EUGÊNIO BUCCI

Eugênio Bucci: A publicidade ilegal do golpe de Estado

A pecúnia se associou ao golpismo criminoso e, em negócio lucrativo, o canal é a propaganda. Não é de liberdade que se trata

Eugênio Bucci / O Estado de S. Paulo

Devemos garantir a liberdade de expressão aos que falam abertamente em destruir a liberdade de expressão dos demais? A resposta é sim. O espetáculo grotesco desse falatório fanático nos dá náuseas, mas a resposta é sim. Enquanto estamos discutindo ideias e formulando críticas, o debate público se resolve por si e nenhuma vírgula pode ser barrada.

Isto posto, vem a pergunta que de fato interessa: então, quer dizer que um grupo semiclandestino de endinheirados, ignorantes e fascistas, armados de carabinas e de supercomputadores até os dentes repaginados e branqueados, pode fazer publicidade massiva do golpe de Estado? Esse é o debate crucial. A liberdade de imprensa, ou de expressão, não está em discussão aqui.

Essas falanges digitais, rurais e enchapeladas, fardadas ou não, essas milícias que veneram a ditadura, a tortura e a censura costumam se refugiar sob o manto da liberdade, mas isso é apenas cortina de fumaça. Discuti-las pelo prisma da liberdade de imprensa ou de expressão é cair na armadilha que elas armaram – e é um erro de método. Não é de liberdade que se trata. Os indivíduos têm o direito de expressar seu pensamento, mas esses destacamentos são organizações profissionalizadas industriando a implosão da ordem democrática, justamente a ordem que nos garante a liberdade de falar o que nos vai ou vem à cabeça.

Qualquer um pode dizer na imprensa ou na internet o que quiser, e disso não abrimos mão. O nosso desafio, porém, não passa por aí, mas por perceber que a liberdade de expressão e de imprensa não inclui a licença de praticar atos – muito mais do que palavras – que atentem contra os direitos fundamentais dos demais. Não estamos discutindo limites à liberdade de expressão. O que precisamos discutir, isso sim, são os limites que se estabelecem – e precisam se estabelecer – contra atos ilegais que se realizam além da liberdade de expressão.

A democracia já encontrou fórmulas eficazes para resolver esse tipo de impasse. Vejamos um exemplo corriqueiro, elementar. Um cidadão tem todo o direito de ir a público dizer que, em sua opinião, todas as drogas deveriam ser descriminalizadas. Esse cidadão é livre para declarar em qualquer lugar, a qualquer hora, que, no seu modo de ver, é razoável e necessário liberar de uma vez a maconha, o LSD, a heroína, a cocaína. Está no seu direito. Fora disso, o mesmo cidadão não tem o direito de, em nenhuma hipótese, publicar nos jornais anúncios da maconha fornecida pelo fulano, que está à venda no site tal, a preço de ocasião. A mesma democracia que garante a plena liberdade de expressão e de imprensa restringe, com toda a legitimidade, a publicidade de substâncias não autorizadas pela lei.

Tudo muito simples, óbvio, irrefutável. Fazer publicidade de uma substância ou de uma prática ilegal não faz parte das garantias postas pelo princípio da liberdade de expressão. A imprensa tem liberdade para publicar todas as ideias, boas ou más. O ramo comercial da publicidade não desfruta a mesma liberdade. As empresas têm é o direito de anunciar seus produtos e serviços – desde que sejam produtos e serviços devidamente legais. A rigor, a publicidade comercial não é propriamente um capítulo da liberdade de expressão, mas uma extensão acessória de um negócio comercial, regulada conforme as normas próprias desse negócio.

Para resumir, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa não são a mesma coisa que direito de anunciar. As primeiras são garantias fundamentais e não podem sofrer restrições do poder; o segundo é um direito regulado e só pode ser exercido dentro dos termos da lei que disciplina aquele mercado específico.

Tanto é assim que em vários países democráticos não se aceita publicidade de bebidas alcoólicas para públicos infantis ou adolescentes e nem por isso alguém vai dizer que a liberdade de expressão tenha sido violada. Repita-se: liberdade de expressão não é igual ao direito de anunciar. A democracia diferenciou as duas categorias, por justas e sábias razões. A gente pode e deve criticar as autoridades, até mesmo com dureza, mas ninguém pode fazer publicidade, sobretudo quando financiada de forma obscura com recursos de origem mais obscura ainda, de atos criminosos contra as sedes dos Poderes da República ou contra a integridade física de seus representantes.

Vejamos outro caso. Um sujeito desmiolado pode dar uma entrevista jurando que pinga com limão combate a pandemia. Mas será que uma associação de profissionais tem o direito de promover o consumo de remédios ineficazes como se fossem a panaceia, numa campanha publicitária paga por empresas que têm interesse econômico na fabricação e na venda dessas substâncias? Isso pode?

A ameaça que paira sobre a democracia brasileira não decorre de um abuso da liberdade de expressão, mas de uma forma disfarçada de publicidade (paga) antidemocrática. A pecúnia se associou ao golpismo criminoso e, em negócio lucrativo, o canal não é o jornalismo, mas a propaganda milionária. O pesadelo não são os autoproclamados patriotas, mas os patrimoniotas.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-publicidade-ilegal-do-golpe-de-estado,70003821442


Eugênio Bucci: O cerco à universidade

No início do mês a Reitoria da Universidade de São Paulo (USP) recebeu uma representação em nome do procurador-geral da República, Augusto Aras. No documento, os advogados de Aras reclamam de textos publicados na imprensa e nas redes sociais por um professor de Direito da USP, Conrado Hübner Mendes, que, na visão deles, ofenderiam o atual chefe do Ministério Público Federal. A peça jurídica dedica quatro de suas 11 páginas a discorrer sobre o curriculum vitae da autoridade que se declara ofendida; em seguida, enumera o que afirma serem acusações inverídicas; e, ao final, requer que o caso seja levado à Comissão de Ética da USP para as providências que julga devidas.

Com efeito, o professor Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito e Ciência Política, embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt, pesquisador reconhecido pelos pares em temas como Direito Constitucional, Poder Judiciário e autonomia acadêmica, tem feito críticas duras ao Supremo Tribunal Federal e ao Ministério Público. Suas colunas semanais no jornal Folha de S. Paulo e seus posts no Twitter alcançam leitores em audiências diversas. A democracia garante-lhe a liberdade de expressão. De outra parte, por óbvio, quem se sinta injustamente atacado tem o direito, também democrático, de buscar formas de reparação. Até aí, nada de novo sob o sol – ou nada de novo sob a treva que nos tem sido mais frequente.

Há algo de impróprio, no entanto, na representação feita à USP em nome do procurador-geral, que solicita à cúpula universitária a punição de manifestações públicas de um dos seus docentes. São dois os equívocos.

O primeiro está na tentativa de transformar a universidade pública, que se define como um polo social e material de liberdade, em órgão de vigilância de opinião. Pleitear tal aberração é o mesmo que esperar que o sol esfrie os corpos na Terra. Não há razão nesse pedido. Mais ainda, não há nele a mínima compreensão do que seja a institucionalidade democrática.

O segundo equívoco decorre do primeiro, e o complica ainda mais. Os advogados que assinam a representação parecem não ter assimilado o conceito de autonomia universitária. Eles se dirigem à cúpula da USP mais ou menos como se fossem, no velho jargão dos despachantes de porta de cadeia, o sujeito que vai “dar parte” na delegacia, ou como um estudante de colégio interno que delata os colegas para o inspetor de alunos. Essa postura não cabe na vida universitária de uma sociedade democrática, não é assim que funciona.

Quando se diz que a universidade tem autonomia, o que se quer dizer, se é que ainda não estava claro, é que a universidade não deve obediência a autoridades que lhe sejam externas. Um ministro de Estado, um cardeal, um pai de santo ou um general não podem dar ordens às instâncias universitárias, pois não têm atribuições para pautá-las. Por certo, a universidade tem o dever de prestar contas à sociedade e a todos os órgãos de controle, mas não se subordina a nenhum comando externo, muito menos quando lhe cobram que enquadre o pensamento livre.

Por isso, a representação é equivocada. Seria apenas uma peça inoportuna e desajeitada caso vivêssemos no País uma situação normal. Como estamos naufragados num contexto de atordoante anormalidade, ela nos traz preocupações maiores. Embora possa não ter sido essa a intenção dos advogados, a peça que eles assinam aterrissa na mesa do reitor com sinais de ameaça. Talvez não seja esse o propósito do procurador-geral, mas na quadra da História em que nos encontramos e nos perdemos fica no ar um travo de intimidação. É algo que não está dito, mas pode muito bem estar pressuposto.

Olhemos o entorno. A todo momento a Lei de Segurança Nacional tem sido brandida contra jornalistas, chargistas, artistas e intelectuais. Em março, dois professores da Universidade Federal de Pelotas, Pedro Hallal e Eraldo dos Santos Pinheiro, foram constrangidos a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) por terem criticado o governo federal. Em níveis diversos, proliferam os torniquetes orçamentários contra a educação superior, que prejudicam mais o campo das humanidades, justamente onde mais pipocam ideias críticas e incômodas. As investigações policiais que atingem a administração universitária se paramentam de notas sensacionalistas e espetaculosas, como a primeira fase da Operação Torre de Marfim (o nome escolhido já diz tudo acerca de uma certa sanha antiacadêmica), cuja prepotência trouxe de arrasto a tragédia, com o suicídio do então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, em 2017.

Naquele ano, o cerco em torno de pesquisadores, cientistas e intelectuais ligados à educação superior no Brasil crescia em brutalidade e arrogância, numa trilha de retórica violenta que em 2018 desfraldaria as bandeiras do bolsonarismo. Agora a universidade é bombardeada a todo tempo pelo poder, como se fosse inimiga da Pátria. Nesta hora infeliz, a representação do procurador-geral contra a USP vem piorar o ambiente.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-cerco-a-universidade,70003720292


Eugênio Bucci: Justiça performática

Vivemos num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do STF nos sobressaltam

Em dois dias, mudou tudo. Na segunda-feira, em despacho monocrático, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), devolveu os direitos políticos a Luiz Inácio Lula da Silva. Ao anular as sentenças da Lava Jato contra o ex-presidente, sob o argumento de que o juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro, não era aquele a quem cabia a competência para decidir sobre as acusações que pesavam contra o réu, Fachin limpou a ficha de Lula, que agora está livre para se candidatar em 2022.

No dia seguinte veio mais. A Segunda Turma do mesmo STF começou a julgar a parcialidade e a suspeição do juiz Sergio Moro nas sentenças contra Lula. O julgamento levado a efeito pela Segunda Turma ainda não foi concluído, pois o ministro Nunes Marques pediu vista, dizendo que precisava estudar melhor o processo antes de votar, mas o que os ministros disseram na tarde de anteontem abalou o que se tinha por certo e sabido. Quando se referiu à Operação Lava Jato como “o maior escândalo judicial da nossa história”, o ministro Gilmar Mendes deixou claro: tudo mudou.

Nada contra o veredicto de segunda. Nada contra a sessão de terça. As razões processuais alegadas pela defesa do ex-presidente Lula vão se demonstrando irrefutáveis. A incompetência do juízo de Curitiba só demorou uns anos para ser admitida no STF, mas é cristalina. Ninguém mais parece disposto a refutá-la, a não ser que tudo mude de novo. Quanto aos sinais de parcialidade do magistrado responsável pela Operação Lava Jato, que foram enumerados na terça pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, não há peneira hermenêutica que dê conta de encobri-los. Houve abusos, alguns provados, outros até tacitamente admitidos.

Ao menos no caso de Lula, o juiz da Lava Jato perpetrou injustiças em série, ainda que tenham sido injustiças estritamente processuais, formais, como vem postulando a defesa. Por isso já se sabia que, em algum prazo, de alguma forma, essas injustiças acabariam sendo reconhecidas pelo Supremo, como começou a ser feito nestes dois dias. Só não se sabia que as coisas viriam assim, tão espetaculosas, alvoroçadas e atordoantes.

Portanto, o problema não é o que se decidiu. Ao contrário, a nova postura do STF sobre a matéria talvez seja até parte da solução. O problema é o risco imenso de se aprofundar uma impressão generalizada de que a mais alta instância da Justiça no Brasil se pauta pela inconsistência e pela imprevisibilidade errática. O risco não deveria ser desprezado. Justiça não combina com ciclotimia.

A instituição incumbida de julgar todos nós não deveria sentir-se à vontade para mudar assim ao sabor das brisas, dos ventos e mesmo dos furacões. Alguma linha de coerência há de perdurar entre as decisões, sob pena de a sociedade parar de acreditar de vez na magistratura. Deus, que é Deus, pode escrever por linhas tortas. Os juízes, não, por mais que alguns insistam.

E agora? A sociedade brasileira assimilará bem a incongruência entre os acórdãos impenetráveis da mais alta Corte do País? Qual o limite para tantas idas e vindas? Se as arbitrariedades contra Lula eram patentes e gritantes, como eram, por que se permitiu que elas fossem tão longe? Por que se permitiu que elas o tirassem da eleição de 2018 e o enjaulassem. E por que reconsiderá-las agora, justo agora e só agora?

Se Moro praticou atos inadequados, que incidiram sobre o andamento de momentos históricos de enorme repercussão, por que ele seguiu imune e adulado por tanto tempo? E por que questioná-lo agora, assim? A impressão que se tem é que no Brasil de hoje tudo está sub judice: a prisão de Lula, que agora transparece como uma violência indizível, está sub judice e, junto com ela, a posse de Michel Temer na Presidência da República, a abolição da escravatura, a Guerra do Paraguai e o descobrimento do Brasil. É como se na segunda que vem o STF declarasse nulas as violações ao Tratado de Tordesilhas e, em seguida, anulasse também o próprio tratado, porque uma das firmas não foi devidamente reconhecida. Vai saber... O STF parece acreditar que faz o tempo retroceder.

Normalmente os críticos do Judiciário, focados nas tecnicalidades da aplicação da lei, esmiúçam a observância ou a inobservância dos ritos e o rigor ou a frouxidão das derivações jurisprudenciais de cada fundamentação. A esta altura nós deveríamos preocupar-nos igualmente com a percepção que os brasileiros terão da Justiça nos próximos anos.

O leigo pode não saber o que é heurística, pode não entender o significado de expressões como ex ofício ou ex ante e ex post, mas sabe perfeitamente o que é certo e o que é errado. Todo ser humano tem senso moral, percebe intuitivamente a iniquidade, separa o justo do injusto. Se, por algum motivo, os seres humanos deste país não virem mais no Poder Judiciário a encarnação legítima da justiça, tudo o que está mudando vai abaixo.

Eis o “ó do borogodó”, para invocarmos o novo brocardo jurídico. Vivemos num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do Supremo Tribunal nos sobressaltam. Enquanto tudo muda, e alguma coisa está fora de prumo.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: O capitão do mato como assessor de imprensa

Nos desplantes contra a imprensa e a sociedade há truculência ancestral e obtusidade imemorial

Dia desses, um jornalista experiente, dos maiores do Brasil, observou com precisão: a atitude de não dar nenhuma resposta às perguntas da imprensa vai se tornando padrão no governo federal. Resta aos jornalistas reportar o silêncio oficial: “O palácio decidiu não comentar”; “o ministério não deu retorno”; “consultamos a Presidência da República, mas não obtivemos resposta”.

A prática sistemática de ignorar as perguntas dos repórteres é mais um capítulo no bestiário que inclui numerosos insultos às redações jornalísticas e a seus profissionais. O governo, que já se notabilizou por ofender rotineiramente as empresas de comunicação e o ofício dos que se dedicam a informar o público, passa agora a adotar como política diuturna a arrogância do mutismo ostensivo e o desprezo contumaz pelo direito à informação. O quadro só piora.

É difícil encontrar precedentes para esse tipo de aberração. Nem mesmo Armando Falcão, ministro da Justiça de Ernesto Geisel, na ditadura militar, que recorria a evasivas como “nada a declarar” ou “sem comentários”, chegou a tanto. O que se estabelece agora, muito mais do que a esquisitice de um ministro dado a chiliques, é uma norma não escrita de indiferença governamental aos jornalistas e ao direito que cada cidadão tem de saber o que se passa dentro do Poder Executivo. É como se as autoridades nos dissessem a toda hora: “Vocês que se danem”.

No curso dos desplantes continuados contra a imprensa e contra a sociedade há traços de uma truculência ancestral – e de uma obtusidade imemorial. O presidente que aí está já deu mostras sucessivas de seus limites cognitivos, que o impedem de alcançar a complexidade das relações políticas mediadas por institutos como a liberdade de expressão e o direito à informação em sociedades modernas. O estilo deseducado, quando visto pela perspectiva do indivíduo em questão, é antes produto da estreiteza mental que de uma revolta genuína ou refletida. Nele o excesso de infâmia resulta da escassez de pensamento, o que o leva a se portar como um bárbaro dentro de seu próprio país.

Violência é a palavra-chave. Nas forças que levaram Jair Bolsonaro ao poder encontramos pistas que nos remetem à brutalidade que nos definiu como nação, numa linha contínua que atravessa toda a História do Brasil. O pacto autoritário que o elegeu e o sustenta tem no seu núcleo a presunção de que a opressão física a mando de interesses privados resolve os supostos desvios da vida pública. Nesse pacto a obediência tem mais valor do que a consciência e a liberdade. O chefe de Estado não é simplesmente um tipo amalucado de efeitos genocidas, não é apenas um falastrão xucro que chegou lá porque o eleitorado é volúvel e conservador – ele é a forma concreta do método pelo qual as camadas mais ricas e mais fortes esperam resolver seus impasses particulares a despeito do bem público.

Na constituição de caráter (ou de ausência de caráter) do atual presidente comparecem o capitão do mato, o jagunço, o matador de aluguel, o feitor de escravos, o capataz, bem como as novíssimas afetações das empresas de segurança privada e as milícias, as milícias, as milícias. Por meio dele, a polícia manietada se sobrepõe à política ilustrada. Ele entrou em cena como um prestador de serviços sujos a senhores que, em geral, preferem se refugiar em anonimatos ilustres e jamais o convidariam para jantar, ainda que o vejam como um agente útil, capaz de carpir a terra agreste para cair fora em seguida. O presidente está para as elites de hoje assim como o chicote, a chibata e os esquadrões da morte estavam para as elites de outros tempos. É uma ferramenta necessária, embora sabidamente infame.

O que não ocorre aos senhores, chafurdados em privilégios, é que às vezes o leão de chácara vira dono da boate – vide Pinochet. Não lhes ocorre que a política civilizada, no nosso tempo, é a única via de acesso ao futuro – vide Biden. Não há atalhos. Por não terem visto nada disso, e por acreditarem que o serviço sujo traz a “limpeza” classista, mantêm seu apoio indigno a um provocador que usurpa o próprio mandato. Não, a nossa tragédia não é a persistência do presidente da República. A nossa tragédia pior são aqueles que o sustentam por ação ou omissão.

E assim estamos. Quando esse governo achincalha a imprensa, como vem fazendo seguidamente, quer achincalhar a instituições da democracia e da vida civilizada. Sem descanso, trabalha para expelir da cena pública qualquer olhar que não seja subserviente. O governante que alimenta o projeto de um Estado como a extensão de um quartel rebaixado quer a sociedade como uma plateia de bajuladores.

Enquanto isso, vai fazer mais vítimas entre os que lhe deram esteio, pavimentando o caminho para seu idílio de intolerância e desfaçatez, no qual ele não terá de dar respostas, nunca, apenas ordens. Fora isso, vai seguir batendo na imprensa, vai continuar a chamá-la de “lixo”, sempre para deixar patente que, em matéria de cultura, de civilidade e de boas maneiras, a ele bastam o penteado descentrado e a gravata desconforme.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: O ‘cancelamento’ estatal e o Estado ‘lacrador’

O problema do presidente e asseclas nem é ideológico, é da ordem da cognição

Tem sido comum ouvirmos queixas sobre a prática do “cancelamento”. São procedentes. Na etiqueta sem etiqueta das redes sociais, o “cancelamento” consiste numa avalanche de turbas virtuais que, em questão de horas, derruba a lista de seguidores de uma pessoa e acaba com seu prestígio digital. Basta uma opinião fora da ortodoxia das turbas para o sujeito se expor ao “cancelamento”. Há exemplos diários. O “cancelado” é banido. Os que eram seus admiradores se convertem em seus “detratores” (guardemos essa palavra, pois ela vai nos pegar de tocaia alguns parágrafos adiante).

Trata-se de uma pena afetiva: “Ei, nós não gostamos mais de você, ponha-se daqui para fora!”. Podem sobrevir repercussões políticas e econômicas. Políticas porque o “cancelamento” destrói os laços virtuais pegajosos que davam popularidade à infeliz criatura “cancelada”, que se vê de repente degredada, como se tivesse sido expulsa do partido. As pessoas entram em depressão. E econômicas porque os influencers (e eu que achava que nunca escreveria tal barbarismo), que ganham dinheiro com o número de likes, engajamentos, retuítes e coraçõezinhos piscantes, perdem faturamento. As pessoas entram em inadimplência.

Estamos falando de um flagelo cultural. Escritores e intelectuais são vítimas desse empastelamento simbólico perpetrado por maiorias barulhentas, intolerantes e implacáveis.

Mas não se trata propriamente de uma novidade tecnológica. Parecerá incrível, mas Alexis de Tocqueville, que morreu em 1859, sem desfrutar os prodígios gozosos dos smartphones, anotou o germe de tudo isso em seu Democracia na América: “A maioria traça um círculo formidável em torno do pensamento. Dentro desses limites o escritor é livre, mas ai dele se ousar sair!”.

Portanto, a moda do “cancelamento” nada mais faz do que trazer a máxima de Tocqueville para os dispositivos interconectados que funcionam na velocidade da luz. Nos nossos dias, a tal América ocupa o epicentro dessa prática nefasta, seguida de perto pelo Brasil. Aqui, no entanto, além das pessoas físicas – de carne, osso, mas sem muita massa cinzenta –, a própria máquina de governo decidiu ingressar com estardalhaço no esporte de “cancelar” a reputação de cidadãos honestos.

Agora, nesta semana, o jornalista Rubens Valente, do UOL, descobriu e noticiou que uma agência de comunicação, a pedido do governo federal, preparou uma lista de 77 influencers (reincidi), entre os quais aparecem 44 jornalistas, e os dividiu em três grupos: os “detratores” (eis a palavra), que criticam o governo, os “neutros” e os “favoráveis” (que los hay, los hay). Pela legislação ordinária e pelos princípios constitucionais, o governo não pode discriminar cidadãos pela opinião que emitam, mas, como o atual governo não liga para a lei, promove discriminações a toda hora. A lista sugere que as autoridades adotem condutas diferentes para falar com uns e outros. Uns merecem “parcerias”. Quanto aos demais, bem, um pouco de “cancelamento” estatal talvez ajude.

Esse pessoal na Esplanada dos Ministérios não tem modos? Aliás, será que ninguém ali pensa? Aliás, de novo, o problema do presidente da República e de seus asseclas mais próximos não é nem ideológico – é da ordem da cognição. Há sentidos que eles não apreendem, independentemente de concordarem ou não com o postulado. Que conduzam os negócios públicos como se fizessem arruaça em redes sociais é apenas mais um sintoma da limitação cognitiva profunda.

O “cancelamento” estatal vem junto com o Estado “lacrador”. Expliquemos o adjetivo. Entre os adictos das redes, o termo “lacração” se refere àquele post ou àquela atitude performática que “causa”, mas “causa” muito, tipo “causa” assim demais, cara, você não tem ideia, e fere outras pessoas, mas, tipo assim, tudo bem. E daí? (Essa interrogação cairia bem de epitáfio.) O que conta é “lacrar”, tá ligado? O Estado “lacrador”, pilotado por “lacradores”, desconhece a diferença entre “curti” e “voto aprovado”. Lacra. Cancela.

Falando em diferenças não percebidas, o presidente não capta a que existe entre um gabinete clandestino que distribui calúnias anônimas e um órgão de imprensa registrado em cartório, que recolhe impostos, tem endereço certo e um diretor de redação com nome e CPF. Não é que, por motivações ideológicas, ele negue a distinção. Ele simplesmente não a alcança.

Em 28 de maio de 2020, na entrada do Palácio da Alvorada, quando protestou contra o inquérito do Supremo Tribunal Federal que desbaratou uma indústria ilegal de fake news e discursos de ódio, o presidente, sem querer, confessou que não tem ideia dessa diferença essencial para a democracia: “Querem acabar com a mídia que tenho a meu favor!”.

O governante brasileiro acha que as fake news são uma “mídia” como qualquer outra – e como usa as palavras “mídia” e “imprensa” como sinônimas, fica evidente: não consegue distinguir entre a mentira e a verdade factual, assim como não aprendeu o que separa a ditadura da democracia. Para ele, só o que conta é a histeria das redes e suas milícias digitais. Adeus, República. #cancelamentoestatal.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: De Trumpiniquim a maricocéfalo

Maricas é quem só usa palavras dóceis, como as de Bolsonaro para Trump: ‘Love’

Pertencente à grande nação tupi, o povo tupiniquim foi o primeiro desta terra a descobrir os portugueses. Quando caravelas lusitanas aportaram no litoral do continente que agora habitamos, os navegantes deram de cara com os tupiniquins. Não se sabe bem que histórias contaram os índios, de geração em geração, sobre o dia em que descobriram Pedro Álvares Cabral, mas o nome deles virou um sinônimo “brasileiro”. Com razão.

No mais das vezes há um viés jocoso nessa acepção da palavra. Normalmente, quando dizem que isso ou aquilo é uma versão “tupiniquim” de uma mercadoria ou de uma ideia vinda de fora, querem dizer que ela é pior que a original estrangeira. Portanto, na fala do brasileiro que desvaloriza o próprio brasileiro quando usa a palavra “tupiniquim” como um termo pejorativo existe um preconceito contra si mesmo, um impulso autodepreciativo.

É bem verdade que outras vezes a memória da nossa ancestralidade indígena não tem preconceito algum, mas o contrário. Quando sabe devorar a identidade do outro que, chegado de “Oropa” ou França, cai na Bahia com más intenções, o brasileiro não se desvaloriza em nada, mas cria valor novo para si. O Manifesto Antropófago, proclamado por Oswald de Andrade em 1928, o “ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”, defendeu com ênfase esse tipo de mastigação simbólica. As chanchadas no cinema brasileiro, que tantas paródias fizeram para caçoar dos galãs empostados de Hollywood, também tinham que ver com isso, embora sem o apetite revolucionário de Oswald. Se você consegue rir do opressor, meio caminho gástrico andado. “A alegria é a prova dos noves.” Assim, se o uso autopreconceituoso do termo “tupiniquim” internaliza no brasileiro a opressão vinda de fora para dentro, a antropofagia política e cultural vira a opressão do avesso e, de dentro para fora, gargalha.

Tudo isso para perguntar o seguinte: quando imita Donald Trump com tanta paixão, quando posa de cover do seu ídolo imperial, o atual presidente da terra dos tupiniquins incorre numa vertente do autopreconceito ou está apenas exercendo seu suspeito direito de fazer da política uma paródia? Devemos olhar para ele – para o presidente daqui – como um personagem que despencou de uma chanchada fora de cartaz há décadas, mais ou menos como um lobisomem de filme de Mazzaropi, ou como um vassalo voluntarista oferecendo solicitudes não solicitadas ao senhor estrangeiro que o despreza? A atitude do brasileiro que quer ser um Trump tropical fortalece ou desmerece o Brasil? Há nele um piadista de mau gosto ou um índio encarcerado que sonha em se fantasiar de Pedro Álvares Cabral para se olhar no espelho? No caso do presidente local, de quem é o preconceito? E contra quem é?

Antes de respondermos – o que, aliás, talvez não seja necessário –, levemos em conta que a divindade blonde foi destronada, o que solapa não o chão de seu servo, que pés no chão nunca os teve, mas o poleiro em que ele se dependura, pelo lado de baixo. O que estamos vendo é uma tragédia amorosa escancarada, explícita, cheia de dilacerações e lágrimas. O subalterno vai perdendo o objeto do desejo à medida que o poleiro perde a materialidade. O sôfrego adulador não reconhece que o cetro ao qual devota sua reverência genuflexa está sumindo do horizonte. Entra em desespero sentimental. Não reconhece a perda de poder em seu amo e patrão.

O espetáculo inspira pena. Quanta dor. Dia destes, o presidente dos tupiniquins usou a palavra “love”. Em seu vocabulário, o termo “love” mora no coração do termo “obediência”. Incondicional. O escritor austríaco Leopold von Sacher-Masoch concordaria. Em via de perder o ser idolatrado, o ser idolatrante enlouquece em seu fetiche adente. Sua fantasia não era devorar, nunca foi. Sua fantasia mais sublime era ser devorado. O que fazer agora? Ele entra em pane. Entra em parafusos abstratos. Endoida. Fica fora de controle. Então, para assombro dos mortais, o homem começa a falar em maricas. Ele grita: “Maricas!”. Haja maricas. O presidente destampa a sua obsessão pelo vocábulo. Ele, que nunca pensa coisa alguma, agora só pensa em maricas.

O que vem a ser isso, “maricas”, em tão presidencial vocabulário? Em primeiro lugar, o termo denota algo – no referido vocabulário – como falta de valentia. No mesmo léxico, tem que ver com “bundão”, palavra já pronunciada publicamente pela mais alta autoridade da República para insultar os jornalistas e os que adoecem com a covid-19. “Quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”, disse ele aos repórteres em agosto. “Maricas” é quem não usa pólvora, só saliva, só palavras dóceis, como as dele para Trump. “Love”.

Niquim é o nome indígena de um peixe marinho de corpo mole e cabeça achatada (Thalassophryne nattereri). A palavra, de origem tupi-guarani, significa feio (ni) e espinhoso (quim). Com cerca de 15 centímetros quando adulto, o niquim gosta de ficar parado no fundo de areia em águas rasas. Tem espinhos venenosos no dorso. Se você pisa nele, bem, pode ser um aborrecimento e tanto. Caminhemos com cuidado.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: Uma trilha sonora para um Brasil pandêmico

O presidente está mais para lobisomem de filme de Mazzaropi do que para Duce…

O presidente da República está em plena Revolta da Vacina. Tem ciúme da vacina. Tem ciúme de quem a tem e mais ciúme ainda de quem a terá. O presidente se descabela e se rebela. Homem do seu tempo, vive com ardor o ano de 1904. Quer atirar cadeiras nos mata-mosquitos de Oswaldo Cruz, mas o sanitarista, mau brasileiro, impatriótico, sumiu de cena antes que terminasse o ano da desgraça e não mais se voluntaria a receber desaforos.

O presidente, resoluto, impoluto e estulto, não desiste. Não abre mão da revolta. Na falta do Cruz, dispara perdigotos contra o Instituto Butantan. A vacina que se cuide. Estão pensando o quê?

A fúria presidencial, impetuosa, pomposa e prosa, é máscula, mas dança conforme a cançoneta: “Anda o povo acelerado/ com horror à palmatória/ por causa dessa lambança/ da vacina obrigatória”. Na voz do cantor Mário Pinheiro, os versos ressequidos arranham o mármore do Palácio do Planalto. Raiva da vacina. Ódio febril e varonil.

E o que virá depois? Inútil tentar descobrir. No Brasil, o passado é imprevisível (abraço, Pedro Malan).

Autoridades da Casa Branca visitam o palácio. A presidente do EximBank, o Banco de Exportação e Importação dos EUA, e o ministro da Economia daqui mesmo assinam um memorando que pode render empréstimos de até US$ 1 bilhão para o Brasil. Em troca, apoios auriverdes à cruzada de Washington para afugentar do mercado as tecnologias e empresas chinesas na implantação do 5G. Ao lado do presidente, o conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos participa da cerimônia.

Pensa o improvável leitor que essa solenidade foi anteontem, certo? Pois pensa errado. Outra vez, estamos mergulhados no interminável passado imprevisível. Ao fundo, Juca Chaves e um violãozinho se infiltram pelo ar-condicionado: “Hoje em dia o meu Brasil/ é uma país independente/ dentre as coisas que nós temos/ vê-se até dois presidentes./ (…) Um do sul, outro do norte/ que governam muito bem/ só que o norte é bem mais forte e governa o sul também (…)”.

Se fôssemos um pouco mais briosos – e irônicos –, iríamos de Assis Valente, o mais valente de todos e todas. Iríamos de Brasil Pandeiro. Celebraríamos malandramente que “o Tio Sam anda querendo conhecer a nossa batucada”. Festejaríamos desconfiados que “na Casa Branca já tocou a batucada de ioiô e iaiá”.

Depois disso, a gente brasileira abriria mão da malícia. Alguém desfilaria de bananas na cabeça – Carmem Miranda que nos acuda – e sacaria da manga do paletó, ou do decote, a carta ufanista que faz do samba o Rei Momo da cultura pátria, o símbolo brasileiro por excelência. Se não tiver samba, vai de rumba mesmo. Zé Carioca de mãos dadas a Mickey Mouse, Getúlio Vargas em bombachas. Se faltar a rumba, volte o samba-exaltação na veia, Ary Barroso na cabeça, “mulato inzoneiro” no meio da testa, hino nacional em feitio de batucada, jamais de oração. “Ai, essas fontes murmurantes”, coitado do jornalismo. Ai, esses vazamentos trepidantes. Ai, esse passado alucinante.

A TV Brasil exibiu com exclusividade um jogo do escrete canarinho. Consta que o narrador deu de mandar um abraço para o presidente do sul, o que deixou em estado de alerta máximo a vigilância democrática. Com toda a razão, embora não seja de hoje que as emissoras estatais botam banca e montam palanque para as “otoridade” se derramarem nos elogios recíprocos, fazendo campanha eleitoral fora de temporada. Não, não é de hoje. O cacoete da autopromoção em microfones públicos é antigo: é do passado.

O presidente prometera acabar com a EBC, a estatal que controla a TV Brasil, mas não era para acreditar. Não dava para acreditar. A facção de extrema direita que ganhou as eleições se julga a portadora da verdade e como confunde verdade com propaganda não pode viver sem propaganda. Ficaria sem verdade. Por isso jamais jogará fora um equipamento como a EBC, prontinho para ser repaginado em usina de verdades absolutas.

O que nos salva, agora, é que a facção de extrema direita que aí está não tem competência nem para ser fascista. Não é pra valer. Não tem compromisso com a coerência. Na TV Brasil, o presidente está mais para lobisomem de filmes de Mazzaropi (reprisados todos os dias) do que para Duce ou técnico de futebol. O seu fascismo é pastiche. Anauê paranauê. O fascismo termina no colo do Centrão, que quando o mercado favorece é direitão, mas não é bobo, não.

Um surdo pequeno bate o compasso. O presidente chuta a causa autoritária para escanteio e se enturma na patota do dinheiro na cueca, mais velha que a Revolta da Vacina. Entra a cuíca, que não é cueca, para entrecortar o balanço com agudos miúdos. Que samba bom. A voz macia de Blecaute estufa os alto-falantes estatais. De terno claro, camisa branca sem gravata, ginga natural, ele manda ver: “Ô, que samba bom/ ô, que coisa louca/ eu também tô aí/ tô aí, que é que há/ também tô nessa boca”.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: 70 anos na semana que vem

No 70.º aniversário da TV brasileira a carranca do arbítrio ainda rosna

Falarão de Hebe Camargo. Quando foi ao ar o primeiro programa da primeira estação de televisão brasileira, a TV Tupi, na noite de 18 de setembro de 1950, Hebe estava lá, na companhia de Lima Duarte e Lolita Rodrigues. Falarão dos festivais da Record, que no final dos anos 1960 redesenharam as feições do cancioneiro popular. Falarão da estreia do Jornal Nacional, em 1969, e da Copa do Mundo de 1970.

Talvez alguns festejem (deveriam festejar) a novela Gabriela, da Rede Globo, que nos trouxe cores mais verdadeiramente intensas do que aquelas que a gente via nas calçadas, nas beiras de rio, nas tardes compridas do verão da Alta Mogiana. (A TV em cores chegou como uma luz mais que solar: realizou a façanha de empalidecer a natureza.) Encarnada por Sônia Braga, a coloridíssima Gabriela subia no telhado de vestido curtinho, azul e branco, para recuperar uma pipa (raia) e fazer despencar o queixo alheio: do Seu Nacib, de toda a cidade cenográfica e dos pais de família do Brasil de ponta a ponta.

Na semana que vem, quando a televisão brasileira comemorar seu 70.º aniversário, lembranças afetivas e afetuosas encherão as telas eletrônicas. Vai ser bom de (re)ver, desde que não abusem demais das pieguices.

Vai ser bom, mas também vai ser ruim. Dificilmente nós veremos o que nunca vimos na televisão, quer dizer, dificilmente veremos aquilo que a exuberância imagética dos monitores pátrios sempre encobriu. No correr dos primeiros anos da década de 1970, quando este jornal aqui penava sob censura estúpida, a televisão brasileira contornava diplomaticamente os contratempos com a tesoura federal e brilhava solta, via Embratel, envolvendo com seu arco-íris subserviente o bueiro moral e institucional da ditadura militar. Sobre isso não nos falarão em demasia.

A televisão brasileira deu unidade imaginária, festiva e deslumbrada a uma nação desgrenhada pela corrupção dos costumes cívicos, pelo desvio de poder, pelo enriquecimento subterrâneo dos apaniguados, pela ignorância oficializada, pela prática diuturna da tortura política, pelo assassinato de dissidentes e, finalmente, pela ocultação sistemática, disciplinada e industrializada de cadáveres. Isso não vai ser tão realçado na festa da semana que vem. Talvez um ou outro entrevistado faça menção, mas sem alarde. Quando os videoteipes de estimação cintilarem na tela, nós não assistiremos a explicações a respeito do lado triste da história. O que a TV sonegava sonegado seguirá.

Talvez alguém conte que houve um tempo nestas terras em que a telenovela falava mais da realidade que o telejornal. É necessário lembrar. Enquanto os noticiários perfilados vendiam aos telespectadores uma peça de ficção ufanista, as telenovelas traziam cada vez mais cenas de rua, tipos populares, dilemas autênticos dos brasileiros de carne e osso. Para inverter a ênfase da notícia, que era a inflação em escalada vertical, o apresentador trombeteava o “rendimento recorde na poupança”. Na sequência, a novela falava de racismo, de corrupção, até de reforma agrária.

Celebrarão o talento, mas não destacarão que a TV em rede nacional foi o projeto cultural mais caro à ditadura: a integração do País pela imagem. Pode ser que digam que o Brasil ganhou sua identidade moderna apenas com a TV, o que é fato, mas não é provável que expliquem, em rede nacional, que essa identidade imaginária acobertou o prosseguimento dos desmandos e das atrocidades no poder.

O que aconteceu no Brasil foi algo único, difícil de entender e de explicar. Logo depois da queda da ditadura, era comum jornalistas estrangeiros perguntarem aos estudiosos locais: mas como é possível que um país com tantos atrasos sociais e civilizatórios tenha erguido uma televisão tão avançada e tão bem-sucedida? A melhor resposta era: justamente por isso, tudo o que você vê de ultramoderno na televisão brasileira corresponde ao que há de mais arcaico na sociedade que a gerou.

A televisão brasileira é um portento, um feito continental, uma obra que impressiona os céticos mais azedos: seus publicitários são consagrados no mundo inteiro, alguns de seus novelistas podem figurar no panteão dos maiores artistas do nosso tempo, alguns de seus animadores reluziram como gênios da raça (e tome Chacrinha!). Mas tudo isso, cada pedacinho disso, só existiu para tecer um país de mentira sobre a podridão do país de verdade. Não é por acaso que a televisão não transmite cheiro.

Sobre essas coisas tristes não falarão muito, não. Pouco falarão das chagas constitutivas do passado. Principalmente nada dirão sobre a abominável chaga do presente: a triangulação promíscua entre redes de televisão, igrejas triliardárias e partidos políticos. Nada falarão do fundamentalismo ultraconservador que abre as estradas para o galope dos fascistas supostamente liberais. A máquina luminescente que no passado integrou um país para sequestrá-lo de si mesmo agora promove fantasias mais nefastas. Na segunda-feira, em cadeia nacional, o presidente urrou que defende a democracia (então, tá) e elogiou a ditadura militar. Nos 70 anos da TV, a carranca do arbítrio ainda rosna.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: Palavrões e desrazão

Que esperar de suposto estadista que fala na língua das quadrilhas de traficantes…?

A contragosto, voltemos a isso. Voltemos porque o falastrão voltou a atacar. Nesta semana, como que regressando à ativa, o presidente da República restabeleceu sua velha forma prosódica e deu de insultar gente honesta com termos chulos. No domingo, a um repórter do jornal O Globo que lhe perguntou sobre os R$ 89 mil depositados na conta da primeira-dama, respondeu com um bodoque vocabular: “Vontade de encher sua boca de porrada”.

Tente imaginar, por alguns segundos, que tipo de ser humano se expressa nesse léxico. É chocante. Em mau português, essas palavras materializam o soco na cara do interlocutor. O simples enunciado já fere, já tira sangue da honra do outro. O ato violento é a própria fala, que nem precisa se traduzir em gesto físico para machucar. Sete palavras que ofendem e, acima disso, enxovalham um cargo público de alto a baixo. Mais uma vez. Voltemos a isso, então.

Na segunda-feira, mais barbaridades. Ao defender publicamente o emprego de substâncias exóticas para tratar a covid-19, a mesma autoridade voltou a se gabar do alegado “histórico de atleta” e se vangloriou de não ter desenvolvido sintomas graves da doença.

Aproveitou e disse que, quando o paciente é um jornalista, o quadro é pior. Mas ele não disse isso assim, com essa reles e preconceituosa falta de educação. Ele foi além. Abusou da vulgaridade. Ao se referir a um jornalista genérico – um jornalista qualquer que venha a ser acometido pelo vírus –, o autoproclamado atleta imune preferiu dizê-lo de modo mais torpe: “Quando pega num bundão de vocês a chance de sobreviver é bem menor”.

Diante de tal postulado podemos dizer que, segundo o presidencial juízo, aqui escreve um “bundão”. Todos os que exercem o ofício de jornalista acabam de ser tachados com esse qualificativo por ninguém menos que o governante do nosso país. Como reagir? Devolver o xingamento resolve? Falar na mesma frequência ajuda? Anula o dano? Difícil saber.

O que sabemos com segurança é que o palavrão foi alçado à condição de norma linguística da alta administração pública federal. A nova norma inculta alcançou o apogeu na reunião ministerial de 22 de abril – aquela que teve sua gravação em vídeo divulgada por força de decisão judicial –, quando presidente interpelou os seus subordinados aos berros, desfiando, um a um, todos os vocábulos de baixo calão disponíveis no dicionário.

O Brasil inteiro viu o ritual de baixezas exclamatórias na televisão e na internet. Uns ficaram aturdidos porque o chefe de governo declarou que queria armar a população (como vem armando, mas só a população que gosta de se armar). Outros se espantaram com o despudor de um ministro da Educação (parece que era isso) afirmando que os ministros do Supremo Tribunal Federal deveriam ser encarcerados. Mas o mais aterrador de tudo, o mais aviltante, não eram as atrocidades que aqueles seres pronunciavam, mas as palavras que eles usavam para pronunciá-las. O mais apocalíptico de tudo era a linguagem.

Que espírito de justiça, que sentimento de solidariedade, que elevação moral, que virtude humanitária, que cultura e que inteligência podem existir numa cúpula de Estado que se comunica nessa base? O que esperar de um suposto estadista que fala na língua das quadrilhas de traficantes com a desenvoltura dos capangas encapuzados em esquadrões da morte? O que ver de positivo num Ministério que se sujeita a ser tratado com o que pode haver de mais vil e de mais ultrajante no vernáculo?

O resultado é que estamos aí com essa persona investida de poder dedicada a nos xingar, e xingar de novo, todos os dias, com suas palavras e com seus silêncios. Fomos condenados a nos acostumarmos com isso aí, pois muita gente apoia isso aí. Entre outros setores, boa (má) parte da elite financeira do Brasil apoia. É inacreditável. Uns até fingem que é normal.

Tempos atrás, o endinheirado conformismo pátrio se resignava na base do “rouba, mas faz”. Agora, as mesmas forças (fracas) se rendem a coisa pior: “Xinga, mas diz que vai fazer as ‘reformas”. Essa turma deu de apoiar qualquer coisa em troca de umas promessas de “reformas” – promessas capengas, entremeadas de infâmias, não importa. Os dependentes químicos do substantivo “reformas” apoiam xingamentos, intimidações, apoiam latidos. Não cessam de incensar aquele que diz que vai fazer “as reformas” e não faz, aquele que cultiva e profere absurdos inomináveis.

Sim, absurdos inomináveis – absurdos às toneladas. Pense bem o improvável leitor: que tipo de batatada vai na cabeça de quem se jacta aos brados de não ter tido sintomas graves de uma doença que já matou 120 mil brasileiros? Na desordem mental da pessoa que diz tais coisas, a doença só derruba os mais fracos, os que não têm “histórico de atleta”, os pesos mortos. Logo, ela esnoba a enfermidade, que chama de “gripezinha” ou de “chuva”. A tal pessoa não se compadece da dor alheia, não conhece a empatia e, o que mais constrange, não alcança a razão. O palavrão estulto nos governa.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: Cinco trilhões de dólares

O que produzem a Apple, a Amazon, o Google ou o Facebook para valerem tanto?

Em janeiro foi noticiado que as empresas Apple, Amazon, Alphabet (dona do Google), Microsoft e Facebook valiam, juntas, cinco trilhões de dólares. Em junho, quando a Apple sozinha atingiu o valor de US$ 1,5 trilhão, apenas quatro delas dariam conta de bater a marca dos US$ 5 trilhões (o Facebook ficava um pouquinho para trás).

Cinco trilhões de dólares!

Essa cifra é três vezes maior que o PIB brasileiro. Três vezes. Quer dizer: se nós, os 210 milhões de habitantes destas terras convertidas em jazigos, quiséssemos comprar a Apple, a Amazon, a Alphabet e a Microsoft, pelos preços de junho, teríamos de trabalhar por três anos sem descanso e não nos sobraria troco para o pão, para o aluguel e para os impostos. E mesmo assim poderíamos chegar no fim da jornada sem caixa para saldar a fatura, pois, enquanto as ações dessas companhias sobem sem parar, o PIB brasileiro afunda, junto com o PIB mundial. Lá de cima, incólumes e luminescentes, as big techs contemplam a peste, a fome, a violência, a miséria e a ruína.

Só o PIB da China e dos Estados Unidos superam a casa dos US$ 5 trilhões. Pense bem: o que produzem a Apple, a Amazon, o Google ou o Facebook para valerem tanto?

Se formos contentar-nos com as respostas oficiais, acreditaremos que o segredo de tamanha fortuna está na inovação tecnológica dessas marcas, na genialidade dos seus criadores e na pertinácia de seus CEOs. Acreditaremos que, graças a chips, bits e bytes, as big techs dominaram o e-mail, o e-commerce, o e-government e o e-scambau, deixando seus donos biliardários. Acreditaremos, enfim, que dinheiro não nasce em árvore, mas bem que brota em máquina.

Agora, se quisermos ir além das quimeras da carochinha, buscaremos explicações em teorias menos rasas, como aquela da “economia da atenção”. A tal “economia da atenção” consiste em mercadejar com os olhos dos consumidores. Primeiro, o negociante atrai a “atenção” alheia e, ato contínuo, vai vendê-la por aí – mas vai vendê-la (detalhe crucial) com zilhões de dados individualizados sobre cada um e cada uma que, no meio da massa, deposita seu olhar ansioso sobre as telas eletrônicas. Em resumo, os conglomerados da era digital elevaram o velho negócio do database marketing à enésima potência, com informações ultraprecisas sobre as pessoas, e desenvolveram técnicas neuronais que magnetizam os sentidos da plateia. O negócio deles é o extrativismo dos dados pessoais.

Isso aí: extrativismo virtual.

Na primeira semana de maio de 2017, a capa da revista The Economist anunciou que os dados pessoais eram o novo petróleo. Em plena era do Big Data, algoritmos e fórmulas insondáveis cruzam os dados e antecipam as partículas infinitesimais do humor e do destino dos bilhões de fregueses. Os dados não mentem jamais. Sabem se o cidadão vai desenvolver Alzheimer, e quando, sabem que ele relaxa com a voz de Morgan Freeman, sabem que massageia o lóbulo da orelha direita quando pensa em queijo do tipo Pont l’Évêque.

O “novo petróleo” teria sido o responsável pelos cinco trilhões e pela enorme reviravolta do mercado global, que fez o dinheiro mudar de mãos em duas décadas. Em 1998 as cinco empresas mais caras do mundo eram a GE, a Microsoft, a Shell, a Glaxo e a Coca-Cola. No grupo, quatro companhias eram fabricantes de coisas palpáveis (motores, eletrodomésticos, gasolina, fármacos, bebidas gasosas); só uma era uma empresa “de tecnologia”. Hoje, no pelotão dos conglomerados mais caros do mundo, todos se valem da tecnologia (um notebook ou um site de busca) para extrair e comercializar nossos dados pessoais.

Isto posto, e com todo o respeito à Economist, é preciso dizer que também essa explicação é insuficiente. Para entender de fato por que o valor de mercado das big techs subiu tanto é preciso levar em conta algo que as teorias correntes não costumam registrar. De meados do século 20 para cá, o capitalismo passa por uma estonteante mutação: as mercadorias corpóreas (coisas úteis) ficaram em segundo plano, enquanto a fabricação industrial de signos assumiu o centro da geração de valor. O capital virou um narrador, um contador de histórias, tanto que uma famosa marca de produtos esportivos pode muito bem terceirizar a fabricação de tênis de maratona, mas não pode abrir mão de controlar obsessivamente a gestão da marca e a publicidade.

Em sua mutação, o capitalismo aprendeu a confeccionar e a entregar, com imagens e palavras sintetizadas industrialmente, os dispositivos imaginários de que o sujeito precisa para aplacar o desejo. Isso é uma novidade. Por trás do negócio da extração dos dados existe outro negócio, mais determinante, que é a industrialização da linguagem. Hoje o capital trabalha para o desejo, não mais para a necessidade. Os conglomerados digitais dominaram a industrialização da linguagem (voltada para o desejo), monopolizaram o olhar do planeta e puseram o olhar do planeta para trabalhar a seu favor.

Nesse meio tempo, o mundo distanciou-se da razão e do espírito. Mas essa é outra conversa.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: A liberdade e a Justiça

A indústria ilegal da desinformação é um fenômeno sobre o qual não há jurisprudência

A determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de bloquear páginas de bolsonaristas em redes sociais provocou um bom debate. Desta vez não se trata de uma daquelas batalhas estéreis entre claques que se ofendem e não se escutam. Estamos em meio a uma discussão que mobiliza conceitos sérios, com fundamento ético e legal, sobre os limites da Justiça e os alcances da liberdade de cada um. Há argumentos legítimos e inteligentes de um lado e de outro. A hora pede reflexão. Mais do que embarcar no Fla-Flu jurídico, devemo-nos dedicar a entender com calma o que está em jogo.

Comecemos pela pergunta incômoda: a autoridade judicial pode, no âmbito de um inquérito (no caso, o Inquérito 4.781, mais conhecido como o “inquérito das fake news”), impedir preventivamente a manifestação das pessoas investigadas? Pode o juiz impor a mordaça a um cidadão cujos atos ainda não foram julgados?

Os que respondem “sim” a essa pergunta argumentam que os trâmites da Justiça e das investigações policiais normalmente restringem direitos fundamentais. Nada de novo sob o sol, portanto. Na terça-feira, em webinar no site Poder 360, ninguém menos que o presidente do Supremo, Dias Toffoli, seguiu essa linha de raciocínio. Lembrando que até mesmo o direito de ir e vir pode ser suspenso pela autoridade judicial no curso de uma investigação (é o que acontece quando o suspeito vai para a cadeia, em regime de prisão preventiva, mesmo antes de seu suposto crime ter sido julgado pela Justiça), Toffoli sustentou a tese de que a supressão preventiva de páginas de pessoas investigadas nas redes sociais constitui um expediente análogo, igualmente aceitável e legítimo, além de legal.

O argumento, bem construído, soa ainda mais convincente quando observamos que aqueles que tiveram suas contas derrubadas nas redes não foram cassados em sua liberdade de expressão, pois seguem se manifestando com alta estridência em outros canais – apenas aquelas contas específicas, nas quais foram identificadas condutas e postagens suspeitas, foram bloqueadas. Além disso, o bloqueio das contas desses bolsonaristas seria indispensável para o bom curso das investigações. Por tudo isso, o argumento procede.

Há, porém, outro ponto de vista. Quando perguntados se um juiz teria poderes para impor a mordaça a um cidadão cujos atos ainda não tivessem sido julgados, não são poucos os que respondem “não”. Nesse grupo não figuram apenas os sabujos do presidente da República, empenhados em rebaixar a União ao papel de despachante de blogueiros fascistas. Nesse grupo estão também aqueles que não apoiam em nada o governo e se preocupam com precedentes que, no bojo do inquérito das fake news, venham a enfraquecer no futuro o respeito à liberdade de expressão. Estes (os que prezam a democracia) consideram que um inquérito policial não deveria ter a prerrogativa de atropelar o livre curso do debate público. Admitem, por certo, que todos devem ser responsabilizados (julgados e punidos) pelos abusos que cometerem no uso da liberdade, mas não aceitam a supressão preventiva de um milímetro que seja dessa liberdade.

É fato que hoje estamos falando de um inquérito que apura o comportamento de milícias virtuais abjetas, que disseminam o ódio, o preconceito, o fanatismo e a desinformação mais delirante, atentando diariamente contra os mais preciosos alicerces da República e da democracia. As contas bloqueadas, todo mundo sabe, reúnem um festival de ultrajes e baixezas inomináveis, com pregações contra os direitos fundamentais e as liberdades democráticas. Portanto, para um democrata, é confortável dar de ombros a uma ação da Justiça que limite, ao menos um pouco, as violências virtuais perpetradas por esses terroristas do simbólico. Mas o que acontecerá se, amanhã, outro inquérito, com outras motivações, vier a interditar páginas que não primem pela mesma vileza? A cargo de quem ficaria o critério de arbitrar sobre o que deve e o que não deve ser proibido?

A muitos democratas preocupa a hipótese de que o inquérito das fake news hoje abrigue um componente de censura que venha a produzir estragos amanhã. Para estes, não dá para apoiar o bloqueio das páginas desta vez só porque nos enoja o conteúdo bloqueado. E se gostássemos desse conteúdo, qual seria a nossa reação? Será mesmo essencial, para o êxito das investigações, que essas páginas sejam suprimidas das plataformas sociais?

Os dilemas implicados aí nada têm de corriqueiros. São dilemas ameaçadores e desconhecidos – a indústria ilegal da desinformação, cujos estragos estão apenas começando a se mostrar, é um fenômeno recente, sobre o qual não há jurisprudência em nenhum lugar do mundo. No Brasil é ainda pior, porque aqui o Poder Executivo age como um gabinete do ódio contra as liberdades. Diante disso, a responsabilidade que pesa sobre o STF é quase sobre-humana. Que nossos ministros saibam honrar a melhor tradição da Suprema Corte, de consolidação das liberdades e fortalecimento da democracia, e trilhem o melhor caminho.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: Enganos e desenganos na lei das ‘fake news’

Caminho certo é coibir os abusos. Errado é definir por lei o que é verdade ou mentira

Aprovado no Senado Federal no dia 30 de junho, o Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, começou a tramitar na Câmara dos Deputados. Apelidado de lei das fake news, o projeto abriu a semana sendo discutido em painéis públicos organizados pela própria Câmara. Melhor assim. Como alertou editorial do Estado publicado na terça-feira (Prudência com as fake news), “é essencial que a Câmara faça uma profunda e serena discussão a respeito do texto aprovado pelos senadores”. O editorial advertiu também que “o açodamento e o populismo podem causar grandes estragos”.

De saída, reconheçamos que durante a tramitação no Senado o PL melhorou. Delírios corporativistas como o de punir quem “ridicularizasse” os políticos caíram fora. Medidas que afrontavam direitos fundamentais foram expelidas. O índice de maluquices diminuiu, mas o PL ainda não está bom.

Algumas passagens assombram como portais das trevas. Há trechos que dão a impressão de que, na implantação da lei, virá uma autoridade (ou uma autoridade delegada) com poderes para arbitrar sobre o que é verdade e o que é mentira. O artigo 4.º, inciso II, fala em diferenciar o que é humor do que não é. Sejamos francos: quem vai estabelecer a distinção entre uma fraude informativa e uma piada de mau gosto? O artigo 6.º, parágrafo 1.º, tenta resguardar “a manifestação artística, intelectual ou satírica” das ações que vedarão as “contas inautênticas”. Ora, quem dará a palavra final sobre o que é o quê?

Fora isso, ficaram no texto possíveis riscos para a privacidade. São riscos menores do que aqueles que o Senado já cuidou de varrer, mas não são desprezíveis. O advogado Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab, aponta alguns deles no artigo 7.º e, especialmente, no artigo 10.º, que tratam da identificação do usuário. É preciso mudar a redação desses artigos.

O PL ainda esconde brechas que guardam possíveis ameaças aos pilares fundamentais da internet – neutralidade de rede, privacidade e liberdade de expressão –, já consagrados na legislação em vigor. Se não forem corrigidas, essas brechas poderão dar cobertura, no futuro, a arbitrariedades de autoridades ou, pior ainda, a efeitos colaterais de uma autorregulação que venha a ser mal regulada. Se os conglomerados monopolistas das mídias digitais (como Facebook/WhatsApp e Google, por exemplo) forem investidos pela lei de poderes hipertrofiados, poderemos despencar numa terceirização da censura. Não subestimemos os piores cenários: como sabemos por experiência própria, pesadelos costumam virar realidade quando os legisladores erram.

A lei das fake news tem pontos positivos, claro, mas também tem uma carga ácida de alucinações legifobéticas. Querer responsabilizar as plataformas sociais pelos conteúdos que qualquer um pode postar, como se as plataformas fossem publicações jornalísticas, é um delírio.

Um Facebook da vida pode ser um veículo publicitário (arrecada bilhões de reais com anúncios de todo tipo, drenando de modo insidioso a maior parte das verbas publicitárias que antes iam para empresas jornalísticas), mas não é,, nem de longe, um órgão de imprensa. Uma plataforma social é um ambiente de comunicações em rede, um ambiente dentro do qual coexistem páginas de milhões de órgãos de imprensa. Não há como culpar o ambiente por tudo o que se pronuncia dentro dele. Exigir que as plataformas controlem com rédea curta o que seus usuários dizem equivale a transformá-las num Ministério Global da Verdade, num grau de totalitarismo que nem George Orwell ousou imaginar.

Isso tudo não significa que não deva existir lei nenhuma. Estão equivocados os que dizem que o velho Código Penal, com a tipificação dos crimes de calúnia, injúria e difamação, dará conta de barrar o pandemônio desinformativo em que se converteu a internet. Se o Código Penal resolvesse tamanha monstruosidade, as leis nacionais de porte de armas barrariam a corrida armamentista das ogivas nucleares. Admitamos: uma bomba atômica fere mais que uma garrucha enferrujada, do mesmo modo que a indústria (ilegal) da desinformação é incomparavelmente mais danosa que uma injúria.

Enfim, os conglomerados precisam ser regulados, ou seguirão mandando e desmandando sobre os fluxos e contrafluxos da informação e da desinformação, sem prestar contas a ninguém. A questão é: como regulá-los?

Os parlamentares mais atentos já perceberam o caminho que pode dar certo – e já desconfiam daquele que vai dar errado, com absoluta certeza. Nos artigos em que tem foco nas práticas indevidas (os chamados comportamentos abusivos), o PL encontra sua vocação. Quando enfrenta o uso ilegal de robôs, as contas fraudulentas, os disparos em massa clandestinos, acerta o alvo. Por outro lado, quando envereda por exegeses de “conteúdos”, erra estrondosamente. O caminho certo é coibir os comportamentos abusivos. O caminho errado é definir por lei o que é verdade e o que é mentira.

Se tiverem mais sabedoria que pressa desmedida, os deputados farão um bom serviço.

*Jornalista, é professor da ECA-USP