimento, mas nunca erram concedendo-os por engano.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota e ouviu o presidente da Anvisa, o médico-contra-almirante Barra Torres, dizer o seguinte:

“A Anvisa tem 22 anos. Nesses 22 anos, pouquíssimas vezes houve necessidade de tamanha movimentação política. E é necessário isso? Não é, porque no final quem define são os técnicos.”

O cretino desconfia que Barra Torres não lê jornal. No dia 21 de outubro, o capitão Jair Bolsonaro escreveu um texto no qual se referia ao que chamaria de “a vacina chinesa do João Doria”, assegurando: “NÃO SERÁ COMPRADA”. (Maiúsculas dele.)

Felizmente, o Brasil já comprou mais de dez milhões de vacinas chinesas.

Ulysses Guimarães dizia que as pressões políticas lhe faziam bem. Mal, fazem a ignorância ou as malfeitorias.

Arremate

Na terça-feira, a menina Ana Clara Machado, de cinco anos, brincava na porta de sua casa, em Niterói, levou um tiro e morreu.

A versão da Polícia Militar foi a de sempre: confronto. Ana Clara foi a quarta criança morta neste ano.

Em setembro de 2019, num episódio semelhante, a menina Ágatha Félix, de oito anos, estava com a mãe dentro de uma Kombi quando foi morta por um tiro disparado por outro PM. Era a quinta criança morta no Rio.

O poeta Armando Freitas Filho contou esse caso no seu recente livro, “Arremate”:

“Rio

Só podia ser de ágata

De ferro e de esmalte

Como todos os demais.

Colegas, amiga de tantas

Outras e outros — meninas.

Meninos — que são perfurados.

Nenhuma bala é perdida.

Através dos dias são certeiras.

Não erram nunca ninguém:

Os que matam e morrem”.


Folha de S. Paulo: País tem 1 novo pedido de impeachment de Bolsonaro a cada 11 dias; processos se acumulam pulverizados na Câmara

Foram 68 desde que presidente tomou posse; motivos são diversos, mas nada aponta para uma grande articulação entre setores da sociedade

Danielle Brant e Renato Machado, Folha de S. Paulo

A rejeição de setores da sociedade ao governo de Jair Bolsonaro tem se refletido no número de pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados: em média, cidadãos brasileiros protocolaram um processo contra o presidente a cada 11 dias.

Foram 68 desde que Bolsonaro tomou posse até a primeira semana de fevereiro. São de uma maneira geral pedidos independentes, apresentados em momentos distintos e por motivações diversas, mas nada que aponte para uma grande articulação entre esses setores da sociedade contra Bolsonaro.

Se por um lado essa situação reflete um descontentamento mais generalizado, por outro, essa pulverização pode ser um fator contra o crescimento da pressão contra o governo.

Nas últimas semanas, houve intensificação nos debates a respeito de um impedimento, principalmente por causa do repique da Covid-19, do colapso da saúde em Manaus e o atraso do Brasil na vacinação.

Chegou-se a cogitar que o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) abriria o processo em seus últimos dias à frente da Casa, possibilidade que não se concretizou.

Os pedidos de impeachment foram escritos e protocolados por pessoas das mais diversas regiões.

Há juristas conceituados, como a ex-vice-procuradora-geral da República Deborah Duprat, e dois detentos do estado de São Paulo, que enviaram seus pedidos por cartas. Um deles, João Pedro Bória Caiado de Castro, que cumpre pena em São Vicente, já inclusive havia pedido impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Pessoas de uma mesma família escreveram pedidos, assim como dezenas de artistas reunidos em um movimento social.

No universo político, figura obviamente a oposição, mas também ex-aliados do governo, como os deputados Alexandre Frota (PSDB-SP) e Joice Hasselmann (PSL-SP).

O ritmo de pedidos apresentados ganhou força em 2020. No ano anterior, haviam sido cinco, sendo que o primeiro, protocolado em 5 de fevereiro, foi arquivado por Maia.

O restante teve como destino a gaveta do ex-presidente da Câmara —e agora do novo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL)—, formalmente classificados como "em análise".

As denúncias do primeiro ano de Bolsonaro foram motivadas por episódios controversos, como o fato de o presidente ter compartilhado em uma rede social um vídeo em que um homem urina em outro em um bloco de Carnaval, em prática conhecida como "golden shower".

Outro processo foi ancorado na decisão de Bolsonaro de comemorar a data do Golpe Militar no país, 31 de março de 1964.

Em 2020, o número de pedidos explodiu: foram 54 —quatro arquivados.

Alguns tiveram os mesmos autores, como o militar aposentado João Carlos Moreira, que protocolou dois. Um deles, de fevereiro do ano passado, tinha como pano de fundo as investigações envolvendo a morte da vereadora Marielle Franco e supostas interferências no caso.

O outro, de março, citava declarações de conotação sexual contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha, e até o episódio envolvendo o transporte de 39 quilos de cocaína em um avião presidencial.

Bolsonaro também motivou pedidos de impeachment por ter incentivado manifestações que pediam o fechamento do Congresso e do STF (Supremo Tribunal Federal), por ter declarado que as eleições de 2018 foram fraudadas e por ataques à imprensa.

Há pedidos que criticam a política neoliberal do governo, acusações de práticas de homofobia e de misoginia e incentivo à posse de armas, o que demonstraria a supressão do Estado democrático de direito —o processo foi protocolado em setembro do ano passado, ou seja, bem antes de o governo encaminhar à nova cúpula do Congresso, formada por Lira (Câmara) e Rodrigo Pacheco (Senado) uma lista de pautas prioritárias com pedido para votar projeto que amplia o uso de armamentos.

Boa parte das ações tem relação com ações e omissões de Bolsonaro no combate à pandemia do novo coronavírus. São documentos que criticam a postura negacionista do presidente, ao menosprezar o impacto da Covid-19 e minimizar cuidados para evitar a disseminação do vírus.

Essa foi a motivação de alguns dos pedidos apresentados por PSOL, PT e outros partidos da esquerda.

"Os diversos pedidos refletem as dezenas de crimes já cometidos pelo presidente e também uma posição nossa, de que não há mais possibilidade de um presidente negacionista, responsável direto por 230 mil mortes pela Covid-19, um presidente que incentivou atos autoritários, seguir conduzindo os rumos do Estado brasileiro", afirma a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), líder do partido na Câmara.

Na avaliação da parlamentar, a correlação de forças piorou na Casa após a vitória de Lira, eleito com a ajuda da promessa de cargos e emendas por parte do governo federal.

Petrone, porém, vê um aumento da pressão popular, principalmente em decorrência do aumento do desemprego e do fim do auxílio emergencial. "Isso, com certeza, vai abrir os olhos do povo em relação a essa necessidade de interromper o presidente da República", diz.

Mas não é só a oposição que busca abrir processos contra o presidente.

O advogado Adriano Oliveira da Luz, de Cachoeirinha (RS), votou em Bolsonaro e usou suas redes sociais para influenciar eleitores a favor do capitão reformado. Decepcionou-se com algumas de suas ações durante a pandemia e por isso decidiu ingressar com pedidos.

"Tu não tem noção do quanto eu apanhei nas redes sociais por causa do pedido de impeachment", afirma.

"As pessoas não conseguem ver que não sou contra o presidente e sim contra o que ele fez. Antes era o PT que era uma seita, que não se podia falar mal do Lula. Mas a mesma coisa está acontecendo com eleitores do Bolsonaro", afirma.

O ato que motivou seu pedido foi a decisão em junho de mudar a forma de divulgação dos dados referentes a mortos em decorrência da Covid-19, omitindo o total de casos registrados em determinado dia. Após pressão, o governo voltou atrás.

Em 2021, já há nove pedidos aguardando análise do novo presidente da Câmara, mas nenhuma sinalização de que o destino será diferente dos demais.

"Evidentemente que sou favorável a qualquer pedido de impeachment, mas agora com esse Congresso nas mãos do centrão e ainda a indicação da lambe-botas Bia Kicis para a CCJ [Comissão de Constituição e Justiça], creio que as chances do presidente sair antes de 2022 diminuíram muito", diz o cineasta Fernando Meirelles.

O cineasta indicado ao Oscar integra a Coalizão Negra por Direitos, que ingressou com um pedido em agosto de 2020, com base, entre outros motivos, nos ataques de Bolsonaro às instituições democráticas, as ações e omissões do governo durante a pandemia e o racismo no discurso do presidente.

Pela legislação, cabe ao presidente da Câmara decidir, de forma monocrática, se há elementos jurídicos para dar sequência à tramitação do pedido.

O impeachment em seguida só é autorizado a ser aberto com aval de pelo menos dois terços dos deputados (342 de 513) depois de votação em comissão especial. Após a eventual abertura pelo Senado, o presidente é afastado do cargo.


Luciano Huck: Sistema imunológico da sociedade brasileira dá respostas à altura das agressões do bolsonarismo

Para cada negacionista que orbita o poder no Planalto, há milhares de cidadãos empenhados em combater os efeitos da maior crise sanitária da história

O Brasil será vacinado contra a Covid mesmo com as omissões, os erros e os arbítrios do governo federal. Entramos no terceiro ano da Presidência de Jair Bolsonaro, mas no 33º ano do Sistema Único de Saúde, o SUS.

Para cada negacionista que orbita o poder no Palácio do Planalto, há milhares de brasileiros empenhados em combater de peito aberto os efeitos da maior crise sanitária da história.

São os médicos, enfermeiros e profissionais de saúde na trincheira para salvar vidas e que estoicamente ignoram os delírios obscurantistas de seus superiores. Gente que há quase um ano se desdobra no atendimento dos doentes e agora tocam a campanha de vacinação.

São os cientistas e técnicos nas frentes de pesquisa, garantindo que as vacinas sejam produzidas e aplicadas com toda segurança.

São nossos diplomatas mundo afora que não se deixaram capturar pelo tradicionalismo, como o diligente time da representação na Índia, que assegurou as importações de vacina apesar do disfuncional que os lidera em Brasília.[ x ]

Butantan e Fiocruz financiados pelos nossos impostos se tornaram merecidamente o símbolo dessa resistência humanitária.

Mas os heróis da resistência democrática são muitos. Incluem os jornalistas que nunca trataram a doença como uma “gripezinha”. Os líderes comunitários que organizam exércitos de mobilização. Os políticos verdadeiramente comprometidos com o povo sem cair no populismo. Os empresários que entenderam a gravidade do contexto e abraçaram a agenda da inclusão, sem filas paralelas ou qualquer outro privilégio.

Muita gente fez —e faz— a diferença ao enfrentar a miopia e a descoordenação apesar da insistência em atrapalhar de quem deveria liderar o país atualmente.

Temos de reverenciar a resposta diária dos professores nos estados e municípios e aplaudir os projetos públicos de ensino digital como, por exemplo, do Maranhão e do Rio Grande do Sul, que são ações bem sucedidas, apesar de a educação ter sido jogada às traças por ministros extremistas e alienados do marco democrático.

É necessário reconhecer o amadurecimento do debate nacional sobre renda básica e, da mesma maneira, é justo louvar o esforço do Congresso em 2020, que aprovou o auxílio emergencial, apesar da insensibilidade social de um governo que nunca priorizou os mais pobres.

Precisamos celebrar ainda os avanços dos movimentos feministas, LGBTQIA+ e antirracistas, que conquistaram inédita centralidade na discussão pública apesar da misoginia, da homofobia e do racismo da narrativa desvairada palaciana desde a posse.

A discussão nas redes sociais apodreceu de vez? Não se a gente se lembrar do inquérito das fake news no STF, da atuação das agências de checagem, da autocrítica das próprias plataformas e da posição esclarecida de muitos influenciadores digitais.

​Os ataques contínuos esvaziaram a grande imprensa? Não se a gente verificar que o jornalismo festeja audiências sem precedentes.

Nossas contas públicas foram totalmente comprometidas por um governo avesso à transparência? Estão aí os portais especializados e os tribunais de contas para mostrar que é difícil esconder até suspeitas de leite condensado superfaturado.

O momento é crítico, mas temos de manter acesa a chama da esperança.

Apesar da situação calamitosa na Amazônia devido ao negacionismo presidencial, o Brasil tem tudo para reverter as curvas do desmatamento na região.

Aos poucos e aos trancos, produtores rurais percebem que a rastreabilidade e o plantio/pecuária sustentável são imperativos no mercado global. O sistema financeiro começa a estrangular o crédito de quem insiste em desmatar e ignora as diretrizes ESG, que cobram uma postura moderna em relação ao meio ambiente, ao desenvolvimento social e às práticas de governança.

Nossas exportações vão bater recorde, nossa agroindústria se fortalece, debates sobre produção e sustentabilidade seguem mais vivos do que nunca apesar da tenebrosa política externa atual e da orientação federal de fazer “passar a boiada”.

Apesar de esforços técnicos, o descompromisso com a pauta verde cria atrito com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Ao ponto de o comitê de política ambiental da OCDE cancelar a deliberação sobre elevar o status do Brasil —de convidado a participante— no órgão internacional.

Há quem cometa crimes nas florestas? Há. Em contrapartida, há muita gente disposta a se sacrificar em defesa do meio ambiente.

E se as autarquias hoje estão politicamente diminuídas, a maioria dos funcionários públicos continua cumprindo sua missão de fiscalizar, alertar, denunciar. A voz dos climatologistas nunca foi tão amplificada.

Falam que a PGR hoje oscila entre silêncios constrangedores e pareceres equivocados apesar de manifestações recentes do Conselho Superior do Ministério Público que mostram parte da corporação vigilante e pronta a responder.

Dizem que as Forças Armadas estão desmoralizadas. Quem conhece de perto os quartéis, os oficiais da ativa e a rotina das tropas, porém, sabe da contínua e inestimável contribuição dos militares para o país —sobretudo nos rincões mais pobres.

As Forças Armadas não têm um só sobrenome e nem são reféns do familismo. Prefiro enaltecer figuras honradas como o general Antônio Miotto, que perdeu a batalha para a Covid e não para a vaidade.

Não menciono aqui todos esses casos com propósito acomodatício. Moderação não é passividade. Não dá para tapar o sol com a peneira. A realidade brasileira não admite ingênuos. Não sugiro, portanto, guardar as panelas, engavetar o debate do impedimento, banalizar os crimes de responsabilidade, normalizar a dor e a violência, deixar de lado a indignação.

Pelo contrário, faço aqui o devido registro da potência do nosso sistema imunológico, celebrando nossa capacidade de reagir.

É importante fazer uma análise em perspectiva, especialmente nesta conjuntura tão polarizada, conturbada e por vezes contaminada por interesses mesquinhos.

O vírus expôs a fragilidade do nosso contrato social, que precisa ser repactuado. E as instituições estão sofrendo em mãos irresponsáveis. Mas os pilares da nossa democracia seguem de pé graças à intervenção de muitos.

Se é verdade que a sociedade agora está machucada e traumatizada, também é fato que temos tudo para sair dessa e emergir mais zelosos com nossos direitos, fortalecidos pelas conexões que realizamos e tonificados pelas novas reflexões que fazemos. A mudança depende de nós. Somos nós que construímos nosso destino coletivo.

Projetos políticos autoritários e truculentos têm problemas inerentes de sustentabilidade. Num país como o Brasil, imenso em seu território, imenso em suas desigualdades e imenso em suas potências criativa e empreendedora, autocratas acabam quebrando a cara e ficando impopulares.

Uma presidência desprovida de razão e de coração não tem como vingar por muito tempo entre nós. Por isso, este governo —sem querer— na sua trajetória errática vai ajudar a revitalizar a sociedade civil e a consolidar a percepção de que o messianismo nunca foi – nem nunca será – um atalho para a prosperidade do país.

O brasileiro voltará a sonhar quando a boa política sacudir a poeira da polarização e dos “ismos” e, assim, ajudar a nação a dar a volta por cima.

Então chegará a hora da generosidade, de reconectar as pessoas, de ouvir e acolher quem pensa diferente, de buscar pontos em comum e transformar as melhores ideias em realidade.

Chegará a hora de ouvir, unir e agir! Estou entre aqueles que se engajam nesta construção. Amanhã há de ser outro dia apesar da triste realidade de hoje. Jamais vamos desistir do Brasil. Sabemos que mesmo a pior das tempestades ajuda a florescer o jardim.

*Luciano Huck é apresentador de TV e empresário


Fernando Henrique Cardoso: As difíceis escolhas

Além da pandemia, temos de vivenciar o jogo degradante de sempre de quem manda

Dias difíceis estes pelos quais passamos. Além da pandemia, o jogo do poder. Eu não me posso queixar: fique em casa, dizem os que mais sabem sobre os contágios. Isso é possível... para quem tem casa, como eu. E os que não a têm, ou a têm precária, e são muitos, na casa dos milhões? E os que estão no poder e, diferentemente de minha situação atual, precisam meter-se no dia a dia da política?

O bichinho persistente, o novo coronavírus, mata indiscriminadamente, é verdade, jovens ou velhos, ricos e poderosos tanto quanto pobres e sem alavancas de poder nas mãos. Mesmo assim, na minha faixa de idade, quando os 90 anos se aproximam celeremente, é triste viver dentro de casa, por mais confortável que seja, e ver a cidade murchando. E é tristeza para todos.

Mas não desanimemos. Se algo o tempo ensina, é como diz o velho ditado: não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe.

Às vezes, raramente, sinto certo desânimo. Olho em volta e vejo: meu Deus, outra vez! É o Congresso em seu ritmo habitual: dá cá, toma lá. Certa vez perguntei a Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos: mas é sempre assim? Tratava-se da prática de pegar no telefone e falar com cada um dos deputados que o apoiavam, para pedir: é preciso votar a favor, ou contra, tal ou qual projeto.

Era o habitual. Mas vale a pena. Sem democracia é pior: a barganha, quando existe, não é vista nem comentada. Mas existe. Melhor que se a faça às claras.

Digo isso não para referendar o que está acontecendo (nem sei de fato), e sim para dizer que é melhor suportar tanto horror perante os céus do que amargar a falta de liberdade. Mas é preciso lutar. Por mais que se “entenda o jogo”, é necessário repudiá-lo do fundo da alma. Se for indispensável jogar, que se limite a barganha ao máximo. Fácil dizer, difícil fazer.

Ainda assim, com o peso dos anos e a experiência de haver passado pelos altos e baixos do poder, não deixa de ser triste ver isso a que estamos assistindo: o poder, nu e cru, com suas mazelas expostas. Ainda que se dê o desconto e se imagine que “a mídia” exagera (pobre dela, paga o preço), a cada episódio de mudança de comando no Congresso vê-se pouco uma luta de ideais, e se vê, a perder de vista, um jogo de interesses. Eu sei que a tessitura da política não é feita só com valores e que os interesses contam; mas a cada vez que tudo isso aparece dá vontade de fechar-se na vida pessoal e ponto.

Só que ninguém é de ferro e no dia seguinte, novamente, volta o “interesse público”. Sejamos francos: mesmo entre os que barganham, nem por isso o interesse público desaparece ou deixa de contar. A realidade cobra o seu preço, os fatos falam mais alto, as urgências se impõem. O que parece ser diferente em nossas plagas, comparando com outras (que talvez tenhamos a sorte de conhecer menos), é que nas democracias, imagina-se, existem mais valores do que interesses. Será? Espero, mas não sou ingênuo (gostaria de o ser). Acho melhor olhar para o que, apesar dos procedimentos criticados, se pode fazer em liberdade, em contraposição ao que é feito em regimes autoritários, por mais “fazedores” que sejam.

Espero, apesar de tudo, que os novos dirigentes do poder parlamentar não se esqueçam de que, além de colaborar com o que lhes pareça positivo no governo federal, continuem fazendo o que dizem ser necessário: as reformas (dependendo sempre de quais e para quê) e, sobretudo, projetos para a volta dos empregos, com uma nova onda de crescimento da economia. E, por favor, sem esquecer que a tão falada redistribuição de renda não ocorre sem que haja (perdoem-me a má palavra) vontade política.

E isso – a tal vontade política – é necessário em qualquer forma de poder. A diferença entre elas é que, quando são democráticas, o cidadão comum fica sabendo o que acontece, pois a mídia anuncia e denuncia. Eventualmente, ele pode reagir nas eleições futuras. Enquanto, sem liberdade, os donos do poder mandam mais “à vontade”, ou seja, fazem das suas e ninguém toma conhecimento.

Não convém, portanto, apenas se recolher. Ao contrário, já que pelo menos temos liberdade, não compactuemos com erros e exerçamos, dentro da lei, o poder de escolha. Se errarmos, pagaremos o preço. Pior, quem escolhe é a maioria, que nem sempre acerta. Se é que acertar quer dizer estar de acordo com o ponto de vista de quem hoje reclama. Mais do que nunca, precisamos de lideranças. Na política não adianta o sentimento sem ter quem o expresse. Líder é quem simboliza um sentimento.

Não escrevo para me consolar, nem para consolar os leitores. Creio que é assim mesmo: a democracia é sempre imperfeita, embora melhor que as outras maneiras de governar. Verdade simples e fácil de ser enunciada. Mas difícil, reconheço, de ser vivida. Pior ainda, como agora, quando, além da pandemia, temos de vivenciar o jogo degradante de sempre, sejam quais forem, tenham sido ou vierem a ser “los que mandan”.

Livremo-nos ao menos do vírus (se possível), já que do poder ninguém escapa, seja exercendo-o, seja sofrendo-o.

*Sociólogo, foi presidente da República


Alon Feuerwerker: Instabilidade ou estabilidade?

Vitoriosas as candidaturas apoiadas pelo Planalto na eleição das mesas do Congresso Nacional, abriu-se o debate sobre a solidez da aliança entre Jair Bolsonaro e o assim chamado centrão. O discurso corrente é o pacto tender à fragilidade, pela contradição entre o programa liberal e austero, capitaneado pelo ministro da Economia, e uma dita tendência gastadora e estatista da coalizão parlamentar vencedora em 1º de fevereiro.

Ou seja, o vetor dominante seria de instabilidade.

Antes de entrar nessa discussão, vale notar que a “frente ampla” antibolsonarista mostrou bem mais vigor nas páginas da cobertura política pré-eleitoral do que na urna eletrônica propriamente dita. Arthur Lira (PP-AL) teve cerca de quinze a vinte votos além do que lhe davam as medições mais calibradas, mas Baleia Rossi (MDB-SP) recolheu no mínimo uns cinquenta a menos. Que provavelmente vazaram na maior parte para candidatos sem chance.

Ao final, a esmagadora maioria dos votos de Rossi vieram dos partidos “de oposição mesmo”, da esquerda e da rotulada centro-esquerda. A direita e a assim chamada centro-direita ficaram com Lira. A ideia de uma coligação tática entre, vamos simplificar, a esquerda e setores antibolsonaristas da direita não passou nem da fase de grupos neste primeiro teste. E aí irrompeu, como habitual, a explicação mais fácil: as verbas e os cargos.

E disso nasceu a suposição de que a união entre o presidente da República e a maioria reunida em torno de Lira e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) [o Senado não tem tanta utilidade assim para a análise, pois ali até o PT apoiou o vencedor] é frágil, baseada apenas na troca de favores. O futuro dirá, mas essa visão corre o risco de estar mais influenciada pela insatisfação com o desfecho da refrega do que pelos fatos à disposição do analista.

Por falar neles, os fatos, um é que a Câmara tem hoje, como vem tendo tradicionalmente, pelo menos dois terços de deputados eleitos do ponto médio para a direita, sobrando um terço para o outro campo. Como alguns segmentos da direita apoiavam os governos petistas em troca de espaço na Esplanada e poder sobre recursos orçamentários, floresce a teoria de que seriam parlamentares, digamos, sem lado, sem cor ideológica.

Será? Um problema sério da candidatura Baleia Rossi foi deputados do MDB, DEM e PSDB precisarem administrar nas suas bases estar aliados ao PT e à esquerda. Isso ajudou a induzir à ruptura do Democratas e quase levou à ruptura do PSDB. Aliás, basta relembrar qual tinha sido o clima nos municípios em que emedebistas, tucanos e demistas tiveram de enfrentar adversários da esquerda no ainda recente novembro de 2020.

Notou-se também na segunda feira, abertos os resultados, que se a oposição de verdade tivesse lançado um candidato do seu bloco possivelmente teria ficado em segundo lugar. E se houvesse segundo turno teria perdido nele para Lira. Aliás, o apoio da esquerda a Rossi foi explicado também pela impossibilidade de o chamado centro votar na esquerda. No fim, ele votou mesmo foi de cara no candidato do governo. Um banho de realidade.

A força centrípeta exibida pelo bolsonarismo na eleição das mesas deveria produzir alguma cautela nas previsões de instabilidade na relação com o Congresso. Se a popularidade de Bolsonaro não descer pelo ralo, a tendência é o presidente ir ao segundo turno em 2022 (na hipótese de haver dois turnos). Isso dá a ele uma expectativa de poder que serve de ímã. E não haveria dificuldade maior de a massa parlamentar acoplar-se a Bolsonaro na eleição.

O que poderia instabilizar essa fórmula? O surgimento, do outro lado, de uma força eleitoral capaz de expressar possibilidade real de poder. A correlação de forças está à espera desse adversário. É como a política funciona.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Cristovam Buarque: Desorientação dos terracubistas

Os partidos progressistas não sabem para onde ir

Em recente entrevista, o ex-presidente Fernando Henrique disse temer que o PSDB esteja em decadência. Na verdade, seu partido está desorientado, tanto quanto os demais partidos democratas progressistas, de centro ou de esquerda. Eles não entendem, ou não aceitam, que suas ideias e propostas perderam prazo de validade diante das mudanças que ocorrem na história; ou tentam se adaptar de maneira incompleta.

Percebem que o Estado tem limitações de recursos, mas não sabem como atender às necessidades sociais sem gastar além dos limites responsáveis. Não sabem como colocar a solidariedade necessária dentro da aritmética possível.

Descobriram os limites ecológicos ao crescimento, mas não conseguem oferecer um tipo de bem-estar que substitua a ânsia pelo consumo. Não conseguem colocar o PIB dentro da ecologia.

Entendem que uma das causas de nosso atraso está no desprezo à educação de base com qualidade para todos. Mas não assumem que a educação de qualidade para todos é mais do que o direito de cada pessoa, é o vetor do progresso econômico e da justiça social. Não acreditam, nem sabem como fazer para que o Brasil tenha uma educação tão boa quanto às melhores do mundo e que o filho do mais pobre estude em escola com a qualidade do filho do mais rico.

Perceberam que os partidos já não existem e as siglas pouco significam, mas não sabem que tipo de organização colocar no lugar. Nem como fazer política nos tempos das comunicações de massa.

Se surpreendem que perdemos velocidade no ritmo de crescimento, mas não entendem ainda, ou se assustam, com a ideia de que o problema não é a velocidade do progresso, é do caminho escolhido para ele. O problema não está na saída da Ford, mas na opção pela indústria automobilística como carro chefe da economia.

Continuam nacionalistas em um tempo de globalismo, mas não sabem como tirar proveito da globalização e evitar os problemas do livre comércio sem cair no protecionismo.

Os partidos progressistas estão desorientados do ponto de vista filosófico e em consequência decadentes do ponto de vista político e eleitoral, seu progressismo tem a cara, a cor e o cheiro do passado. Não veem a realidade em toda sua complexidade esférica, global e dinâmica. São partidos terracubistas. Os conservadores levam vantagem, porque o passado e o reacionarismo é a “praia” deles. A nostalgia é uma qualidade no discurso da direita, que defende “grande outra vez”; mas a nostalgia é um pecado entre os progressistas, que deveriam propor “melhor em frente”. Os conservadores não se desorientam porque desejam ficar parados; os progressistas se desorientam porque desejam avançar, mas olhando para trás, sem bússola, sem estradas e no meio do terremoto civilizatório.

Os progressistas não aceitam a Terra Plana, mas ainda não têm propostas pela a Terra Global no tempo da crise ecológica, da robótica e do esgotamento do Estado. Felizmente, a percepção de que a decadência é uma desorientação, possibilita o surgimento de mapas para futuros progressistas.

*Cristovam Buarque foi ministro, senador e governador


Marco Aurélio Nogueira: O momento pede ação democrática firme e inteligente

A espetacular vitória de Arthur Lira na Câmara dos Deputados deixará marcas profundas na vida política brasileira, que terão de ser digeridas pela oposição democrática. Pode não ser uma novidade, dadas as características do nosso presidencialismo, que impulsiona o governo federal a se compor com o que se pode ter de “maiorias” no plenário da Câmara. Todo governo age para ganhar o Congresso, valendo-se de recursos mais decentes ou menos. Mas a vitória de Lira teve um diferencial: materializa uma ampla coalizão direitista e fisiológica e expressa com clareza a nova estética política que prevalece no País, na qual o que conta é jogar para a plateia (no caso, o plenário), abusar da demagogia, explorar mágoas e ressentimentos, deixar de lado qualquer protocolo ou manual de boas maneiras. Como no Executivo, a grosseria e a rusticidade predominam, sem qualquer prurido.

A festa com que Arthur Lira e seus apoiadores comemoraram a vitória, em Brasília, foi o suprassumo da estética dominante. Todos sem máscara, bebida solta, abraços e beijos, um festival de breguice e exibicionismo. Dançaram e cantaram como se estivessem a debochar da população enclausurada ou que rala nas ruas para trabalhar.

Há questões que passam pela lógica dos partidos brasileiros: a tendência inerente a eles de serem sugados pelo poder, com suas prebendas e vantagens. DEM, PSDB, MDB, PT, para falar de alguns “grandes”, se estraçalharam com isso. Mostraram pouca coerência e nenhuma lealdade. Deixaram Simone Tebet e Baleia Rossi na mão. Provavelmente não se beneficiaram com cotas orçamentárias, mas deixaram patente a disposição de ficar bem com a “maioria” que controla a Câmara, quem sabe aspirando fazê-la girar em dada direção, e não em outra. O que pesou mesmo foram interesses pessoais, grupais, regionais, muito mais do que princípios ou alinhamentos políticos. Deixaram no ar uma interrogação sobre quem é oposição, por quais razões e com quais intenções.

DEM e PSDB, em particular, que se consideravam líderes de uma espécie de “centro democrático”, saíram desmoralizados, cortados de cima a baixo por desavenças e desentendimentos. Mostraram ser compósitos de correntes que não se entendem: vão pela estrada carregando bagagens em que abundam pequenos interesses e faltam ideias, firmeza, compromissos.

No Senado, o estrago foi menor, o que converteu a instituição em um fator de equilíbrio e no novo locus da articulação democrática. Afinal, a candidatura do vitorioso Rodrigo Pacheco funcionou como um estuário de forças de centro e de esquerda, desenho que não se viabilizou na Câmara. O MDB “cristianizou” Tebet, mas não rompeu com a coalizão que terminou por prevalecer. No Senado, Bolsonaro não nadará à vontade. A Casa poderá fazer um contraponto ao que se antevê como recrudescimento direitista na Câmara, com um Arthur Lira se entregando a um plenário fragmentado e desorganizado, à agressividade típica de um “cabra da peste”, cego para o País, concentrado em seus interesses e modus operandi.

Lira fez questão de insistir na tese da Câmara independente, mas enfatizou também a ideia de que ela precisa agir em “harmonia”. Com quem? Ele mencionou a direita, a esquerda e o centro, mas seus olhos brilham mesmo para o Palácio do Planalto: as pautas que interessem a Bolsonaro e não o desafiem. Se conseguirá fazer isso, é algo a ser visto mais à frente. O fato, porém, é que tentará, o que já é suficiente para mudar o eixo de atuação da Casa. Irá se valer do estilo que tem feito sua fama, e que já foi associado à figura do “rato de plenário”, que circula sem parar, ouve conversas e confidências, abraça quem encontra pelo caminho.

Na sessão de abertura do ano legislativo, Lira comprometeu-me a “não medir esforços para que a harmonia se traduza numa pauta comum em prol de toda a sociedade”. Para ele, “a hora é de superarmos antagonismos, deixarmos para trás eventuais mágoas e mal-entendidos e unirmos forças para que saiamos maiores desta crise, para que o povo brasileiro sinta-se bem representado por cada um de nós, sinta-se protegido e atendido nas suas necessidades prementes”. A Câmara precisaria sair da “paralisia interna provocada por problemas políticos passageiros que a História sequer irá registrar”.

Lira nem sequer considerou o País que se espalha para além da Câmara. Sua briga era para ganhar o “baixo clero” e os trânsfugas, e foi para eles que discursou. Falou também para Bolsonaro, mostrando um espírito de colaboração que terá de ser posto à prova dia após dia.

Para celebrar tamanha disposição colaborativa, o governo acenou com diversos projetos na área econômica e de costumes, embrulhando tudo num pacote com o selo de “reformismo”, mas que não passa de um cozido mal temperado. Como escreveu Carlos Melo no Estadão, “ter mais de uma prioridade é não ter prioridade alguma”. Haverá, portanto, muita negociação, afora as surpresas, os erros, os humores sociais. A pauta reacionária dos costumes e dos direitos humanos, que o bolsonarismo quer privilegiar, não será digerida automaticamente e terá de ser negociada caso a caso.

Para Bolsonaro, descortina-se um cenário inédito. Ele ganhou, mas não necessariamente se beneficiará disso. Terá maior presença no Congresso, mas perderá um de seus ativos eleitorais, o de que não faria o “toma-lá-dá-cá” da “velha política”. Por extensão, estará impossibilitado de reclamar que suas pautas estão bloqueadas pelos parlamentares. Sua incompetência e sua falta de ideias ficarão ainda mais evidentes, assim como a falta de bons articuladores, que terão de ser terceirizados. Abrirá um flanco que, se bem explorado pelas oposições, poderá leva-lo a chegar enfraquecido a 2022. A incapacidade de governar, o descaso com que trata a crise sanitária, a miséria programática da política econômica e social são coisas que precisam ser denunciadas de forma clara, objetiva, sem maiores firulas analíticas.

Virar a página

No episódio da eleição dos presidentes da Câmara e do Congresso houve também algumas camadas de cálculo estratégico: afirmou-se a opção de esfriar o clima, desgastar eventuais lideranças que despontavam para 2022, caso de Rodrigo Maia. Ele mostrou habilidade nos quatro anos em que presidiu a Câmara, mas morreu na praia. Quando mais se necessitava de um coordenador, perdeu força. Foi queimado por seu próprio partido, que expôs as vísceras do que se tinha como alto poder de articulação. Maia tentou formar uma “frente ampla” que antecipasse 2022, mas não conseguiu. Sai chamuscado, e terá de correr atrás do prejuízo, que foi enorme.

O ambiente congressual esfriará o tema do impeachment, empolgações à parte. A batalha agora será no tempo regulamentar, onde a sabedoria terá de prevalecer, mais que a agitação.

É hora de virar a página. Ficou evidente que Bolsonaro ganhou fôlego e não será politicamente diminuído se continuar a ser tratado como a besta-fera genocida que só tem olhos para os seus. Atacá-lo por ser um ogro fascista que fala coisas estúpidas e reacionárias não machucará sua carcaça. O jogo ficou mais complexo e complicado: exigirá linguagem programática e capacidade de bater onde a dor seja mais forte, aqueles pontos em que a fragilidade fique escancarada. As oposições terão de se esforçar mais e aperfeiçoar seu modus operandi, em termos práticos e discursivos. Antes de tudo, precisarão definir se desejam caminhar juntas e articuladas. A ressaca talvez as ajude a apurar o foco e ganhar musculatura para uma disputa de mais longo prazo.

Trata-se, em suma, de por em movimento uma operação política que mostre à população a tragédia que vem sendo alimentada sistematicamente pelo governo Bolsonaro. A começar da deliberada ação para menosprezar o vírus, os cuidados e as vacinas, o que desagregou o País e conteve qualquer impulso de recuperação. Mas também a incompetência governamental generalizada. Não há um ministério que se salve, que tenha realizações a apresentar, que possa dizer que fez algo para o bem dos brasileiros. Há desemprego e inflação, a miséria cresce, sem que o auxílio emergencial (o de ontem e o futuro) sirva para outra coisa que não o aumento da popularidade do presidente.

As oposições democráticas, se decidirem agir de fato, precisam ir onde o povo está. Saber se comunicar, engavetar personalismos e querelas partidárias, falar o que a sociedade precisa ouvir, tendo em vista seus interesses, suas expectativas e sua indignação. Precisam mostrar que os problemas são enormes e que, para enfrentá-los, serão necessários governos ativos e competentes.

Para serem de fato uma alternativa, as oposições devem tratar o Palácio do Planalto como um adversário que requer inteligência e pertinácia para ser derrotado, num trabalho de construção cotidiana, sem arroubos retóricos infrutíferos. Que se deixe a bandeira do impeachment tremular, como ameaça e imã de agregação, mas que se compreenda que o impeachment não é um ato de vontade unilateral, a ser imposto sem uma adequada correlação de forças na sociedade e no Congresso. O importante, agora, é reagrupar o que está disperso e definir, o quanto antes, com quem é que se irá a 2022.

*Marco Aurélio Nogueira é Professor Titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista-UNESP. Doutor em Ciência Política pela USP, com pós-doutorado na Universidade de Roma (1984-1985)