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Evandro Milet: Como governos inovam para captar recursos

Dezessete trilhões de dólares giram no mercado mundial de dívida, remunerados a juros negativos segundo a revista Exame. Então não falta dinheiro, faltam bons projetos que dêem remuneração razoável de forma segura

Claudio Frischtak, consultor de investimentos em infraestrutura, vê o Brasil com necessidade de investir R$ 150 bilhões a mais por ano no setor. Mas a agenda prioritária no momento, ele diz, tem "custo zero" para o Tesouro: pavimentar o caminho institucional para aumentar a participação do setor privado. Diante da impossibilidade de o setor público contribuir com recursos neste momento histórico, é preciso pavimentar o caminho para o setor privado. Um ponto chave é reduzir a insegurança jurídica. Frischtak considera imprescindível um esforço consistente e sistemático de diálogo entre analistas, técnicos e o Executivo com o Poder Judiciário. Decisões recentes, como a do presidente  do STJ, que monocraticamente manteve a retomada da Linha Amarela pela Prefeitura do Rio, são absolutamente destrutivas para a segurança jurídica.

Outro ponto é reduzir a carga regulatória. Frischtak considera que a nova Lei das Agências é positiva. “Outra medida de custo zero é indicar excelentes diretores para as agências reguladoras”, acrescenta.
Um terceiro ponto da agenda é simplesmente tocar para valer a fila do conjunto de marcos legais a ser aprovado. O do saneamento já foi, mas há ainda os marcos do gás natural, da eletricidade e das ferrovias. A agenda é simplesmente fazê-los andar e garantir que mantenham a qualidade, como no caso da aprovação do marco do gás natural pela Câmara.  

Frischtak observa que houve avanços no financiamento da infraestrutura, com a Lei Geral de Concessões, de 1995, a das parceria público-privadas (PPP), em 2004, e o advento das debêntures de infraestrutura em 2010 e 2011.

O mercado se sofisticou, mas ainda falta caminhar mais na direção do “project finance”, os projetos que se financiam a partir do fluxo de caixa, e dos quais há modalidades que até já existem em alguns países latino-americanos e que poderiam ser exploradas no Brasil.

Interessantes modalidades para atração de investimentos privados são o PMI(Procedimento de Manifestação de interesse) e o MIP(Manifestação de interesse privado). O primeiro é instituído e proposto pela própria Administração. Já o segundo, permite a apresentação espontânea de projetos pelo mercado.

As PPP(Parcerias público-privadas) permitem viabilizar projetos onde a cobrança de tarifas não é suficiente para remunerar o investimento e abre-se espaço para uma complementação de receitas pelo setor público. PPP vem sendo utilizadas para vários tipos de empreendimentos: iluminação pública, resíduos sólidos urbanos, saneamento básico, educação(creches), segurança(câmeras de segurança, centros de gestão integrada), saúde(hospitais), mobilidade(gestão de semáforos, terminais de ônibus, estacionamento, serviços de bikes), habitação popular, mobiliário urbano(pontos de ônibus, totens, bancos de praças), turismo(centros de convenções, parques) e redes de dados. A Caixa e o Bndes têm apoiado estados e municípios na formatação de PPP. 

Outra forma de atrair investidores é com as Operações Urbanas Consorciadas, onde o governo municipal faz intervenções buscando requalificar uma área da cidade concedendo aumento do Coeficiente de Aproveitamento ou de modificação dos usos permitidos para o local em troca do investimento privado.

Antes de ir de pires na mão à Brasília é interessante que os novos prefeitos, individualmente ou em consórcio, trabalhem esses formatos mais sofisticados para captar os muitos recursos da iniciativa privada com bons projetos.


Evandro Milet: Na política e fora dela, a lacração nem sempre funciona

Na política, em muitas ocasiões, aqui e fora daqui, a tentação de fazer declarações lacradoras, que encerram discussões, esperando aplausos, elogios da inteligência e reverências pela suposta esperteza, algumas vezes provoca efeito contrário.

Logo depois do golpe de 64, Carlos Lacerda um dos seus principais líderes civis, foi à Europa tentar explicar e defender o movimento. Jornalistas franceses lhe perguntaram se tudo fora feito com apoio dos americanos e ele, lacronicamente(existe isso?), respondeu que havia um engano, o que fora feito com apoio dos americanos tinha sido a libertação da França. E não parou por aí. Perguntaram como era uma revolução - a expressão usada então - sem sangue. Ele, de novo, “assim como os casamentos na França”. Certamente uma ideia já fora do tempo por ali. Resultado: não foi recebido por De Gaulle.

Orador brilhante, a lacração era normal para ele. A um deputado que o aparteou com a expressão “V. Excia. é que é ladrão!”, Carlos Lacerda indagou “Ladrão de quê ?” Da “honra alheia”. “Neste caso fique tranqüilo porque nada tenho a furtar de V. Excia.”.

A suposta esperteza, tentativa de lacração, tosca porém, parece voltar à moda quando Bolsonaro manda Angela Merkel usar o dinheiro que deixava de doar ao meio ambiente brasileiro para cuidar das suas próprias florestas. Mas não chega ao cúmulo da falta de educação e noção das declarações sobre a aparência da primeira dama francesa, aliás reafirmadas pelo Ministro da Economia, a quem supostamente interessaria muito o acordo Mercosul-União Europeia. Alguém consegue imaginar uma visita diplomática do Presidente brasileiro a esses dois países?

Recentemente, Paulo Guedes perdeu a paciência ao ser questionado sobre a política ambiental do governo de Jair Bolsonaro em um evento do Aspen Institute. Num impulso de lacração disparou contra os americanos dizendo que os militares brasileiros entendem "as preocupações de vocês, porque vocês desmataram suas florestas", mas "eles não são como o general Custer, que matou os índios". Vejamos se dirá isso diretamente ao Biden.
Agora, Bolsonaro ameaçou denunciar países europeus - e voltou atrás - que importam madeira ilegal, como se lacrasse dizendo:”Peguei vocês, idiotas, taokey?”. A consequência foi dar argumentos para aqueles protecionistas que querem criar dificuldades para os produtos brasileiros que poderiam, em tese, ter alguma relação com a floresta.

A tentativa de lacração, porém, é universal na política e pode sinalizar, ao contrário, inteligência e presença de espírito. Winston Churchill era um frasista lacrador. Lady Astor da Câmara dos Comuns: “Winston, se você fosse meu marido eu colocaria veneno no seu café”. Churchill: “Madame, se eu fosse seu marido eu o beberia”.

No Congresso Nacional já houve diálogos lacradores bem humorados como o deputado mineiro Último de Carvalho rebatendo um rompante do gaúcho Flores da Cunha que dizia que “no Rio Grande só tem macho”: – “Excelência, em Minas é metade macho, metade fêmea, e nos damos muito bem”.

Fora da política também há lacração. Groucho Marx era comediante lacrador. Ao ser perguntado por um bêbado se não se lembrava dele: “Nunca me esqueço de um rosto, meu amigo. Mas, no seu caso, vou fazer uma exceção”. E também Oscar Wilde ao receber um convite inconveniente: “Infelizmente, devo declinar do seu convite, em razão de um compromisso assumido posteriormente”.

Ficou famosa a frase do carnavalesco Joãosinho Trinta, criticado pelos desfiles luxuosos em contraste com a pobreza dos sambistas: “Pobre gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”. Lacração definitiva, pois nunca mais esse assunto retornou aos comentários de carnaval.
Pelo menos melhor assim do que provocando inconsequentes crises diplomáticas.


‘Falta de educação de qualidade e igual para todos é maior problema do país’, diz Evandro Milet

Em artigo na Política Democrática Online de novembro, consultor explica porque o Brasil não conseguiu seguir exemplos do Japão e da Coreia do Sul

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“O maior problema para o desenvolvimento do país é a falta de educação de qualidade e igual para todos, pobres e ricos, que coloque o país entre os primeiros do mundo nesse fundamento, com muita tecnologia e inovação”. A avaliação é do consultor em inovação e estratégia Evandro Milet, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de novembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de novembro!

Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP. Em seu artigo, Milet afirma que, para o pleno desenvolvimento do país, também é fundamental a redução das desigualdades sociais com programas focados nos mais pobres e na redução dos problemas que tiram grande parte da população da atividade produtiva.

“Cabe aqui enumerá-las: evasão escolar, gravidez na adolescência, homicídios, acidentes de trânsito, discriminações em geral e a falta de creches e escolas de tempo integral, o que tira mulheres do mercado de trabalho”, diz o autor, no artigo publicado na revista Política Democrática Online de novembro.

Em sua análise, Milet observa que, sem ênfase em educação e exportações, o Brasil não conseguiu seguir o exemplo de países como o Japão e a Coreia do Sul, que alcançaram um forte desenvolvimento industrial e tecnológico com sólida atuação do governo. “O Brasil passou muitos anos com sua economia fechada, colocando a culpa da falta de desenvolvimento em fatores externos, subsidiando empresas para substituir importações e acreditando que o governo é o grande motor da economia”, afirma, em outro trecho.

De acordo com o autor do artigo, uma série de problemas ainda assolam o país. “Empresas ineficientes, incapazes de competir internacionalmente; baixa produtividade; governo grande, caro, também ineficiente e corrupto; carga tributária alta; despesa maior que receita implicando dívida alta; ambiente de negócios burocratizado e demonizando o lucro; justiça lenta e que não promove segurança”, critica.

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Evandro Milet: Educação é a maior das obras de infraestrutura, só que invisível

Uma mãe com um filho doente vai correr para um posto de saúde ou para um hospital. Esse desespero se reflete na pressão nos políticos e nas pesquisas eleitorais que apontam a saúde como o maior problema nas cidades. Se as mães tivessem a real consciência da importância da educação para o futuro do filho correriam para a porta das escolas quando percebessem notas baixas, filhos matando aulas, escolas depredadas ou professores sem preparo. Da mesma forma, pressionariam os políticos e fariam questão de marcar presença em reuniões de pais nas escolas. Muitos, infelizmente, entendem a escola apenas pela merenda oferecida, ou para tirar a criança da rua, o que não é desprezível na situação brasileira, mas é muito, muito pouco.

O resultado da educação não tem a visibilidade de uma bela obra de infraestrutura como uma rodovia, uma ferrovia, uma hidrelétrica ou mesmo um viaduto. Fica mais invisível que uma obra de saneamento ou um problema ambiental. E nem se percebe como uma demanda imediata de um sistema de transporte, rede de iluminação ou de wifi.

Por essa invisibilidade e consequente falta de pressão, aparece pouco nos programas dos candidatos, porém, se infraestrutura significa o conjunto de elementos que estimula o desenvolvimento socioeconômico de uma região, educação é a mais importante delas. E a escuridão na educação do Brasil é maior que um apagão de energia.

Mesmo aqueles que percebem a importância da educação para o futuro dos filhos aceitam como satisfatório, por desconhecimento, um padrão, quando muito, apenas razoável quando comparado com padrões internacionais. A referência no Brasil ainda é Sobral no Ceará - o que é um avanço  extraordinário - mas não é Singapura ou Finlândia, a ponta da educação no mundo.

A má qualidade da educação implica na evasão alarmante, no baixíssimo nível de aprendizado e consequentemente em baixos salários, baixa produtividade e mesmo criminalidade e outras mazelas sociais. E os problemas não são esquerdização, ideologia de gênero, Paulo Freire, plantação de maconha, balbúrdia, banheiro unisex ou mamadeira de piroca. O problema é que as crianças não aprendem o que deveriam aprender na idade certa. Por quê? Municípios pequenos não conseguem administrar sua educação, diretores ainda são escolhidos por indicação política, salário baixo de professores não atrai muitos dos melhores para a carreira e faz com que tenham que atender várias escolas para completar salário, falta de formação dos professores, falta de escolas de tempo integral, falta de creches, escolas depredadas e falta de materiais didáticos padronizados para o professor e para o aluno.

As escolas particulares, frequentadas pela classe de renda mais alta, mantém uma qualidade muitas vezes de razoável padrão internacional. Mas também as escolas federais, públicas, como as escolas técnicas, tiveram resultado comparável com os melhores países na avaliação PISA, que mede o conhecimento em leitura, matemática e ciências em jovens de 15 anos. Mostra que é possível uma escola pública de qualidade. Por que não para todos? O que as escolas técnicas federais têm de diferente? Seria o fato de serem federalizadas? Um dos motivos é que mantém professores de dedicação exclusiva.

Uma grande campanha de conscientização da população, no estilo do "Agro é pop" na TV, "Educação importa", por exemplo, poderia ser o início de uma mobilização, que informasse e motivasse a população a desencadear uma pressão política para colocar a educação no lugar devido de prioridade nacional para se conseguir dar uma grande salto. Educação tem que estar no centro de um projeto de desenvolvimento.


RPD || Evandro Milet: Uma agenda para o novo desenvolvimento

Sem ênfase em educação e exportações, o Brasil não conseguiu seguir o exemplo de países como o Japão e a Coreia do Sul, que alcançaram um forte desenvolvimento industrial e tecnológico com sólida atuação do governo

O Brasil passou muitos anos com sua economia fechada, colocando a culpa da falta de desenvolvimento em fatores externos, subsidiando empresas para substituir importações e acreditando que o governo é o grande motor da economia. Grande símbolo desse processo foi o Artigo 219 da Constituição de 1988 estabelecendo que o mercado interno integra o patrimônio nacional e deverá ser incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, […] e a autonomia tecnológica do País. Imaginava-se seguir o exemplo de Japão e Coreia em um desenvolvimento industrial e tecnológico com forte atuação do governo e reserva de mercado para as empresas nacionais. Mas eles tinham duas coisas que nós não tínhamos e, aliás, não temos até hoje: ênfase em educação e exportações.

Problemas que se estendem até hoje: empresas ineficientes, incapazes de competir internacionalmente; baixa produtividade; governo grande, caro, também ineficiente e corrupto; carga tributária alta; despesa maior que receita implicando dívida alta; ambiente de negócios burocratizado e demonizando o lucro; justiça lenta e que não promove segurança.

Uma nova agenda para o desenvolvimento tem de romper com tudo isso. Precisamos de um choque de capitalismo com uma revolução na educação, uma rede focada na proteção social e uma abertura para o exterior – as empresas brasileiras precisam competir internacionalmente.

Mas também o capitalismo de hoje está diferente. Serviços e tecnologia adquiriram peso muito maior, o mercado financeiro criou novos mecanismos que precisamos absorver e a sustentabilidade ambiental é um valor fundamental.

Apesar dos problemas, o Brasil teve um setor com avanços extraordinários, muita tecnologia e sem subsídios: commodities, com agronegócio e mineração. Há certo preconceito contra commodities, como se fossem coisa menor, sendo obrigatória uma agregação de valor nos produtos. A agregação de valor pode ser feita na cadeia, com investimentos privados na logística de ferrovias e portos, insumos e equipamentos, inovação e tecnologia e serviços acoplados, abrindo outras oportunidades de negócios nesses setores. A riqueza gerada pelas commodities e suas cadeias alimenta todas as outras e gera novos espaços de competição na indústria e nos serviços.

O mercado financeiro também abre novas oportunidades. O Brasil nunca teve juros e inflação tão baixos. O investimento em startups, no venture capital e na bolsa, assim como o empreendedorismo em geral, tão comuns nos Estados Unidos, não cresciam no Brasil pela oportunidade das altas taxas de juros reais nas aplicações de renda fixa e pelo financiamento subsidiado para empresas no BNDES. O mercado está em ebulição nesses aspectos e nas oportunidades em privatizações, concessões e PPPs, antes malvistas e agora aceitas pela sociedade.

De outro lado, as taxas de juros internacionais em torno de zero provocam a procura da poupança internacional por investimentos seguros pelo mundo. Toda a infraestrutura brasileira (saneamento, logística, energia, digital) pode sofrer uma revolução com implicações sociais na saúde e no emprego.

Mas os problemas são a insegurança jurídica para investimentos de longo prazo e a incerteza na economia. Quem investe sem saber quais serão a taxa de juros, a inflação e o câmbio nos próximos anos? O equilíbrio fiscal é fundamental para garantir um futuro previsível para investidores.

Para o ambiente de negócios falta uma reforma tributária que reduza burocracia e impostos, uma reforma da justiça para ser mais rápida e mais estável nas suas decisões, e uma reforma administrativa que racionalize a atuação do governo, reduza o custo e elimine as disfuncionalidades do sistema de controle.

Falta atender à grande demanda atual não só dos governos, mas também dos consumidores mundiais, pela preservação do meio ambiente. A importância brasileira nesse tema é tanta que pode nos abrir espaço para exercer um soft power mundial com ótimas repercussões nos negócios em geral e na nova bioeconomia.

Para o pleno desenvolvimento do País, é fundamental a redução das desigualdades sociais com programas focados nos mais pobres e na redução dos problemas que tiram grande parte da população da atividade produtiva. Cabe aqui enumerá-las: evasão escolar, gravidez na adolescência, homicídios, acidentes de trânsito, discriminações em geral e a falta de creches e escolas de tempo integral, o que tira mulheres do mercado de trabalho.

Porém, é possível eleger o maior problema para o desenvolvimento do país: a falta de uma educação de qualidade e igual para todos, pobres e ricos, que coloque o país entre os primeiros do mundo nesse fundamento, com muita tecnologia e inovação.

*Evandro Milet é consultor em inovação e estratégia


Evandro Milet: 1984 - o manifesto do ódio

George Orwell escreveu 1984 em 1948 como uma descrição das forças que ameaçam a liberdade e da necessidade de resistir a elas. Não há como deixar de associar as situações extremas relatadas com as ameaças à democracia que aconteceram e acontecem em muitos países, à direita e à esquerda, em maior ou menor grau, assim como ele teve como inspiração o regime stalinista.

Orwell cria uma linguagem, a novilíngua(ou novafala em algumas traduções) com expressões que refletem o ambiente de repressão relatado. Em novilíngua, duplipensamento significa a capacidade precavida de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas, por exemplo, acreditar que a democracia era impossível e que o Partido era o guardião da democracia. Nada estranho para quem se diz democrata e pede fechamento do Congresso, intervenção militar ou exalta ditaduras - aqui ou em Cuba. Ou governos que lançam programas pela manhã e os classificam como insanidade à tarde. Ou simpatizantes de autocracias com aparência democrática, os chamados iliberais.

Na história, o ato essencial do Partido no poder consiste em “usar o engodo consciente sem perder a firmeza de propósito que corresponde à total honestidade”, lembra as fakenews propagadas quase oficialmente; e milicianos e rachadinhas versus supostas estatísticas de honestidade seletiva. Ou governantes que se auto declaram " o mais honesto" depois de comandar o maior assalto aos cofres públicos.

No evento "Dois minutos de Ódio" que acontecem regularmente na história como preparativos para a "Semana do Ódio"( na história não aparece um gabinete dedicado a isso), todos são induzidos ao paroxismo de gritar slogans e atirar objetos nas teletelas que mostram os inimigos, teletelas que estão em todos os lugares vigiando todos. Em seguida gritam exaltações histéricas “G-I!…,G-I!…,G-I!…” quando aparece a figura do Grande Irmão, um grande mito. Nunca deixe de berrar junto com a multidão, só assim você estará em segurança, é a recomendação.

Os adeptos mais fanáticos do Partido eram os devoradores de slogans, os espiões amadores e os farejadores de ortodoxia que parecem figuras que circulam nas redes sociais e grupos de WhatsApp. A mulher de Winston, o personagem principal, era incapaz de formular um só pensamento que não fosse um slogan, assim como não havia uma imbecilidade que ela não engolisse se o partido assim o quisesse.

Em novilíngua, criminterrupção significa “a capacidade de parar, como por instinto, no limiar de todo pensamento perigoso ou pensamento-crime. O conceito inclui a capacidade de não entender analogias, de deixar de perceber erros lógicos, de compreender mal os argumentos mais simples, caso sejam antagônicos ao Partido, e de sentir-se entediado ou incomodado por toda sequência de raciocínio capaz de enveredar por um rumo errático”. Lembra debates no Facebook e a vigilância da cultura do cancelamento, que procura constranger quem manifesta opinião divergente. A heresia das heresias era o bom senso. 

Um conceito fundamental é a mutabilidade do passado. No Ministério da Verdade, o trabalho consiste em apagar sistematicamente as informações do passado que contrariam o presente, como metas não cumpridas, pedaladas ou vaporizando(cancelando, aniquilando) pessoas que passam a inimigas, talvez como dissidentes do Partido ou ex-ministros. Esses passam a ser despessoas, muitas torturadas no Ministério do Amor. Afinal, “quem controla o passado controla o futuro, quem controla o presente controla o passado” é lema do Partido.

A polícia das ideias mantém as teletelas em todos os lugares, capazes de perceber até um rostocrime(em novilíngua), que significa ostentar uma expressão inadequada em alguma situação como, talvez, duvidar de alguma proposta do governo e virar inimigo. Hoje uma postagem no Twitter ou Facebook pode causar o mesmo efeito.

Se você quer formar uma imagem do futuro, imagine uma bota pisoteando um rosto humano - para sempre, conclui O’Brien, o torturador de Winston, preso por pensamento-crime, depois de explicar a ideologia que move o Partido. 

Mesmo longe dessas situações extremas, é sempre bom estar antenado com assustadoras distopias na literatura. 

O mundo precisa resgatar as virtudes da tolerância e da empatia. O resultado das eleições americanas pode ser um ponto de inflexão na polarização nefasta que se espalhou também no Brasil.


Evandro Milet: JK - as lições de um estadista

O governo JK foi um intervalo de relativa estabilidade entre períodos estressantes da política nacional. Eleito com 33,8% dos votos(não havia segundo turno) teve de governar sem maioria no Congresso e com uma oposição que vinha de tentativa de golpe militar para derrubar Getúlio e impedir a sua própria eleição e posse, motivada principalmente pela presença do PTB de João Goulart na chapa como vice presidente. Essas e outras histórias são contadas no livro JK, o artista do impossível de Cláudio Bojunga.

Muitas vezes se vê hoje comentários na internet, de pessoas que desconhecem a história, argumentando que antigamente a imprensa relatava apenas fatos e hoje procura indevidamente analisar acontecimentos e emitir opinião. Carlos Lacerda era jornalista e com seus artigos demolidores foi adversário ferrenho de JK e mais ainda de Getúlio, sendo causa imediata do seu suicídio. 

Getúlio era anticapitalista, confiava mais no Estado que na sociedade e dava precedência à política sobre a economia. JK aceitava de bom grado a desordem capitalista, nunca teve preconceito contra o lucro e sobrepunha a economia à política.

Juscelino era um sedutor como político. San Thiago Dantas dizia que ”Quem quiser ser inimigo de Juscelino deve ficar pelo menos a seis léguas de distância. O homem é uma pilha de simpatia humana". Não tinha preconceitos ideológicos: ouvia adversários e opiniões discordantes e não se importava com a orientação filosófica ou doutrinária do interlocutor. Queria informar-se com opositores e seduzir adversários. Ulysses Guimarães dizia que “o homem público, sobretudo o Presidente, não pode ser amargo, ressentido. A vida pública se faz com  felicidade e alegria - e Juscelino era homem feliz e alegre.” Democrata convicto dizia: “Quero a imprensa desatada, mesmo para ser injusta comigo.”

Imaginem como foi possível, em situação de minoria, aprovar a construção de Brasília e a mudança da capital. A oposição só aprovou porque não acreditou que seria possível  e que JK encontraria no cerrado o seu “túmulo político”. Brasília custou caro - a inflação foi a 30,5% em 1960 - mas provocou a integração geográfica do país, ainda mais com a construção da Belém-Brasília, outra iniciativa sua. 

JK fez um governo de realizações impressionantes, fora construir uma cidade inteira em cinco anos. Energia era uma obsessão. Encontrou 7 bilhões de m3 de água represada e deixou 82 bilhões. Construiu 20 mil quilômetros de estradas e pavimentou 5 600 quilômetros de rodovias já existentes. Entre 1956 e 1960 a economia teve taxa de crescimento de 8,1% ao ano, chegando a 10,8% em 1960. A participação da indústria no PIB passou de 20,4% em 1955 para 25,6% em 1960.

Abriu a economia para participação estrangeira, inclusive para a indústria automobilística, em uma época onde a Ford se aferrava a um relatório suspeito segundo o qual não seria possível fundir um motor à explosão nos trópicos. Entendia também que o desenvolvimento físico do país demandava ser complementado pelo desenvolvimento cultural. Foi um dos períodos de maior efervescência cultural que explodiu depois na música, no cinema e nas artes em geral. O social também avançou e no pico o salário mínimo chegou a 185 dólares em 1959.

Para conseguir a adesão dos brasileiros, JK se transformou em missionário da refundação do país. Circulava de avião pelo país, muitas vezes em situações perigosas. Inspecionava rodovias e hidrelétricas, conversava com operários no canteiro de obras e explicava periodicamente ao país o andamento dos trabalhos. O ex-Senador Eduardo Suplicy diz que o seu primeiro professor de desenvolvimento econômico, ainda adolescente, foi JK explicando didaticamente seu Programa de Metas na TV. Esse é um grande papel do estadista: conversar, motivar, explicar e convencer.

Na biografia falta aquilo que faltou sempre aos governantes brasileiros, a prioridade na educação. Mas JK teve papel fundamental na história do país.

Candidatíssimo para Presidente em 1965 foi cassado e teve os direitos políticos suspensos em 1964, assim como líderes de direita do movimento como Carlos Lacerda, também candidato, que os militares entendiam como ameaças. Muito tempo depois, perguntado o porquê da cassação sem motivo, o Presidente Figueiredo, revelando a baixeza desse período de inquisição política, foi sucinto: “Por que Costa e Silva quis”. 

O governo JK foi um período de glória para a autoestima nacional. Nelson Rodrigues resumiu ao seu jeito o significado de JK: […] ele sacudiu dentro de nós insuspeitadas potencialidades. A partir de Juscelino surge um novo brasileiro.


Evandro Milet: Um poeta enxergou o futuro digital

Em seu conto “O Aleph” de 1949, Jorge Luis Borges, poeta e escritor, relata o dia em que viu, no porão de uma casa nos arredores de Buenos Aires, o Aleph, uma esfera furta-cor de dois ou três centímetros de diâmetro onde se concentravam todos os pontos do universo, todos os rostos, todos os lugares, todas as coisas. Depois disso, onde andasse, tudo lhe parecia familiar. Depois ele mesmo explicaria: “O que a eternidade é para o tempo, o Aleph é para o espaço”.

Parece que a ficção fantástica vira realidade e qualquer um hoje pode ver, não em uma esfera, mas em uma tela plana de poucos centímetros de um smartphone, todas os rostos nas redes sociais, todos os lugares no Google Maps com Street View e todas as coisas com os mecanismos de busca e a proliferação do big data.  E muitas das coisas que vemos podem até ser compradas na hora em um marketplace, ou podemos aprender a fazê-las em um vídeo no YouTube.

E a realidade supera a ficção porque não apenas vemos tudo, mas também nos comunicamos com todos e não precisamos ir a um porão - quer dizer, a não ser para tentar pegar o difícil sinal da operadora -, enquanto a internet das coisas se expande para permitir que os objetos se comuniquem entre si com base nos sensores que estarão em todos os lugares e que nos avisem de problemas. 

E não ficamos limitados apenas em perceber os rostos como familiares. O reconhecimento facial e os registros em bancos de dados vão nos dizer de quem são aqueles rostos, o que fazem e, para os governos, vão informar se já cometeram crimes ou se são perigosos. E o conceito de perigosos varia conforme o regime político.

E as coisas podem falar conosco como fazem os assistentes pessoais, podem responder nossas perguntas e tirar nossas dúvidas. Podem permitir conversas em línguas diferentes em traduções cada vez mais próximas da perfeição. Podem comandar compras e ajudar as crianças no dever de casa.
Mas Borges, que faleceu em 1986, antes da internet e do big data, vislumbrou outras coisas.

Em seu conto A Biblioteca de Babel, publicado em 1944, ele imaginou uma biblioteca infinita que abarcasse todos os livros e “quando se proclamou essa capacidade, a primeira impressão foi de extravagante felicidade.” Tudo bem que não temos uma biblioteca infinita, mas uma livraria infinita como a Amazon já é de extravagante felicidade.
 A biblioteca do conto serviu de inspiração para Umberto Eco na trama medieval do excelente O Nome da Rosa, e Borges teve até direito a dar o nome ao bibliotecário cego(como ele no fim da vida) do mosteiro, Jorge de Burgos, em uma parceria de gênios.

Além de escrever coisas fantásticas, Borges foi um visionário digital. Afinal, como ele dizia: “os poetas, como os cegos, podem ver no escuro”.


Evando Milet: A ciência tem que desfilar em carro aberto

Após a comprovação da Teoria da Relatividade Geral em 1919 (por um eclipse em Sobral no Ceará), Einstein foi, pela primeira vez aos Estados Unidos em 1921, em um evento singular na história da ciência, e extraordinário para todas as áreas: uma grande marcha de dois meses de duração pelo leste e meio-oeste dos Estados Unidos, que fazia lembrar o frenesi e a adulação da imprensa seguindo o turnê de uma estrela do rock, com direito a desfile em carro aberto pelas ruas de Nova York. A descrição da viagem, na biografia de Albert Einstein escrita por Walter Isaacson, mostra o prestígio e a importância dada à ciência e aos cientistas cem anos atrás nos Estados Unidos. 

E não é fácil entender a Teoria da Relatividade. Na estreia de Luzes da Cidade, em Hollywood, em 1931, onde chegaram juntos, Charles Chaplin observou para Einstein, de forma memorável(e precisa): “Eles me aplaudem porque me entendem, e o aplaudem porque ninguém o entende”.
Quase 200 anos antes, em 1727, sir Isaac Newton era sepultado na Abadia de Westminster em um funeral digno de um rei. Alexander Pope, um dos maiores poetas britânicos da história, escreveu os dizeres para o seu túmulo (apesar do que não foi permitido colocá-lo na Abadia de Westminster): “A natureza e as leis da natureza estavam imersas em trevas; Deus disse "Haja Newton" e tudo se iluminou”. 

Por muitos considerado o maior cientista que já viveu, Newton formou-se em 1664 e ganhou uma bolsa de pós-graduação para continuar na Universidade. Mas sua estadia em Cambridge foi interrompida pela grande praga de Londres que matou quase 100.000 pessoas e que o obrigou a ficar em casa. Confinado por 18 meses desenvolveu ideias de matemática e ótica, e começou a trabalhar na Lei da Gravitação Universal. Em 1667 concluiu a formulação do Cálculo Diferencial e Integral, um de seus mais importantes trabalhos(entre muitos outros fundamentais na matemática, na física e na astronomia). 

Esperamos que esse surto de criatividade acometa também muita gente confinada nesse período de pandemia que vivemos. E que a ciência seja valorizada. Talvez a ciência nunca tenha estado tão em evidência como agora, onde todo o mundo acompanha ansioso notícias diárias dos cientistas sobre vírus e vacinas enquanto, de outro lado, os obscurantistas acompanham os pajés da política com seus remédios milagrosos e seu negacionismo na saúde e no meio ambiente. 

É fundamental que o Brasil avance no ensino das disciplinas do STEM (sigla em inglês para Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática) para que não fiquemos, em pleno século 21, replicando charlatães na internet e com desfiles em carro aberto e funerais concorridos só para políticos populistas, astros de rock(ou de funk) e jogadores de futebol - tudo bem, alguns até merecidos. 


Evandro Milet: Mussolini em Copacabana

Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, a noite de 27 de maio de 1939 foi marcada pelos passinhos de samba que a filha do ditador italiano, Edda Mussolini, arriscou diante do chefe do Estado Maior do Departamento de Guerra dos Estados Unidos, George Marshall, Jr., em pleno Palácio Guanabara, residência oficial do ditador brasileiro. O General Marshall entraria para a história ao batizar o Plano de recuperação da Europa depois da guerra. Edda atuava como embaixadora cultural do fascismo, enquanto Marshall procurava aproximar o Exército norte-americano das Forças Armadas brasileiras, ambos disputando a parceria estratégica do Brasil no Atlântico Sul.

Getúlio, malabarista e ambíguo como sempre, com a intenção de enfatizar a neutralidade de seu governo até ali, fez coincidir as datas de visita e dedicou a mesma cortesia para ambos. Ele tinha simpatia pelo fascismo italiano, mas tentava negociar o apoio desejado pelos americanos, incluindo na pauta a construção de uma siderúrgica, que viria a ser a Companhia Siderúrgica Nacional - CSN, marco da industrialização do país.

A jovem e atraente Edda fez sucesso junto ao público masculino, mas o único que chegou junto foi o irmão mais novo de Getúlio, Bejo Vargas, apesar do fato daquela jovem senhora de 29 anos ser casada com o Ministro das Relações Exteriores da Itália. Durante duas semanas no Rio, Edda e Bejo barbarizaram, culminando com uma tórrida madrugada nas areias de Copacabana, em um banho de mar completamente nus, para escândalo dos moradores da avenida em frente.

“Eu não me contive, tchê!”, teria justificado Bejo, quando Getúlio lhe pediu explicações. 

Getúlio era um camaleão político. Nos seus 19 anos de poder, brigou e fez as pazes com os mesmos personagens inúmeras vezes. Fez alianças inimagináveis com antigos desafetos políticos e com esse pragmatismo sobreviveu a inúmeras intenções de golpe. Hoje o Presidente escolhe um inimigo por mês, como os quadros afixados nas paredes das lanchonetes. Já tiveram seus retratos carimbados pelas hashtags do gabinete do ódio: Maia, Alcolumbre, Dória, Witzel, o Congresso, o STF, Mandetta, Moro, Alexandre Morais, Macron, Merkel, o Papa, a Greta, a China, as jornalistas Patrícia e Vera, Globo, Estadão e Folha. 

Essa mistura de personagens, fatos históricos, ideologias e comportamentos nos leva a associar com a postura de Bolsonaro, que assume democraticamente com a bandeira da luta contra a corrupção e uma pauta liberal na economia e, de repente, muda tudo. Discurso autoritário, guerra com os outros poderes, apoio às manifestações pela intervenção militar e o AI-5, acordo com o centrão e um Plano Marshall desenvolvimentista o levam de volta à sua verdadeira natureza política, econômica, comportamental e de patrocinador de causas menores. Cobrado pelos eleitores ele diria como Bejo: "Eu não me contive, tchê".


Evandro Milet: Diferenças entre liberais e conservadores

No recente livro O Chamado da Tribo, o Prêmio Nobel de Literatura Mário Vargas Llosa descreve em oito capítulos a sua história intelectual e política, do marxismo na juventude para o liberalismo na fase adulta. Em cada capítulo o resumo do trabalho dos pensadores que fizeram a sua cabeça: Adam Smith, Ortega y Gasset, Hayek, Popper, Aron, Isaiah Berlin e Revel.

No capítulo de Hayek, ele descreve o ensaio “Por que não sou um conservador” incluído no posfácio do clássico Os fundamentos da liberdade desse autor. Ali ele explica a diferença entre um liberal e um conservador, apesar de terem muitas coisas em comum.

Um conservador, diz Hayek, não propõe alternativa para a direção em que o mundo avança, enquanto para um liberal o para onde nos movemos é essencial. O propósito de um conservador é ditado pelo medo à mudança e ao desconhecido, por sua tendência naturalmente propensa à “autoridade” e pelo fato de que ele padece de um grande desconhecimento das forças que movem a economia. Tende a ser benevolente com a coerção e o poder arbitrário, que pode até justificar se, usando a violência, julgar que atinge “bons fins”. Isso estabelece um abismo insuperável com um liberal, para o qual “nem os ideais morais nem os religiosos justificam jamais a coerção”, coerção essa em que acreditam tanto os socialistas como os conservadores. Esses últimos costumam responsabilizar “a democracia” por todos os males que a sociedade padece e veem na própria ideia de mudança e de reforma uma ameaça a seus ideais sociais. Por isso muitas vezes os conservadores são obscurantistas, isto é, retrógrados em matéria política.

Um conservador dificilmente entende a diferença que os liberais fazem entre nacionalismo e patriotismo, para ele as duas coisas são idênticas. Para um liberal o patriotismo é um sentimento benévolo, de solidariedade e afeto a terra em que nasceu, aos seus ancestrais, à língua que fala, à história vivida pelos seus, coisa perfeitamente saudável e legítima, enquanto o nacionalismo é uma paixão negativa, uma perniciosa afirmação e defesa do que é próprio contra o estrangeiro, como se o nacional constituísse um valor em si mesmo, algo superior, uma ideia que é fonte de racismo, de discriminação e de encerramento intelectual.

Os conservadores costumam ter muita segurança e firmeza sobre todas as coisas, o que os impede de duvidar de si mesmos. E, segundo Hayek, a dúvida constante e a autocrítica são indispensáveis para fazer avançar o conhecimento em todos os campos do saber. Um liberal costuma ser “um cético”, alguém que considera provisórias até mesmo as verdades que lhe são mais caras. Esse ceticismo é justamente o que lhe permite ser tolerante e conciliador com as convicções e crenças dos outros, mesmo que sejam muito diferentes das suas.

E conclui Hayek afirmando que esse espírito aberto, capaz de mudar e superar as próprias convicções, é incomum e quase sempre inconcebível para quem, como tantos conservadores, julga ter alcançado as verdades absolutas, invulneráveis a qualquer questionamento ou crítica.