Fake News

Maurício Huertas: Das fake news ao fake gov. Será o início do fim?

Eu suspeitei desde o princípio: os discursos e as ações não combinavam. Aquele moralismo propagandeado era falso. Agora as desculpas esfarrapadas tornam evidente o estelionato eleitoral.

Toda a campanha foi marcada pelo roto falando do rasgado. Era a direita chucra e truculenta atacando a esquerda burra e calhorda. Tudo farinha do mesmo saco da velha política. Duas gangues armadas (e desalmadas) na disputa de sempre, no vale tudo pelo poder. Ganhasse quem ganhasse, perderia o Brasil.

Das fake news ao fake gov, quanto tempo ainda vai durar a espuma dessa onda de popularidade do "mito"? A casa começou a ruir. O novo presidente nem tomou posse e já há claros sinais de imperícia e ingovernabilidade. Não bastavam ministros réus e apoiadores suspeitos, denúncias consistentes atingem em cheio o núcleo da família Bolsonaro. As respostas parecem tiradas do manual de qualquer advogado de porta de cadeia, falas reeditadas de Lula, Dilma e companhia petista. Aliás, quando todos se farão companhia?

Não chega a ser uma metamorfose ambulante para quem já não esperava nada desse futuro governo impostor. Mas para a maioria de seus eleitores, será. Nem tanto para os bolsominions, com aquela velha opinião formada sobre tudo, porém eles são minoria dentro dos 57,7 milhões de brasileiros incrédulos ou de boa fé que elegeram Jair Bolsonaro, que parece cada vez mais dizer agora o oposto do que disse antes (perdão, Raul).

Quando vai cair a ficha do povão? E o que restará diante de mais desesperança? Que reação veremos desencadeada perante um novo sentimento de frustração? Qual a saída para o Brasil? Surgirão novos movimentos cívicos nas redes e nas ruas? Parece lógico que aqui está reservado o papel de uma oposição democrática e republicana, que ajude a preservar as liberdades individuais e os direitos coletivos diante da ameaça do caos. Tô dentro!

Se a mera expectativa de poder já provoca uma disputa aberta nas hostes bolsonaristas, com brigas internas e acusações num nível tão indecoroso e rasteiro, imagine quando o governo enfrentar problemas concretos, resistência externa e começar a desmoronar de vez. Vai ser um salve-se quem puder! Aí sim teremos um risco real e objetivo às instituições. Precisamos, com a Constituição nas mãos, seguir atentos e vigilantes contra oportunistas e revanchistas, à direita e à esquerda. Xô, golpistas!

Lembro que em determinado período dos governos petistas, entre os primeiros indícios do mensalão e as condenações do petrolão, dizia-se que o presidente Lula tinha cobertura teflon, aquela substância antiaderente que recobre as panelas, porque parecia que nenhuma denúncia grudava nele. Bolsonaro vive um momento similar. Seu pré-governo parece aquele "joão-bobo", tradicional brinquedo inflável de criança que apanha, inclina, balança mas insiste em permanecer de pé. O problema é que basta um furo para o ar vazar e a brincadeira acabar. Viveremos um 2019 de fortes emoções. Não sabe brincar, não desce pro play.

*Mauricio Huertas, jornalista, é secretário de Comunicação do PPS/SP, líder RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), editor do Blog do PPS e apresentador do #ProgramaDiferente


Fernando Henrique Cardoso: Um novo caminho

Há espaço para propostas que juntem modernidade e realismo, sem extremismos

A última eleição foi um tsunami que varreu o sistema político brasileiro. Terminou o ciclo político-eleitoral iniciado depois da Constituição de 1988. Ruiu graças ao modo como se formaram os partidos, o sistema de voto e o financiamento das campanhas. A vitória da candidatura Bolsonaro funcionou como um braço cego da História: acabou de quebrar o que já estava em decomposição. Há muitos cacos espalhados e há a necessidade de reconstrução. Ela será feita pelo próximo governo? É cedo para dizer.

O sistema político-partidário não ruiu sozinho. As fraturas são maiores. Antes, o óbvio: a Lava Jato mostrou as bases apodrecidas que sustentavam o poder, sacudiu a consciência do eleitorado. Qualquer tentativa de reconstruir o que desabou e de emergir algo novo passa pela autocrítica dos partidos, começando pelo PT, sem eximir o MDB e tampouco o PSDB e os demais. Na sua maioria, os "partidos" são sopas de letras, e não agremiações baseadas em objetivos e valores. Atiraram-se na captura do erário, com maior ou menor gula.

Visto em retrospectiva, é compreensível que um sistema partidário sem atuação na base da sociedade se desmonte com aplausos populares. Os mais pobres encontram nas igrejas evangélicas – e em muito menor proporção na Igreja Católica e em outras religiões – recursos para se sentirem coesos e integrados. O povo tem a sensação de que os parlamentos e os partidos não atendem aos seus interesses. O eleitorado, contudo, não desistiu do voto e imaginou que talvez algo "novo", inespecífico, poderia regenerar a vida pública.

Não foi só isso que levou à vitória o novo presidente. Basta conhecer mais de perto a vida dos mais pobres nas favelas e nas periferias carentes de quase tudo para perceber que pedaços importantes do território vivem sob o domínio do crime organizado, violência que não se limita a essas populações, pois alcança partes significativas da população urbana e rural.

Inútil imaginar outros motivos para a vitória "da direita". Não foi uma direita ideológica que recebeu os votos. Estes foram dados mais como repulsa a um estado de coisas em geral e ao PT em particular. O governo foi parar em mãos mais conservadoras, e mesmo de segmentos abertamente reacionários, não pelas propostas ideológicas que fizeram, e sim pelo que eles simbolizaram: a ordem e a luta contra a corrupção. Não venceu uma ideologia, venceu o sentimento de que é preciso pôr ordem nas coisas, para estancar a violência e a corrupção e tentar retornar a algum tipo de coesão social e nacional.

Enganam-se os que pensam que "o fascismo" venceu. Enganam-se tanto quanto os que veem o "comunismo" por todos os lados. Essa polarização marcou a pugna política em outra época de antes da 2.ª Grande Guerra, ao fim da qual foi substituída pela polarização entre capitalismo liberal e socialismo.

Os problemas básicos do País continuarão a atazanar o povo e o novo governo. Este não será julgado nas próximas eleições por sua ideologia "direitista", mas por sua capacidade, ou não, de retomar o crescimento, diminuir o desemprego, dar segurança à vida das pessoas, melhorar as escolas e os hospitais, e assim por diante.

Com isso não quero justificar a "direita", dizendo que se for capaz de bem governar vale a pena apoiá-la, mas também não posso endossar a “esquerda”, quando ela deixa de reconhecer seus erros, conclama a votar contra tudo o que o novo governo propuser, sem considerar o que realmente conta: quais os efeitos para o bem-estar das pessoas, para o fortalecimento dos valores democráticos e para a prosperidade do País.

As mudanças pelas quais passamos, aqui e no mundo, são inúmeras e profundas. Pode-se mesmo falar numa nova "era", a da conectividade. Se houve quem escrevesse "cogito ergo sum" (penso, logo existo), como fez Descartes, se depois houve quem dissesse que o importante é saber que "sinto, logo existo", em nossa época, sem que essas duas afirmativas desapareçam, é preciso adicionar: "Estou conectado, logo existo". Vivemos a era da informática, das comunicações e da inteligência artificial, que sustentam o processo produtivo e formam redes entre as pessoas.

As novas tecnologias permitem formas inovadoras de enfrentar os desafios coletivos, assim como acarretam alguns inconvenientes, como a dificuldade de gerar empregos, a propagação instantânea das fake news, a formação de ondas de opinião que mais repetem um sentimento ocasional do que expressam um compromisso com políticas a serem sustentadas em longo prazo. Elas dependem de instituições, partidos, parlamentos e burocracias para serem efetivas.

As questões centrais da vida política não se resumem, no mundo atual, à luta entre esquerda e direita. No passado o espectro político correspondia a situações de classe, interpretadas por ideologias claras, assumidas por partidos. Na sociedade contemporânea, com a facilidade de relacionamento e comunicação entre as pessoas, os valores e a palavra voltaram a ter peso para mobilizar politicamente. Isso abre brechas para um novo populismo e uma exacerbação do personalismo. O desafio está em recriar a democracia. O que chamo de um centro radical começa por uma mensagem que envolva os interesses e sentimentos das pessoas. E essa mensagem, para ser contemporânea, não deve estancar num palavreado "de direita" nem "de esquerda". Deve, a despeito das divergências de classe que persistem, buscar o interesse comum capaz de cimentar a sociedade. O País não se unirá com o ódio e a intransigência cultural existentes em alguns setores do futuro governo.

Há espaço para propostas que juntem a modernidade ao realismo e, sem extremismos, abram um caminho para o que é novo na era atual. Esse percurso deve incorporar a liberdade, especialmente a de as pessoas participarem da deliberação dos assuntos públicos, e a igualdade de oportunidades que reduzam a pobreza. E há de ver na solidariedade um valor. Só juntos poderemos mais.

*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República


Política Democrática: “Entramos na era da mentira”, afirma Sérgio Denicoli

Pós-doutor em comunicação analisa avanço da internet, em artigo publicado na edição de novembro da revista Política Democrática online

Por Cleomar Almeida

O pós-doutor em Comunicação e diretor da AP Exata – Inteligência Artificial, Sérgio Denicoli, diz que a expansão da internet, possibilitada pelo surgimento da web, em 1989, sustentou a crença de que “o novo meio online seria um grande campo de liberdade”. No entanto, hoje, segundo ele, “entramos na era da mentira, das teorias da conspiração, que influenciam nossos amigos e familiares”, como escreve em artigo publicado na edição de novembro da revista Política Democrática online, produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Partido Popular Socialista (PPS).

Com o título “As doces, atraentes e estimulantes fake news”, o artigo ressalta que, no início, a ideia que havia era de que finalmente o mundo se livraria das amarras da mediação da imprensa, que, segundo ele, é “contaminada pelos seus mais diversos interesses e pela sua proximidade com o poder político”.

» Acesse aqui a edição de novembro da revista Política Democrática online

No final dos anos 1980, como observa o pós-doutor em Comunicação, acadêmicos e críticos entendiam que a imprensa desenhava toda a narrativa da vida pública e que a internet trazia ao mundo a possibilidade de democratização da informação. “As pessoas comemoraram, então, o surgimento do chamado ‘jornalista cidadão’, aquele que não precisava de intermediários para difundir uma notícia. Foi uma onda avassaladora a transformação dos internautas em produtores e não apenas consumidores de conteúdo”, escreve ele, em um trecho.

No entanto, de acordo com Sérgio Denicoli, houve mudança não apenas no ato de se reportar algo. “A internet viria a colocar em causa muitas profissões que tinham a mediação como norte. Foi assim que aconteceu a revolução do Uber, do Airbnb – que permite às pessoas comuns alugarem suas próprias casas como se fossem hotéis –, dos classificados, do comércio de imóveis, entre tantos outros exemplos. Enquanto essas mudanças eram comemoradas, o mundo não percebeu que, aos poucos, a internet foi sendo capturada”, acrescenta ele.

Segundo o diretor da AP Exata – Inteligência Artificial, empresas ultraglobais, como Google, Facebook, Twitter etc, construíram resorts de comunicação e cooptaram bilhões de usuários, os quais, conforme ressalta ele, foram transformados “em produtos narcisistas municiados de espelhos hipnotizadores”. “Ocorreu, portanto, a digitalização da vida, com ideias, opiniões e momentos privados devidamente classificados e armazenados em data centers espalhados pelo planeta. As pessoas foram agrupadas em bolhas e viraram presas”, afirma Sérgio Denicoli.

Assim, conforme aponta o artigo, “um ambiente que chegou anunciando liberdade se tornou uma prisão sem muros, com requintes apurados de cooptação ideológica”. “Tudo devidamente disseminado por robôs e alimentado pelo que denominamos de ‘perfis de interferência’, criados especificamente para interferir nos mais diversos processos que envolvem a opinião pública”.

Na avaliação do pós-doutor em Comunicação, a sociedade entrou não somente “na era da mentira”, mas também na das “teorias da conspiração, que influenciam nossos amigos e familiares”. “Estabeleceu-se um surto coletivo, onde, se achando mais que especial, o internauta acredita que sua vida é o centro das atenções e que sua opinião deve prevalecer, sendo ela apoiada em pós-verdades, se assim for necessário. Uma doce ilusão. Tão doce e atraente, como uma bem construída fake news”, escreve ele, no artigo.

 

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Eugênio Bucci: Quem gosta mais de desinformação?

Para as plateias de direita extremada, tanto faz se o divulgado é mentira ou verdade

A direita gosta mais de fake news do que a esquerda? Ou, em outros termos: as campanhas de candidatos de perfil “conservador” - os populistas, ultranacionalistas, que pregam soluções violentas para combater a criminalidade, elogiam governos autoritários, dizem defender a dita “família tradicional” e atacam gays e lésbicas - seriam mais propensas a lançar mão das fake news? Ainda não há dados conclusivos sobre isso, mas há indicativos fortes. Vejamos alguns deles.

Em 2016 o mundo descobriu, com um misto de surpresa e excitação, que jovens da Macedônia produziam conteúdos mentirosos para promover a candidatura de Donald Trump. Em seguida, repórteres do mundo inteiro foram atrás desses ativistas para entender suas razões. O que encontraram foi um tanto desconcertante. Os macedônios não tinham propriamente uma predileção pelo republicano loiro. Não queriam nem saber de política. O negócio deles era dinheiro. Eles apenas geravam notícias fraudulentas a favor de Trump e contra Hillary Clinton porque os eleitores dele eram fregueses mais vorazes que os dela. Um desses jovens, o designer Borce Pejcev, explicou tudo à Agência France Press: “Os conservadores eram mais propícios para fazer dinheiro, gostam das teorias da conspiração”.

Então, era isso. Os macedônios difundiam notícias fraudulentas a favor do republicano porque as plateias trumpistas compartilhavam mais as invencionices que eles punham na rede. Compartilhando mais, as plateias conservadoras geravam mais likes, mais cliques, mais audiência e, com isso, mais lucros. Tudo era uma questão de dinheiro. Ponto. Naquele momento, porém, fora o dinheiro, que era pouco, surgiu o primeiro sinal de que as multidões direitistas são as que mais gostam mais de fake news.

Num estudo publicado em janeiro deste ano, ainda sobre a campanha de 2016 nos Estados Unidos, os pesquisadores Brendan Nyhan, do Dartmouth College, Andrew Guess, da Princeton University, e Jason Reifler, da University of Exeter, encontraram a mesma tendência e anotaram: “Os usuários simpatizantes de Trump eram mais propensos a visitar sites identificados como disseminadores de fake news”.

Outra pesquisa, do Instituto de Internet da Universidade de Oxford, divulgada em 1.º de novembro, não desafinou da impressão geral. Em primeiro lugar, a pesquisa mostrou que a quantidade de junk news (um conjunto que agrega, além das fake news propriamente ditas, as mensagens de ódio, ou “discurso de ódio”, e as múltiplas versões de teorias conspiratórias) aumentou consideravelmente entre as campanhas de 2016 e de 2018 (as chamadas midterm eletctions). Em 2016, 20% das notícias analisadas eram junk news. Em 2018 o número subiu para 25%. Em segundo lugar, constatou que os grupos mais à direita sobrepujam os demais no uso das junk news.

Numa classificação que vai de zero (nenhuma interação com junk news) a cem (interação apenas com junk news), os perfis de extrema direita nas redes sociais tiveram nota 89, a mais alta de todas. A direita tradicional, como o Partido Republicano, ficou com 83. As páginas ligadas a causas classificadas como progressistas - grupos feministas ou defensores do direito ao aborto, por exemplo - receberam nota 49. A esquerda institucional, de oposição a Trump, teve nota 24. Por fim, sites jornalísticos marcaram 20 pontos.

O estudo de Oxford pesquisou também a campanha brasileira de 2018, cujos resultados foram anunciados um pouco antes. Em outubro o pesquisador brasileiro Caio Machado, um dos integrantes do levantamento, contou ao Estado sobre o que foi observado no Brasil (reportagem de Beatriz Bulla, correspondente em Washington, publicada em 5/10). Aqui a pesquisa mostrou que tanto partidários de Haddad como aliados de Bolsonaro recorriam às fake news e às junk news, mas, segundo Caio Machado, “apoiadores do Bolsonaro compartilham notícias falsas em maior amplitude e replicam quase todas as fontes identificadas como falsas”. Ou seja, a diferença entre um polo e outro não estaria na estratégia das duas campanhas (ambas se teriam valido de mentiras), mas na aptidão dos dois públicos: o público mais conservador seria mais propenso, também no Brasil, a espalhar as notícias fraudulentas.

Ainda outra pesquisa, do Instituto Datafolha, divulgada em 2 de outubro, mostrou que seis em cada dez eleitores de Bolsonaro se informavam pelo WhatsApp, enquanto, entre os eleitores de Haddad esse número caía para 38% (ou quase quatro em cada dez). Por fim, em 26 de outubro o site Congresso em Foco noticiou que as agências de fact checking Lupa e Aos Fatos e o projeto Fato ou Fake, do Grupo Globo, tinham desmentido, desde o início da campanha, um total de 123 notícias fraudulentas muito compartilhadas. Dessas, 104 eram contra Haddad e o PT e apenas 19 eram prejudiciais a Bolsonaro e seus aliados.

Para se ter uma ideia da boçalidade que deu o tom dessa campanha, uma das junk news contra Haddad assegurava que o candidato do PT teria dito que as crianças, ao completarem 5 anos de idade, seriam consideradas “propriedade do Estado” - e caberia ao Estado escolher o gênero da criança. Essa mentira caluniosa foi desmentida pelo projeto Fato ou Fake, no G1, em 2 de outubro.

Nada disso é conclusivo, evidentemente, mas vão se acumulando indícios convincentes de que as fake news (e as junk news) florescem mais nos canteiros do populistas ultraconservadores, ultranacionalistas e um pouquinho machistas. Por que será? Talvez - apenas talvez - porque a cultura política esteja atravessando uma mutação. As plateias da direita extremada parecem abrir mão do compromisso com os fatos e se encontram em rota de ruptura não apenas com as ideias de centro ou com as ideias de esquerda, mas com os próprios fundamentos da política democrática. Para essas plateias, se é mentira ou verdade, tanto faz.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


José Augusto Guilhon Albuquerque: O povo é o eterno culpado

O eleitor não determina o resultado da eleição, só reage a um cenário que lhe é imposto

O previsível resultado do segundo turno da eleição presidencial de 2018 tem sido atribuído, no Brasil e no exterior, a um crescimento avassalador do conservadorismo do eleitor brasileiro. Esse diagnóstico implica acusar o povo brasileiro de ser incapaz de votar racionalmente, e só se explica como efeito do que chamarei de vitimologia eleitoral.

Criada para traçar um perfil das vítimas como instrumento para explicar a motivação de um crime e o comportamento de criminosos, a técnica da vitimologia tem sido empregada na análise do comportamento político, quando se trata de explicar um resultado eleitoral inesperado: prendam-se os suspeitos de sempre.

Ora, não é razoável acusar o eleitorado pelo resultado das eleições, porque o voto não é uma escolha de livre-arbítrio do eleitor, mas, sim, uma opção limitada por uma agenda que lhe é imposta pelo sistema eleitoral, pelo sistema partidário que dele decorre e pelas cúpulas partidárias, pressionadas mais pelos interesses da classe dirigente do que pelo clamor popular. A liberdade política do cidadão brasileiro pode ser considerada uma liberdade condicionada.

O voto popular limita-se a responder a uma agenda compulsória, construída de cima para baixo, não é uma livre escolha. A pesquisa sobre comportamento eleitoral tem foco na descrição estatística, ou na interpretação “qualitativa” de variáveis presentes nas respostas dos eleitores, mas nada ensina sobre o processo político que criou o leque de escolhas que lhe são impostas. É como um experimento em que se consideram as respostas, ignorando inteiramente os estímulos que lhes deram origem.

Parte-se sempre do perfil do eleitor, pressupondo que o povo é o único fator que determina o resultado das urnas. O processo eleitoral envolve, porém, uma interação complexa entre dimensões mais ou menos independentes entre si. Entre outras, elas incluem variáveis relativas à história política, à percepção desse contexto político pelos atores envolvidos e atitudes, expectativas e reações que daí resultam, diante das candidaturas em jogo.

Minha hipótese é que o comportamento dos eleitores é determinado pela maneira como o povo percebe a evolução do processo político, isto é, para onde caminham as ameaças ao bem-estar e à liberdade do povo, em face da ganância e da paixão de poder dos Grandes (tal como as define Maquiavel). O eleitor comum escolhe entre quais candidatos, partidos, novas políticas adotadas ou revogadas são percebidos como ameaça ao bem-estar e à liberdade do cidadão – isto é, mantêm e ampliam os privilégios e a corrupção dos poderosos – e quais, ao contrário, são percebidos como barreiras contra a opressão e a exploração do cidadão comum pela classe dirigente. No presente caso, desde as revelação dos escândalos do mensalão a classe política como um todo tem encarnado, na percepção popular, toda a malignidade dessa ameaça à vida, à honra e aos parcos bens que garantem a sobrevivência da imensa maioria.

Essa percepção não é cristalina. É mediada pelos partidos e movimentos de opinião, e raramente se expressa numa imagem única – como, por exemplo, a percepção da inflação, do desemprego, do empobrecimento, da corrupção da máquina pública, da insegurança, da degradação moral. Essas “preferências” populares são tudo menos nítidas e unívocas. São, ao contrário, difusas e equívocas.

Com isso, as análises do processo eleitoral não captam o caráter único do caso presente. Não lhes vem à mente que há cinco longos e sofridos anos o povo brasileiro tem manifestado, reiteradamente, sua indignação quanto à maneira como tem sido governado.

Diante do desprezo cego, surdo e mudo dos governantes, e do silêncio envergonhado das candidaturas, continuam prometendo creches, hospitais, metrôs, que todos sabem que não serão construídos, se o forem, não vão funcionar, se funcionarem, não vão atender decentemente ao povo. Uma garantia de mudança da política e dos políticos, desde que minimamente crível, seria o único caminho para disputar a maioria do eleitorado indignado com tudo e com todos.

Defender a continuidade, embora com mais eficiência, experiência, ou vinho novo em velhas barricas foi, contudo, o caminho do suicídio dos partidos tradicionais. Nesse caminho, o PT foi mais longe, porque encarnou, como os demais, a continuidade da velha política, mas defendeu também o retrocesso, ressuscitando o velho programa radical, de 30 anos atrás, com que Lula perdeu três eleições seguidas. Seu fraco desempenho no primeiro turno não foi pior porque se beneficiou da polarização contra Bolsonaro.

Como o PT, Bolsonaro também se beneficiou da polarização e, como os políticos tradicionais, tampouco deu qualquer resposta concreta, mas foi o único a vociferar contra tudo e contra todos. Com isso, sua falta de rumo e de propostas permitiu que encarnasse a mudança a todo custo. Tornou-se um candidato-ônibus: oferece lugar para todos e vai em todas as direções. Sua candidatura pode, assim, acolher uma multidão de eleitores motivados por ameaças diversas, ignoradas ou desprezadas pelas lideranças tradicionais. Note-se, entre as ameaças percebidas por eleitores de Bolsonaro, o temor do patrulhamento que acompanhou políticas discriminatórias adotadas por governos petistas. Assim, parcela não desprezível de seus eleitores não se identifica necessariamente com ideologias extremas nem com a retórica de ódio dominante em sua campanha.

Em suma, o resultado da eleição não é determinado pelo eleitor, que apenas reage a um cenário que lhe é imposto. Tampouco o voto em um ou outro candidato cancela a indignação generalizada contra a política e os políticos e, portanto, não oferece um cheque em branco. O presidente a ser empossado no dia 1.° de janeiro não gozará uma lua de mel, mas um sursis, com curtíssimo prazo para cumprir, de mãos atadas, uma agenda tão extensa e multifacetada como suas promessas.

*José Augusto Guilhon Albuquerque é professor titular de ciência política e relações internacionais da USP


Luiz Carlos Bresser-Pereira: Um grande jornal em tempos difíceis

Folha dá grande contribuição à democracia

É nos momentos de crise como aquele em que nós vivemos hoje que esta Folha mostra o grande jornal que é. Conforme disse Rogério Cezar de Cerqueira Leite ("A escolha", 22/10), o Brasil está ameaçado pela barbárie, e a Folha sabe disso.

Seguiu sua norma de não tomar partido nas eleições, mas deixou seus jornalistas e colunistas livres para informar e afirmar. Embora critique o PT e os demais partidos políticos envolvidos na operação Lava Jato, rejeitou o ódio que ameaça a democracia brasileira e vem dando uma cobertura exemplar às eleições.

O furo de Patrícia Campos Mello mostrou como a campanha de Bolsonaro estava usando fraudulentamente empresas para enviar, via WhatsApp, milhões de mensagens falsas contra o PT. Caso ele seja eleito no próximo domingo, este é um motivo mais que suficiente para que a Justiça casse o seu mandato.

O follow-up que o jornal está fazendo dessa primeira notícia é grande jornalismo.

Os artigos de Janio de Freitas, Clóvis Rossi, Roberto Dias, André Singer, Elio Gaspari, Celso Rocha de Barros, Fernando Limongi, Antonio Prata, Cristovão Tezza, Tati Bernardi e dos intelectuais que publicam na página A3 e na Ilustríssima são um respiro em meio ao sufoco do pensamento único dos "homens de bem".

Mas terá o Judiciário autonomia ou coragem para cassar Bolsonaro? As pessoas a quem faço essa pergunta geralmente respondem que apenas se houver um movimento da sociedade muito forte exigindo sua condenação. Essas pessoas não reconhecem que as instituições brasileiras hoje são mais fortes do que eram há mais de 50 anos, quando Getúlio Vargas lamentou: "a lei, ora a lei!".

Não somos uma Suíça, mas as leis no Brasil valem, e já foram usadas para tirar o mandato de governadores cujo crime foi muito menor do que o cometido por Bolsonaro e as empresas que financiaram a fraude eleitoral que cometeu.

O ministro Celso de Mello, em uma espécie de resposta aos que duvidam, em entrevista à Folha, reagiu à ameaça do filho do candidato de fechar o STF sem precisar de nada mais que "um cabo e um soldado": "[A fala de Eduardo Bolsonaro] é golpista". É uma chantagem por antecipação, eu acrescentaria.

E o ministro, em sua declaração enviada por escrito ao jornal, colocou no fim de sua frase um ponto de exclamação para deixar clara sua indignação: "Votações expressivas do eleitorado não legitimam investidas contra a ordem político-jurídica fundada no texto da Constituição!"

Até o próximo domingo (28), talvez os eleitores brasileiros caiam em si e se recusem a eleger Jair Bolsonaro. Isso é possível porque a insanidade de um povo tem limites.

Mas, mesmo que isso não aconteça, nada impedirá o Judiciário de cassar seu mandato em razão da comprovação da fraude representada pelas fake news e pelo uso de empresas para distribuí-las em massa.

As duas coisas são um atentado à moral e ferem a letra da Constituição. Neste final de campanha eleitoral, quando a indignação dos cidadãos é crescente, a Folha, com seu jornalismo isento e profissional, vem dando uma grande contribuição à democracia brasileira, ao mesmo tempo em que homenageia seus criadores e meus velhos amigos, Octavio Frias de Oliveira e Otavio Frias Filho.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)


El País: Linchamento virtual de jornalistas na eleição alerta para risco à liberdade de imprensa

‘Folha’ é ameaçada no Twitter por Bolsonaro horas depois de pedir investigação de "ação orquestrada com tentativa de constranger a liberdade de imprensa"

Por Beá Lima e Naiara Galarrada Cortázar, do El País

O candidato de extrema direita, Jair Bolsonaro, começa a emular a cruzada do presidente Donald Trump contra a imprensa tradicional. Ele lançou, nesta quarta-feira, uma ameaça direta ao principal jornal brasileiro em circulação no Twitter. “A mamata da Folha de S.Paulo vai acabar, mas não é com censura, não! O dinheiro público que recebem para fazer ativismo político vai secar e, mais, com sua credibilidade no ralo com suas informações tendenciosas são menos sérias [sic] que uma revista de piada!", tuitou, seis dias depois de o jornal publicar uma reportagem em que aponta que empresários que o apoiam bancaram o disparo em massa de mensagens via WhatsApp contra o PT. E horas depois de a Folha anunciar que pediu para que a Polícia Federal investigue ameaças a seus profissionais por "indícios de uma ação orquestrada com tentativa de constranger a liberdade de imprensa".

Jair Bolsonaro 1️⃣7️⃣

@jairbolsonaro

A mamata da folha de são paulo vai acabar, mas não é com censura não! O dinheiro público que recebem para fazer ativismo político vai secar, e mais, com sua credibilidade no ralo com suas informações tendenciosas são menos sérias que uma revista de piada!

O jornal denunciou nesta quarta-feira a campanha que foi praticada contra quatro de seus profissionais, entre eles a jornalista Patrícia Campos Mello, autora da reportagem que revelou o esquema no WhatsApp, que pode indicar a existência de uma fraude eleitoral. Um dos números mantidos pela Folha recebeu mais de 220.000 mensagens de 50.000 contatos no WhatsApp. Patricia teve seu aplicativo hackeado e usado para disparar mensagens favoráveis a Bolsonaro, além de ter uma imagem falsa sua atrelada ao presidenciável Fernando Haddad divulgada na internet. Apoiadores de Bolsonaro também convocaram eleitores do capitão reformado à confrontá-la pessoalmente em um evento em 29 de outubro, em que a jornalista seria a mediadora.

Além de Patrícia, outros três colaboradores da Folha foram vítimas de ataques virtuais. Na noite da última sexta (19) outro repórter, desta vez de O Estado de S. Paulo, Ricardo Galhardo, teve seu celular divulgado no Twitter pelo empresário Luciano Hang, um dos empresários que, segundo a Folha, teria ajudado a bancar o disparo das mensagens, após questioná-lo para uma reportagem. A plataforma removeu a postagem por considerá-la abusiva, contudo o jornalista passou a receber mensagens agressivas de apoiadores do candidato.

Diante dos episódios, o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) pediu para que as autoridades brasileiras garantam a segurança dos jornalistas brasileiros que estão cobrindo as eleições no país. "Numa democracia turbulenta como a do Brasil, a liberdade de expressão é um direito fundamental, antes e depois das eleições", disse a entidade pelo Twitter.

CPJ Américas

@CPJAmericas

As autoridades brasileiras devem garantir a segurança dos jornalistas brasileiros que estão cobrindo as eleições no país. Numa democracia turbulenta como a do Brasil, a liberdade de expressão é um direito fundamental, antes e depois da eleição de 28 de outubro.

Em 2018, 137 profissionais da comunicação foram vítimas de alguma forma de agressão no país. As ocorrências aconteceram em contexto político, partidário e eleitoral. Agressões físicas correspondem a 62 registros, com 60 profissionais atingidos. Os demais ataques, 75, foram praticados via internet e afetaram 64 profissionais diferentes. O Brasil ocupa o 102º lugar, em uma lista de 180 países, na classificação de liberdade de imprensa mundial. O ranking realizado pela Organização Repórteres Sem Fronteiras aponta que o ambiente de trabalho para jornalistas no país é cada vez mais instável por conta de ameaças e agressões durante manifestações políticas e assassinatos de profissionais da comunicação instalados em regiões mais afastadas das metrópoles.

Para Daniel Bramatti, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), a onda de linchamentos virtuais de jornalistas é uma tendência nova de intimidação e pode apresentar um sério risco à democracia.“O problema é o estímulo à intimidação, a ações coletivas para expor os profissionais e até suas famílias. Isso tudo não é condizente com a liberdade de expressão e com a liberdade de imprensa”, pontua. A ABRAJI lançou uma cartilha com orientações práticas sobre como lidar com ataques nas redes, prezar pela segurança e pelo uso consciente das redes sociais. "Espero não ter que usar o verbo no passado, mas até recentemente nos sentíamos seguros trabalhando nas capitais. É preciso que isso se mantenha, porque um jornalista que não trabalha com segurança, não trabalha com liberdade", diz Bramatti.

Para além dos ataques à imprensa, o cenário nas redes sociais também aponta a equipe de Jair Bolsonaro como uma ameaça à liberdade de expressão. Segundo a apuração do The Intercept Brasil, o capitão reformado já moveu 17 processos contra o Facebook por compreender que existiam conteúdos contrários a suas propostas e difamação a ele. Uma característica interessante destas ações é que os advogados de Bolsonaro pedem além da remoção dos conteúdos, as informações cadastrais dos criadores e a exclusão de seus perfis.

Até o momento, a Polícia Federal e o TSE, onde a Folha protocolou o pedido de investigação, ainda não se posicionaram sobre o pedido do jornal. Daniel Bramatti alerta para importância de posicionamentos claros das autoridades brasileiras a fim de proteger o exercício do jornalismo no Brasil. "A impunidade de um crime contra jornalistas, quando esse crime visa calar alguém, é uma vitória das trevas e quem tem como obrigação constitucional a defesa da democracia precisa atuar com força nesse momento", clama.


El País: Grupos pró-Bolsonaro no WhatsApp orquestram notícias falsas e ataques pessoais na internet, diz pesquisa

Pesquisadores da Uerj acompanharam grupos de vários candidatos no aplicativo desde maio; bolsonaristas têm maior alcance e organização

Desde maio deste ano, o grupo de pesquisa em Tecnologias da Comunicação e Política (TCP) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) tem monitorado grupos de WhatsApp em apoio a candidatos presidenciais. Inseridos em 90 grupos, os 14 pesquisadores estudaram o comportamento dos usuários para descobrir como as pessoas se organizam para viralizar conteúdos eleitorais no WhatsApp.

Para a coordenadora Alessandra Aldé, existe uma ordem para o caos cibernético. “As notícias falsas têm caminhos específicos. Esses fluxos não são aleatórios e existe uma técnica específica para fazer com que a informação falsa viralize. E isso é muito importante.” O estudo descobriu que a cada 30 mensagens, pelo menos uma foi enviada do exterior.

“A notícia entra em um grupo e nesse grupo tem contato com 250 e poucas pessoas. Dessas 250 e poucas, algumas voluntariamente pegam e replicam isso em outros grupos. Não só como vítimas que compartilharam uma vez e não compartilham mais. Compartilham isso de uma forma sistemática”, explica João Guilherme, que coordena o núcleo de análise de dados do grupo.

Nesses cinco meses de monitoramento, os pesquisadores perceberam que grupos pró-Bolsonaro têm um alcance mais vasto e uma organização maior na disseminação de noticias falsas em comparação com os demais.

Um dos maiores exemplos disso se deu no primeiro turno, com um boato de que havia uma fraude eleitoral em curso. O grupo de pesquisa da Uerj seguiu uma mensagem específica: “TSE informa: 7,2 milhões de votos anulados pelas urnas! A diferença de votos que levaria à vitória de Bolsonaro no primeiro turno foi de menos de 2 milhões”. Segundo os pesquisadores, o boato apareceu 202 vezes em 41 dos 90 grupos. Destes 41 grupos, 37 estão no conjunto de apoio a Bolsonaro, grupos de direita e pró-militar e 4 de política em geral.

Grupos pró-Bolsonaro no WhatsApp orquestram notícias falsas e ataques pessoais na internet, diz pesquisa

“O que a gente percebe é que o campo do Bolsonaro está muito mais organizado para fazer isso do que os outros candidatos. Então eles anteciparam essas estratégias e já começaram a construir esses grupos”, diz Alessandra. “Chamou atenção da gente também essa falta de compromisso de quem difunde essas notícias como verdade. Porque não se trata de fatos, não tem uma objetividade, é desqualificação, geralmente moral, e associações que são muito impróprias, inadequadas. É uma campanha muito mentirosa. Realmente o nível de notícias falsas é muito maior na campanha de Bolsonaro do que em qualquer outra campanha. Isso é visível. E a gente está em dezena de grupos.”

Alessandra avalia que quem alimenta essa rede são produtores profissionais de conteúdo. “Existe uma produção profissional de memes, de várias coisas bem-feitas esteticamente. São lançadas para números de celulares em vários locais diferentes. O celular mostra, por exemplo, a região da pessoa, porque tem o prefixo. Você pode achar associações entre bancos de dados, celulares e CEP e usar isso para direcionar a sua propaganda atingindo os grupos e circulando dentro de grupos específicos. Então existe uma técnica.”

Na semana passada, a Folha de S.Paulo revelou que empresas contrataram disparos massivos de mensagens de WhatsApp contra o PT e a favor de Bolsonaro, em contratos que chegavam a R$ 12 milhões.

Apoio a Bolsonaro inclui incitação a ataques pessoais e participação em enquetes

Fora a produção do conteúdo em si, a tática para a disseminação das mensagens por militantes é simples e eficaz. Em cada grupo existem pessoas que dão ordens e orientam o restante dos usuários a cumprir tarefas específicas. “Eles sistematicamente pedem e orientam as pessoas a circularem as informações nos outros grupos de WhatsApp. No da família, no do trabalho”, explica Alessandra.

“Tem sempre alguém ali falando ‘façam isso, faça aquilo’. Por exemplo, se está tendo uma pesquisa no Facebook, eles pedem para todos irem lá para responder. Ou então tal famoso postou tal conteúdo contra o Bolsonaro, então vamos ali dar dislike. Então existe, sim, uma orquestração.”

Grupos pró-Bolsonaro no WhatsApp orquestram notícias falsas e ataques pessoais na internet, diz pesquisa

“Existe chamamento para você ir lá e dar dislike na página da atriz que se manifestou a favor do Haddad. Isso é muito comum. Ou ir lá e escrever na página de quem é contra a intervenção. Então esses WhatsApps servem também para mobilizar a ação desses eleitores nas outras redes. ‘Vamos lá no YouTube todos dar dislike.’ Aí você vê uma migração.”

Segundo o pesquisador João Guilherme Bastos dos Santos, os membros orquestram inclusive ataques coletivos. “Por exemplo, antes do primeiro turno saiu a notícia de um instituto de pesquisa específico que desagradou eles. Aí, algumas pessoas desses grupos identificam o estatístico responsável, pegam o Facebook da pessoa e jogam no grupo do WhatsApp. As pessoas usam isso para chegar até essa pessoa e ameaçar”, diz.

João Guilherme conta que viu também grupos de apoio a Marina Silva e Ciro Gomes serem atacados por apoiadores do Bolsonaro que se infiltraram, entravam fingindo ser simpatizantes e lá dentro começavam a atacar. Em um caso, esses infiltrados chegaram a virar administradores de um grupo pró-Marina para depois deletar o grupo.

Controlando a narrativa e banindo quem questiona

Segundo os pesquisadores, os administradores dos grupos fazem uma curadoria para controlar a narrativa. Isso ficou claro quando saíram os resultados do primeiro turno. Começaram a surgir comentários preconceituosos contra o Nordeste, região onde o voto ao PT levou vantagem, desde coisas como “o Nordeste é um parasita” até “tem que mandar matar nordestino”.

“Logo alguns agentes começaram a dizer assim ‘não gente, a gente precisa do voto no Nordeste’, aqui tem muito nordestino eles não têm culpa dos outros eleitores”, explica Alessandra. “E até começaram a banir, a excluir pessoas que estavam aderindo a essa crítica.”

Os pesquisadores detectaram ainda que pessoas que questionam insistentemente a veracidade de uma informação são banidas. “Essa pessoa é enquadrada como um sabotador, ou petista ou comunista e é removido do grupo. Então, sempre que alguém vai destoar dessa narrativa unificada, essa pessoa é retirada acusada de traição”, diz João Guilherme. “Se alguém começa a reclamar de fake news e dizer ‘você tem certeza que isso é verdade, onde que está a fonte disso, será que isso não vai pegar mal pra gente.’ Aí a pessoa é rapidamente deletada”, completa Alessandra.

Porém, enquanto os administradores baniam da discussão comentários que poderiam atrapalhar a campanha, deixavam rolar solto discursos de ódio contra certos segmentos da sociedade. Alessandra viu diversas ameaças circulando nos grupos contra mulheres e LGBTs. Ela cita como exemplo as frases “Viado não vai ter mais vez, não vai poder fazer isso” e “Vamos acabar com essas feminazis quando o Bolsonaro ganhar”, que rodaram sem sofrer reprimendas dos administradores.

O pesquisador afirma que há uma pluralidade: cada grupo tem um discurso que foi adaptado e construído especificamente para agradar àquele tipo de eleitor. “Tem notícias falsas voltadas para valores religiosos, falando que Haddad vai acabar com a família, que ele é contra Deus, que Manuela d’Ávila falou que Jesus é travesti. Mas em outros grupos esse discurso não tem tanta entrada e você tem mais um discurso sobre segurança pública, por exemplo. Esses grupos falam que a situação está insustentável, que alguém tem que fazer alguma coisa, que tem que se armar”, explica.

Embora sejam plurais, todos os discursos convergem em uma só mensagem: para evitar tudo isso, é preciso votar no Bolsonaro. Isso se enquadra em uma narrativa maior que os apoiadores vêm construindo há pelo menos dois anos no WhatsApp. “Essa ideia de ameaça comunista. A ideia de que a gente tem que se unir contra uma ameaça externa e todo mundo entre nós que atrapalhar essa união está favorecendo essa ameaça externa. É um mecanismo básico de movimentos populistas ou fascistas, onde você reprime sistematicamente quem discorda”, diz João Guilherme.

O estudo

Ainda em fase de análise e conclusão, o estudo do grupo de Tecnologias da Comunicação e Política da Uerj pretende determinar padrões de comportamentos de seguidores de diferentes candidatos no WhatsApp, a plataforma que tem sido apontada como principal influenciadora desta eleição.

Os pesquisadores concluem que o WhatsApp precisa ser entendido como uma rede de grupos organizados que estão interconectados por participantes em comum que sistematicamente levam as notícias falsas de um grupo para outro.

A pesquisa revela que, dos 90 grupos estudados, 99,11% dos perfis estão conectados direta ou indiretamente através de uma rede de pessoas.

No infográfico abaixo é possível ver a estrutura de conexões entre os grupos analisados. As linhas verdes representam grupos de conservadores, pró-militares e de apoio ao candidato do PSL. As linhas vermelhas são de apoiadores de Fernando Haddad. Em rosa, grupos para discussões de política geral ou suprapartidária, e em azul, grupos de outros candidatos.

Para conseguir mapear o caminho da disseminação das notícias, o TCP da Uerj usa os softwares IRaMuTeQ e Gephi. Ele rastreia, mas mantém em condição de anonimato, o número de celular que deu origem à mensagem para apontar em qual grupo ela surge, e depois mapeia o seu trajeto. O resultado são “nuvens” de dados que ilustram a disseminação da informação pela rede do WhatsApp.

Grupos pró-Bolsonaro no WhatsApp orquestram notícias falsas e ataques pessoais na internet, diz pesquisa

O exemplo abaixo rastreia a cronologia de uma notícia falsa, representada pela cor amarela. Quando o candidato Jair Bolsonaro foi atacado em Juiz de Fora, em 6 de setembro, surgiu, às 17h03 uma notícia falsa que dizia que o responsável pelo ataque era membro do Partido dos Trabalhadores e responsável pela campanha de Dilma Rousseff. Apesar de a notícia ter sido desmentida na televisão nesse meio-tempo, ela continuou sendo espalhada pelos grupos – e só para de ser divulgada às 18h19.

O software IRaMuTeQ extrai das conversas em andamento nos grupos as palavras- chave que mais aparecem e as organiza em infográficos. As palavras mais repetidas aparecem em tamanho maior. Abaixo, é possível ver as associações de palavras que se formaram em conversas onde se discutiam as urnas e o TSE. Os pesquisadores explicam que no gráfico amarelo onde as palavras mais usadas são “Comunista, militar e intervenção” foi possível relacionar este vocabulário aos grupos pró-Bolsonaro. Já no gráfico azul e laranja não existe uma correlação clara entre o agrupamento de palavras e os grupos de WhatsApp representados.

Grupos pró-Bolsonaro no WhatsApp orquestram notícias falsas e ataques pessoais na internet, diz pesquisa

O Estado de S. Paulo: TSE abre ação sobre compra de mensagens anti-PT no WhatsApp

Ministro Jorge Mussi pede que sejam investigadas as acusações de empresas que usaram aplicativo contra o PT; Jair Bolsonaro (PSL) e agências têm cinco dias para se manifestarem

Por Amanda Pupo e Breno Pires, O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - O corregedor-nacional da Justiça Eleitoral, ministro Jorge Mussi, decidiu nesta sexta-feira, 19, abrir ação de investigação judicial pedida pelo Partido dos Trabalhadores (PT) para que sejam investigadas as acusações de que empresas compraram pacotes de disparos em larga escala de mensagens no WhatsApp contra a legenda e a campanha de Fernando Haddad (PT) à Presidência da República. Também nesta sexta, a PGR pede inquérito sobre fake news relacionadas aos dois presidenciáveis.

Mussi concedeu prazo de cinco dias para que o candidato à Presidência Jair Bolsonaro(PSL), seu vice, Hamilton Mourão, o empresário Luciano Hang, da Havan, e mais 10 sócios das empresas apontadas na ação do PT apresentem defesa no processo, se desejarem.

O ministro rejeitou o pedido do PT de realização de busca e apreensão de documentos na sede da empresa Havan - que teria comprado o serviço de disparo em massa de mensagens contra o PT, segundo a Folha de S. Paulo - e na residência de seu dono, Hang. Mussi também negou determinar que o WhatsApp aja para suspender o "disparo em massa de mensagens ofensivas ao candidato Fernando Haddad e aos partidos da coligação".

"Relativamente aos pedidos constantes do item 42.2 da inicial e da respectiva emenda (de busca e apreensão em empresas), observo que toda a argumentação desenvolvida pela autora está lastreada em matérias jornalísticas, cujos elementos não ostentam aptidão para, em princípio, nesta fase processual de cognição sumária, demonstrar a plausibilidade da tese em que se fundam os pedidos e o perigo de se dar o eventual provimento em momento próprio”, disse.

O ministro deixou para analisar futuramente outra parte do pedido do PT, de quebra dos sigilos bancário, telefônico e telemático dos citados e de tomada de depoimento deles.

O PT pediu nesta quinta-feira, 18, ao TSE que apure suposto abuso de poder econômico para favorecer a campanha de Bolsonaro e o declare inelegível. A sigla alega que a campanha do oponente se aproveita da disseminação de notícias falsas e que “não é crível atribuir apenas à militância orgânica” dos adversários a capacidade de difundir fake news nas redes sociais. Bolsonaro nega as acusações.

Defesas. Em nota, a advogada da campanha de Bolsonaro, Karina Kufa, afirmou que o candidato irá provar que não houve caixa 2 na campanha, nem utilização de serviços de WhatsApp para a divulgação de fake news.

"A decisão do Ministro Jorge Mussi que decidiu pelo indeferimento liminar dos pedidos formulados por Fernando Haddad e apenas abriu para a apresentação de defesa é o que se esperava. Agora o candidato terá condições de apresentar as suas razões e provar que não houve caixa 2 na campanha, nem utilização de serviços de whatsapp para a divulgação de fake news. A apuração célere é o caminho adequado para não criar qualquer instabilidade ao pleito com a propositura de ações temerárias", disse em nota.

Em manifestação enviada previamente ao TSE, sobre os pedidos cautelares que haviam sido feitos, Hang negou a acusação, a qual chamou de "falsa".


O Globo: PF vai investigar uso de WhatsApp para fake news

TSE aceita pedido do PT para apurar difusão de notícias falsas pela campanha de Bolsonaro

André de Souza e Jailton de Carvalho, de O Globo

A Polícia Federal vai abrir investigação para apurara disseminação de notícias falsas pelas redes sociais na campanha presidencial. Serão duas frentes de apuração.

Na primeira, aberta por determinação do ministro Jorge Mussi, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a PF analisará se o candidato a presidente Jair Bolson aro( PS L) cometeu crimes eleitorais. A investigação foi solicitada pelo PT. Na outra frente, apedido da Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE), a PF vai investigara disseminação de notícias falsas na campanha presidencial contra ambos candidatos. O pedido da PGE cita reportagens do GLOBO, da BBC e do jornal “Folha de S.Paulo".

A partir de agora, a Justiça Eleitoral deverá encaminhar com mais rapidez à Polícia Federal os pedidos de investigação sobre “fake news”. A decisão de apressar as apurações criminais foi acertada numa reunião ontem entre a presidente do TSE, Rosa Weber, com representantes da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.

Também na próxima semana, existe a possibilidade de o plenário do TSE analisar uma ação contra a divulgação de “fake news" pelo Whatsapp. Ministros da corte já deram decisões divergentes sobre isso, mas o plenário, composto por sete integrantes, ainda não deliberou a respeito. Se o fizer, poderá criar um parâmetro para julgamentos futuros. Na prática, porém, isso terá pouco efeito na eleição deste ano, uma vez que o primeiro turno já passou e o segundo está marcado para o dia 28 de outubro.

No TSE, o pedido de investigação, aceito ontem pelo ministro Mussi, foi feito pelo PT. O partido se baseou em reportagem do jornal “Folha de S.Paulo", segundo a qual empresas — que foram proibidas de fazer doações eleitorais — estariam favorecendo a campanha do candidato do PSL ao comprar pacotes de divulgação em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp. No pedido da PGR, é citada reportagem do GLOBO na qual o consultor de marketing digital da campanha presidencial de Geraldo Alckmin (PSDB), Marcelo Vitorino, disse ter participado de reunião em que uma empresa ofereceu ao partido a entrega de disparo de mensagens por WhatsApp para até 80 milhões de pessoas, usando cadastro de terceiros, o que é proibido por lei. Os tucanos não aceitaram a proposta.

O PT também pediu ao TSE que as empresas acusadas de comprar os pacotes e o Whatsapp fossem investigados. Mas Mussi lembrou que as sanções de inelegibilidade e cassação de registro ou diploma não podem ser aplicadas a pessoas jurídicas. Assim, a investigação se fixará em Bolsonaro, no seu vice, o general reformado Hamilton Mourão, e em mais 11 empresários, entre eles Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, e dez sócios das empresas de mídia digital acusadas de irregularidades. Foi dado um prazo de cinco dias para que eles apresentem sua defesa. Hang nega as acusações.

Mussi negou liminar em alguns pedidos do PT, como o de prender Hang e de decretar busca e apreensão de documentos na sua residência ou na sede da Havan. “Observo que toda a argumentação desenvolvida está lastreada em matérias jornalísticas, cujos elementos não ostentam aptidão para, em princípio, demonstrar a plausibilidade da tese em que se fundam os pedidos”, afirmou o ministro.

Mussi também negou pedido para obrigar o empresário a repassar toda a documentação contábil, financeira, administrativa e de gestão relativo aos gastos com a campanha de Bolsonaro, e para fazer o Whatsapp elaborar um plano de contingência capaz de suspender o disparo em massa de mensagens ofensivas a Haddad.

Na investigação da PGR, o inquérito deve apurar a disseminação de mensagens em redes sociais tanto em relação a Bolsonaro, quanto a Haddad. A investigação foi solicitada por meio de ofício enviado ao ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, a quem a PF é subordinada.

A procuradora Raquel Dodge afirmou que o uso de recursos tecnológicos para espalhar informações falsas é “uma nova realidade mundial que exige investigação". Bolsonaro negou qualquer envolvimento com a disseminação de fake news por meio de empresas que apoiam sua candidatura. “Eu não tenho relação nenhuma com empresários nesse sentido. Nós estamos derrotando o PT com verdades. Nós não precisamos mentir sobre o sr. Haddad. Eles estão desesperados", afirmou o candidato do PSL.


El País: “Quando você só acredita no que quer, não há como ter democracia”, diz Aviv Ovadya

O pesquisador Aviv Ovadya explica quais serão as consequências do uso de tecnologias avançadas para a produção de mentiras espalhadas pelas redes sociais

Na tentativa de frear mais uma enxurrada de fake news – boatos fabricados para levar alguém a uma conclusão falsa sobre a realidade ou sobre um candidato – no segundo turno das eleições presidenciais, o TSE convidou representantes das campanhas de Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) para uma reunião sobre o tema.

Aviv, que é bolsista do Tow Center para Jornalismo Digital da renomada Universidade Columbia, se dedica a estudar processos de falseamento da realidade que podem levar as sociedades contemporâneas a um verdadeiro “Infocalipse”, termo cunhado por ele. São vídeos que manipulam a voz real de um político dizendo algo que ele jamais pronunciou; robôs que enviam milhares de emails para um político a fim de pressionar pela aprovação de uma lei, dando a impressão de que há apoio popular; algoritmos de aprendizado de inteligência artificial para criar vídeos em que a cabeça de qualquer pessoa é interposta sobre um corpo – pode ser a de um político inserida num filme pornô ou em uma manifestação de black blocs. Tudo isso com uma aparência realista que pode ser tomada como realidade por qualquer pessoa.

O resultado, diz Ovadya, é que não só a democracia está em jogo; a capacidade das pessoas de reagir a tantas mentiras bem-feitas também pode chegar a quase zero. Seria o efeito da “apatia” – os cidadãos deixariam apenas de tentar entender o que é real e o que é inventado.

Pergunta. Você acha que há diferença na percepção e no impacto das deep fakes em sociedades mais e menos digitalizadas?

Resposta.  Sociedades menos alfabetizadas [digitalmente] e aquelas com culturas com instituições midiáticas mais fracas provavelmente sofrerão mais impacto, já que vídeo e áudio manipulados não poderão ser neutralizados por outras formas de mídia.

P. Qual é o tamanho real da ameaça das fake news?

R. Eu acho que, quando estamos falamos de fake news, precisamos distinguir entre várias coisas diferentes. Uma delas é a habilidade de acusar de fake newsqualquer um que diga algo de que você não gosta. Esse é um problema. Há, também, o problema de pessoas dizendo coisas falsas com a finalidade de impulsionar uma agenda específica ou de simplesmente ganhar muito dinheiro.

P. Você acha que elas foram decisivas nas eleições [de 2016] dos Estados Unidos?

R. É muito, muito difícil mensurar essas coisas. Você definitivamente pode dizer que houve uma redução na confiança em veículos de notícia que estavam verdadeiramente fazendo a cobertura [das eleições] como resultado de acusações de não estarem de fato cobrindo [os fatos]. Pesquisas mostraram que houve uma redução na confiança durante e especialmente após as eleições.

Se você estiver falando muito precisamente sobre fake news, como matérias explicitamente falsas, inteiramente falsas, que estejam circulando, isso é comparativamente menor. Mas, se você estiver falando da extensão de conteúdos extremamente enganosos, hiperpartidários, tanto da esquerda quanto da direita… Isso separou as pessoas mais ainda e polarizou todo o campo de uma maneira que desestabilizou todo o campo? Essas são as coisas das quais você pode falar. Havia histórias que talvez fossem baseadas em algumas coisas falsas, algumas coisas verdadeiras, ou algumas coisas fora de contexto, mas não houve nenhum estudo de grande escala sobre isso.

É a criação de realidades alternativas que são meio possíveis, mas não verdadeiramente reais, criando aquela impressão de realidade. Há provavelmente mais prevalência disso.

P. Há muitos pedidos para que se investiguem sites produtores de fake news, e muitos legisladores apresentaram projetos de lei que criam o crime para a produção de fake news. Qual sua opinião sobre isso?

R. Seria muito difícil criar até mesmo o aparato legal que faria isso sem encontrar alguns problemas. Provavelmente causaria mais dano do que bem. Acho que você pode, em vez disso, legislar sobre outras coisas. Por exemplo, se alguém estiver criando várias e várias contas falsas, talvez haja um jeito de dizer que isso é como criar identidades falsas.

P. Queria que você, por favor, explicasse qual seu conceito de Infocalipse.

R. A ideia geral é que você não consegue manter um governo funcional, uma sociedade ou uma civilização funcionais, se você não tiver informação boa o suficiente. Você pode pensar na ideia como se, à medida que a qualidade das informações num geral diminui, a inteligência de todos os membros da sociedade e de todas as diferentes organizações que a tornam funcional, no geral, diminui, e, se você vai muito fundo nisso, sua sociedade basicamente desmorona. Esse é o conceito geral, e a ideia é evitar isso.

P. Você acha que isso vai ser mais ameaçador quando houver tecnologias que possam, por exemplo, fazer um vídeo de pessoas, como presidentes, dizendo coisas que na realidade elas nunca disseram?

R. Acho que o ponto é realmente ficar de olho na fronteira, ou no ponto-limite, e há inúmeros modos por meio dos quais chegaríamos nele. Um deles é essa nova tecnologia de falsificação de áudio e de vídeo, que felizmente não é prevalente agora, mas é muito importante que estejamos preparados para ela.

P. Você acha que será prevalente?

R. Acho que a exata linha do tempo não é clara, mas, você sabe, para os próximos anos parece bem provável que vire um grande problema.

P. Você fala também sobre polity simulation (ou simulação de política). Pode explicar o que é isso?

R. Num nível mais alto, é criar a impressão de que muita gente se importa com algo com a finalidade de impulsionar uma agenda. A versão simplificada disso é a manipulação do que é tendência no Twitter e no Facebook. Você pode mudar as tendências criando vários bots ou simplesmente colocando várias pessoas para, de uma vez só, fazer uma coisa, e aí faz parecer que se trata de um tema muito importante, muito embora ninguém saiba ou se importe com aquilo. Se você tem vídeo ou áudio, você pode ter todas essas ligações falsas para políticos: “Ah, você precisa fazer essas mudanças nessa coisa para tal político”. Então há níveis diferentes de como você pode em termos de ser capaz de mudar o que as pessoas acreditam que todos se importam, formando meio que uma população.

P. Qual é a sua percepção da atual e da futura influência da polity simulation? Para você, isso tem o potencial de subverter a democracia em outro nível – não durante as eleições, mas no cotidiano, pressionando políticos durante seus mandatos ou forjando afrontas públicas sobre certas questões?

R. Exatamente. A simulação de política ou os “atores sintéticos” podem impactar continuamente a democracia – ambos pela influência nas prioridades e atenções políticas e pelo impacto no “tribunal da opinião pública”. Aconteceram significativas tentativas, tanto de atores domésticos quanto internacionais, de impactar os EUA através de contas não autenticadas, e a automatização delas é cada vez mais provável no decorrer do tempo.

P. Também há algumas pesquisas sobre tecnologias em desenvolvimento agora que, no futuro, poderão reproduzir a voz de um familiar para que possam ser usadas para aplicar golpes.

R. Até onde eu sei, isso ainda não foi criado, mas está bem próximo de ser. E é perigoso, é algo muito difícil de lidar agora.

P. Então, duas coisas: a primeira é, se isso virar uma tendência majoritária, você mencionou que pode haver algo chamado “apatia à realidade”. Você pode explicar melhor o que é isso?

Até certo ponto, nós já temos isso. Temos algo como essa apatia à realidade em ambientes em que há muito pouca confiança, e [em que], se você falar com alguém, eles ficam como que dizendo “eu nem sei o que é real, eu desisto, isso é muito complicado, vou assistir a algum programa na TV”. Acho que já vimos muito disso. E se você não pode acreditar no que você vê com seus olhos nem no que você lê, isso faz com que sua habilidade ou sua vontade de se importar simplesmente vá abaixo.

A minha aposta é que um dos problemas da confiança pública é que você já tem várias pessoas simplesmente desistindo. Eu vejo duas opções quando você vai muito longe: se você tem essa apatia à realidade, e há gráficos de realidade em que todo mundo está em seu próprio mundinho, meio que em uma bolha de filtragem, você vê qualquer coisa de outras “galeras” e as acha horríveis e não confia em nada que elas digam. É quase como se houvesse uma parede entre você e outros bullies, e acho que você acaba com um ou outro, porque é muito trabalhoso classificar todas as mentiras para encontrar alguma verdade.

P. Acho que, se você olhar para a história da humanidade, isso na verdade aconteceu em vários momentos, certo? Houve as guerras mundiais…

R. Exatamente, mas em zonas de conflito, especialmente em ambientes fracos e extremamente autoritários, isso não é um fenômeno novo. Mas é um fenômeno novo em uma democracia saudável. Então, ou você só acredita no que quer, ou você nem quer tentar descobrir em que acreditar, aí você não tem como ter democracia, porque você não pode votar, você não pode tomar uma decisão como governo.

P. Se de fato houver o que você chama de Infocalipse, em vez de uma completa apatia, não seria mais provável que as pessoas simplesmente desconfiassem de qualquer coisa proveniente das mídias sociais e se voltassem para outros meios de notícia, como TV ou rádio?

R. Primeiramente, me deixe esclarecer: a ideia do Infocalipse é de uma fronteira. A civilização e a democracia dependem de pessoas tomando decisões “boas o suficiente” – desde em quem votar e como se manter saudável até quando deve haver a necessidade de uma guerra. Essas decisões dependem do nosso conhecimento do mundo e da nossa habilidade de distinguir fato de ficção. À medida que nosso ecossistema de informação se deteriora, essas decisões também se deterioram, como se todo mundo estivesse embriagado. Dá para pensar no Infocalipse como estar tão bêbado que nem a democracia nem a civilização conseguem funcionar.

Em teoria, isso pode significar um retorno da população à TV e ao rádio tradicionais, mas na verdade esses meios estão competindo com as mídias sociais. Se o conteúdo das plataformas online for mais envolvente, mais surpreendente e mais emocional, as pessoas se voltarão para elas. Isso significa que as mídias tradicionais precisarão competir e, com isso, poderão piorar muito também. Além disso, muitas dessas fontes online falarão para você não confiar nos meios tradicionais, caso sejam de oposição. Por fim, nada disso ajuda se sua TV ou seu rádio também estejam sob controle dos atores da desinformação, como tem se tornado cada vez mais frequente em alguns países.

P. O que você acha que pode ser feito para prevenir esse mundo catastrófico em que as pessoas não acreditam que haja uma verdade e só acreditam no que seu próprio grupo diz?

R. Então, o mais importante é realmente encontrar formas de recompensar aqueles que o ajudam a decifrar o verdadeiro do falso, de recompensar basicamente – e aqui é onde acho que concordamos que as plataformas devem ajudar.

Elas não criaram, mas amplificaram esse mundo em que é mais provável que você receba atenção se o que você está dizendo é mais extremo, e nós precisamos nos direcionar a um mundo em que seja mais provável ser escutado se o que você está dizendo é bem pensado e coerente, e isso é algo muito difícil de fazer. Há inúmeros modos de impulsionar as coisas que recompensam em termos de interações nas plataformas, ou o que faz com que algumas coisas apareçam mais no feed em comparação a outras, mas também há coisas que podemos fazer fora delas, até mesmo para prevenir [que] a próxima onda de desinformação, essa de vídeo e áudio, fique muito ruim muito rápido.

P. Como o quê?

R. Algo válido é poder verificar se uma imagem realmente veio de um lugar em específico, se um vídeo realmente veio de tempo e lugar específicos. Há tecnologia que podemos usar para isso, mas se requer potencialmente criar muitas novas infraestruturas e basicamente modificar a maneira como telefones funcionam, adicionando potencialmente chips a telefones se você realmente quiser provar que [aquilo] é real. Há meios através dos quais podemos mudar o jeito ou melhorar a reflexão sobre a pesquisa em si, que é criando essa tecnologia para retardar os impactos negativos.

P. Você não acredita em regulação das empresas de tecnologia e redes sociais como Google, Facebook e Twitter? Se você olha para as outras indústrias, por exemplo, a automobilística, ela também está em todos os lugares do mundo e se tem regulações específicas em cada país, e há países em que carros podem poluir mais e outros em que podem poluir menos.

R. Acho que o desafio aqui é diferente. O desafio aqui é, se você faz muito, a democracia morre, e, se você faz pouco, a democracia morre. Se você quer regulamentar carros, a democracia continua bem. Com isso dito, acho que ainda precisamos de regulamentação. Eu só acho que é muito complicado acertar, e não houve propostas muito atraentes sobre desinformação e sua regulamentação que se equilibrem bem. Há coisas específicas que são muito válidas sobre transparência, é preciso haver regulamentação, mas elas não abordam diretamente a desinformação.

P. Você quer dizer transparência sobre algoritmos, número de usuários etc.?

R. Sim, ou até mesmo ter uma auditoria de terceiros ou algum mecanismo de auditoria, quando você tem uma organização de certo tamanho, para se certificar de que estão seguindo certas práticas.

P. Quais são as novas tecnologias de deep fake que poderão ser utilizadas nas eleições deste ano no Estados Unidos?

R. Essas tecnologias transpassam fronteiras e ainda não são fáceis de utilizar ou de serem transformadas em armas, por isso esperamos que não sejam implementadas a tempo para as eleições.


Pedro Cavalcanti: Boatos, rumores e 'fake news'

Um passeio pela internet revela que os australianos não existem, eles são robôs

No início da década de 60 do século passado surgiu um boato sinistro sobre um falso funcionário da Companhia de Gás de Moscou. O assassino da MosGaz, como era conhecido, tocava a campainha de apartamentos onde havia crianças sozinhas, declarava que vinha examinar um vazamento, entrava e assassinava.

A notícia tinha um fundo de verdade – houve mesmo um assassino do gás –, mas suas ações foram restritas a alguns casos, que não saíram em jornal algum, mesmo porque a imprensa soviética não publicava notícias policiais. Esse silêncio da imprensa não impediu que o terror se multiplicasse, boca a boca, por gerações de mães e crianças, tornando-se o que se chamava de lenda urbana, antecessora das fake news disseminadas pela internet.

Há quem acredite que a ampliação do boato da MosGaz se devesse a condições específicas da União Soviética. Como não se publicavam notícias policiais, não seria possível desmenti-las sem mencioná-las. Ficou assim demonstrado, pelo menos, que ignorar o assunto não é uma boa medida. Sem desmentidos, o boato se reproduz como uma célula cancerosa. Por essa razão não há quem duvide da utilidade dos serviços que se multiplicam atualmente para verificar a eventual veracidade das notícias.

A questão, no entanto, é complexa e os próprios desmentidos apresentam riscos. O primeiro dos quais é serem ineficazes. Um dos boatos mais vigorosos e incontroláveis surgiu na mesma época na cidade francesa de Orléans. Em certas lojas de moda, o assoalho das cabines de provas apresentava um alçapão destinado a capturar mocinhas. Quando o alçapão se abria, elas caíam num quarto secreto onde eram drogadas para acordarem mais tarde algemadas no porão de um navio com destino a um bordel de Buenos Aires.

Quem negasse a relação entre as lojas e o tráfico de brancas, como fizeram de imediato policiais e jornalistas, era imediatamente acusado de se deixar subornar pela máfia dos lojistas. Um livro escrito por Edgar Morin chamava a atenção para o fato de o boato atribuir as misteriosas lojas a comerciantes judeus, o que não é de estranhar, pois como se sabe desde a Idade Média judeus são vítimas dos piores rumores, como, por exemplo, de roubar recém-nascidos para sacrificar em suas missas negras.

É óbvio que os judeus não são as únicas vítimas dos rumores. Um dos mais curiosos e persistentes teve início também na França, na mesma época, com um sujeito acometido por uma dor de dentes. O dentista que o atendeu revelou que o problema era causado por um ossinho de rato que ficara preso entre dois dentes. “É o quarto caso neste mês”, comentara o dentista. Todos frequentavam restaurantes chineses.

No Brasil tivemos um caso especialmente lamentável. Em março de 1994, o casal Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, donos da Escola Base, destinada à educação infantil, foram acusados de pedofilia num concerto de mentiras que envolveu policiais, membros do Ministério Público e vários jornais. Antes que o casal fosse inteiramente inocentado, a Escola Base já havia sido depredada por vândalos.

Um dos boatos recorrentes na periferia das grandes cidades brasileiras dá conta de uma Kombi pilotada por um palhaço, que atrai crianças para roubar seus rins. Dias mais tarde os cadáveres são encontrados em terrenos baldios com um corte por onde foram retirados os órgãos. A impossibilidade médica de iniciar um transplante com um doador escolhido ao acaso por um palhaço no interior de uma Kombi não impede a persistência da história de terror.

Os exemplos apontados acima bastam para que se note a dificuldade da tarefa da grande imprensa na sua luta contra as fake news. Para desfazer uma fake news é preciso mencioná-la e se a correção não for feita com muita habilidade corre-se o risco de tentar apagar o fogo com gasolina. Leitores de fake news costumam sacar palavras isoladas, à procura de qualquer coisa que venha confirmar opiniões preconcebidas. Se algo parece contrariá-los, buscam desconsiderar a argumentação afirmando que “não há fumaça sem fogo” ou que o desmentido foi escrito por alguém vendido a grupos interessados.

Esse contra-argumento tem sido muito usado em anúncios de drogas miraculosas à base de plantas capazes de fazer qualquer pessoa perder oito quilos em duas semanas, sem dieta. Afirmam que a fórmula permanece em segredo pela pressão dos médicos, temerosos da concorrência. De maneira análoga, quem desmente o boato de que vacina tríplice provoca aumento do número de casos de autismo se vê acusado de cúmplice dos laboratórios multinacionais. Há casos extremos em que um desmentido mal-intencionado serve para criar um boato do nada. Conta-se que um jornalista de um tabloide de escândalos inglês telefonou para a esposa de um político influente para perguntar se seu marido era homossexual. Ante a negativa veemente, publicou a manchete: Fulana de tal, indignada: ‘Meu marido não é homossexual!’.

Na impossibilidade de desmentir individualmente todas as fake news, procura-se alertar o público para checar a verossimilhança e a origem das notícias.
Um passeio pela internet revela, por exemplo, que os australianos não existem realmente: são robôs. A descoberta foi divulgada por uma conferência organizada em Londres pela International Flat Earth Society, fundada em 1956, que como o nome indica reúne pessoas que acreditam que a Terra é plana.

Casos como esses são fáceis de descartar, mas há também notícias com todas as características de fake news que se revelam verdadeiras. As primeiras histórias sobre famílias judias, homens, mulheres e crianças, levadas para câmaras de gás em campos de extermínio foram recebidas por muitas pessoas cultas e bem-intencionada através do mundo com o descrédito merecido pela propaganda de guerra. Na vanguarda das artes e das ciências, a Alemanha de Goethe nunca poderia permitir bestialidades dessa ordem. No entanto, era tudo verdade.

*Pedro Cavalcanti é jornalista e escritor.