Fake News

Portal do PPS: Redes e mídias serão fundamentais na campanha para atrair eleitores, afirma especialista

Bruno Hoffmann diz que candidato precisa de estratégia nas redes sociais

As redes e as mídias sociais estão cada vez mais presentes no dia a dia dos brasileiros. A ferramenta terá um papel primordial nas eleições deste ano e será valiosa para que os candidatos possam atingir o máximo possível do eleitorado e expor as suas ideias e propostas. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) publicados no início do ano, o País tem aproximadamente 116 milhões de pessoas conectadas na internet, o que corresponde 64,7% da população brasileira.

Com o objetivo de contribuir com os candidatos do partido na utilização das redes sociais, o Portal do PPS entrevistou o presidente do CAMP (Clube Associativo de Profissionais do Marketing Político), Bruno Hoffmann, que é um dos principais especialistas em marketing político e redes no País. A entidade que ele representa é considerada a primeira iniciativa bem-sucedida de reunir profissionais que atuam em campanhas eleitorais e com comunicação política.

“Com alguns candidatos que tem tempo de TV maior que outros, certos candidatos terão, por necessidade, de se apoiar quase que completamente na internet”. diz Hoffmann. Na entrevista a seguir, o especialista também dá dicas da melhor forma para evitar e combater a fake news neste pleito e fala como os candidatos podem usar as redes sociais para alcançar o voto dos eleitores nas eleições de outubro.

Portal do PPS – Qual será a importância das redes sociais nestas eleições?
Bruno Hoffmann – As redes sociais estão crescendo a todo momento. Parece que todo ano é o ano das redes sociais. Elas aumentam [de importância] a cada ano. Cada vez mais pessoas tem acesso. A importância neste momento é que é mais uma ferramenta utilizada no processo eleitoral. Uma ferramenta geral de comunicação muito importante neste sentido. Claro que como qualquer outro canal depende muito da imagem do candidato. Por mais talentosa que a equipe de comunicação digital seja, a imagem do candidato é importante. Fica mais fácil você se comunicar nestes meios da maneira como as regras foram estipuladas [pela Justiça Eleitoral], com estruturas de campanha extremamente enxutas. Com alguns candidatos que tem tempo de TV maior que outros, certos candidatos terão, por necessidade, de se apoiar quase que completamente na internet.
Não tem como deixar de exemplificar com o caso do [Jair] Bolsonaro. Ele terá sete segundos e usará a TV justamente para chamar as pessoas para a internet e para os canais que ele possa se comunicar de forma mais detalhada. Bolsonaro é um cara que já tem uma base importante [nas redes sociais]. Tem feito esse trabalho de comunicação com redes sociais e continuará sendo muito forte nas redes. Claro que num cenário em que ele não terá [tempo] TV vai passar a receber muitos ataques de outros candidatos. Não necessariamente ataques, mas comparações e histórias que o público ainda não saiba. Isso pode diminuir o apoio que ele tem. Mas dentro da sua pergunta, as redes sociais, principalmente o Whatsapp, que é um mensageiro eletrônico – o que não deixa de ser uma rede social -, serão mais fáceis de compartilhar e terão um alcance fortíssimo. Com certeza as redes [sociais] serão mais importantes do que no passado.

As rede sociais serão mais importantes que os veículos de comunicação tradicionais?
No geral depende do candidato, mas nesta eleição podemos dizer que sim, principalmente por conta do Whatsapp. Também pelo fato de os candidatos poderem fazer impulsionamento nas redes sociais. Qualquer pessoa que estiver acessando as redes será impactada por campanhas eleitorais que estarão tentando fazer essa segmentação para as pessoas, especialmente os eleitores mais jovens [na faixa etária dos 16 anos]. Apesar da sociedade demonstrar descredito com a politica, ela está interessada em votar e quer participar do processo. Pouquíssimos dessa geração de jovens veem TV. São muito ligados nas redes sociais e nos conteúdos que são gerados a partir delas, por exemplo.
Tivemos o debate da Band e houve um número pequeno de pessoas que assistiram, mas na verdade é um número considerável [se levarmos em conta os 147,3 milhões de eleitores]. Agora a repercussão no dia seguinte [ao debate] nas redes sociais é o que mais importa. Se a campanha tem uma estrutura, ela faz vídeos dos melhores momentos. Essa capacidade de você buscar essa geração de conteúdos é que o vai garantir uma visualização enorme e vai ter aquele sentimento: ‘que ótimo, meu candidato ganhou o debate porque deu essa resposta fantástica’. As pessoas não vão parar para ver até quase uma hora da manhã um debate porque a maioria dos trabalhadores não tem capacidade de dar essa audiência. Com certeza as redes sociais serão fortíssimas netse sentido. Claro que a TV, agora no final do mês [com o início do horário eleitoral na TV e rádio], também terá um impacto fortíssimo com a vinculação das inserções [da propaganda eleitoral]. A audiência aumenta bastante, mas não tenha duvida que as redes sociais serão mais importantes nas eleições deste ano.

Qual a preocupação com a fakenews? Ela pode influenciar na decisão de escolha?
De certa forma a fake news foi um termo criado recentemente, mas sabemos muito bem que a boataria sempre existiu na comunicação como um todo e na política também. Acho importantíssimo a valorização e a importância que o TSE [Tribunal Superior Eleitoral] está dando para esse tema. O fato de você ter um eleitorado que pode ter uma informação falsa, e com base nisso influenciar o seu voto, enfraquece a democracia. O CAMP [Clube Associativo de Profissionais do Marketing Político] fez um termo de acordo de cooperação com o TSE para combater as fake news. A noticia falsa por si só nós comprometemos não criar. É importante colocar para a população que não é apenas no processo eleitoral que isso a notícia falsa ocorre. Não, todo dia tem alguém que acredita que amanhã terão dois sóis ou duas luas. Alguma historinha que foi montada, que as pessoas acreditam e acabam repassando. Vai muito da questão da educação.
Entidades ligadas à liberdade de expressão tem provocado esse debate, com ajuda do próprio Ministério da Educação, inclusive tentando trazer para a escola como as pessoas podem estar mais preparadas para checarem e aprenderem a lidar com as noticias. Claro que as fake news terão um poder maior sobre a população mais carente que não tem tido a oportunidade de ser instruída para checar determinadas fontes e noticias. Por mais que se tente evitar, certamente teremos empresas trabalhando com fake news e, possivelmente, mais pessoas serão presas neste processo. Um processo eleitoral é extenso e com muitos candidatos. No final da campanha, quando se imagina que é preciso ganhar cinco pontos contra o adversário, acaba se tomando ações mais irresponsáveis e e aí que o erro acontece. Acredito que muitos candidatos e equipes terão problemas sérios com isso.

Qual o melhor caminho para evitar e combater a fake news nas redes sociais?
Do ponto de vista do candidato temos visto que alguns já utilizam algumas estratégias que explicam os boatos que circulam. Do ponto de vista institucional isso é importante. As campanhas que tem monitoramento e essa inteligência podem determinar quando uma notícia está ganhando espaço e pode usar a estratégia para combatê-la. Não só no site, mas em debates ou até mesmo abordar isso no tempo de TV e radio quando se determinar que a tal noticia ganhou escala muito grande. É importante que o candidato tenha esse monitoramento de inteligência para desconstruir mentiras que possam ocorrer.
As pessoas precisam estar mais instruídas em duvidarem de títulos alarmantes, se as datas são recentes e quando são republicações de notícias antigas. Muitos sites possuem um endereço parecido com sites reais e fazem as pessoas pensarem que estão num veiculo de renome. É preciso usar o Google nestas horas e questionar se aquilo realmente aconteceu. Existem sites específicos que combatem os boatos. Fora isso, nós veremos durante a campanha os grande portais alertando para noticias falsas. Então, o melhor caminho é que as pessoas chequem a veracidade das informações.

Que dica você dá para os candidatos no uso das redes sociais?
Aquele que possui orçamento não terá como fugir do impulsionamento. Também é importante que isso seja feito de forma fundamentada. Um candidato pode delimitar não só o estado, mas dados como faixa etária, etc. Buscar uma linha estratégica mais aproximada do seu eleitor de forma segmentada. É tentar fazer isso dentro de sua estrutura de campanha, com a ajuda de voluntários, uma estrutura de pirâmide e de mensagens na qual ele consiga atingir um número bastante alto de pessoas. Divulgar um lugar onde as pessoas possam se registrar e receber notícias e informações. E, claro, a questão do conteúdo que é fundamental. Tudo depende do conteúdo. Não adianta ter uma Ferrari se a pessoa não sabem pilotar. Quando pensar no conteúdo é preciso pensar no que fez e falar do que fez. As pessoas não votam por gratidão, mas pelo que o candidato está contribuindo, focando bastante nas propostas. Mostrar o que mais vai poder fazer e se preocupar com um conteúdo de qualidade. A imagem é tudo e é necessário investir num fotografo profissional e buscar, no conteúdo, aquilo que é importante para as pessoas. Tentar traduzir os dados em coisas efetivas. Coisas que as pessoas possam entender e traduzir melhor.


Luiz Fux: Contra notícia falsa, mais jornalismo

O TSE entende que os jornalistas são fundamentais no processo eleitoral: dão ao eleitor informações vitais para que o voto seja exercido com consciência

Na última terça-feira, dez partidos políticos firmaram com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) um acordo de colaboração para manter o ambiente eleitoral imune à disseminação de notícias falsas. Outras legendas devem seguir o mesmo caminho. Ciente de que as fake news podem “distorcer a liberdade do voto e a formação de escolhas conscientes”, o Parlamento brasileiro comprometeu-se publicamente a agir contra elas.

Mas a luta contra a desinformação também tem que contar com o apoio da imprensa — tanto a que acompanha diuturnamente a movimentação de atores políticos, quanto a que se dedica à checagem de fatos e declarações de autoridades, prática conhecida como factchecking. O jornalismo político-eleitoral precisa ser livre para apontar as imprecisões do discurso público e investigar condutas questionáveis. No período de campanha, ainda mais.

Nas últimas semanas, vieram à tona relatos de ataques contra jornalistas especializados na cobertura política — nas ruas e nas redes sociais. Alguns profissionais chegaram, inclusive, a sofrer agressões físicas, difamações e ameaças. O TSE repudia esses episódios e se posiciona ao lado dos jornalistas.

A imprensa é vital a qualquer democracia. Tem a nobre função, entre outras tantas, de qualificar o debate público, indicando dados corretos e informações contextualizadas e precisas. Investigar e expor inverdades, com base em apurações isentas e fontes de dados legítimas, não pode resultar em hostilidade.

Levantamento feito pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostra que, em 2018, foram registrados 105 casos de violações contra jornalistas no país. Um ódio que se espalhou também no ambiente virtual. Em 10 de maio, o Facebook inaugurou no Brasil seu projeto de verificação de notícias, algo que deveria ser bem-visto por aqueles que lutam contra a desinformação. É grave o relato de que profissionais incumbidos de verificar notícias falsas nessa plataforma tenham sido expostos e ameaçados antes mesmo de começarem a desmentir conteúdos maliciosamente distorcidos.

Países com democracias sólidas e textos constitucionais robustos conseguem garantir a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, um jornalismo político-eleitoral combativo, crítico e investigativo. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais de 40 plataformas de checagem de dados trabalharam durante as eleições de 2016. Outras cinco participam hoje da iniciativa de verificação do Facebook. Não houve registros de agressões a seus jornalistas.

O jornalismo de qualidade pode incomodar, mas sua existência deve ser garantida. O TSE entende que os jornalistas são fundamentais no processo eleitoral: dão ao eleitor informações vitais para que o voto seja exercido com consciência. Por isso, defende os profissionais que lutam para promover a participação ativa dos cidadãos no processo democrático e repele qualquer tentativa de silenciá-los.

Luiz Fux é ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)


Eugênio Bucci: 'Fake news', eleições e democracia

O vírus das notícias fraudulentas prepara o caldo de cultura do autoritarismo

À medida que se aproximam as eleições, as fake news voltam a preocupar os observadores da cena política. Quanto aos políticos, que são os protagonistas da mesma cena, apenas procuram se valer do pretexto das fake news para abrir novas frentes de censura contra a imprensa. Tramitaram ou tramitam por aí projetos abilolados e inacreditáveis. Um desses pretendeu mandar para a cadeia autores de informações “prejudicialmente incompletas”. Trata-se de mais um delírio censório desse pessoal.

Que história é essa de incompletude prejudicial? Por acaso existiria a “completude não prejudicial”? Algum dia, um único dia que seja, alguma edição de jornal terá ido às ruas sem uma incompletude sequer? Não lhe terá faltado uma correção gramatical, um contraponto numa reportagem política ou o endereço de um restaurante? E se uma legislação desse tipo fosse adotada, quem seria incumbido de arbitrar e determinar o grau de prejuízo e o grau de incompletude numa informação “prejudicialmente incompleta”?

Bastam dez segundos de exame de uma ideia dessas para concluir que ela não tem objetivo nenhum de combater as tais fake news; sua meta real é lançar novas intimidações contra os jornalistas que reportam fatos inconvenientes aos políticos. Fiquemos longe disso, por favor. As fake news pra valer, que são elaboradas por grupos clandestinos e mal-intencionados com endereços incertos e não sabidos, que podem ficar nos confins da Macedônia ou nos porões de Moscou, não seriam alcançadas por legislações desse tipo.

Tenhamos bem claras as diferenças. Notícias críticas, mesmo que ocasionalmente incompletas (um jornal diário vai completando suas informações de um dia para o outro, a edição do dia seguinte é sempre um complemento da anterior), não ameaçam em nada a normalidade das eleições. Ao contrário, sem a imprensa vigilante a democracia se enfraquece. Quem é prejudicial à democracia, completamente prejudicial, são as mentalidades censórias. As fake news também são completamente prejudiciais, por certo, mas alguns dos remédios que vêm sendo prescritos a pretexto de combatê-las conseguem ser ainda mais completamente prejudiciais.

Isto posto, vale a pena olhar com menos oportunismo para as relações danosas entre fake news, eleições e cultura democrática. As notícias fraudulentas (na tradução precisa recomendada pelo professor e jornalistas Carlos Eduardo Lins da Silva) são maléficas não somente por mesclarem falsidades e verdades. O problema maior das notícias fraudulentas não está nem na mentira. Está, antes, no lugar de onde elas provêm e no seu modo de produção.

Tratemos primeiro do lugar de origem. As fake news são produzidas em espaços que não guardam relações de pertencimento com o ambiente democrático ou com os valores da democracia. Uma redação minimamente profissional, quando erra, apressa-se a corrigir (se não fizer isso, perderá credibilidade). Já um centro gerador de notícias fraudulentas, que não tem compromisso com os fatos e age com a finalidade de lesar os direitos do público, pode muito bem insistir no erro. Esse tipo de fraude constituiu uma ação proposital para sabotar os processos decisórios das sociedades democráticas e para danificar os circuitos pelos quais a vontade dos cidadãos se conforma e se projeta. Inoculado dolosamente nos organismos de sociedades democráticas (aquelas que dependem das escolhas das maiorias e da garantia dos direitos das minorias para traçar os próprios rumos), o vírus desmoraliza e ridiculariza nada menos que os ritos da democracia. Quanto mais contaminadas, mais essas sociedades ficam vulneráveis a apelos autoritários. Dessa forma, as notícias fraudulentas preparam o caldo de cultura do autoritarismo. Mais do que ajudar um ou outro candidato a vencer uma ou outra eleição, desagregam a cultura democrática e fomentam o encanto dos discursos de prepotência.

Também por isso, os melhores antídotos contra esses novos vírus digitais são aqueles que fortalecem o debate democrático, não os que levam a sociedade a buscar socorro em tutelas estatais. Leis mais ou menos censórias apenas infantilizam os cidadãos (que acabam postos no papel de crianças que precisam de pajem). Ou a democracia inventa mecanismos livres para desmontar as fraudes que pipocam nas redes sociais (por meio da checagem promovida pelas redações profissionais em rede com associações colaborativas) ou as notícias fraudulentas terão vencido a queda de braço.

Tratemos, por fim, do modo de produção dessas fraudes. Todos sabem (e não se cansam de repetir) que a mentira sempre existiu na política. A questão, agora, é que a mentira política – que antes se viabilizava como um esforço cuja compensação se limitava à eventual conquista do poder – se tornou, também, um negócio economicamente lucrativo. Esse negócio – atenção para isso – independe dos interesses partidários de seus agentes. A lógica da indústria do entretenimento instalada na internet, que remunera os criadores de “conteúdo” pelo número de “seguidores”, paga bem pelas fraudes que arrebatam as multidões.

A mesma lógica, por sua vez, está relacionada a um mercado monopolizado em escala global por megacorporações como Facebook, Twitter e Google. Não por acaso, os monopólios globais, bem como esse modo de produção de “conteúdos” mentirosos (o “modelo de negócio” das notícias fraudulentas) são incompatíveis com a ordem democrática.

Num tempo em que os valores da democracia andam em baixa, em que a popularidade de populistas segue em ascensão, os ventos parecem favorecer os forjadores de fraudes noticiosas, assim como vêm favorecendo os profetas das mágicas autoritárias. Nesta hora, só os valores da cultura democrática e o exercício da liberdade podem proteger a democracia. O resto é mentira.

* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP

 


El País: Dentro da fábrica russa de mentiras

Centenas de pessoas trabalham desde 2014 em um conjunto de escritórios de São Petersburgo. Sua missão é espalhar boatos pela comunicação na Internet, favoráveis ao Kremlin

Por Pilar Bonet, do El País

A guerra e o “fascismo” na Ucrânia, a “decadência” da Europa, os problemas financeiros da Grécia; o presidente dos EUA, Barack Obama, e a chanceler alemã Angela Merkel. Todos esses assuntos eram alvo dos comentários críticos que a “fábrica de mentiras” de São Petersburgo gerava quando Marat Mindiarov, de 43 anos, passou por aquela engrenagem, de 15 e dezembro de 2014 a 15 de fevereiro de 2015.

Em um café de São Petersburgo Mindiarov contou nessa semana sua experiência ao EL PAÍS. Poucos dias antes, o departamento de Justiça dos EUA publicou o relatório do promotor especial Robert Mueller sobre as supostas ingerências russas nos processos políticos norte-americanos de 2014 até hoje, incluindo as eleições de 2016.

O relatório Mueller denuncia a Agência de Investigação da Internet (AII) pela criação e uso de contas com identidades falsas e de fora do país para comprar anúncios e pagar serviços nos EUA, mediante recursos técnicos localizados naquele país e também de utilizar cidadãos norte-americanos que não sabiam de sua participação na trama criminosa arquitetada na rua Savuchkina número 55, em São Petersburgo.

O principal envolvido na lista de 13 pessoas do promotor Mueller é Yevgeny Prigozhin, fundador de um poderoso império de catering graças às suas boas relações com a classe dirigente russa. Prigozhin é acusado de financiar através de várias empresas as ingerências na política norte-americana e nas eleições presidenciais de 2016.

Mindiarov, que trabalha atualmente como carteiro, diz estar muito satisfeito com o relatório de Mueller e acha que após sua publicação “nada será como antes”. Na chamada “fábrica de mentiras”, nosso interlocutor foi somente uma pequena peça em uma máquina de propaganda que, de acordo com investigações do serviço RBK, evoluiu e se diversificou com o tempo até chegar a criar um verdadeiro império da informação no qual estão pelo menos 16 veículos de comunicação de orientação “patriótica”. Esses veículos, segundo o RBK, se aglutinam em torno da chamada Agência Federal de Notícias e ocupam posições de liderança nos buscadores russos.

Em seu formato original, puramente propagandístico, a fábrica é parte de uma reação às manifestações de protestos contra as irregularidades nas eleições parlamentares e presidenciais de 2011 e 2012. “O Kremlin percebeu à época que havia abandonado a Internet nas mãos da oposição e dos setores liberais pró-ocidentais e começou a sanar esse problema”, diz um diretor da área da comunicação muito bem informado, que prefere não ser citado. A fonte afirma desconhecer qual é o mecanismo de ligação entre a “fábrica de mentiras” e as estruturas estatais russas e lembra do pouco interesse demonstrado por Putinem relação à Internet no passado.

Mindiarov chegou à “fábrica de mentiras” quando estava prestes a ficar desempregado, pois o hotel em que trabalhava iria fechar. Um dos clientes escrevia comentários para o estabelecimento da rua Savuchkina e o encorajou a tentar a sorte. Após um exame de fluidez verbal e ortografia e uma pesquisa sobre sua orientação ideológica, o colocaram para escrever textos. Trabalhava 12 horas por dia (dois dias seguidos e dois livres), por um salário que variava entre os 40.000 e 50.000 rublos (2.300 a 2.875 reais). Segundo ele, fazia parte de uma “brigada” de 20 pessoas instaladas em um escritório. Em cada um dos quatros andares do edifício existiam de oito a dez escritórios com número análogo de funcionários. De modo que, segundo Mindiarov, no local trabalhavam várias centenas de pessoas.

Seguindo as diretrizes por e-mail dos tutores, a brigada desenvolvia o assunto da vez. Obama era “um filão inesgotável”, segundo nosso interlocutor. Às vezes, “ocorriam situações absurdas”, como tirar proveito do momento em que Obama tirou o chiclete da boca em uma cerimônia oficial durante uma visita à Índia. A brigada de Mindiarov “inventou quatro ou cinco personagens” que interagiram na Rede, um deles a favor do líder norte-americano e o restante, contra. O resultado foram 135 comentários sobre a “degradação dos costumes na América”, diz. “Às vezes, os noticiários da televisão estatal reproduziam os assuntos nos quais nós trabalhávamos com a mesma ordem e orientação”, diz.

Uma empresa paramilitar

Mindiarov lembra da visita natalina à uma Igreja feita pelo presidente. “Putin era constantemente elogiado e tanto elogio se tornava chato. Era um trabalho monótono e exaustivo. Não havia condições para ser criativo”, afirma. Os comentaristas colocavam suas mentiras em páginas da Internet de províncias russas. Mindiarov diz não ter entrado em contato com outros comentaristas do escritório internacional, dirigido a uma audiência fora da Rússia. No recrutamento de pessoal para agir no Facebook, um trabalho que oferecia um salário melhor do que sua seção, não foi aceito por seu nível baixo de inglês.

Dzheijun Nasimi Ogly Aslanov, que dirigiu aquele recrutamento de funcionários para o Facebook, está agora na lista do promotor Mueller e pode ser extraditado se viajar a países com os quais Washington tem convênio de extradição. Segundo Mindiarov, Aslanov se diferenciava humanamente no grupo de “personagens indiferentes” – estudantes, pessoas que não finalizaram os estudos –, concentrados na “difusão de mentiras” nas quais só “alguns loucos” acreditavam e que proclamavam suas ideias na cozinha, quando interrompiam seu trabalho para comer.

Enquanto ingeriam o conteúdo de suas marmitas, “frequentemente brincávamos sobre como era possível que nas estruturas do “cozinheiro do Kremlin” [Prigozhin] não existia nem mesmo uma cantina”, diz. Mindiarov não assinou nenhum contrato, não tinha documentos que comprovavam sua função como colaborador da agência e recebia o salário em espécie. Uma vez foi repreendido por confundir o presidente da Ucrânia Víktor Yanukóvytch com seu sucessor, Piotr Poroshenko, e criticar o primeiro no lugar do segundo. Esperou o dia do pagamento e saiu sem se despedir.

A experiência de Mindiarov é anterior ao envolvimento da AII na campanha eleitoral norte-americana. Em uma investigação do RBK, publicada em outubro, afirma-se que a tarefa de desacreditar a imagem dos candidatos norte-americanos foi designada no começo de 2015.

Entre as estruturas ligadas a Prigozhin está a empresa paramilitar privada Wagner, agora centro de atenção pública pelas incógnitas sobre seus efetivos mortos na Síria. Essas duas instituições – a fábrica de mentiras e a Wagner – podem ser consideradas como um exemplo da tendência do Estado de praticar o outsourcing (externalização) de operações arriscadas para sua própria legitimidade, segundo a cientista política Yekaterina Schulman. Na emissora O Eco de Moscou, a especialista alertou sobre o preço de tal “deslocalização”, que pode ser traduzida como uma erosão desse mesmo Estado.

DA BANQUINHA DE CACHORRO QUENTE AO IMPÉRIO GASTRONÔMICO

Yevgeny Prigozhin, mais conhecido como “o cozinheiro do Kremlin”, começou sua carreira em Leningrado (hoje São Petersburgo) vendendo cachorros quentes, como contou em 2011 em uma entrevista ao site Gorod-812.ru.

Sem terminar seus estudos superiores como químico farmacêutico, Prigozhin fundou vários restaurantes na cidade do rio Neva. Um deles, o “Staraya Tamozhnya”, se transformou no local de encontro entre políticos russos e clientes estrangeiros. O empresário, então, passou a alimentar os participantes de eventos como as reuniões do G-8 (a reunião das maiores potências mundiais da qual a Rússia foi excluída em 2014).

Prigozhin disse ter conhecido Putin quando este foi a um de seus restaurantes acompanhado pelo primeiro-ministro japonês Isiro Mori (em 2000). Posteriormente, Putin voltou ao restaurante em companhia de George Bush, que viajou a São Petersburgo em 2006.

Após seu sucesso como restauranteur, Prigozhin empreendeu a aventura do “catering” dirigido a instituições de ensino, do funcionalismo púbico e militares. O empresário se orgulha de ter fundado a primeira fábrica de refeições pré-prontas embaladas a vácuo da Rússia, que contou com a participação de Putin na inauguração em outubro de 2010.

“Putin viu como fiz negócios desde a banquinha de cachorro quente e como não me incomodo de levar pessoalmente os pratos a pessoas importantes, quando chegam a mim como clientes”, explicou.

As empresas alimentícias de Prigozhin agem como um cartel, diz o jornalista Alexandr Gorshkov, diretor do site de informações Fontanka.ru, que cita o Comitê Antimonopólio da Rússia. “Sempre ganham todas as concorrências das quais participam e os contratos com a administração dão bilhões de rublos a eles que são gastos na manutenção das empresas militares privadas”. “A fábrica de mentiras é parte de um enorme iceberg”, afirma Gorshkov, que atribui os mais de mil artigos críticos contra o Fontanka.ru que surgiram nas redes sociais russas desde agosto às informações sobre a empresa Wagner fornecidas por sua agência.


El País: Rebelião contra as redes sociais

Manipuladoras da atenção. Veículo de notícias falsas. Oligopólios sem controle. As redes sociais tiveram seu ‘annus horribilis’ em 2017. O que fazemos com elas?

Rebelião contra as redes sociaisAmpliar foto

Sean Parker sempre foi uma pessoa polêmica. Não por acaso foi o criador do Napster, a plataforma de downloads que deu uma rasteira na indústria fonográfica nos anos noventa. Quando em 8 de novembro pediu a palavra em um ato da empresa Axios na Filadélfia para dizer que se arrependia de ter impulsionado o Facebook, jogou mais lenha na fogueira que está queimando as redes sociais em 2017, seu particular annus horribilis. No final das contas, ele foi em 2004 o primeiro presidente da plataforma comandada por Mark Zuckerberg. Explicou que para conseguir com que as pessoas permanecessem muito tempo na rede, era preciso gerar descargas de dopamina, pequenos instantes de felicidade; e que esses viriam pelas marcações de “gostei” dos amigos. “Isso explora uma vulnerabilidade da psicologia humana”, afirmou. “Os inventores disso, tanto eu, como Mark [Zuckerberg], como Kevin Systrom [Instagram] e todas essas pessoas, sabíamos. Apesar disso, o fizemos”.

Parker se declarou nesse dia opositor das redes sociais. Finalizou sua intervenção com uma frase inquietante: “Só Deus sabe o que isso está fazendo com o cérebro das crianças”.

Houve um tempo em que quem renegava essas plataformas era tachado depreciativamente de resistente à mudança, de velho. Esse tempo passou. Uma autêntica tempestade está se criando em torno do papel desempenhado pelas redes sociais em nossa sociedade. E são os grandes papas do Vale do Silício os que começaram a levantar a voz. O Facebook e o Twitter são acusados de se transformarem em espaços que aumentam o debate e o contaminam com informação falsa. Já circula a ideia de que é preciso desabituar-se do uso de plataformas projetadas para que passemos o maior tempo possível nelas, que causam vício; as redes (combinadas com o celular) como invenção contaminante, viciantes, o novo tabaco. Um problema de saúde pública. Um problema de saúde democrática.

O grupo de arrependidos das redes foi aumentando nos últimos meses. Em 12 de dezembro, um ex-vice-presidente do Facebook, Chamath Palihapitiya, afirmou que as redes estão “partindo” o tecido social. “Os ciclos de retroalimentação a curto prazo impulsionados pela dopamina que criamos está destruindo o funcionamento da sociedade”, declarou em um fórum da Escola de Negócios Stanford. Em 23 de janeiro, Tim Cook, executivo-chefe da todo-poderosa Apple, afirmou que não quer que seu sobrinho de 12 anos tenha acesso às redes sociais. Em 7 de fevereiro, o ator Jim Carrey vendeu suas ações da plataforma e pediu um boicote ao Facebook por sua passividade diante da interferência russa nas eleições.

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A percepção que temos das redes sofreu uma mutação. Nasceram como um instrumento para se conectar com amigos e compartilhar ideias. Atenuavam o suposto isolamento causado pela Internet. E se transformaram em uma força democratizante ao calor da Primavera Árabe. Pareciam uma ferramenta perfeita à mudança social, empoderavam a pessoa. “Davam voz aos que não tinham voz”, frisa em conversa por telefone do Reino Unido Emily Taylor, executiva do Oxford Information Labs que há 15 anos trabalha em assuntos de governança na Rede. “Em somente sete anos, tudo mudou. São preocupantes essas campanhas políticas de anúncios dirigidas a alterar os processos eleitorais”.

Se o Facebook filtra a informação, no final ele te mostra somente uma visão dos fatos, você se radicaliza”, diz a pesquisadora Mari Luz Congosto

A vitória do Brexit nas urnas e a eleição de Donald Trump são dois dos fenômenos que levaram o mundo inteiro a se questionar: como ninguém viu isso chegar? A resposta, em parte, foi procurada e encontrada nas redes.

O Facebook foi chamado em outubro pelo Comitê de Justiça do Congresso norte-americano para explicar seu papel na interferência russa nas eleições nos EUA em 2016. Admitiu que 126 milhões de pessoas puderam acessar conteúdos gerados por supostos agentes russos (A Internet Research Agency), que também publicaram aproximadamente mil vídeos no YouTube e 131.000 mensagens no Twitter. Entre todas essas notícias falsas apareciam histórias delirantes como a de que Hillary Clinton vendeu armas ao Estado Islâmico.

Mas essa não foi a única polêmica. As redes estiveram no foco pela compra de seguidores fictícios por parte de influencers; pelos linchamentos públicos de pessoas que são denunciadas nas redes e que são condenadas ao ostracismo sem julgamento; por sinistros episódios como crimes transmitidos ao vivo. E em Myanmar, o Facebook viveu um de seus piores episódios: no ano passado a empresa foi acusada de se transformar no vetor fundamental da propaganda contra a minoria rohingya, vítima de um genocídio. Annus horribilis.

Uma reportagem de investigação publicada na semana passada pela revista Wired revela o inferno que a organização viveu nos últimos dois anos. A tensão sobre o que fazer uma vez embarcados no que era uma realidade – sua condição de veículo informativo global –, as disputas sobre como enfrentar a avalanche de notícias falsas e o enraivecimento que inundava suas páginas ceifou o otimismo reinante, incluindo o do próprio Zuckerberg.

É um fato. O Facebook é a plataforma líder em redirecionar os leitores a conteúdos informativos desde meados de 2015, quando superou o Google nisso. Mais de 2,13 bilhões de pessoas fazem parte de sua comunidade. Existem 332 milhões no Twitter. Dois terços dos adultos norte-americanos (67%) declararam que se informam via redes sociais, de acordo com um estudo de agosto de 2017 realizado pelo Pew Research Centre.

O Facebook não cria conteúdos, mas os ordena. Primeiro decidiu realizar um trabalho editorial com uma equipe de jornalistas que escolhia as notícias mais populares. Depois, após vários escândalos durante a campanha, apostaram nos algoritmos, delegaram à máquina. O tiro saiu pela culatra.

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O problema é o modelo de negócio. É o que diz Emily Taylor. O usuário aceita ceder dados em troca de um serviço gratuito. Os algoritmos usam essa informação para determinar os interesses do usuário. As empresas de publicidade pagam por isso. “Não se extraem dados somente do que é postado publicamente”, afirma Taylor, “mas também da localização, das mensagens privadas”. Quanto mais tempo passamos na plataforma, mais dados podem ser extraídos. Uma notícia chocante, sensacionalista, até inverossímil, chama mais à leitura do que uma tranquila e equilibrada análise. Uma mudança de rumo que afeta tanto as redes como os veículos de comunicação tradicionais.

O Facebook não cria conteúdos, mas os ordena. Primeiro decidiu realizar um trabalho editorial com uma equipe de jornalistas que escolhia as notícias mais populares

Depois vem a questão do algoritmo. O usuário de uma plataforma como o Facebook não vê tudo o que os seus amigos publicam. Vê o que a máquina escolhe de acordo com uma fórmula que o Facebook não revela. “Ele te mostra o que o algoritmo quer, não sabemos com que objetivo, se perverso ou não”, diz Mari Luz Congosto, especialista em redes e pesquisadora do grupo de telemática da Universidade Carlos III. “Você perde uma parte de sua liberdade e a plataforma faz negócios com isso. Manipula o que as pessoas leem, marca o caminho”.

E o problema é que o algoritmo manda cada vez mais. Passamos de uma Internet que era acessada por computadores, nos quais a pessoa procurava, explorava, a uma Internet em que se entra por aplicativos instalados no celular. Algo que acontece, principalmente, com toda uma geração de jovens que vivem dentro de seu telefone. E que acontece em países pobres com muitos telefones e poucos computadores. “A Internet chega a você por um algoritmo, não é você que procura algo na Internet”, afirma em conversa por telefone de Bogotá a advogada e ativista digital guatemalteca Renata Ávila, assessora legal de direitos digitais da World Wide Web Foundation, organização presidida por Tim Berners-Lee, o inventor da world wide web. E utiliza uma metáfora: “Antes operávamos na rua, o mundo era nosso, entrávamos e saímos dos edifícios. Agora estamos trancados em um centro comercial com regras rígidas que só querem maximizar o modelo de negócio”.

“A Internet chega a você por um algoritmo, não é você que procura algo na Internet”, afirma a advogada e ativista digital guatemalteca Renata Ávila

Para Ávila, o problema não é exclusivo do Facebook, pelo contrário. Todas as plataformas funcionam da mesma foram: “O problema é a arquitetura do celular, dos apps. O modelo de negócio”.

Tudo isso ainda recebe o acréscimo do efeito bolha. O usuário lê o que seus amigos lhe mandam e as pessoas próximas ideologicamente: um estudo publicado na revista científica norte-americana PNAS e que analisou 376 milhões de interações entre usuários do Facebook concluiu que as pessoas tendem a procurar informação alinhada às suas ideias políticas. “Se o Facebook filtra sua informação”, diz a pesquisadora de redes Mari Luz Congosto, “no final você recebe somente uma visão dos fatos, reforçada, e, portanto, você se radicaliza”.

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O modelo de negócio também está por trás do problema do vício às redes, projetadas para conquistar o usuário. Algum dia pode ser que precisem responder por isso, como a indústria do tabaco precisou fazer.

Pessoas escravizadas por seu perfil, pela imagem que devem dar aos seus seguidores; garotas que com o passar do tempo se fotografam com cada vez menos roupa no Instagram para conseguir mais likes; adolescentes que não se separam do celular pela quantidade de mensagens que eles se veem obrigados a responder e cuja amizade parece ser avaliada em termos de tracinhos que marcam suas interações no Snapchat. A lista de críticas ao impacto social dessas plataformas é variada.

Na última edição do Fórum de Davos, o multimilionário George Soros resumiu em uma intervenção os problemas que, estima, as redes colocam. Disse que enquanto as empresas petrolíferas e de mineração exploram o meio ambiente, as redes sociais exploram o ambiente. Que, ao influenciar no modo em que as pessoas pensam e se comportam, significam um risco à democracia.

Agora as críticas chovem, mas têm muitas linhas de defesa. Quando em 10 de janeiro o escritor Lorenzo Silva anunciou que, cansado de barulho, tempo perdido e insultos, deixava o Twitter, a jornalista e prolífica tuiteira Carmela Ríos publicou um decálogo das razões que fazem com que se mantenha nessa rede social. Escreveu: “Estou no Twitter porque é uma ferramenta de comunicação política do século XXI”. E a partir daí desfiou seus motivos em 10 tuítes: “Porque as redes são necessárias na era da desinformação, não é possível detectar e combater notícias falsas sem conhecer seu ecossistema natural”; “porque aprendi ao longo dos anos a racionar seu uso”; “porque é uma maravilhosa fonte de conhecimento”; “porque aprendi a discriminar entre seus melhores usos (os menos interessantes, sem dúvida, a tertúlia e o debate político)”; e porque permite “conhecer pessoas cujas ideias, conhecimentos, projetos e sentimentos valem a pena”.

O EL PAÍS pediu para falar com algum porta-voz do Facebook e do Twitter para que pudessem responder algumas perguntas. As duas empresas ofereceram, em troca, enviar informação por e-mail.

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A questão é o que fazer. Porque mesmo que Zuckerberg tenha anunciado que está disposto a colocar limites a notícias, marcas e memes, ainda que modifique o algoritmo para que exista menos informação e mais relação entre os usuários, não vai querer perder os lucros em publicidade que entram em função do tempo que se emprega em sua rede.

Jonathan Taplin, empreendedor que publicou no ano passado o livro Move Fast And Break Things: How Facebook, Google And Amazon Cornered Culture And Undermined Democracy (Mova-se rápido e quebre as coisas: como o Facebook, Google e a Amazon arruinaram a cultura e enfraqueceram a democracia), tem todas as suas esperanças depositadas na União Europeia. “A Europa está liderando o mundo nisso”, declara em conversa por telefone da Califórnia o diretor emérito do Laboratório de Inovação Annenberg da Universidade da Carolina do Sul e ex-produtor de cinema. “Devemos agradecer, por exemplo, que o Google tenha sido multado [2,42 bilhões de euros (10 bilhões de reais) por abuso de posição dominante]”.

O produtor Jonathan Taplin quer a redução do tamanho desses impérios. O Facebook deve se desligar do Instagram e do WhatsApp

A nova Regulamentação Geral de Proteção de Dados da UE, esperada para maio, é vista por vários especialistas como um catalizador para fortalecer a proteção de dados das pessoas. “É preciso regulamentar”, afirma Taplin, “precisamos de leis, não é o mercado que irá solucionar o problema”. Taplin quer a redução por lei do tamanho desses impérios: obrigar o Google a vender o YouTube; o Facebook, que se deligue do Instagram e do WhatsApp; aplicar leis de concorrência, redimensionar.

A revista The Economist propôs em novembro em um artigo que as redes deveriam deixar mais claro se uma postagem vem de um amigo e de uma fonte confiável, manter controlados os bots que amplificam as mensagens e adaptar seus algoritmos para colocar as notícias caça-cliques [as que provocam muitos cliques] no final do muro para dessa forma evitar que os reguladores acabem impondo mudanças em um modelo de negócio baseado em monopolizar a atenção.

Os grandes do Vale do Silício, enquanto isso, enviaram um exército de lobistas a Washington. Temem que aconteça a eles o que ocorreu com a Microsoft, condenada por práticas abusivas de monopólio.

Existem vozes que pedem que as plataformas respondam pelo que se publica nelas. Algo que as redes respondem que se negam a se transformar em árbitros da verdade. Existem outras que pedem que os programas educacionais incluam elementos práticos que permitam aos mais jovens aprender a manejar o componente viciante das redes.

Há quem diga, por fim, em um claro alarde de otimismo antropológico, que as pessoas progressivamente prescindirão delas como da junkie food, optarão por dedicar seu tempo de leitura a escolhas mais seletas.

ENRAIVECIMENTO

Um estudo do Pew Research publicado em outubro de 2016 mostra que 49% dos usuários norte-americanos consideram que as conversas políticas nas redes sociais são mais furiosas do que na vida real. Contribuem ao enraivecimento.

“No Twitter” diz a pesquisadora Mari Luz Congosto, “nos últimos dois anos o tom é muito áspero. O tom ácido aumentou, antes era mais brincalhão. As mensagens se tornaram mais duras”.

Os responsáveis pelas redes argumentam que isso é algo imputável aos humanos, não aos veículos que as transmitem.

E os responsáveis pelo Twitter lembram que as redes estão sujeitas à lei e à legislação europeia e que, por exemplo, uma avaliação independente da Comissão Europeia diz que, em média, as empresas retiraram 70% dos discursos de ódio ilegais que lhes foram notificados.


El País: ‘Fake News’,a guerra informativa que já contamina as eleições no Brasil

Especialistas alertam que a polarização política preparou o terreno para sites com forte viés ideológico. Esses sites inundaram as redes sociais e podem ser decisivos na disputa pelo voto

As chamadas fake news, as informações falsas ou ao menos distorcidas espalhadas nas redes sociais, se tornaram uma epidemia que percorre o mundo inteiro. Elas fazem parte de uma nova modalidade de guerra informativa, usada com objetivos políticos, que já rendeu grandes benefícios nas últimas eleições dos EUA. O Brasil aparece agora como um perfeito campo de batalha, no qual as fake news, que já estão contaminando o debate político no país há algum tempo, sobretudo desde o processo que acabou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff, podem jogar um papel decisivo. Os elementos estão prontos: um pais muito ativo nas redes sociais, com uma forte polarização ideológica que se reflete claramente na Internet e com umas eleições acirradas demais daqui a poucos meses.

No dia 24 de janeiro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi julgado e condenado em segunda instância a 12 anos e 1 mês de prisão  acusado de receber como propina da construtora OAS um triplex no Guarujá, entre outros benefícios. Nesse dia, das 10 notícias sobre política mais compartilhadas no Facebook, nove foram sobre o julgamento, segundo o Monitor do debate político no meio digital. A ferramenta, que “busca mapear, mensurar e analisar o ecossistema de debate político no meio digital”, identificou que uma matéria do site de notícias G1 foi a que mais êxito teve, com 49.000 compartilhamentos. Em segundo lugar estava uma matéria de um site que não tem nada a ver com o jornalismo profissional, Jovens Cristãos, com 36.000 compartilhamentos. No ranking, ainda apareciam outros veículos tradicionais, como Veja e UOL, mas dividindo o espaço com a chamada imprensa alternativa, como Notícias Brasil Online e Falando Verdades.

O exemplo acima descreve bem a guerra informativa travada nas redes sociais: de um lado, meios de comunicação tradicionais que buscam manter sua influência; do outro, sites de notícias chamados de alternativos, com um forte viés ideológico, não raro definidos como sites de fake news (notícias falsas), cavam seu espaço. Mas o que são as fake news, esse fenômeno mundial que influencia a decisão de eleitores? Para o filósofo Pablo Ortellado, que gerencia o Monitor, uma matéria descrita como fake news é aquela que "aparenta ter sido feita a partir de uma apuração, porém ela é falsa não por erro de apuração, mas de maneira maliciosa".

Diante dessa definição, ele explica, "é muito difícil definir o que são notícias falsas em meio ao volume de notícias nas redes". Ortellado acredita que o conceito mais adequado para descrever o que está acontecendo hoje no Brasil é "uma guerra de informação travestida de jornalismo", na qual há uma imprensa dita alternativa ultra engajada disputando o espaço com a grande imprensa, que também está engajada nessa batalha. "Se você olha para os sites maliciosos, eles praticam pouca invenção pura e simples. O grosso da atividade deles é pegar uma matéria da grande imprensa e fazer uma manchete escandalosa, pegar uma especulação e apresentar como verdade…", explica Ortellado. "São instrumentos de distorção usados com graus variados e que os meios de comunicação também podem usar. Quantas matérias desse tipo as revistas VejaIstoé já deram na capa? É fake news?", questiona.

Fábio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), concorda que a imprensa se tornou "a base material para a produção de conteúdo com viés ideológico". E explica que, apesar do termo fake news ser recente, "as notícias falsas sempre existiram no Brasil e no mundo", inclusive em época de eleições. A diferença é que hoje "existe um domínio dos veículos com viés ideológico que contam com uma espécie de exercito humano de replicação" de seus conteúdos. E assim, "a opinião vem ganhando mais terreno que a reportagem".

Nesta última semana, o maior jornal do Brasil, a Folha de S. Paulo, resolveu dar um soco na mesa. Decidiu deixar de publicar matérias em seu perfil no Facebook, alegando, entre outros motivos, que a mudança no algoritmo da plataforma, que passou a privilegiar as interações pessoais, "favorece a criação de bolhas de opiniões e convicções e a propagação das fake news".

O próprio termo, aliás, passou a ser usado por atores de todos os tipos como forma de desqualificar seu oponente, explica Ortellado. Algo que reflete um momento particular da vida política brasileira: a forte polarização da sociedade. “O Brasil reúne as características que o deixam suscetível a manipulação”, alerta Claire Wardle, jornalista norte-americana que há mais de dois anos está estudando como as notícias falsas se propagam em cada país. “Primeiro porque é um país muito dividido, e não apenas politicamente como também em assuntos culturais e sociais. Em situação assim as pessoas são menos críticas com a informação que encontram. Se alguma coisa reafirma suas crenças, é provável que você acredite e compartilhe. E os brasileiros, que são grandes usuários das redes sociais, adoram compartilhar”. Ortellado resume da seguinte forma a questão: "As fake news não são a doença, e sim o sintoma. A doença é a polarização política. E em época de eleição, com dinheiro jogado nessa polarização, a tendência é piorar. Se em 2014 já foi bem sujo, em 2018 vai ser pior", aposta.

Mas para Wardle, não é apenas o estado de animo da sociedade que influencia na propagação das fake news, mas também as ferramentas que ela tem nas mãos: “O uso de WhatsApp no Brasil é incrivelmente alto”, diz. “Os aplicativos de mensagens são lugares onde se distribui desinformação e, por estarem criptografados, é mais difícil que jornalistas ou verificadores de informação saibam o que vem circulando. É mais difícil desmentir as notícias falsas a tempo”, acrescenta. Fábio Malini, do Labic, explica que boa parte das informações falsas ou enviesadas de fato são distribuídas através de "correntes de mensagens" que antes eram enviadas por e-mail e agora chegam através do WhatsApp. São correntes que espalham "lendas urbanas" que as pessoas acreditam como "verdades delas". Até hoje há muitos brasileiros que ainda acreditam, por exemplo, na falsidade de que um dos filhos de Lula é o verdadeiro dono da empresa agropecuária Friboi. Há algumas semanas também fez muito sucesso nas redes o suposto cálculo de que as reduções fiscais dadas pelo Governo Temer às petroleiras dos EUA somariam a mirabolante cifra de 1 trilhão de reais.

Para Ortellado, será nesses sites de noticias engajadas e nos perfis do Facebook ligados a eles onde o jogo político vai acontecer. "Elas não prestam contas, não estão oficialmente fazendo campanha, mas estão ai compartilhando informações em um ecossistema enorme. E ele parece diverso e não é. Os mesmos operadores têm dezenas de páginas. E não adianta você desarmar os sites, você tem que desarmar as pessoas", argumenta.

Já no Twitter estão sobretudo os robôs, também conhecidos como bots. São programas capazes de mover centenas de perfis nas redes sociais que aparentam ser de pessoas. Mas que, na verdade, existem para disseminar mentiras. “Já sabemos que existe no Brasil, mas o que é mais preocupante é que há brasileiros dispostos a trabalhar como ciborgs, ou seja, a pessoa que atua como bots, passando o dia inteiro compartilhando conteúdo para dar voz a certas mensagens", explica Wardle. Malini acredita, entretanto, que a influência dos bots tende a diminuir devido à mudança na legislação eleitoral que passou a permitir que políticos paguem para o Facebook impulsar postagens. "Os políticos estão percebendo que o objetivo da compra desses programas, que era ser a tendência, já pode hoje ser conseguido com o impulsionamento de postagens que podem dar visibilidade a sua candidatura", argumenta. De todas as formas, ele diz que um dos efeitos colaterais dos bots vem sendo "o aumento da toxicidade das redes sociais, a sensação de ser um lugar que gera um nível de restrição ao pensamento muito grande".

Wardle é diretora executiva da First Draft News, um projeto da Universidade de Harvard especializado em buscar estratégias para combater as fake news. Em alguns países, conseguiu o milagre de unir varias jornais diferentes, antes inimigos, em um esforço conjunto para verificar e desmentir rumores. Na França funcionou, assim como na Alemanha e no Reino Unido. Agora tenta fazer o mesmo com os principais jornais no Brasil, o EL PAÍS entre eles.

Em sua opinião, os brasileiros deveriam estar preocupados. “Não é só porque existam sites desenhados para fazer notícias ilegítimas, é que existem redes de bots, amplificação pré-fabricada, tentativas de manipular jornalistas para que escrevam matarias baseadas em hashtags cuja relevância foi inflada, fotos manipuladas, vídeos inventados, textos micro-desenhados para eleitores… Os brasileiros deveriam estar preocupados e deveriam perceber o importante que é não compartilhar informação falsa em seus perfis”. Com a mente em outubro, data das eleições, acrescenta: “As eleições deveriam consistir em eleitores que tomam decisões com informação checada. Caso contrário, a democracia está em perigo”.


Correio Braziliense: Fake News - Memórias de mercenários

A partir de relatos de três produtores de fake news, o Correio revela os detalhes da montagem das notícias falsas. Especializados em tecnologia e marketing político, esses homens, que chegam a ganhar mais de R$ 500 mil por candidato em períodos eleitorais, têm em comum a capacidade de não deixar rastros.

Por Leonardo Cavalcanti

Com a garantia de anonimato, eles concordaram em contar segredos da guerra na rede — ou pelo menos parte deles. Um dos contatos foi feito em Brasília durante quase vinte horas, divididas em cinco conversas, o outro, numa cidade de Goiás. Um terceiro confirmou informações a partir de contatos telefônicos, mas preferiu evitar maiores encontros.

Ao longo da reportagem, eles serão chamados de mercenários e identificados a partir de letras (das primeiras letras de Fake News) e números. Todos rechaçam a alcunha, mais relacionada a combatentes que trabalham apenas por interesse financeiro.

Preferem ser associados a guerrilheiros, algo referente à luta ideológica. É a primeira das mentiras, num terreno virtual minado, em que os Estados parecem incapazes de reagir e desarmar os explosivos. Como se verá, não é o único problema das autoridades.

Correio também conversou com mais de 30 investigadores, policiais, marqueteiros, acadêmicos e políticos sobre o poder e a extensão das fake news nas eleições. Por Skype, entrevistou o escritor inglês Misha Glenny, autor de Mercado sombrio — o cibercrime e você e McMáfia — crime sem fronteiras, ambos editados no Brasil pela Companhia das Letras.

Os dois livros de Glenny detalham como criminosos especializados se aproveitam da rede de computadores para enganar pessoas comuns. Os métodos usados, como o anonimato e a técnica de apagar rastros, são parecidos com os da produção das fake news, numa guerra cada vez mais cara à democracia, em que a verdade é a primeira a desaparecer.

01 - Os recrutas

No minúsculo quarto de hotel da cidade de quase 100 mil habitantes na Argentina, fronteira com o Uruguai, o mercenário FN001 recebe a última chamada telefônica vinda de São Paulo. Depois da viagem de quase 2.000km, alternando trechos de avião e de ônibus, ele finalmente vai encontrar o homem que será o responsável pelos disparos de e-mails contendo notícias falsas contra um candidato a presidente do Brasil.

A primeira tarefa, ao abandonar a habitación e caminhar até uma sala comercial próxima dali, será testar a capacidade do contato local em enviar um lote de mensagens inverídicas para um milhão de e-mails. Os dois desconhecidos, com desconfianças mútuas, conseguem se entender a partir de um portunhol canhestro. O argentino contactado desde a capital paulista por um colega de trabalho do mercenário mostra eficiência na missão.

O que está em jogo é o tempo dos disparos das mensagens. Tal qual uma metralhadora, o equipamento do gringo é capaz de descarregar as notícias no lote de um milhão de e-mails entregues no pendrive. E, assim, o argentino é recrutado para um período de três meses, que, em terras brasileiras, corresponde ao da campanha eleitoral. Com um último aperto de mãos, restava a FN001 pegar o primeiro ônibus de volta ao aeroporto mais próximo e retornar ao bunker das fake news. Era agosto de 2010.

Dias antes, o mercenário estava no escritório da empresa de marketing que o havia contratado para fazer a guerrilha virtual. Ao redor da mesa, 18 integrantes de uma lista de cortes feita pelo Departamento de Recursos Humanos. O grupo era formado pelos mais irresponsáveis, o pessoal que não cumpria prazos e quase sempre estava atrasado para as reuniões.

 

 Tenho uma notícia. Vocês estão demitidos.

Antes mesmo do desânimo geral, a proposta: “Posso recontratá-los caso algum de vocês queira trabalhar com contrainformação”. Sem saber ainda o que aquilo significava, os 18, mesmo apreensivos, toparam o trabalho e assinaram um termo de confidencialidade, que, na prática, não valia de nada, mas simbolizava o caráter sigiloso do trabalho a ser feito a partir dali.

 

 É preciso ter confiança na equipe, pois nesse negócio não se trabalha com freiras. O cara pode não ter a dimensão do estrago que pode causar na eleição, mas sabe que está fazendo algo delicado, suspeito.

Acomodado na cadeira espaçosa de uma cafeteria de Brasília, há duas semanas, FN001 continuou: “É preciso ser leal, pelo menos até os rastros serem apagados”. Os mercenários mais qualificados e mais bem pagos do país — aqui, falamos de, no máximo, 10 pessoas — têm alto conhecimento de informática, comunicação e, até mesmo, de psicologia. Mesmo que, neste último caso, algumas lições se misturem com exemplos rasteiros nas palavras de FN001.

 

 O produtor de fake news não busca que uma notícia falsa se transforme em verdadeira. Ele quer apenas legitimar a dúvida.

Segundo a filosofia de botequim de FN001, o problema da pessoa não é saber se o companheiro é infiel. “Se a pessoa sabe, ou aceita ou acaba o casamento, simples. A aflição está na dúvida.”

A dúvida explica a razão de as fake news não atingirem os militantes fiéis de determinados candidatos. Eles já conhecem o político, o apoiam a partir de pesos e contrapesos bem definidos, algo como, “ele tem lá os seus pecados, mas, ainda assim, é melhor do que os adversários”. Vide o exemplo mais recente, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. A força das fake news foi mais evidente nos swing states, aquelas regiões sem predominância democrata ou republicana.

“Foi em cima dos eleitores desses estados que se concentrou essa tentativa bem-sucedida de manipulação”, disse-me Silvio Meira, professor do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Escola de Direito do Rio da FGV. “A Rússia influiu na eleição americana, contaminando opiniões, talvez de milhões de eleitores, nos locais onde a disputa poderia ser virada”, afirmou Meira, um homem de 62 anos, que é considerado um dos pesquisadores mais influentes na área de tecnologia da informação e um dos pensadores mais atuantes no debate sobre democracia.

“Vivemos um dos pedaços mais complicados da história da humanidade, em que as pessoas não entendem as tecnologias que usam.” Dúvida e confusão, duas palavras do glossário das fake news que parecem conviver muito bem, obrigado, com outras, como algoritmo, filtro bolha, bots, hoax e clusters.

A dúvida pode ser instalada, por exemplo, a partir da alteração do domínio do e-mail de um religioso de alta patente e com capacidade para influenciar rebanhos. Ao manter o nome do usuário desse cidadão, FN001 conseguiu produzir estragos na campanha adversária. Para ampliar os disparos, foi preciso apenas acionar o contato daquela cidade de 100 mil habitantes na fronteira da Argentina com o Uruguai, descrito no início deste texto. Com os disparos feitos a distância, os fiéis da igreja seguiram à risca a recomendação do texto e republicaram a notícia, que pegou como fogo em capim seco.

Uma dessas fogueiras das fakes news está justamente na religião. Em setembro do ano passado, o papa Francisco pediu que a Igreja Católica fizesse uma reflexão profunda sobre as notícias falsas. Fake news serão tema do 52º Dia das Comunicações Sociais, celebrado em 18 de maio. “A verdade vos tornará livres”, escreveu Jorge Mario Bergoglio na conta do Twitter. Segundo a Santa Sé, a Igreja precisa oferecer uma contribuição sobre o tema, propondo uma reflexão das consequências da desinformação e estimular um jornalismo profissional, que “busca a verdade”.

Escolhi como tema para o Dia da Comunicação 2018: “A verdade vos tornará livres” (Jo 8, 32). Notícias falsas e jornalismo de paz.

Os observadores do Vaticano pareciam ainda impactados pelos resultados das eleições norte-americanas que elegeram Donald Trump. Uma das mentiras espalhadas na campanha era de que o papa Francisco teria apoiado o republicano.

Aqui, no Brasil, anos antes, em outubro de 2010, a três dias da eleição presidencial, Bento XVI condenou o aborto e pediu que bispos brasileiros orientassem os fiéis politicamente — no que parecia uma clara interferência. Não citava Dilma Rousseff diretamente, mas tal associação com a candidata acabou sendo feita. A petista, na época, reagiu e se disse contra o aborto. “Acho que o papa não tem nada a ver com isso. Aqui ocorreu uma outra coisa, ocorreu uma campanha que não ocorreu à luz do dia. Quem fez a campanha não se identificou, não mostrou sua cara. Foi uma campanha de difamações, de calúnias e algumas delas ao arrepio da lei”, disse Dilma. Na época, a expressão fake news ainda não era popularizada.

A batalha contra as fake news começa no próprio conceito da expressão. Nessa guerra, poucos se entendem, como numa grande babel moderna, que apenas oferece vantagens aos produtores de notícias falsas. É o que explica o segundo mercenário, FN002, localizado numa cidade de porte médio em Goiás:

As pessoas querem replicar as histórias, mesmo sem saber exatamente do que se trata. É algo feito por instinto, querem ser os primeiros a levarem uma informação qualquer para um grupo.

Em pé, próximo à janela do escritório no sexto andar de um prédio comercial, o mercenário nº 2, de gestos rápidos, quase nervosos, fala sem parar. E mostra, na tela do computador, uma série de trabalhos como se quisesse confirmar as palavras. O custo de se produzir informação falsa é a dúvida constante dos interlocutores no fato e no autor. Existem histórias sem finais felizes.

02 - A arte da mentira

Existem histórias sem mocinhos. Enquanto os investigadores têm dificuldades em identificar autores de fake news, os mercenários profissionais formam um pequeno grupo especializado em comunicação e tecnologia e, mesmo atuando em times diferentes, conseguem se reconhecer.

Se eu não conseguir achar o cara que fez a guerrilha contra o meu cliente, eu sei quem ele é.

Depois de rir da própria frase, FN002 começa a detalhar o trabalho. Ele tem duas identidades, dois escritórios, dois tipos de clientes. Às vezes tudo se mistura, principalmente quando os contratantes são políticos. Uma parte do serviço é visível, com registros, notas fiscais e funcionários fichados. A outra é secreta, sem qualquer tipo de rastro. Na lista clandestina, que tem em média 18 pessoas, há ex-jornalistas especializados em investigações, técnicos em informática, atores, dubladores — capazes de imitar 30 vozes de políticos e celebridades — e policiais militares.

 

 Não é qualquer policial, tem de ser um oficial para garantir a segurança do bunker. Caso ocorra alguma denúncia, ele precisa matar a investigação no início.

FN002 detalha a contratação de um oficial da Polícia Militar. “Ninguém faz denúncia sobre um escritório que produz fake news, os adversários tentam associar o meu time ao tráfico de drogas ou desmanches, por exemplo”, afirma o mercenário. “Se a polícia der uma batida aqui, o meu oficial toma a frente do caso e afasta qualquer possibilidade de levarem computadores, que poderiam me associar a algum político.”

Entre as “maldades” produzidas por FN002 estão as sátiras, disseminadas no WhatsApp e Facebook. Para além da controvérsia sobre como enquadrar as piadas — acadêmicos divergem se elas são ou não fake news —, FN002 utiliza a mesma rede anônima das notícias falsas.

As tarefas na produção e divulgação das notícias vão das mais simples às mais complexas — e sempre têm uma certa dose de provocações, como o uso de CPFs do candidato adversário em determinada operação. Depois de montar a estrutura da fake news, seja em texto seja em vídeo, e jogar na rede a partir de páginas disponíveis gratuitamente na internet, a missão será impulsioná-la nas redes sociais e garantir maior visualização.

Assim, é preciso comprar um cartão de débito recarregável — “sem análises de crédito ou qualquer burocracia”, como diz uma propaganda na internet — , que pode ser adquirido em lojas de departamento por R$ 15. Numa lan house da periferia da cidade, mais distante possível do bunker, o produtor de fake news precisa habilitar e, na sequência, gerar um boleto para pagamento do cartão em dólares. E aqui vem a tal piada interna, com uso do CPF.

 

 Se o adversário for buscar as pistas da maldade, vai chegar a ele mesmo.

As ações descritas por FN002 são confirmadas pelos outros mercenários ouvidos pelo Correio. A partir daqui, é possível fazer depósitos de US$ 500 por dia para impulsionar as notícias em redes sociais. Para tornar ainda mais complexa a identificação, um terceiro mercenário, FN003, prefere comprar cartões pré-pagos em outros países. “Já fiz encomendas para uma rede de guerrilheiros no Canadá e em países europeus”, disse-me ele, a partir de uma conversa por WhatsApp. “É arriscado comprar esses cartões no Brasil, na minha opinião.”

As formas de os mercenários mascararem as páginas com os links de sites ontendo as notícias falsas são as mesmas usadas por golpistas, fraudadores e ladrões há pelo menos 10 anos na web, tudo a partir da hospedagem em servidores no exterior. A confecção das páginas é feita em computadores comprados de segunda mão que serão descartados para evitar rastros logo na largada, a partir do “endereço MAC”, a identificação dos aparelhos.

Para terminar de apagar os rastros, falta camuflar o protocolo da internet (IP), responsável por enviar as informações que trafegam pela rede, tal qual as cartas postadas. A identificação dos IPs pode desmascarar criminosos e, por isso, um dos trabalhos dos mercenários de fake news, como o de golpistas da rede, é alterar os protocolos com os serviços de proxy. Neles, há duas vantagens para o criminoso em relação aos investigadores, a transmissão de dados criptografados e as mudanças contínuas de IP, que pode estar em qualquer parte do mundo.

De volta ao escritório, entre uma xícara de café expresso e uma lata prateada de energético, FN002, mostra uma pilha de documentos referentes a um processo judicial em que ele não aparece em nenhum momento. “Foi aberto contra um cliente, um candidato. O adversário se sentiu prejudicado, ninguém foi encontrado para responder, e o juiz arquivou, criticando o político que ajuizou a ação”, diverte-se o mercenário.

 

 A maioria dos policiais locais não têm a ideia do que procurar nos computadores.

FN002 acredita — e aqui demonstra um certo alívio — que há um despreparo da polícia brasileira nas investigações contra as fake news. “Mesmo durante uma batida, imagine se os policiais vão se importar com uma série de máquinas, eles não têm a mínima ideia do que está sendo feito no escritório.” De mais a mais, o mercenário de número 2 conta que a maior parte dos trabalhos é arquivada em serviços de nuvens, os servidores remotos, que complicam ainda mais o trabalho de investigadores de cibercrimes.

A mais de 9.000km de distância, em Londres, o escritor inglês Misha Glenny, 59 anos, tem uma opinião parecida com a FN002 sobre a polícia brasileira. Autor de Mercado Sombrio, editado no Brasil pela Companhia das Letras, uma espécie bíblia sobre os ataques perpetrados na internet, Glenny morou na Rocinha para escrever O dono do morro e conhece bem tanto os crimes que ocorrem no mundo virtual e fora dele. Além disso, teve acesso a investigadores qualificados da Polícia Federal que combatem golpes na internet na Polícia Federal.

 

 O país tem muitos usuários de internet competentes, muitos bons engenheiros de softwares, mas as estruturas governamentais do país são subdesenvolvidas.

Glenny, 59 anos, é cético em relação à capacidade da sociedade civil organizada em combater as fakes news, levando a bola de volta para as autoridades. O problema é que há um bate-cabeça no debate sobre fake news, onde qualquer ação mais efetiva do Estado pode ser confundida como censura. Professor da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenador do Laboratório sobre Imagem e Cibercultura (Labic), Fábio Malini é um dos maiores pesquisadores da rede brasileira e se diz cético sobre os efeitos das investigações e das alterações da legislação para conter as fake news.

 

 A força-tarefa para combater as fake news é irrelevante.

Malini faz referência ao grupo criado por Luiz Fux, ministro do Supremo, com representantes da Polícia Federal e do Ministério Público. Para o professor, a cultura das notícias falsas se desenvolve cada vez mais nas redes sociais privadas, como o WhatsApp, uma definição própria do acadêmico — alguns especialistas veem o aplicativo como um serviço de troca instantânea de mensagens, mas todos concordam na dificuldade de apurar crimes disseminados dentro dos grupos.

Hoje, há apenas três formas de punir os autores de fake news, todas com mais de 30 anos de vigência. Primeiro, o Código Eleitoral, que trata da divulgação de informações inverídicas, é da década de 1960, sem qualquer referência à internet. O Código Penal, que prevê a injúria, calúnia e difamação, é dos anos 1940 e poderia ser usado em última hipótese. Por fim, a Lei de Segurança Nacional, de 1980, que estabelece punições por difundir boatos que causem pânico.

No sétimo andar do Máscara Negra, como é conhecido entre jornalistas o edifício-sede da Polícia Federal, em Brasília, Eugênio Ricas, diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado da corporação concorda que o país não está preparado para as fake news nas eleições. “Só estaríamos preparados se fosse possível responder ao crime em poucos dias, sem permitir que as notícias falsas interferissem na campanha”, disse o delegado, que, aos 42 anos, se transformou numa espécie de porta-voz da força-tarefa.

Ricas afirma que a legislação é fraca o que dificulta ainda mais investigações complexas para se chegar aos autores, que usam servidores de outros países e a deep web. O policial acredita que o objetivo da força-tarefa é criar protocolo de atuação dos investigadores, da PF e do MP, e dos magistrados. O segundo passo seria propor minuta de alteração legislativa. O delegado acredita saber qual o perfil dos produtores de fake news: “São jovens com habilidade com internet, uma parte faz de brincadeira e outra para ganhar dinheiro. E nesse meio tem os ideológicos, da direita e da esquerda”. O leque de suspeitos é amplo. Existem histórias sem mocinhos.

03 - As buscas

Existem histórias sem rastros. Nos últimos meses da última campanha presidencial no Brasil, FN001 dormia apenas duas noites no mesmo hotel. As trocas constantes de endereços eram uma precaução envolvendo a segurança do mercenário, que levava sempre na mochila o computador. Um simples notebook, descartável, que pode ser adquirido no mercado por R$ 1,5 mil. A máquina servia apenas para se conectar a redes sem fio, mas uma apreensão poderia, nunca se sabe, complicar o candidato que contratou FN001 a peso de ouro.

O mercenário, durante uma conversa com a reportagem do Correio, em Brasília, demonstrou impaciência com os “amadores”. “Há guerrilheiros mais afoitos que acabam deixando rastros ao usar programas, por causa dos dados EXIF”, disse-me ele, que recusa a alcunha de mercenário, preferindo ser identificado como alguém mais ideológico. É uma farsa, o que move o trabalho desses homens, especializados em comunicação e tecnologia, é o dinheiro. Os tais dados abrem a possibilidade de alguém identificar o local onde a foto foi tirada. “A máquina fotográfica grava dados como ISO, abertura, velocidade... Quando grava uma imagem com um Photoshop, ele pode incluir dados que foram usados por quem instalou o programa e desmascarar o produtor de fake news.”

Mesmo com a dificuldade de investigação, alguns mercenários amadores caem na rede dos investigadores. Foi o caso de um empresário do Espírito Santo, indiciado por crime de divulgação de pesquisa fraudulenta. A apuração da Polícia Federal foi iniciada por causa da falsificação de página de um jornal na internet. A fake news revelava um levantamento fraudulento. O caso, com investigação do início ao fim, é tão raro que vai servir de modelo para a força-tarefa criada pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), com a PF e o Ministério Público. Mas todos sabem das dificuldades de caçar um mercenário.

 

 Há uma sofisticação e uma complexidade nas fake news que tornam as investigações e as próprias punições complexas.

Evandro Lorens, diretor da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), é uma figura tranquila, mas não confunda tal qualidade com a resignação. Especialista em arquitetura e segurança da informação, Lorens afirma que ainda há uma imaturidade no país para tratar do tema, mas acredita que investigadores e a própria sociedade serão capazes de evoluir no combate às fake news. Ele traça um paralelo com as primeiras apurações sobre os casos de pedofilia na internet.

No início das apurações sobre os crimes de pedofilia na rede, os peritos não conseguiam avançar porque a legislação apenas autorizava o flagrante no momento da transmissão das imagens das crianças. “Isso complicava muito a apuração. A gente tentava fazer a interceptação, avançava, mesmo com eles usando o proxy, mas não conseguia prender”, lembrou Lorens. Tal ferramenta, o proxy, é usada para criptografar dados e mascarar os protocolos de internet (IP), que identificariam a conexão e o conteúdo das informações. “Mesmo com as buscas e apreensões, o cara não era preso e sumia no mundo, pois o armazenamento do conteúdo pornográfico não era considerado crime.”

O avanço ocorreu com alterações na legislação. O armazenamento de vídeos e imagens passou a ser considerado crime. “Demos a última volta no parafuso com o desenvolvimento de tecnologia, que permitiu a análise dos computadores ainda na residência do criminoso”, afirmou Lorens. Em vários momentos, como no caso do combate à pedofilia, as ferramentas são desenvolvidas pelos próprios peritos. De volta às fake news, ainda estamos longe de avanços, o que faz com que Lorens acredite no desenvolvimento da própria sociedade para se proteger das notícias falsas montadas pelos mercenários.

A própria legislação é antiquada, com leis das décadas de 1940 e 1960, dos códigos Penal e Eleitoral, respectivamente. A mais recente, de segurança nacional, é dos anos 1980, completamente defasada no quesito crimes virtuais. O marco civil da internet, como é chamada a Lei N° 12.965/14, sancionada por Dilma Rousseff, também não ajuda os investigadores.

“Todos têm lados, inclusive juízes. Qual a chance real de uma ação efetiva contra uma campanha presidencial se um magistrado não estiver preparado para perceber o estrago de uma fake news, e simplesmente desconsiderar as apurações”, questionou um investigador federal que preferiu não se identificar. “A força-tarefa vai servir para amedrontar os amadores, que vão pensar duas vezes antes de tentaram produzir fake news. Os profissionais continuarão no jogo.”

Entrevista com MISHA GLENNY

“O Brasil não está pronto para o combate”

O escritor inglês Misha Glenny, 59 anos, apura os movimentos de criminosos na internet. Autor dos livros Mercado sombrio e McMáfia, ele expõe o universo do cibercrime para o leitor comum, com todas as implicações e riscos tanto para os Estados como para a vida privada do cidadão. Se a internet mudou o cotidiano das pessoas, também as deixou reféns a golpes de todos os tipos, a partir de e-mails, aplicativos de mensagens instantâneas e notícias falsas, um tema que cada vez mais é alvo de preocupações de Glenny, que conversou com o Correio por Skype, desde Londres, onde vive. Entre os próximos meses de maio e abril, o escritor vem ao Brasil para revisitar a favela da Rocinha, cenário do mais recente livro, O dono do morro — um homem e a batalha pelo Rio, lançado em 2016.

» O Brasil está preparado para combater as fake news?

Não, eu não acho que o Brasil está preparado de maneira alguma. O país tem muitos usuários de internet competentes, muitos bons engenheiros de softwares, mas as estruturas governamentais do país são subdesenvolvidas. Mesmo quando você olha para os Estados Unidos e para o Reino Unido e o estrago que as notícias falsas causaram nestes países, filtros e barreiras sofisticados estão falhando, e esses artifícios não existem no Brasil. A única vantagem significante do Brasil em relação às fake news é a língua portuguesa, porque os brasileiros conseguem perceber quando algo não foi escrito em português correto. Mas em termos de infraestrutura de proteção contra as fake news, o Brasil não está em uma posição muito favorável.

» Qual o grau da influência russa nas eleições de Donald Trump?

O que acontece é que a situação econômica da Rússia é 10 vezes pior do que a norte-americana. Não dá para competir com armas convencionais e nem com armas cibernéticas. Então, é necessário usar as armas que se tem. E os russos perceberam as fraquezas do sistema democrático dos EUA e da Europa, e como as fake news são um meio artificial muito barato e eles criaram incertezas entre a sua proteção, competidores e inimigos.

» Qual é a responsabilidade de empresas?

Facebook e o Google são editores, apesar de eles dizerem que apenas fornecem manchetes para uma audiência completamente aberta. Mas eles precisam começar a assumir responsabilidades sobre o conteúdo, como os jornais, inclusive os ao vivo, têm.

» Como grupos da sociedade civil podem combater as fake news?

Isso é muito complicado pelo fato de as fake news se espalharem em uma variedade muito grande de websites. Então, acho isso uma armadilha. Não tenho certeza sobre o que a sociedade civil pode fazer sobre isso. Eu diria que isso está mais provavelmente no nível governamental.

» Como combater as fake news sem atingir a liberdade de expressão?

A princípio, as leis de informações deveriam existir também para a internet. Na prática, isso não acontece. E o que você percebe é um debate muito polarizado. O nível de debate on-line é extremamente agressivo e essa, para mim, é maior preocupação. Até mais que as fake news, e, claro, elas estão relacionadas. E as leis aplicadas pela mídia no jornalismo impresso não parece ser utilizada nas mídias sociais. No Reino Unido, houve um aumento de processos contra indivíduos em redes sociais. A polícia tem percebido isso como uma área problemática.

04 - A salvação

Não se produz fake news do dia para a noite. Todo o trabalho leva meses. Isso significa que a preparação de um determinado produto deve ser feita ainda no início do ano eleitoral. Neste momento, há grupos rastreando endereços de e-mails e números de telefones. Não duvide, por exemplo, se o celular começar a tocar sem que alguém fale do outro lado da linha, e tudo não passe de testes de uma empresa de disparos de WhatsApp. O endereço do e-mail pessoal esqueça, este já foi rastreado uma centena de vezes.

Mercenários profissionais começam a montar os exércitos de fake news meses antes de uma eleição. Para que pareçam minimamente reais, têm de ser feitos quase manualmente, mesmo com dados e fotos falsas dos usuários, num processo longo de adicionar amigos, curtir páginas — todas aquelas tarefas realizadas pelo cidadão comum dentro da rede social. A partir de impulsionamentos no Facebook, gente contratada por mercenários inicia a manipulação dos falsos perfis, que dão “bom dia”, vão a restaurantes, supermercados e, por fim, espalham as fake news. Na prática, aquele amigo pode não existir, mas tem chances de influenciar alguém. Mas essa é apenas uma parte menor da estratégia. O conjunto do trabalho do mercenário é que faz a diferença.

Umas das ações dos mercenários envolve a mineração de e-mails e números de telefone, depois da compra de grandes lotes de endereços no mercado paralelo de dados. A venda é feita a funcionários corruptos de grandes empresas comerciais, que repassam os cadastros de clientes. O próprio FN003 explica: “Depois de receber todos aqueles dados, é preciso minerá-los. Ou seja, é preciso saber, por exemplo, se os e-mails estão ativos”. A tarefa é fundamental para evitar que os disparos das fake news caíam nas caixas de spam, o que inviabilizaria toda a estratégia. Para o sucesso da operação, é preciso combinar ações específicas para e-mails, Facebook e WhatsApp.

O planejamento é feito com tempo e dinheiro. As operações mais efetivas são tão bem pensadas que chegam a enganar os militantes mais ferrenhos de partidos. FN003 lembra-se da montagem de um site com as cores principais de uma legenda. Ali, ele passou a anexar artigos e exultar, a partir de palavras de ordem, “convertidos” a defenderem causas que o próprio candidato queria isolar na campanha por saber que perderia votos entre eleitores ainda indecisos. A página, com indexação eficiente, ganhou corações e mentes dos militantes mais combativos. O mercenário a partir daí começou a radicalizar o discurso, confundindo os próprios marqueteiros do time adversário.

Fábio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenador do Laboratório sobre Imagem e Cibercultura (Labic), acredita que a incerteza do cenário eleitoral brasileiro neste momento estimula a produção das fake news. Ele compara o período de campanha deste ano com a greve da Polícia Militar do Espírito Santo, em fevereiro do ano passado, e avalia que foi ainda mais dramática por causa da quantidade de notícias falsas que circulou durante a paralisação.

“Naquele momento havia um clima de incerteza e uma ambiguidade das próprias autoridades”, afirmou Malini. “De certa forma, as eleições de outubro apresentam esse vazio, um jogo jogado nas sombras, em que os próprios políticos não sabem qual o futuro. Não há a menor dúvida que será um ambiente fértil para as fake news”, completou.

Risco externo

Se a guerra entre os candidatos será repleta de fake news, o Brasil ainda parece estar livre de ataques de fora, como ocorreu nos Estados Unidos. “Não acredito que não exista aqui um interesse internacional para se movimentar uma estrutura daquelas para interferir na eleição daqui. Agora, que a gente vai ter uma enxurrada de fake news interna, não há a menor dúvida”, afirmou Eugênio Ricas, diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal.

Na última sexta-feira, Ricas se encontrou com o representante do FBI, a agência norte-americana responsável por crimes federais. A corporação atua nas investigações sobre os ataque dos russos na última eleição que elegeu Donald Trump. Integrantes da Polícia Federal e do FBI iniciaram conversas para um acordo de cooperação e troca de informações. Tal ação deve municiar os agentes brasileiros para trabalharem durante a campanha brasileira, na tentativa de caçar os mercenários.

A primeira experiência de Ricas com ataques coordenados de fake news também ocorreu na greve da PM do Espírito Santo, no ano passado. A metralhadora digital de mercenários foi apontada para o policial. Naquele período, Ricas era secretário de Justiça do estado. “A quantidade de fake news era surreal, uma coisa criminosa contra a sociedade.” Na manhã de sábado de carnaval, ele deu uma entrevista contra “o terrorismo” de Estado. Menos de quatro horas depois, Ricas e parte da família foram vítimas de um doxing, como é chamada a prática virtual de pesquisar e distribuir de forma viral os dados pessoais de alguém. As investigações do crime ainda estão em andamento, com pistas apontando para políticos e até mesmo para o lobby da indústria armamentista.

Em entrevista ao Correio, o escritor Misha Glenny, autor de Mercado sombrio — o crime e você (Companhia das Letras), afirma que o Brasil não está preparado para a guerra. “Quando você olha para os Estados Unidos e para o Reino Unido, você percebe que, mesmo filtros e barreiras sofisticados, falharam”, disse ele. “E o Brasil não tem nem mesmo esses artifícios.” Glenny vê uma única vantagem a nosso favor em relação ao combate às fake news. “A única vantagem significante do Brasil em relação às fake news é a língua portuguesa. Os brasileiros conseguem perceber quando algo não foi escrito em português corretamente”, afirmou ele. “Mas, em termos de infraestrutura de proteção contra as fake news, o Brasil não está em uma posição muito favorável.” Que venham as eleições. (LC)


Expediente

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Cristovam Buarque: Narrativas falsas

Dois mil e dezessete foi o ano em que o mundo descobriu o poder e o risco das “fake news”, mas há décadas os brasileiros têm sido vítimas de narrativas falsas que corrompem nossa maneira de pensar. Uma narrativa falsa generalizada diz que o governo pode gastar o quanto quiser, com Copa do Mundo e escolas, aumentar salários dos que recebem pelo topo e daqueles que recebem salário mínimo. Para corromper a verdade da aritmética, fizemos a falsa narrativa da moeda, com a inflação dando-lhe um valor menor do que o indicado na cédula.

Quando a verdade surgiu, criamos a falsa narrativa de que a industrialização enriqueceria todos os brasileiros. Acreditou-se que bastava esperar o PIB crescer para todos terem bons empregos e altos salários e o Brasil chegar ao Primeiro Mundo. O resultado foi o crescimento da riqueza nas mãos dos poucos ricos e a persistência da pobreza na vida da multidão de pobres.

No momento em que essa narrativa mostrou sua cara perversa, no lugar de reorientar o progresso, optou-se pela falácia de que a transferência de R$ 170 em média por mês seria suficiente para tirar uma família da pobreza e levá-la para a classe média. Decretou-se o fim da pobreza, independente da verdade.

O falso discurso da ascensão dos pobres à classe média se espalhou pelo mundo, ao ponto de que o impeachment legal, embora discutível se correto politicamente, é visto no exterior sob a falsa narrativa de golpe. Todas as prescrições constitucionais foram seguidas, todas as regras democráticas se mantêm, as instituições continuam funcionando, o novo presidente tinha sido escolhido como vice duas vezes pela presidente impedida (mesmo sabendo então das suspeitas de corrupção que pesavam sobre ele).

Além disso, os novos ministros colaboravam com o governo dela e a ex-presidente mantém todas as prerrogativas constitucionais dos presidentes que concluíram seus mandatos. Ela pode ser candidata já este ano (imagine se o golpe tivesse deixado Goulart ser candidato dois anos depois de 1964?), mas a falsa narrativa de golpe se mantém no imaginário dos apoiadores dela e de seus simpatizantes no exterior.

A mesma falácia que impedia ver os problemas já anunciados desde 2011 (veja o livro de minha autoria “A economia está bem, mas não vai bem”), agora mostra os problemas herdados como sendo criados pelo novo governo que, por seu desprezo à opinião pública, sua falta de credibilidade, sua imersão na corrupção, contribui para fortalecer a falsa narrativa de que ele é o culpado do desastre, mesmo quando a economia mostra recuperação.

Da mesma forma, está prevalecendo a falsa narrativa de que a Lava Jato vai salvar o Brasil esquecendo-se que um juiz pode prender político corrupto, mas não elege político honesto; e que o fim da corrupção no comportamento de políticos não eliminará a corrupção nas prioridades da política. Depois da Lava Jato, os políticos poderão continuar a construir obras de luxo, desde que não recebam propina.

Criou-se a narrativa da Lei da Ficha Limpa de que a política acabou com a corrupção, mesmo deixando soltos e elegíveis os políticos e juízes que constroem edifícios palacianos, ainda que roubados de escolas, de saneamento, de teatros, da ciência, desde que sem desvio para bolsos privados.

É também falsa a narrativa de que a cassação do direito político de um corrupto a candidatar-se vai educar o eleitor, quando poderá até acomodá-lo. Todos que não forem condenados serão vistos como igualmente bons. Depois do “rouba, mas faz”, cairemos no “se não rouba, já é bom”, não importando suas prioridades e competência. O Brasil vai continuar igual se não nos educarmos como eleitores.

Quando se discutia a Lei da Ficha Limpa, defendi que o ficha-suja deveria poder ir à campanha, como os cigarros vão à venda, com o aviso de que “este candidato foi condenado como corrupto, é ladrão de dinheiro público; ele faz mal à saúde nacional”. A Justiça condenaria, mas caberia ao eleitor cassá-lo nas urnas. Não se tiraria a soberania do povo e, certamente, educar-se-ia melhor o eleitor.

Mas, não foi assim que a lei foi aprovada, com apoio dos que não aceitaram a sugestão, e hoje reclamam dela. A Lei da Ficha Limpa deu à Justiça o poder de condenar e cassar. Vamos ter de conviver com ela esperando educar o eleitor por outros meios, mas alertando que acreditar plenamente em narrativas falsas não educa.

 


Eliane Cantanhêde: Inimigos da democracia

Eleição de 2018 ameaçada por crime organizado, criptomoedas e Fake News

Enquanto na superfície se discutem presidenciáveis, partidos e alianças, nas profundezas a busca é por algo cada vez mais complicado: o financiamento das campanhas de 2018, depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou as doações privadas e a opinião pública rejeitou fundos realistas para as eleições. Sem uma coisa nem outra, o que sobra?

Campanhas são sofisticadas e caras. E quem tem dinheiro para campanhas neste País? O crime organizado, as igrejas com seus dízimos e os partidos que ainda conseguem esconder fortunas em algum lugar do planeta. A Polícia Federal já trabalha com a hipótese de dinheiro vivo em iates, contêineres, caminhões e depósitos, além de apartamentos como aquele com R$ 51 milhões do ex-ministro e agora presidiário Geddel Vieira Lima.

O chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Sérgio Etchegoyen, não esconde o temor da influência do crime organizado na eleição, que projeta influência também nos próximos governos e legislativos. Lembra, inclusive, de episódios de eleições recentes, como a morte de uma dezena de candidatos e cabos eleitorais na Baixada Fluminense, criminosos incendiando locais de votação no Maranhão e avisos de “aqui mando eu” em escolas que recebiam urnas eletrônicas.

O GSI integra uma força-tarefa com TSE, Defesa, Justiça e PF, para tentar dar, sem garantia de sucesso, alguma ordem a esse caos, que inclui não só a infiltração de quadrilhas (comuns...) como também novas formas de comprometer o resultado. Uma delas são as criptomoedas, como o bitcoin, que crescem exponencialmente e sem controle. São legais, mas dependem da ética de cada um, algo para lá de abstrato. Qual é o Banco Central para esse tipo de dinheiro? Quem fiscaliza? Quem pode rastreá-las? “A criminalidade migrou para as criptomoedas”, diz Etchegoyen, reconhecendo a força do inimigo, que representou um grande fluxo de dinheiro, por exemplo, nas eleições municipais de 2016. Com um detalhe: a dificuldade de monitoramento, que pode caracterizar quebra de sigilo, invasão de computadores... Ou seja, um prato feito para criminosos e para verbas de campanha.

Outro alvo da força tarefa são as chamadas “fake news”, que usam a tecnologia, particularmente a internet, para espalhar mentiras que se propagam com uma velocidade estonteante. Em minutos, atingem milhões de pessoas em diferentes partes do mundo e transformam-se em verdade. Sempre perigoso, nas eleições é capaz de inverter resultados. As “fake news” tanto podem ser a favor do candidato-cliente quanto contra os seus adversários.

Depois que o estrago é feito, especialmente na reta final da eleição, não há como revertê-lo. O estrago propaga-se rapidamente, mas a correção é lenta como a justiça brasileira e, até ser feita, Inês é Morta e o candidato, derrotado. Junto com sua biografia, sua imagem e seu conceito público.

Assim como no caso das criptomoedas, rastrear as “Fake News” é como procurar agulha no palheiro. Na greve de policiais no Espírito Santo, em fevereiro, as mensagens “viralizaram” do nada. Soube-se depois que se originavam em Portugal e eram multiplicadas por “robôs”.

O Centro de Tecnologia da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) já avançou muito na detecção dessa prática, assim como o Comando de Defesa Cibernética do Exército vem treinando, com sucesso, desde a Copa e a Olimpíada. Mas combater esse inimigo quase invisível não é fácil.

Os candidatos a presidente, portanto, são apenas uma parte das eleições, num momento de financiamento curto, denúncias intermináveis, desenvoltura do crime organizado e novas formas, não de fazer política, mas de cometer crimes a partir da política. E seja o que Deus e a tecnologia quiserem!