EUGÊNIO BUCCI

Eugênio Bucci: Extra, extra: o dia em que o Planalto derrubou a Constituição

Ainda bem que logo o episódio se revelou insignificante. Mas prenhe de significação

Foi um evento insignificante, mas nenhum outro poderia vir mais carregado de significação. Há pouco mais de uma semana, no começo da noite de 22 de junho, quem entrasse no site planalto.gov.br para acessar o texto da Constituição federal daria com a cara na porta – ou na tela. Aconteceu comigo.

Naquela segunda-feira, por volta das 7 da noite, eu mesmo dei com a cara na tela. Como faço sempre que preciso consultar o texto constitucional, entrei no site do Planalto, cliquei nos links de costume e, então, no lugar da Lei Maior encontrei um aviso deseducado e mal diagramado. Era um alerta em tons esfuziantes: “Ocorreu um erro!”. Assim, com ponto de exclamação. Na linha de baixo, um complemento enigmático: “O conteúdo não foi encontrado”. Gelei.

Fui buscar a Constituição no site do Senado Federal e, ufa!, lá estava ela, intacta, com todos os seus artigos, tal como os conheço.

Mesmo assim, um incômodo perturbador não se esvaía de meus nervos crispados: aquele ponto de exclamação. Como podia ser?

“Ocorreu um erro!”. Por que a exclamação? Parecia que, do outro lado, alguém comemorava o sumiço da norma.

Telefonei para um jornalista, que telefonou para outro jornalista, que telefonou para a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom). Duas horas depois, quando já passava das 9 e meia da noite, veio a resposta: “Prezado jornalista, verificamos com a área técnica que houve uma instabilidade no link, mas esta já foi corrigida. A página já está disponível. Atenciosamente, SECOM”.

Fui conferir. De fato, a vigência da nossa Lei Fundamental já se tinha restabelecido no endereço eletrônico do Palácio do Planalto. Era uma boa notícia. Um alívio. Mas, de novo, algo ali me incomodava: desta vez não um ponto de exclamação (não havia nenhum índice de júbilo no comunicado da Secom), mas uma palavra solerte: “instabilidade”.

No emprego daquele substantivo, “instabilidade”, rosnava um subtexto ameaçador. Desde há muitos meses, como sabemos, o País vem se afogando em instabilidades de diversas ordens. Naquela mesma segunda-feira o Estadão noticiava na primeira página que o STF e as Forças Armadas abriam diálogo em busca de pacificação. Note bem o improvável leitor: a “instabilidade” era tão aguda que ministros da cúpula do Judiciário e oficiais de altíssima patente se mobilizavam para pacificar a República. Quanto a mim, sem conseguir achar o texto da Constituição no site do Planalto, eu me perguntava: teria a “instabilidade” das instituições contaminado a cibernética palaciana?

Não era vã a minha apreensão. Paranoica talvez, não vã. Em meados do mês passado, o presidente andava especialmente atacado.

Manifestava-se por urros e mais urros, com incontidos insultos à democracia. Teria ele mandado alguém derrubar a Constituição do site oficial só para registrar mais uma provocação? Ultimamente não duvido de nada. Naqueles dias o homem ainda bufava raivoso pelos cantos, embora já se preparasse para ingressar na fase menos inamistosa em que se encontra hoje, com a adoção de sanfonas em lugar de fuzis (trata-se do primeiro governante da História Universal que, em posição de sentido, mas sentado, fecha a carranca para ouvir a Ave Maria de Gounod mal executada, e isso para emitir um sinal de “paz”). Eu não exagerava ao me preocupar. O que se tramava no Planalto? A pergunta era absurda, mas não irracional.

Em meio às instabilidades da política, da economia, da educação, da saúde pública e dos humores presidenciais, a resposta da Secom admitindo “instabilidade no link” soava perversamente irônica. Que aquela a instabilidade tivesse derrubado a Constituição soava como deboche. Sim, deboche. Nos tempos que nos assombram, com ou sem telemática, um pouco de paranoia, como prudência e caldo de galinha, não faz mal a ninguém.

Ainda bem que ao cabo de duas horas o episódio se revelou insignificante, como tratei de avisar logo na primeira linha. Uma intercorrência computacional. A gente já sabe que, na internet, caem governos, moedas e times de futebol, sem que tenham caído de verdade. Isso vive acontecendo. A Constituição também caiu por um par de horas (sofreu um take down) nos domínios do planalto.gov.br, mas, fora dele, as cláusulas pétreas continuaram de pé, mesmo que trôpegas e balouçantes. Portanto, o que se passou na Secom foi um descuido, uma distração de alguém que tardou a perceber a “instabilidade do link”.

Mas aí é que está: pelo que revelou de desatenção, de quase descaso, o evento insignificante, deveras insignificante, foi tão copioso, tão prenhe, tão transbordante de significação. O ocorrido deixou nítido que não está entre as prioridades da Secom o zelo respeitoso com a Lei Maior. Não houve sequer um pedido de desculpas, nenhuma expressão de reverência ao texto constitucional. Por quê?

Basta entrar no site para saber. O foco do planalto.gov.br é estampar fotografias promocionais do presidente, com links sempre estáveis. O personalismo manda lembranças. A Constituição que padeça na instabilidade. A Constituição é coisa lá da “área técnica”. A Constituição não é fake news, mas, bobeou, é derrubada.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: O que é desinformação?

O problema é grave, mas uma lei improvisada não vai resolvê-lo

Avança no Congresso Nacional um projeto de lei para combater fake news. Claro que todo mundo é contra a mentira e a favor da verdade, mas equacionar essa matéria por meio de um diploma legal pode não ser tão simples. Ao contrário, pode nos desviar para um desfiladeiro traiçoeiro, de caminhos minados. Basta ver que, enquanto se discute o projeto de lei, a CPMI das Fake News pega fogo. Em outro prédio ali perto, no Supremo Tribunal Federal (STF), o inquérito sobre as mesmas fake news, as mesmíssimas, faz a temperatura subir ainda mais. Agora as investigações chegam perto do tal “gabinete do ódio”, um suposto órgão semiclandestino que, sob comando de gente próxima ao presidente da República, espalha calúnias contra desafetos do bolsonarismo.

Nesse ambiente inflamável, o debate do projeto de lei não flui. O texto não para de sofrer alterações. As votações são adiadas e remarcadas. Para complicar, tudo está de pernas para o ar – tudo, principalmente os argumentos. Defensores históricos das liberdades democráticas são acusados de censores, em mais uma saraivada de ofensas odiosas. Do outro lado, os milicientos do fascismo animalesco – aqueles mesmos que difamam artistas, professores, cientistas e jornalistas, os mesmos que idolatram a ditadura militar, os mesmos que se fantasiam de Ku Klux Klan do cerrado e carregam tochas em rituais noturnos para pedir o fechamento do STF – invocam para si a “liberdade de expressão”. Carregam faixas com os dizeres “fake news não é crime” – como se todo mundo aqui não soubesse que, mais do que crime, são um verdadeiro festival de tipos penais.

Os milicientos invocam em vão o nome da liberdade para pleitear impunidade. Querem atentar à vontade contra a República e a Constituição. Na novilíngua que adotaram, “liberdade” quer dizer impunidade para eles, assim como a “democracia” deles quer dizer ditadura para todos os demais.

Com berros irracionais desse tipo, negociar um diploma legal se converte numa roleta-russa. O processo legislativo pede racionalidade e prudência. Nenhuma boa decisão brotará da correria. Por isso os mais sensatos vêm recomendando que, se há alguém bem-intencionado por trás do projeto de lei, esse alguém deveria conter o passo, dialogar com a universidade e avaliar com responsabilidade como é que pode funcionar – e se pode funcionar – uma lei contra a mentira. A matéria pede calma. Se o Direito positivo servisse para banir as inverdades deste mundo, a Constituição federal poderia resumir-se a um único artigo, “é proibido mentir”, e tudo estaria resolvido.

Acontece, nós sabemos, que nada estaria resolvido. Um artigo nesses termos, além de cômico, seria vazio, cairia na ineficácia absoluta. O que é a mentira? O que é “mentir”? A resposta não cabe dentro dos domínios da técnica legislativa. Não por acaso, um dos gargalos do projeto das fake news acabou sendo precisamente a impossibilidade de definir um tipo específico de mentira: a “desinformação”. O ímpeto legiferante (ou legifobético) não capta o sentido da palavra “desinformação” e sem captá-lo não consegue caminhar.

A pesquisadora Claire Wardle, líder e fundadora do projeto First Draft, ajuda-nos a entender essa palavra. Ela sintetizou sete categorias, apenas sete, e com elas classificou os “conteúdos” que sabotam o conhecimento dos fatos. No centro de gravidade dessas sete categorias Claire desenhou o conceito de “desinformação”. A partir do pensamento dela, mas indo um pouco além, podemos traçar a definição que nos interessa e nos falta: a “desinformação” constitui uma novíssima modalidade de mentira industrializada (fabricada em redes complexas de trabalho organizado), envolvendo recursos de monta e equipamentos ultramodernos, com foco nas redes sociais e com a intenção (dolo) de violar direitos das outras pessoas para obter vantagens (indevidas) políticas ou econômicas.

Usurpando as plataformas sociais, a indústria da desinformação (que inclui as fake news, mas não se resume a elas) tem alcance incomparavelmente superior ao da imprensa. Essa forma contemporânea de mentira massiva e poderosa infecta como um vírus os organismos da democracia. A desinformação industrializada – cada vez mais a serviço quase que exclusivo das falanges de extrema direita – corrói os meios legítimos de que dispomos para registrar aquilo que Hannah Arendt definiu como “verdade factual”.

Como se vê, não precisamos de uma resposta definitiva sobre a natureza da mentira ou da verdade na Filosofia para entender o estrago causado pela desinformação. Basta-nos entender o valor da verdade dos fatos, essa pequena forma de verdade cotidiana, simples, que todos percebemos. Onde vigora a desinformação, a sociedade perde a capacidade coletiva de constatar e nomear os fatos – e quando essa capacidade se dissolve, a política fica inviável e a democracia, impossível.

O problema é grave, mas uma lei improvisada não vai resolvê-lo. Antes de legiferar, deveríamos pensar mais, debater mais, informar mais.

  • Eugênio Bucci é jornalista e professor da Eca-Usp

Eugênio Bucci: A indústria ilegal de ‘fake news’ por trás dos atos pró-ditadura

Motor do bolsonarismo, ou essa indústria vem à luz, ou a treva cobrirá o resto

Na terça-feira o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a abertura de inquérito para investigar as manifestações pró-ditadura militar realizadas no domingo. É preciso investigar.

É preciso investigar o horror. Domingo foi um dia de horror. Usando a Bandeira Nacional como capa de Zorro por cima de trajes que imitam fardas militares de camuflagem, os circunstantes exigiram medidas exótico-totalitárias, como o fechamento do Congresso e do próprio STF. Contra o horror, o pedido de investigação foi protocolado na segunda-feira, dia 20, pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, que cumpriu seu dever funcional. O Brasil precisa identificar a indústria que está por trás desse pesadelo que vai virando realidade.

Todos sabemos que o presidente da República é a cereja podre do bolo infecto. Vestindo uma camisa vermelho-chavista, ele compareceu ao ato em Brasília e discursou diante de faixas que pediam “intervenção militar já”. Ao estrelar a matinê lúgubre, o governante antigoverno segue sua tournê como animador de auditórios macabros e de macabros de auditório.

Não obstante, o próprio Bolsonaro não figura como alvo do inquérito. Isso significa que, ao menos por agora, não será oficialmente reconhecido o que já é ululantemente público: que o chefe de Estado patrocina, com seus garganteios perdigotários, a histeria golpista da extrema direita brasileira. Deixemos isso de lado – por enquanto. Não há de ser nada.

O que mais conta, neste momento, não é investigar o óbvio comprometimento presidencial, mas descobrir quem atua, e como, no backstage das vivandeiras machistas. O decisivo, agora, é saber com que dinheiro, por meio de que engrenagens de comunicação e com que logística esse movimento se tornou uma empresa bem administrada. Quem financia esse circo que, enquanto bate palmas para aquele tal que deu de declarar “eu sou, realmente, a Constituição”, trabalha para implodir a Constituição federal? Quem gerencia a estratégia? Onde estão os cérebros por detrás dos descerebrados? Estão fora do Brasil?

Se não quiser virar geleia, a República precisa decifrar o enigma. Para piorar as coisas, pouca gente ajuda. O presidente da República e as milícias, num coro afinadíssimo, sabotam as políticas sanitárias, chantageando o povo pela reabertura de seus comércios, e ninguém faz nada. As oposições entraram em quarentena moral. É inacreditável. A passividade e a desarticulação das oposições estarrecem. É nesse deserto desolador que a iniciativa de Augusto Aras desponta como o único gesto sério contra o golpismo que bate bumbo. Viva Augusto Aras. Fora ele, só o que temos para protestar contra o anacrônico fascismo vintage são as frases balbuciadas do neoestadista Rodrigo Maia e – ah, sim – a decisão tomada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Os três pelo menos agiram. Perceberam que não adianta pedir “paciência histórica” e esperar que as instituições tomem as providências. Ora, as instituições são vertebradas por pessoas e, se essas pessoas não agirem com coragem, não haverá como barrar o arbítrio. As pessoas que vertebram as instituições têm de se mexer e, para isso, precisam do clamor organizado das oposições. Ou é isso, ou os fascistinhas de WhatsApp vão levar a melhor.

Os fascistinhas de WhatsApp só não levarão a melhor se os crimes sobre os quais se apoiam forem desmascarados. É aí que entram as fake news. Se quisermos de fato desvendar a máquina do golpismo, teremos de entender o nexo entre a indústria clandestina das fake news e o bolsonarismo. Não basta seguir o dinheiro. É preciso seguir as fake news.

Em sua decisão, Alexandre de Moraes apontou o rumo. Determinou que se apurem a “existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia e a divulgação em massa de mensagens atentatórias ao regime republicano, bem como as suas formas de gerenciamento, liderança, organização e propagação que visam lesar ou expor a perigo de lesão os direitos fundamentais, a independência dos Poderes instituídos e ao estado democrático de direito, trazendo como consequência o nefasto manto do arbítrio e da ditadura”. Nada mais justo.

Agora, finalmente, as fake news entraram na mira certa. Elas são produto de uma indústria organizada, profissionalizada, tecnologicamente bem equipada, que opera por meio de negócios ilícitos e de relações de trabalho clandestinas. Essa indústria, que é criminosa na forma e no conteúdo – como são, não por acaso, as próprias fake news –, turbina a propaganda de ódio e promove a fúria inconstitucional, antidemocrática e antirrepublicana. Essa indústria politiza o debate sobre medicamentos, bombardeia a credibilidade da imprensa, calunia as instituições, desacredita a ciência, enxovalha a universidade, demoniza a arte e fomenta o fanatismo. Ela convence os malucos – alguns dos quais em altos cargos públicos – de que incêndios na Amazônia não existem e de que o vírus é fabricado em aulas de marxismo cultural. Essa indústria milionária é o motor do bolsonarismo. Ou ela vem à luz, ou a treva cobrirá o resto.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: O ministro, o chefe do ministro e a pandemia de ‘fake news’

Sem fontes confiáveis e um sistema organizado de comunicação não há governança para a crise

Na terça-feira o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, deu mais uma de suas coletivas diárias. Mostrou-se olímpico, seguro de seu papel e de seu cargo. Mandetta tem hoje mais estabilidade do que Jair Bolsonaro. O presidente pode demiti-lo – os generais não deixam.

A impotência presidencial tem um quê de conto de bruxas. O presidente vai fazer a barba de manhã e pergunta ao reflexo de si mesmo: “Espelho, espelho meu, existe algum ministro mais querido do que eu?”. O espelho responde, dá o nome e o endereço, mas Bolsonaro, corroído de ciúme, não tem poder para expulsá-lo da pasta. Está reduzido ao papel de presidente-café-com-leite-muito-embora-bravateiro. Sai enfezado do Palácio da Alvorada e se põe a berrar sobre a crueldade ministricida de sua caneta, uma senhora canetona, que é maior do que a caneta dos outros (ele e sua obsessão com símbolos fálicos).

Palavras ao vento. Contra Mandetta a caneta do narcisista que desconhece a beleza vale menos do que uma aspirina. O sereno ministro da Saúde sabe disso e, por saber, tripudia. Na terça-feira, em sua coletiva, disparou recados ácidos – ainda que elegantes – contra o chefe que não o chefia. Entre outros venenos, amaldiçoou as fake news (gênero narrativo adorado pelo café-com-leite) e as redes sociais (o ambiente predileto do estadista avesso à máquina estatal).

“As fake news, esse final de semana, fizeram um gráfico igual àqueles gráficos da epidemia”, diagnosticou o ministro. “Fake news foi o que mais subiu, subiu bem mais que o número de casos (de covid-19).”

Mandetta aproveitou para denunciar que circulam perfis falsos como se fossem dele e avisou com total explicitude: “Não sou de mídia social, não gosto; gosto do mundo real. Vou trabalhar essa epidemia no mundo real. O que eu tiver que falar, não acreditem em nada que não seja falado aqui (nas coletivas diárias, diante das câmeras de TV). (...) Eu não posto nada, eu não comento nada, eu não faço nada nesse mundo virtual”.

O que ele está dizendo, em suma, é que adota o estilo oposto ao do chefe que não é chefe. Este, abduzido pelas fantasmagorias imaginárias do seu conto de bruxas, acha que governa pelo Twitter, pelas lives e pelo histrionismo de suas milícias virtuais. Em sua fantasia de filme de terror, alimenta-se da bajulação dos seus fiéis fascistinhas de WhatsApp, que sabotam o isolamento e insultam os chineses com ofensas racistas. Bolsonaro substitui a burocracia governamental pelos urros virtuais dos seguidores e acredita que assim deixa para trás a “velha política”.

O resultado prático de seu delírio é muito simples e palpável: em cada um de seus atos acentua a dissolução dos regramentos da administração pública em favor da dinâmica dos “engajamentos”, das “curtidas” e do irracionalismo das redes. Para ele, os algoritmos opacos dos conglomerados globais que monopolizaram as comunicações na era digital são a mais perfeita tradução da vontade do povo. Sim, é uma sandice, mas é nessa sandice que ele acredita. O triunfo de sua crença acarretará a derrocada do Estado, da República, da política e da democracia. Bolsonaro gosta de fake news porque vê o Estado, o governo, a República, a política e a democracia como um embuste a ser destruído. Ele e as fake news nasceram um para o outro. Nasceram um do outro.

Razoável, o ministro da Saúde rejeita as doideiras do presidente e veste o colete do SUS para apostar no caminho inverso. Com razão, parece entender que as fake news concentram uma ameaça tão ou mais grave do que a pandemia. O poder público fica anulado se não puder contar com informações baseadas na ciência e se essas informações não servirem de base para o debate público e para a orientação das pessoas e da sociedade. Sem fontes confiáveis e um sistema organizado de comunicação, não há governança para a crise.

A indústria das fake news – que hoje no Brasil está a serviço do bolsonarismo – opera para minar a confiança do público nas autoridades, na política, na universidade, na ciência e na imprensa. No longo prazo, essa indústria fabrica fanatismo e clamor por uma tirania de extrema direita no Brasil. No curtíssimo prazo, amplifica o número das mortes que virão com o coronavírus e agrava a recessão econômica que virá depois. Isso mesmo. Em sua narrativa perversa, as fake news do bolsonarismo dizem defender a economia e os empregos, mas, ao patrocinarem a explosão do número de casos e o colapso do sistema de saúde, produzirão a desagregação social, com violência e criminalidade ainda mais generalizadas, e isso tornará mais improvável qualquer recuperação econômica.

Será difícil enfrentar essa indústria, que conta com o apoio esgoelado do presidente-café-com-leite. Ele tem pouco poder (não consegue nem falar grosso com o ministro da Saúde), mas a indústria em que ele joga suas fichas tem uma capacidade gigantesca de produzir estragos. E, por enquanto, não há vacina contra a usina de fraudes desinformativas com que o presidente e suas falanges robóticas vêm infestando a sociedade brasileira.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: Por que, em vez da doença, eu prefiro a cura como metáfora

É hora de doar tudo o que pudermos a quem não tem, é hora de bater panela...

Susan Sontag viu nas doenças do nosso tempo, o câncer e a aids, metáforas poderosas para pensarmos sobre as mentalidades que nos aprisionam e nos fazem cativos de preconceitos e medos irracionais. Acertou no nervo. Seus livros A Doença como Metáfora e Aids e suas Metáforas viraram clássicos instantâneos. Mas agora, diante da pandemia da covid-19, em que a civilização foi inteira para a enfermaria – e em parte para a UTI –, a metáfora que olha para nós com ares de esfinge não está na doença, mas na cura.

Sim, eu bem sei que a cura não existe. Não há vacina. Não dispomos de remédios específicos e comprovados, a despeito da propalada cloroquina presidencial. Por enquanto não há um fármaco que aniquile o coronavírus. Quando muito, a medicina nos socorre combatendo os sintomas e os médicos nos apoiam para ganhar tempo, enquanto o corpo, como diria Voltaire, trata de neutralizar a moléstia.

Não há solução individual para ninguém. Uma pessoa que desenvolva um quadro grave da doença terá de contar com os paliativos hospitalares, de um lado, e, de outro, com o próprio organismo para restabelecer o corpo. É só o que temos. Na dimensão coletiva, porém, podemos recorrer a um arranjo coletivo para enfrentar a enfermidade com eficácia. Individualmente, somos indefesos, mas agindo em conjunto, socialmente, podemo-nos proteger. As esperanças que podemos ter são esperanças coletivas. É por aí que começa a metáfora da cura (da cura que ainda não há, mas já é metafórica).

As medidas que os países que não são governados por loucos estão adotando ilustram o que quero dizer. A diminuição organizada dos contatos sociais – com a interrupção das aulas, dos comícios e dos cultos religiosos, além de festas (de aniversário, inclusive) e funerais – vai se mostrando eficaz para retardar e diminuir a intensidade do chamado pico de contaminação. Se não formos por aí, será o caos. Se o volume de casos graves explodir acima de um patamar suportável, faltarão, como se viu em outros países, leitos de UTI com respiradores. Ato contínuo, virá o sufocamento do sistema de saúde, o que vai esgarçar o tecido social, com o risco da generalização de mercados negros (não só de álcool em gel) e da violência descontrolada.

A única opção sensata que temos é ficar em casa e, acima disso, ajudar aqueles que não têm moradias adequadas – e não leem estas páginas – a se proteger. Dependemos agora de renúncia e solidariedade. A renúncia é individual: consiste em abrir mão de sair por aí passeando (para buscar o prazer) ou trabalhando (para buscar dinheiro). A solidariedade, claro, só se realiza no plano coletivo. Dispensar os trabalhadores domésticos sem lhes cortar o salário é o mínimo, mas não é suficiente. Estamos sendo chamados a fazer mais.

O mais interessante é que ninguém pode controlar se será ou não será infectado, mas todo mundo pode controlar, ao menos um pouco, se será ou não um vetor de contágio. Ninguém será bem-sucedido em ficar à distância do vírus, por mais que mantenha no armário do banheiro um estoque de máscaras cirúrgicas (que estariam mais bem empregadas se fossem doadas a um hospital). O vírus virá, seja no desenho da netinha ou no prato que o restaurante caro manda entregar por motoboy. Mas temos chances de ser mais bem-sucedidos em postergar o momento em que o vírus que está em nós atinja o próximo.

Eis, então, a metáfora: a única forma de cuidar de nós é cuidar do outro. Se eu quiser cuidar de mim, individualmente, de forma egoísta, estou roubado e, mais ainda, os outros ao meu redor também estão. Note bem o improvável leitor: no caso presente, os vícios privados não nos levarão a benefícios públicos. Só nos levarão ao desastre.

Vamos dizer “não” ao desastre. Vamos dizer “sim” ao pensamento. A metáfora nos desafia a repactuar as bases da civilização enferma. O Estado despachante do capital precisa ser questionado. Os governos autoritários e destituídos de empatia precisam ser derrotados. O sujeito que faz pose de fortão e chama a pandemia de gripezinha, apoiado em fake news, precisa ser desmascarado. É hora de doar tudo o que pudermos a quem não tem, é hora de bater panela e piscar as luzes do apartamento (para quem tem panela, energia elétrica e apartamento).

É hora disso tudo, mas sem lenga-lenga de autoajuda, pelo amor de Deus. Essa conversa de redescobrir o valor da família e as delícias de lavar com cândida o chão da cozinha, francamente, não dá pé. Haja afetação. Haja mariantonietismo. Eu não vejo nenhuma vantagem em ficar trancado no meu endereço domiciliar dando aulas para um notebook, por meio do qual meus alunos tentam me entender e fazer perguntas tão atentas quanto generosas. Quero reencontrar o quanto antes as pessoas que amo e de quem preciso sentir o calor, o beijo, o abraço. Gosto de perdigotos no meio da rua. Sinto saudades das calçadas sobre a quais salivam, enquanto sonham, as famílias que não têm casa para morar e precisam ser salvas.

No mais, a metáfora me intriga.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: Por que os líderes de oposição não se unem contra o fascismo?

Se Lula, FHC e Ciro souberem juntar forças, a maioria dos brasileiros vai segui-los

A cada dia mais, o presidente deixa de lado os disfarces e escancara suas pretensões autoritárias. No sábado passou a convocar oficialmente o ato público do próximo dia 15. Com isso expõe seus seguidores ao risco de contágio pelo coronavírus, mas, segundo ele, esse vírus aí “não é tudo isso que a grande mídia propaga”.

Saúde pública à parte, o dia 15 de março promete ser uma apoteose da truculência política. Nas redes sociais a convocação destila ódio, clama por “intervenção militar já”, calunia ministros do Supremo Tribunal e faz apologia da violência e da censura. É tudo o que o chefe de governo mais adora. Viciado em praticar bullying estatal contra as redações independentes, ele pressiona empresários que anunciam em jornais, discrimina os órgãos de imprensa que lhe desagradam e faz o que pode (e, principalmente, o que não pode) para quebrar empresas jornalísticas e humilhar jornalistas. Para ele, quanto mais desaforado for o dia 15, melhor.

O clima piora a cada lance. Na semana passada, o governo vetou a Folha de S.Paulo na cobertura do jantar de Bolsonaro com Trump em Miami. Em outra frente, ordenou a retirada dos diplomatas brasileiros de país vizinho - a ameaça de guerra é o gozo do nacional-populismo. O orçamento das Forças Armadas só cresce, enquanto os elogios das autoridades aos policiais amotinados proliferam, para deleite das milícias e dos parlamentares que trabalham para elas. Para completar o serviço, o chefe de governo, sem mostrar nenhuma prova, começou a acusar o Tribunal Superior Eleitoral de ter fraudado as urnas eletrônicas no primeiro turno de 2018. O objetivo é desmoralizar as instituições do Estado Democrático de Direito. É para isso que vai servir o dia 15.

Dizem os bolsonaristas que todo ato público é democrático. Mentira. Bem sabemos que a democracia garante aos comuns do povo o direito de gritar o que quiserem, incluídos insultos contra o presidente da Câmara dos Deputados, mas o chefe do Poder Executivo, obrigado pela Constituição a promover a harmonia entre os Poderes, não tem o direito de açular suas falanges a xingar a Câmara, o Senado e o Supremo. Toda democracia tem gente na rua, é verdade, mas gente na rua não é sinônimo de democracia. No nazismo alemão, um regime totalitário, e no fascismo italiano, uma tirania, havia rios de gente na rua. Há comícios até na Coreia do Norte, que não é nada democrática. Ditadores se deliciam com os aplausos das multidões adestradas.

Portanto, os chamamentos do presidente brasileiro para um evento cuja propaganda está repleta de ofensas ao Legislativo e ao Judiciário não têm nada de democráticos. São, isso sim, indícios de fascismo.

Diante desses indícios, clamorosos, o mais chocante é a apatia das oposições. O Estado brasileiro foi tomado por uma estranhíssima “democracia militar”, com oficiais de alta patente controlando todos os ministérios e gabinetes no Palácio do Planalto, e os líderes de oposição, quando muito, postam um tuíte lamuriento em pleno carnaval ou vão posar de vítimas em Paris. O chefe de Estado desembarca um palhaço na porta do Alvorada para caçoar do pibinho, oferecendo bananas aos repórteres, e os líderes oposicionistas resmungam para suas claques sectárias. É patético.

Aprendamos com o passado. Em 1966, JK, João Goulart e Carlos Lacerda costuraram um arremedo de Frente Ampla contra um governo militar que tramava o endurecimento da repressão. Fracassaram, mas tentaram. Em 1984, políticos tão diferentes como Ulysses, Tancredo, Brizola, Montoro e Lula se uniram na campanha das Diretas Já. Perderam, mas apressaram o fim da ditadura.

E agora? Por que é que Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Ciro Gomes não convocam o País para dizer “não” ao arbítrio que se insinua no horizonte? Bem sabemos que não é simples. Os três cultivam pirraças recíprocas. Ciro, dado a valentias verbais, dispara desaforos contra a “esquerda bandida” e fecha portas. Lula, machucado pela condenação - controversa e açodada - que o trancou numa cadeia, tem motivos para andar zangado, mas bem que poderia superar a autocomiseração e, em vez de elogiar as agressões de Bolsonaro contra a imprensa, fazer um gesto para unir campo democrático. Para completar, FHC, depois de lavar as mãos no segundo turno de 2018, entregou-se ao imobilismo de nhenhenhéns, mimimis e não-me-toques. Enfim, o clima entre eles não ajuda.

Mas, a despeito de tudo isso, os três são as maiores lideranças democráticas do Brasil: nunca flertaram com o arbítrio nem atentaram contra a imprensa, contra as artes, contra a ciência e contra a universidade. Com esse denominador comum, acima das diferenças legítimas que os dividem, eles têm uma base para se acertar.

A liberdade e os direitos fundamentais estão sob ameaça no Brasil e, como escreveu a historiadora Heloisa Starling, “o que protege a liberdade é uma coisa só: nossa capacidade de mobilizar as pessoas em sua defesa”. A democracia precisa de Lula, FHC e Ciro - juntos. Se eles souberem unir forças, a maioria dos brasileiros vai segui-los. E vai frear o fascismo.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: Se não nomear as atitudes do presidente, a imprensa vai desinformar o público

Convocação indevida de ato público escancarou o prenúncio de uma crise institucional

Está no Gênesis: a incumbência de dar nome aos seres vivos foi transmitida ao homem por ninguém menos que Deus. De lá para cá, a briga não parou mais. Definir como se deve chamar cada uma das coisas deste mundo virou uma disputa interminável. Cientistas concorrem para saber qual deles vai designar a nova estrela ou o novo vírus. Locutores esportivos competem para dar o melhor apelido ao jogador de futebol que brilha na temporada. Marqueteiros duelam nas licitações para ganhar o direito de “criar” as marcas publicitárias dos programas de governo (no nosso tempo, toda política pública tem nome de sabonete, ou quase isso).

No meio dos turbilhões vernaculares para batizar isso e aquilo, o repórter é apenas um a mais – mas esse um a mais não pode faltar. Não se espera dele que saia por aí inventando os substantivos da língua corrente, mas o repórter – como, de resto, toda a imprensa – tem o dever de chamar cada coisa e cada personagem pelo nome devido. Se não fizer isso, vai desinformar a sociedade. Se quiser mesmo noticiar os acontecimentos com clareza e com objetividade, o jornalismo precisa saber nomeá-los.

Um exemplo? Está na mão. O que aconteceria se, em lugar da palavra “motim”, os jornais, as rádios, as emissoras de TV e os sites noticiosos na internet resolvessem usar a palavra “greve” para se referir ao assalto contra a ordem pública que vem sendo perpetrado por policiais cearenses? Aquilo não é uma “greve”. É um motim. Se os jornais começassem a chamar aquele levante armado de “greve” – palavra que aparece na legislação democrática como um direito do trabalhador – desorientariam os leitores, ouvintes e telespectadores. Estes não entenderiam nada de nada e poderiam até achar que os criminosos amotinados, com o rosto coberto por balaclavas, atirando em pessoas desarmadas, não passam de assalariados explorados exercendo seu direito de não trabalhar. Em resumo, se chamasse de “greve” o motim do Ceará, a imprensa prestaria um desserviço à sociedade e faria propaganda, ainda que involuntária, a favor dos amotinados.

Simples, não? Na verdade, não é tão simples assim. Quando se trata de cobrir os atos do atual presidente da República, a tarefa de dar nome às coisas se complica um pouco. Nesse ponto, temos tido dificuldades. Há dois dias o chefe de governo distribuiu pessoalmente, por meio de seu telefone celular, convocações para um ato público que pretende ameaçar os representantes dos Poderes Legislativo e Judiciário.

A intimidação virulenta já começou. Está na rua. Num vídeo divulgado pelos organizadores do ato, uma música dos Titãs, O Pulso, serve de plataforma para a agressão das autoridades. Aproveitando-se da letra, que arrola um inventário copioso de doenças, o vídeo exibe uma sucessão de fotografias de deputados, senadores, governadores e ministros do Supremo, associando cada rosto a uma enfermidade. Em termos rudimentares e imorais, a peça “xinga” as autoridades de “doentes”. Em seguida, enuncia a mensagem de que para resolver os problemas do Brasil é preciso extirpar do País todos os focos de “moléstias”. Não há dúvida: o ato convocado pelo presidente da República é, sob todos os ângulos, uma investida odiosa e golpista contra as instituições democráticas e as pessoas que legitimamente as representam. A intenção dos organizadores é desacreditar o Estado e pavimentar o caminho espúrio para que o presidente avance na direção de uma ditadura.

O uso da canção dos Titãs foi indevido. Dois dos três autores da música, Arnaldo Antunes e Tony Bellotto, repudiaram publicamente o uso que a extrema direita fez dela (o terceiro autor, Marcelo Fromer, está morto). O uso de símbolos militares também é indevido. Há oficiais protestando contra a pregação de que as Forças Armadas devem tomar o poder dos políticos. Tudo aí é indevido.

A convocação – indevida – desse ato público escancarou o prenúncio de uma crise institucional. É claro que todo mundo tem o direito de ir às ruas para gritar o que quiser. As pessoas têm o direito até de pedir por uma ditadura militar. Birutice faz parte. Agora, quanto ao presidente da República, que jurou solenemente respeitar, manter e cumprir a Constituição, esse aí não tem o direito de se engajar a plenos pulmões no fanatismo golpista. A lei obriga-o a defender a ordem constitucional. Se não observar a obrigação que lhe cabe, o mandatário ficará exposto a um processo que lhe pode custar o cargo.

O curioso é que o presidente, pronunciando seus impropérios inconstitucionais, vai se fingindo de “normal”. Força os limites, dia após dia. Quebra o decoro, faz apologia de torturadores, chama o povo para atacar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal e age como um chefe de motim. Ele se situa fora do campo democrático, atenta contra os símbolos mais caros da democracia – isso é um fato – e setores da imprensa ainda parecem acreditar que tudo está “normal”.
As redações precisam refletir. Dar o nome justo a cada coisa – e a cada agente público – vai se tornando urgente e indispensável.

* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP


Folha de S. Paulo: Projeto de Bolsonaro é destruir a imprensa livre, diz Eugênio Bucci

Vitória dele implica destruição da imprensa livre, declara o professor da USP

Maurício Meireles, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - O primeiro debate do 3º Encontro Folha de Jornalismo, que aconteceu nesta quarta-feira (19), contou com falas contundentes de Eugênio Bucci, professor da USP e colunista do jornal O Estado de S. Paulo. Bucci comparou o presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores aos bonapartistas do século 19 e aos fascistas do século 20.

“São pregadores do fascismo. São machistas, misóginos, militaristas. Não suportam a ciência. Não suportam o jornalismo. A vitória do projeto dele implica a destruição da imprensa livre, e a vitória da imprensa livre coloca em sítio o projeto de poder autoritário que ele tem”, afirmou.

Com mediação da ombudsman, Flavia Lima, Bucci debateu com Mônica Bergamo, colunista da Folha, e Ana Cristina Rosa, assessora-chefe de comunicação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Como tema da mesa, a pergunta: “Jornalistas são mesmo animais em extinção?”

Flavia iniciou o encontro mencionando levantamento da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), que computou mais de cem ataques à imprensa cometidos pelo governo Bolsonaro em seu primeiro ano de governo. Lembrou alguns, como o insulto com insinuação sexual contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha, registrado nesta terça-feira (18).

“É um desprazer discutir uma fala tão desqualificada”, afirmou Bucci sobre o ataque. “É um desprazer considerar essas palavras como passíveis de interlocução. Elas não são, são ultrajes, são golpes verbais. Têm o objetivo de nos calar, nos humilhar.”

Bergamo afirmou que, no começo de sua carreira, a única preocupação era conseguir informações exclusivas. Agora, disse, há maior escrutínio do trabalho dos jornalistas —o que é positivo, ressaltou —, mas também uma rápida disseminação de mentiras e tentativas de desqualificação dos repórteres.

“O fato de haver um governo com essa animosidade contra a imprensa aumenta o número de ataques e a pressão contra nós. Há vários elementos de tensão [profissional], mas não daquela tensão com a qual deveríamos estar nos preocupando. Deveríamos nos preocupar em fazer matérias, não em nos defender de ataques”, afirmou, lembrando que o tempo gasto com tais ataques poderia ser usado, por exemplo, para apurar as circunstâncias da morte de Adriano da Nóbrega, miliciano ligado a Flávio Bolsonaro que foi morto pela polícia na Bahia.

Para Ana Cristina Rosa, do TSE, o papel de órgão públicos é usar as notícias negativas como instrumento para aprender e melhorar sua atuação. “[Mesmo] em relação aos erros, não é aceitável que se demonize profissionais. Erros fazem parte.”

Na parte aberta à plateia, um participante perguntou se a imprensa não teria contribuído para a ascensão de Bolsonaro ao supostamente apoiar o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e a Operação Lava Jato.

“O primeiro cuidado que precisamos tomar é saber o que estamos chamando de imprensa”, ressalvou Bucci. “A imprensa tem inúmeras contradições. Ela tem tensões internas, ela têm pluralidade. Não é bem ‘a imprensa apoiou o impeachment’. Podemos dizer que a linha editorial opinativa de alguns veículos aderiu [ao processo] de maneira declarada.”

Mônica Bergamo discordou da avaliação sobre o impeachment que a pergunta embutia, mas afirmou ver tal paradoxo na forma como a imprensa tratou o hoje ministro da Justiça Sergio Moro.

“[Ele] é o centro e o mais importante apoio de um projeto autoritário. Acho que ele foi tratado de maneira não crítica pela imprensa, e ele é o grande suporte de tudo isso. Mas excluo a Folha, que foi o único órgão a ir para cima dele”, afirmou.

O debate integrou evento que marca o início das comemorações dos centenário da Folha, que ocorre em 2021.


Eugênio Bucci: ...e os ataques do poder contra a imprensa se rebaixam ainda mais

Esta campanha aberta e contumaz é um fato objetivo. E desastrosas são suas consequências

Com presteza jornalística e dignidade profissional, o Estado noticiou em sua edição de ontem, na página A8, os insultos dirigidos na terça-feira passada contra a repórter Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. Esses insultos vêm carregados de matéria infecta; a simples tentativa de narrá-los causa engulhos, mas, sem recapitulá-los nos seus aspectos mais enojantes, não há como ter a dimensão precisa da campanha difamatória que o poder deflagrou contra a imprensa neste país. O tema é nauseante e repulsivo, mas obrigatório.

Desde 2018, quando revelou esquemas de impulsionamento ilegal de mensagens de WhatsApp nas eleições de 2018 em favor do candidato da extrema-direita, a jornalista Patrícia Campos Mello se tornou alvo preferencial do bolsonarismo de bueiro, capaz das piores torpezas. Os ataques covardes contra ela não cessam. Agora, o palco da agressão foi a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), no Congresso Nacional. Lá pelas tantas, um sujeito de nome Hans River do Rio Nascimento, que depunha para os parlamentares, passou a acusar a repórter de ter proposto – isto mesmo – trocar sexo por informação. O despautério factual e moral estarreceu a parcela civilizada dos presentes (outra parcela riu e festejou). Era notória a intenção de humilhar, de espezinhar, de torturar com palavras a condição feminina, como numa reedição do “eu não estupro porque você não merece”. Só quem entende que a mulher é (ainda) uma minoria política identifica o horror contido nessa fala. O acusador se aproveita daquilo que o machismo considera uma fragilidade e, fustigando esse “ponto fraco” (a condição feminina), investe contra a imprensa.

Não foi só isso. Pouco depois da cena deplorável na CPMI, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) foi às suas redes sociais e postou nada menos que o seguinte: “Eu não duvido que a senhora Patrícia Campos Mello, jornalista da Folha, possa ter se insinuado sexualmente, como disse o senhor Hans, em troca de informações para tentar prejudicar a campanha do presidente Jair Bolsonaro. Ou seja, é o que a Dilma Rousseff falava: fazer o diabo pelo poder”.

A mensagem do deputado consumou, com total explicitude, mais uma investida do poder contra a mulher e contra a imprensa. Portanto, o que se passou em Brasília na terça-feira não foi apenas mais um surto de misoginia abjeta dando mais uma prova cabal da falta de decoro e de preparo das autoridades que encontram abrigo nos palácios da República; o que se passou lá foi o novo lance da cruzada fanática do governo federal contra os jornais. Enfim, o que se passou em Brasília na terça-feira era (e é) notícia do mais alto interesse público.

Em sua edição de ontem, a Folha repudiou oficialmente a mentira do acusador e as “insinuações ultrajantes” do deputado Bolsonaro. Quanto ao Estado, ao dar o devido destaque ao assunto, deixou claro que o tema não se reduz aos interesses do jornal concorrente e cumpriu o dever de levar ao seu leitor o que há de mais preocupante no País: o empenho alucinado do poder em destruir o jornalismo. A vítima desta vez foi uma repórter da Folha, mas o objetivo final deste coro de intolerantes – e mentirosos – é desacreditar não apenas a Folha, e sim todos os jornais. O objetivo é desmoralizar as redações profissionais independentes, todas elas.

Vistos em conjunto, esses ataques contra a imprensa, sucessivos e crescentes, conformam este fato irrefutável do nosso tempo: o poder que aí está, mais do que não gostar, rejeita visceralmente a função investigativa dos jornalistas e, se pudesse, gostaria de sumir com eles. Outro dia mesmo o presidente se referiu aos jornalistas como “espécie em extinção”. Não há um só momento em que um representante do governo federal tenha saído em defesa da liberdade de imprensa.

Quando muito – e isso rarissimamente –, uma autoridade governista reconhece alguma utilidade nos jornais para, logo em seguida, com a ajuda de uma conjunção adversativa, de preferência um “mas”, disparar um desaforo qualquer, como “jornalista tem de ir para a cadeia” ou “a imprensa só produz fake news”.

Esta campanha aberta e contumaz é um fato. Não é uma questão de opinião do observador. É fato objetivo. Suas consequências são desastrosas. Quem consegue aquilatar os efeitos de tamanha prepotência na formação das mentalidades das novas gerações? Essa postura animalesca ajuda ou atrapalha a cultura política no Brasil? Promove ou inibe a compreensão dos direitos? Se a autoridade, em lugar de ensinar a liberdade, dá exemplo de calúnia, de infâmia e de intolerância, o que acontece com os princípios democráticos? Ficam mais fortes ou mais fracos?

Será tão difícil perceber esse fato notório? O Brasil ainda não está numa ditadura, é óbvio, mas a democracia brasileira vai mal, e vai mal porque o bolsonarismo de bueiro, com o apoio do Planalto, milita para fazê-la sangrar diariamente. O fato é que o governo não cessa de trabalhar contra a imprensa, contra os valores democráticos, contra as mulheres, contra a razão.

* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: Como o jornalismo tece a liberdade

A imprensa livre surge como conquista das revoluções liberais, mas o que tece a liberdade é o exercício radical da liberdade de expressão

Bem sabemos que a imprensa é uma invenção do Iluminismo: para que o poder emane do povo, é preciso que os comuns do povo possam controlar o poder, e para isto foi preciso inventar o ideal da imprensa. A livre circulação das ideias, esse “direito precioso”, aparece na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (artigo 11), de 1789. A liberdade de imprensa, esse “baluarte”, consta da Declaração de Virgínia (art. 14), de 1776. Mas o jornalismo, esse ofício, esse método, esse idioma peculiar pelo qual a imprensa se manifesta diariamente, não se reduz à conquista do liberalismo: é o exercício cotidiano de construção da liberdade.

Em outras palavras, a imprensa livre surge como conquista (sangrenta) das revoluções liberais, mas o que tece a liberdade é o exercício radical da liberdade de expressão, do qual a liberdade de imprensa (que inclui o direito de investigar, fiscalizar e criticar o poder em público) é o centro gravitacional.

Logo, se queremos compreender a democracia como construção social (o que ela é), com direitos que vão além dos horizontes das revoluções liberais (como vão), precisamos pensar o jornalismo não como beneficiário, mas como construtor de liberdades. As boas práticas jornalísticas deixam um saldo de liberdade a mais.

Quanto a isso, devemos distinguir as chamadas liberdades negativas das positivas. As negativas existem à medida que inexistam restrições externas que oprimam o indivíduo (daí o qualificativo negativas): minha liberdade começa onde termina a do outro e, principalmente, onde termina a interferência do Estado sobre mim. Temos aí o espírito do liberalismo por excelência: minha liberdade coincide com minha propriedade e ambas coincidem com minha felicidade (privada).

Mas a esfera privada é pequena para essa matéria. A liberdade de expressão, como a liberdade de reunião, são liberdades não privadas, mas públicas – fluem na direção da ação política. No dizer de Hannah Arendt, são liberdades positivas, liberdades que se afirmam apenas em público. Nesse caso, como já perceberam alguns, como Cornelius Castoriadis, a minha liberdade começa onde começa a do outro.

As liberdades públicas, positivas, vêm completar e dar sentido democrático às liberdades privadas, negativas. Sou livre porque sei que meus iguais exercem suas liberdades públicas e, assim, asseguram a minha. Sou livre porque há jornalistas que investigam, fiscalizam e criticam o poder, mesmo quando discordo do que dizem. Se existem jornalistas exercendo e ampliando suas liberdades públicas, sei que o poder terá menos espaço para abusar de mim.

*Jornalista e professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: Acertos e erros na cobertura da Lava Jato

A cobertura ampla das conversas impróprias foi um acerto de boa parte da imprensa, mas há também um saldo negativo a ser contabilizado

Depois de projetar para o primeiro escalão da República o ministro mais popular da Esplanada, Sergio Moro, da Justiça, a Lava Jato atravessou um ano amargo. As revelações do Intercept Brasil, publicadas em conjunto com outros órgãos de imprensa - Veja e Folha de S. Paulo entre eles -, fez os mais notórios expoentes da operação serem chamados explicar as evidências de jogo combinado entre integrantes do Ministério Público e do Poder Judiciário para prejudicar réus escolhidos a dedo. Foi um ano ruim para eles. Sua aura de liga de heróis investido de uma missão sacrossanta avinagrou.

A perda de prestígio não se deu sem, como anda na moda dizer, disputa de narrativas. Uma breve recapitulação nas páginas dos jornais mostra como foi. No começo, algumas das personagens flagradas nas conversas expostas pelo Intercept e pelos veículos a ele associados saíram dizendo que não reconheciam a autenticidade dos diálogos, mas, alegavam preventivamente, caso fossem verídicos não viam nada “de mais” no que estava ali. Essa primeira tática teve fôlego curto. A desconversa defensiva durou pouco, não só porque o material se mostrou autêntico (tal como foi atestado por diversas verificações feitas por diversos repórteres que apareciam nos registros vazados), mas principalmente porque as falas de uns e outros tinham, sim, muita coisa “de mais”.

Em seguida, vieram as acusações de que o Intercept se teria beneficiado de material roubado por um hacker, o que constituiria vício jornalístico equivalente ao crime de receptação, previsto no Código Penal. Outra vez o argumento logo caiu no vazio. As reportagens não surrupiaram nada de ninguém; ao contrário, entregaram ao público e à Justiça o conhecimento de condutas que jamais deveriam ter sido adotadas às escondidas. Em outras palavras, o trabalho jornalístico liderado pelo Intercept devolveu ao público o que era do público e retirou dos porões da clandestinidade o que nunca deveria ter estado lá. O público tinha o direito de saber; as autoridades é que não tinha o direito de esconder o que tentaram esconder.

Com os meses, passadas as escaramuças verbais (ou não apenas verbais), o saldo para a Lava Jato ficou ruim, mas o saldo para o jornalismo é positivo. A cobertura ampla das conversas impróprias foi um acerto de boa parte da imprensa - aí não devemos contar apenas os veículos que se associaram ao Intercept, mas também os que repercutiram e debateram, de boa-fé, sem parti pris, as revelações apresentadas.

Mas há também um saldo negativo a ser contabilizado. Sinais claros de abusos da Lava Jato já se mostravam desde antes da publicação dos diálogos escabrosos e não tiveram a cobertura aprofundada. Lembremos alguns deles.

Em setembro de 2016, um fatídico powerpoint do Ministério Público mostrou uma tela em que o nome de Lula aparecia como o centro de uma constelação de ilícitos, sem provas da ligação dos ilícitos a Lula. No powerpoint aparecia a palavra “propinocracia”, que não consta dos tipos penais previstos na legislação. Apontei essas e outras inconsistências numa coluna da revista Época, em 20/9/2016. O que estava por trás daquele delírio de data show? Não se descobriu a tempo.

Em outro artigo, publicado aqui em 27/10/2016, relembrei outras duas tratoradas da operação: a desnecessária condução coercitiva pela qual Lula foi levado a depor no Aeroporto de Congonhas em 4 março de 2016 e a divulgação, por ato do então juiz Sergio Moro, em 16 de março, de falas telefônicas entre Lula e Dilma. As falas tinham sido gravadas depois de expirado o prazo da autorização judicial para a escuta telefônica e, por isso, no final daquele mês Moro teve de se explicar ao ministro Teori Zavascki, a quem pediu “respeitosas escusas”.

No mesmo artigo procurei chamar atenção para outros indícios de autoritarismo. Em carta enviada à Folha de S.Paulo (12 de outubro, pág. A3) em que protestava contra alguém que o criticara, Moro afirmou que “a publicação de opiniões panfletárias-partidárias e que veiculam somente preconceito e rancor, sem qualquer base factual, deveriam ser evitadas”. Ora, que visão era aquela de liberdade de imprensa? Por acaso a opinião de um juiz federal sobre o que sejam causas “panfletárias-partidárias”, “preconceito”, “rancor” e “base factual” deveria orientar critérios editoriais na imprensa? O que ele quis dizer com “deveriam ser evitadas”? Pretenderia ele censurar a pauta? Ou tudo não teria passado de um ato falho do juiz que meses depois, em março 2017, usou seus poderes para constranger um blogueiro a revelar sua fonte?

De novo as interrogações ficaram sem resposta. Não mereceram maiores investigações jornalísticas. Por quê? De minha parte, tenho uma hipótese - que, como hipótese que é, terá de ser ainda testada com metodologias e parâmetros mais finos. Minha hipótese é a seguinte: durante longo período o tom geral dos principais órgãos de imprensa, com poucas exceções, tratava as autoridades da Lava Jato não como representantes de poderes (aos quais o jornalismo tem o dever de lançar um olhar crítico e investigativo), mas como aliados das redações ou mesmo como sucursais avançadas das redações no interior da máquina estatal. Como essas autoridades presenteavam as redações com furos semanais - e eram furos relevantes, que escancararam capítulos de uma corrupção faraônica, na casa dos bilhões de dólares -, ganhavam em troca uma simpatia inercial.

Se a hipótese se mostrar verdadeira, o núcleo da chamada imprensa de qualidade no Brasil terá aderido acriticamente (e, talvez, inadvertidamente) à estratégia gerenciada pelos líderes da Lava Jato, uma operação que, sim, ajudou o Brasil contra uma parte da corrupção sistêmica, mas, como ficaria claro ao final de 2018, abrigava no seu DNA uma plataforma oculta de ambições partidárias. Terá havido, então, um erro de método. Deveríamos dedicar-nos a estudar o assunto.

* Jornalista, é professor da ECA-USP.


Eugênio Bucci: Sob ataque o regime da liberdade de imprensa

Em 2019 o presidente moveu sua guerra suja contra o jornalismo. Como será 2020?

Entre os balanços negativos que o governo federal deixa em 2019, não nos esqueçamos da campanha estridente para desmoralizar a imprensa. Poucas vezes um presidente da República se empenhou tanto em difamar as redações profissionais. Segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a autoridade máxima do Poder Executivo alcançou, entre 1.º de janeiro e 30 de novembro de 2019, a marca de 111 ataques à imprensa. A campanha infamante cravou a média de um insulto a cada três dias.

No cômputo da Fenaj aparecem episódios da mais tosca brutalidade verbal. Mesmo quem não gosta de jornalismo se sente vexado. Num post de 9 de agosto, por exemplo, o presidente reclamou da ausência de punição contra “excessos” dos jornalistas. Além de mal-educado, o chilique é desinformado, pois todas as legislações democráticas, desde a histórica Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, na França, preveem a responsabilização dos que abusam da liberdade de expressão (está lá, no artigo 11 da declaração).

Naquele mesmo dia 9 de agosto, no Palácio do Alvorada, ao lado do ministro da Justiça, o presidente permitiu-se uma agressão suplementar (essa, aliás, nem consta do rol organizado pela Fenaj). Dirigindo-se a um grupo de repórteres, fez uso de sua rispidez habitual: “Se excesso jornalístico desse cadeia, todos vocês estariam presos agora, tá certo?”.

O que vem a ser “excesso jornalístico”? Ninguém sabe. A lei conhece a figura do abuso de um direito, assim como conhece o abuso de poder, mas não estabelece nada sobre “excesso jornalístico”. Nem teria como estabelecer. A locução adjetiva carece de objeto. É só na escuridão das fantasias tanáticas do sujeito que a pronuncia que ela ganha sentido: para esse sujeito, o jornalismo não passa de um impulso desagradável (como a raiva, como as explosões de mau humor), é uma forma de demência que precisa ser vigiada e contida. No léxico presidencial, o jornalismo não é profissão ou função social, mas uma neurose que acomete indivíduos desviantes. Por isso o presidente, que nunca diria “excesso advocatício”, “excesso médico” ou “excesso arquitetônico”, sai por aí falando em “excesso jornalístico”. Para ele, o jornalismo encerraria uma disfunção tóxica. Em doses moderadas, já faz um mal danado. Em “excesso”, deveria dar cadeia.

Excessos à parte, não há muito a fazer quanto ao despreparo do governante de turno. Temos de conviver com isso. Cumpre-nos, isso sim, entender sua lógica ilógica. Se seus discursos desinformam os brasileiros e deformam as linhas de equilíbrio da opinião pública, o que nos cabe, dentro de todos os limites, é escrever para esclarecer, mesmo que em vão. A gente pode (e deve) perguntar: o que pretende essa caótica retórica que atira randomicamente contra repórteres, órgãos de imprensa (que ele ocasionalmente chama de “inimigos”) e quem mais estiver na frente? Seria sua finalidade quebrar um jornal especificamente ou caluniar este ou aquele profissional de forma seletiva?

A resposta é “não”. O propósito dos 111 ataques em 11 meses é quebrar a vigência da liberdade de imprensa. O presidente parece saber, mesmo sem saber como sabe, que sem liberdade de imprensa a sociedade estará entregue às mentiras e, de modo especial, às piores mentiras, as que são enunciadas pelo poder. Ele quer menos liberdade para os jornalistas checarem os fatos porque – ao menos é o que parece – quer mais espaço para mentir.

Inconscientemente coerente com seu propósito pulsional, ele esconde que a liberdade de imprensa, mais do que uma prerrogativa burocrática do profissional, é um direito de toda a sociedade. Fala como se a liberdade de imprensa fosse a “exclusão de ilicitude” dos jornalistas. Nada mais mentiroso. O jornalista é, sim, quem em primeiro lugar exerce a liberdade de imprensa, mas o jornalista não é o beneficiário da liberdade de imprensa. O beneficiário é a sociedade. O jornalista exerce a liberdade como um dever e, agindo assim, assegura que a sociedade possa desfrutar a liberdade de imprensa como um direito. Se não pudesse contar com o direito à liberdade de imprensa, a sociedade não teria como se proteger contra as inverdades que aparecem na propaganda do poder. Ficaria indefesa.

Contra tudo isso o discurso presidencial convida a sociedade a repudiar a imprensa. Culpa os jornalistas por todos os relatos inverídicos que circulam, caracteriza os repórteres e os articulistas como vilões e, por meio desses artifícios, procura angariar apoio para, intimidando os jornalistas, esvaziar esse direito essencial de toda a sociedade.

Um jornal sozinho não entrega a verdade de mão beijada a ninguém, sabemos disso. Mas, repetindo, uma sociedade com órgãos de imprensa sérios, profissionais e independentes está mais protegida contra fraudes e estratégias de tapeação. A melhor forma de entendermos a liberdade de imprensa é concebê-la como um regime geral para o fluxo das ideias na sociedade democrática. A liberdade de imprensa é o princípio norteador do regramento que autoriza os jornalistas a verificarem diariamente os indícios da verdade factual e assim realizar um trabalho que, se não encontra a verdade pronta e acabada, impõe limites decisivos contra as propagandas do poder.

Se cumprirem seu dever de exercer a liberdade, os órgãos de imprensa ajudam a sociedade a se proteger contra os mentirosos que tentam primeiro tapeá-la para depois oprimi-la. Será por isso que o presidente está em campanha contra a liberdade? Talvez.

Fiquemos com os fatos. Quando ataca pessoalmente uma repórter do Estado, quando tenta afastar ilegalmente a Folha de S.Paulo de uma licitação, quanto chama a Rede Globo de “inimiga”, o chefe de Estado não quer apenas ofender o Estado, a Folha ou a Globo. Ele quer ferir o regime da liberdade de imprensa. Por isso em 2019 moveu sua guerra suja contra a imprensa. Como será 2020?

*Jornalista, é professor da ECA-USP