Estadão

José Eduardo Faria: A “sinalização do povo”

“Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, disse o presidente da República na cidade de Itapira, em agosto de 2019. “Eu sou a Constituição”, afirmou em abril de 2020, em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal [sic] fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí”, afiançou ele, na segunda quinzena de abril de 2021, também em Brasília.

Não é a linha de continuidade entre essas três afirmações, pronunciadas no período de um ano e oito meses, que chama atenção. É, isto sim, o enviesamento político e antidemocrático subjacente a elas. Afinal, respeitar as instituições não é concessão, como reitera Bolsonaro. É, também, uma obrigação prevista pela Constituição que ele solenemente jurou respeitar ao assumir o cargo. Além disso, a lealdade de que fala não tem de ser devida apenas ao “pessoal” (ou seja, a turma dos cercadinhos) ou ao “povo” (um conceito amorfo), mas à democracia, a suas instituições e suas regras. Como se não bastasse, ao personificar a Constituição, incorporando a normatividade desta em si próprio, como se suas opiniões a respeito do texto constitucional tivessem força de lei, o presidente erode a força normativa da Carta Magna, na qual se baseia o regime democrático. Por fim, quando diz que está esperando uma sinalização do “pessoal”, Bolsonaro se esquece de que, na democracia representativa, tal sinalização é dada formalmente em eleições livres e periódicas disputadas por candidatos devidamente registrados e homologados pela Justiça eleitoral.

As três falas, portanto, não têm fundamento jurídico nem legitimidade política, uma vez que entreabrem um desprezo às instituições e afronta ao império da lei, confundindo o que são simples palavras de ordem de apoiadores com o interesse geral da sociedade. Perigosa do ponto de vista da ordem constitucional, essa é estratégia de Bolsonaro para corroê-la, submetendo-a a sucessivos testes de estresse. Quando afronta o Poder Judiciário e exige que ministros do Supremo Tribunal Federal sejam objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito do Legislativo, ele sabe o que faz. Quer, deliberadamente, gerar tensões institucionais para aproveitar a insegurança e uma eventual desordem com o objetivo de se apresentar como o único homem capaz de restabelecer a ordem — e de modo voluntarista, sem estar sujeito a qualquer lei e à própria Carta Magna.

Não há coerência, mas somente um torpe maquiavelismo de almanaque e uma vocação despótica — numa única palavra, embuste. Quando assina decretos para tratar de matérias que só podem ser disciplinadas por projetos de lei ou quando edita medidas provisórias que não atendem aos requisitos de relevância e urgência, Bolsonaro também segue um script conhecido. Ao ultrapassar deliberadamente os limites do processo legislativo estabelecidos pela Constituição, o presidente sabe que esses decretos e MPs serão derrubados pelo Supremo Tribunal Federal. É justamente o que deseja — um pretexto para alegar que a corte não o deixa governar e que somente conseguirá gerir o país sem ela, situando-se assim acima das leis. Como consequência, o “pessoal” é estimulado então a bater bumbo na Praça dos Três Poderes ou na frente do Quartel General do Exército, pedindo um ato institucional que suprima direitos e garantias fundamentais, como ocorreu em 1968.

Todas as vezes em que fala que a Constituição lhe confere o título de “comandante em chefe” e lhe atribui a prerrogativa de decretar estado de sítio ou estado de defesa, Bolsonaro a interpreta conforme suas conveniências mais imediatas. No caso do estado de defesa e do estado de sitio, por exemplo, ele releva que ambos somente podem ser decretados com aval do Congresso. Quando o Supremo Tribunal Federal aplica uma norma constitucional detendo suas iniciativas autocráticas, ele não apenas o afronta, mais vai além, desdenhando da tripartição dos Poderes.

Também aplaude os áulicos de seu entorno que afirmam que o Poder Judiciário deve “compreender o tamanho de sua cadeira”. Esquecem-se, contudo, de duas regras constitucionais básicas. Em primeiro lugar, os tribunais só podem agir quando provocados. E, em segundo lugar, não podem deixar qualquer provocação sem resposta. No mesmo sentido, o presidente não entende que as razões de decidir de uma corte suprema não se confundem com as razões de decidir de uma casa legislativa ou de um governo. Com isso, despreza o fato de que julgamentos são realizados com base em normas jurídicas constitucionais ou infraconstitucionais, e não em fatores conjunturais, resultados acordados e alianças que se fazem e desfazem ao sabor de concessões, vantagens pessoais ou mesmo de intimidações. Todavia, quando a mesma corte aplica uma norma constitucional dando ganho de causa a ele, a narrativa de que a Justiça está tomando decisões que seriam próprias de outros Poderes e de que os juízes deveriam “entender suas responsabilidades” é convenientemente engavetada.

Em seus discursos, como o de Itapira, em agosto de 2019, e os de Brasília, em 2020 e 2021, o presidente ignorou a divisão de direitos e de competências assegurada pela Constituição.  Trata-se de um mecanismo que, se por um lado libera os conflitos com todas suas contradições e dilemas, por outro viabiliza um entendimento que lima arestas e abre caminho para a construção de soluções politicamente negociadas no âmbito do Executivo ou do Legislativo.

Bolsonaro e seu entorno não entendem que a democracia é método e procedimento de negociação, gestão de conflitos e de neutralização de tensões institucionais.  Igualmente, não compreendem que, ao demarcar direitos e deveres, a ordem constitucional baliza um exercício consequente e equilibrado da palavra e da ação no espaço público. Decorrem daí as bobagens que falam. Ao refutarem o entendimento do Supremo de que a regra de maioria fundamenta o regime democrático ao mesmo tempo em que garante o direito das minorias, o presidente e seu entorno enfatizam a necessidade de respeitar o “projeto de Nação” endossado pelos eleitores em 2018 — projeto esse que afronta abertamente as minorias e recorre à Lei de Segurança Nacional da ditadura militar para processar críticos e intimidar opositores.

Na realidade, ao alegar que só é “leal ao povo”, ainda que respeite as instituições, Bolsonaro está defendendo uma retração na capacidade configuradora da democracia. Falta-lhe formação histórica para atinar que as transformações estruturais da sociedade podem ser feitas de modo mais eficiente por meio de diálogos e compromissos do que pela força bruta. Desse modo, ele acaba desprezando o fato de que, no regime democrático, soberania não se expressa por meio de plebiscitos ou consultas populares, mas pressupõe uma contínua construção coletiva com base no diálogo.

Na dinâmica do jogo político, o presidente continua confundindo adversários com inimigos. Adversários contrapõem-se politicamente, mas respeitam o princípio da alteridade. Ou seja, sabem não apenas se colocar no lugar dos outros, mas, também, entendem que existem situações-limite — aquelas para além das quais as regras do jogo implodiriam com prejuízo para todos. Na visão bolsonarista, há uma simples caricatura do que dizia um dos juristas do regime nazista, o constitucionalista Carl Schmitt (1888-1985): quem não é amigo é inimigo; por isso, se o amigo não destruir o inimigo, corre o risco de ser destruído por ele. Nesse caso, não há jogo político, só há violência física, que leva a atentados e assassinatos. Ou, então, a violência simbólica, por meio do discurso do ódio, da difamação, da mentira como estratégia de destruição de reputações implementada com base nas redes sociais.

Em 2019, ano em que fez o discurso de Itapira, dizendo que respeita a democracia, mas só obedece ao povo, o saldo foi de desesperança e medo. Em 2021, embora ainda estejamos em pouco mais da metade do primeiro semestre, tudo indica que, após a fala de Bolsonaro no sentido de que “aguarda uma sinalização do povo para tomar uma providência”, esse saldo pode ser ainda mais trágico.

*José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).


Rosângela Bittar: O processo da pandemia

O culpado por esta crise política e institucional tem nome e sobrenome: Rodrigo Pacheco

O essencial é que a pandemia seja investigada. Que os erros de gestão sejam expostos, por mais que diluídos nas tentativas de tumultuar o ambiente. Impossível escapar de acusações. As feitas ao presidente Jair Bolsonaro, no fundo, se resumem a apenas uma: a negação. O presidente contestou a existência da covid-19 e as mais elementares formas de combatê-la, como o isolamento e as vacinas. Quando não foi omisso, foi equivocado.

Já o presidente do Senado, que teve à mão uma forma eficaz de intervir e mudar os rumos da catástrofe, imaginou que poderia aplicar um sofisma parlamentar. Como dependia da sua assinatura a instalação da CPI, tentou postergá-la. Exercitou o golpe de Pilatos e lavou as mãos. Um passo em falso nas cenas iniciais da sua liderança de um dos poderes da República.

Obrigado a cumprir o dever por decisão judicial, acabou por perder o controle da situação.

A experiência das CPIs mostra que, mais do que as investigações, as denúncias ganham dimensões de provas.

Por isso, haja o que houver, e mesmo que Bolsonaro tenha conseguido truncar a CPI, o culpado por esta crise política e institucional tem nome, sobrenome e endereço: o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado. Ele vislumbrou dominar o processo com silêncios e retardamentos.

Definido por seu público como um político tático e tendo surgido no Senado como uma novidade bem-vinda ao jogo parlamentar, parecia uma espécie de ressurreição dos políticos mineiros que fizeram história. É curto o caminho percorrido, mas Rodrigo Pacheco, até agora, está frustrando estas expectativas.

Os argumentos que mobilizou para não instalar a CPI são superficiais e às vezes parecem sobrenaturais, porque tomam distância da realidade.

Estreante, o senador Pacheco desprezou mais de 30 assinaturas de senadores de diferentes partidos e ideologias. Apegou-se ao argumento, depois capturado pelo governo, que a CPI não podia funcionar por meio virtual. Hoje, no planeta, da assembleia de condomínio ao programa de auditório, sem falar no plenário dos tribunais, as sessões realizam-se remotamente.

Outro dos problemas mencionados seria a impossibilidade de dar segurança às testemunhas. Por quê? O presidente e o relator podem acompanhar a testemunha numa reunião, enquanto os inquiridores trabalham de outras latitudes. Surgiu ainda a alegação estapafúrdia, logo incorporada por representantes do investigado, de que a CPI da Pandemia, se realizada durante a pandemia, seria um ato político e atrapalharia o enfrentamento da doença. E para completar recorreu ao lugar-comum: a CPI seria um “ponto fora da curva”. Qual é a curva?

Enquanto fugia de suas atribuições constitucionais, o senador Pacheco não se recusava a tentar desempenhar competências do Executivo, buscando formas de comprar vacinas e toda sorte de providências que não tinha condições legais de assinar. Perda de tempo. Até aceitou liderar um comitê decorativo, criado por Bolsonaro para envolver suas responsabilidades numa cortina de fumaça.

O fato de o destemido Jair Bolsonaro estar com medo de ser investigado é até um bom sinal. Poderia significar que tem consciência dos atos perversos que praticou na gestão da pandemia. Já o presidente do Senado poderia ter evitado a crise e baixado a temperatura de mil formas. Quem sabe, se tivesse instalado a CPI quando foi proposta, por exemplo, não saberíamos hoje as verdadeiras razões das quatro mudanças de ministros da Saúde neste governo, em menos de um ano.

Ao submeter-se ao capricho do presidente, o senador Pacheco talvez não tenha percebido que a grife da presidência do Senado só é desfrutável quando se está no exercício do cargo. Quem se lembra hoje do senador Davi Alcolumbre?


Ana Carla Abrão: Brasil tem tanta vida que faz valer a pena buscar uma saída

Com a pandemia e a assimetria dos seus impactos por renda, gênero e raça, não haverá o que se comemorar nos próximos anos

Brasil é Severino. Severino de Maria, do finado Zacarias. A obra-prima de João Cabral de Melo Neto nunca foi tão nossa, tão real, tão ampla como em 2021. Como o retirante de Morte e Vida Severina, que vai da Serra da Costela ao Recife no extraordinário poema regionalista publicado em 1955, hoje vivemos a vida que não se vive, mas que se defende.

A realidade se estampa nos números da nossa tragédia social, a começar pela triste marca de mais de 350 mil mortos por covid-19. Na mesma esteira, seguem-se outros tristes números. O PIB per capita (que funciona como um indicador de riqueza da população) encolheu em média 0,6% ao ano na última década, segundo o Ibre/FGV. Quando comparado ao PIB per capita dos Estados Unidos, voltamos ao início dos anos 2000, com nosso PIB per capita equivalendo de volta ao mesmo ¼ do norte- americano de então. Ou seja, em termos absolutos e relativos, ficamos mais pobres.

Também corremos o risco de sermos menos pessoas ativas economicamente no futuro. Não só porque se morre muito hoje, mas também porque o desalento leva a menos nascimentos. Isso significa um risco de termos menor capacidade de produzir riqueza e de financiar aqueles que não são produtivos – crianças e aposentados – lá na frente. Não só o País já perdeu a oportunidade de se beneficiar do bônus demográfico, que reduziu a razão de dependência entre os segmentos economicamente dependentes e o segmento classificado como produtivo a 44% (44 brasileiros com menos de 15 e mais de 64 anos dependentes de 100 pessoas em idade de trabalhar), como podemos vir a ter uma aceleração adicional dessa razão. Pela primeira vez na nossa história, conforme noticiado pelo Estadão no último domingo, algumas regiões do Brasil registraram mais mortes do que nascimentos. Os dados se referem aos primeiros dias de abril e, embora preliminares e explicados pelo elevado número de mortes, expõem a inversão de uma relação que mostrava nascimentos superando em mais que o dobro os óbitos. A depender dessa tendência, da sua intensidade e duração, o desafio da produtividade – já tão grande – será ainda maior no futuro.

Nessa esteira de números de tristeza e de piora nas perspectivas futuras, a educação surge como mais uma grande tragédia. O impacto da pandemia sobre a aprendizagem e sobre o aumento na evasão escolar pode significar o comprometimento de uma geração de crianças e jovens. Esse, sim, é o mais grave dos tristes legados, pois significa enraizar ainda mais a pobreza e a desigualdade que já tanto castigam. Os dados do IBGE mostravam um retrato ruim em 2019. Ali, mais da metade dos adultos brasileiros não havia concluído o ensino médio, segundo a Pnad Contínua, divulgada em meados do ano passado. Dentre os nossos 50 milhões de jovens entre 14 e 29 anos, 10 milhões abandonaram ou nunca frequentaram a escola. Desses, 71,7% são pretos ou pardos. Com a pandemia e a assimetria dos seus impactos por renda, gênero e raça, não haverá o que se comemorar nesse campo nos próximos anos. Ao contrário, contrata-se assim a manutenção da pobreza, além de subemprego, criminalidade e aumento da desigualdade social.

Outros números se juntam para compor esse triste mosaico. Desemprego elevado – em particular, mais grave entre mulheres, pretos e pardos; aumento na concentração de renda (acentuada pela discrepância na trajetória de salários nos setores público e privado) e nos níveis de pobreza; agravamento da situação fiscal dos Estados e municípios e o consequente enfraquecimento da sua capacidade de provisão de serviços públicos de qualidade. Dentre outros que se misturam com a agenda populista e fisiológica que há muito nos tomou de assalto.

Mas não quero aqui deprimir ainda mais meu leitor. Afinal, a esperança, última a morrer e única ainda viva quando até o otimismo já se foi, vem em outra esteira. Paralela à esteira da morte, ela surge em reação à atual distopia e celebra a vida. É o Mestre Carpina de João Cabral, que responde a esse Brasil retirante ser o espetáculo da vida a melhor resposta para a morte. 

Ao mesmo tempo que o Brasil sucumbe, abre-se na urgência o espaço para uma agenda que, ainda franzina, deverá fazer convergir ao centro uma alternativa que trará de volta o País dos brasileiros. Essa agenda deverá colocar a justiça social e a redução das desigualdades no topo das suas prioridades, e buscá-las por meio de políticas públicas que carregarão não a marca da ideologia, mas, sim, a da ciência e a do rigor. Isso, sim, é convergência. Isso, sim, será recolocar o Brasil nos trilhos. Afinal, somos todos, como em Morte e Vida Severina, irmãos das almas num País que hoje chora suas mortes. Mas que tem tanta vida que faz valer a pena buscar uma saída.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA


Felipe Salto: Alô, alô, planeta Terra chamando

O Brasil perdeu a capacidade de planejar. Esse é o pecado original não expiado

O ministro da Economia usou estranha analogia ao tratar do Orçamento de 2021: o pouso de uma nave em Marte. Não vale a pena transcrever o que foi dito. Nos anos 1990 a TV Cultura transmitia o programa Mundo da Lua. Lucas Silva e Silva, personagem principal, gravava suas histórias sempre começando com o bordão: “Alô, alô, planeta Terra chamando”.

O governo tem nas mãos verdadeiro imbróglio orçamentário a resolver até o dia 22 de abril, prazo final para sancionar ou vetar a Lei Orçamentária Anual (LOA). A subestimativa das despesas obrigatórias, a exemplo das previdenciárias, é expressiva, como mostrei no meu artigo de 30/4. Em que pese a incerteza intrínseca aos cenários futuros, é fato que o volume de despesas discricionárias (as mais suscetíveis de cortes) da LOA não caberá no teto dos gastos públicos.

O teto é uma regra constitucional. Não tem escapatória. Os créditos extraordinários ficam de fora, é verdade, mas só podem ser editados em situação específica, quando comprovada situação de imprevisibilidade e urgência, conforme o parágrafo 3.º do artigo 167 da Constituição. O auxílio emergencial, por exemplo, será pago por meio de crédito extraordinário. Outros gastos com saúde têm sido feitos na mesma base, como em 2020. Aí incluídas as verbas para a compra de vacinas.

Mas a despesa ordinária é limitada ao teto. Se as despesas obrigatórias projetadas pela Instituição Fiscal Independente (IFI) se confirmarem e as despesas discricionárias da LOA não forem cortadas, o gasto total sujeito ao teto ficará em R$ 1,518 trilhão, isto é, quase R$ 32 bilhões acima do limite constitucional. E atenção: o processo orçamentário não se desenrolou em um dia, o projeto da LOA foi apresentado em agosto.

É da natureza do Congresso buscar elevar as emendas parlamentares. Não é novidade. Em 1989, o presidente José Sarney viu-se diante de um dilema: vetar o primeiro Orçamento com receitas reestimadas pelo Congresso ou sancioná-lo e, dali em diante, consagrar uma prática que alteraria a lógica do processo orçamentário concebido na Carta de 1988. A correção desse sistema passa pela adoção de projeções independentes para as receitas públicas. A estimativa de arrecadação não deveria ser fruto de decisão política, mas de trabalho de especialistas com autonomia.

Quando o teto de gastos passou a limitar a estratégia do recálculo das receitas, partiu-se para o cancelamento de despesas como meio para abrir espaço fiscal. Seria legítimo se realista. Vale dizer, em 22 de março de 2021, antes da aprovação do Orçamento, o governo publicou documento com números atualizados para o cenário fiscal prospectivo que não batem com a LOA.

Em entrevista a Idiana Tomazelli, do Estado, o senador Márcio Bittar explicou: “Para mim é muito ruim ficar levando a responsabilidade de ter inventado o número e os cortes. Jamais eu faria isso. Não foi obra minha. Isso foi construído a todas as mãos”. De fato, o processo orçamentário – que tem rito próprio definido na Constituição, em razão de sua importância – sempre foi gestado pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso e pelo Poder Executivo. Foi assim em todos os governos.

Os que acompanham minimamente o processo orçamentário sabem que o trabalho é conjunto, como bem disse o senador Bittar. Não adianta, agora, gastar energia com o que não resolverá a confusão. É momento de construir soluções, que demandarão articulação, participação dos técnicos da área jurídica e orçamentária e coordenação com os órgãos de controle. Para ter claro, é a vez da experiente burocracia estatal.

A matemática é simples: as despesas de Previdência, abono salarial, seguro-desemprego e compensação ao regime geral de aposentadorias pela desoneração da folha de salários terão de ser suplementadas, pois vão ser realizadas. Caso contrário, quando faltar orçamento, os beneficiários não receberão suas aposentadorias e pensões, seus auxílios e transferências. Seria inimaginável operar sob esse risco.

Para suplementar as dotações orçamentárias desses gastos obrigatórios será preciso cortar as discricionárias, que incluem as emendas parlamentares. Uma solução seria o veto parcial da LOA combinado com o envio de projeto de lei do Executivo para o Congresso a fim de corrigir os problemas. Outra, a sanção da LOA sem alterações acompanhada de projeto de lei mais amplo. Esta segunda opção, a meu ver, é arriscada, pois pode envolver a sanção de uma lei em desacordo com os preceitos da responsabilidade fiscal.

Fernando Rezende, referência no tema das finanças públicas nacionais, defende, há anos, que se promova verdadeira reforma orçamentária e fiscal no País. Contudo os caminhos escolhidos têm sido pavimentados por pinguelas. Mais dia, menos dia, elas desabam. De remendo em remendo, tem-se um sistema fiscal pouco eficiente, rígido e sem transparência. O País perdeu a capacidade de planejar. Esse é o pecado original não expiado.

É hora de trazer a nave de volta. “Alô, alô, planeta Terra chamando.”


Rubens Barbosa: Questão religiosa

Estamos diante de um problema político sério que a direita evangélica traz para a democracia

Estamos vivendo tempos estranhos. A sociedade está dividida e polarizada, anestesiada e paralisada, até pelas dificuldades decorrentes da pandemia. A perplexidade aumenta na medida em que, entre muitos outros exemplos, se verifica a maneira como a grave crise do combate à covid-19, fora de controle, está sendo conduzida; pela ameaça de um enfrentamento fratricida pela facilitação da venda e do porte de armas e munições; pela inexplicada crise militar com a demissão da cúpula da Defesa; pelo desmonte do combate à corrupção; pela crescente influência das milícias e do tráfico de drogas; pela chocante visibilidade da desigualdade social; pela falta de perspectivas e de uma visão de futuro para o País.

A tudo isso se junta agora a surrealista discussão sobre atividades religiosas coletivas em templos e igrejas durante a pandemia. As apresentações terrivelmente evangélicas feitas no STF pelo advogado-geral da União e pelos advogados que defendiam a abertura dos templos e igrejas trouxeram à tona, mais uma vez, a questão da laicidade do Estado brasileiro. Até o presidente reforçou a defesa de cultos e missas presenciais como um direito inerente a maioria, ignorando as ameaças à vida e a Constituição.

Estado é laico é o que promove oficialmente a separação entre Estado e religião. A partir dessa separação, o Estado não deveria permitir a interferência de correntes religiosas em assuntos estatais, nem privilegiar uma ou algumas religiões sobre as demais. Essa situação existe no Brasil desde a Proclamação da República, em decorrência do disposto na Constituição de 1891, em que se explicita a rejeição da união entre o poder civil e o poder religioso, pondo fim ao regime do padroado, que concedia privilégios à Igreja Católica e no qual se confundiam o Estado e a Igreja. No laicismo, cabe ao Estado garantir a liberdade e a igualdade de todos, independentemente dos valores morais e religiosos.

Mesmo com maioria até aqui católica, o Brasil é oficialmente um Estado laico, neutro no campo religioso, não apoiando nem discriminando nenhuma religião. Apesar de citar Deus no preâmbulo, a Constituição federal é clara ao vedar à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Dessa forma, a liberdade religiosa na vida privada é assegurada, desde que separada do Estado. É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Na minha visão, a separação Igreja-Estado foi um avanço e está na base da formação dos Estados modernos. Com a República, o Estado brasileiro tornou-se um Estado moderno, no qual não se busca a satisfação espiritual, mas a expansão dos direitos humanos e das liberdades individuais.

Ao contrário do que se ouviu nos últimos dias, o Estado brasileiro não se pode manifestar religiosamente. Como já foi dito por ministro do STF, “os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais” e “as concepções morais religiosas – unânimes, majoritárias ou minoritárias – não podem guiar as decisões de Estado, devendo, portanto, se limitar às esferas privadas”.

Nos últimos anos, o que se viu foi o contrário. A ameaça à Constituição não é uma preocupação. Embora não se constituindo em movimento único, pois há divergências entre elas, a influência das igrejas evangélicas, em especial a Universal, aumentou significativamente e ganhou força política real.

Sua eficiente arrecadação entre fiéis seduzidos e sua capacidade televisiva e radiofônica, além da mídia impressa e de partidos políticos, estão a serviço de um projeto político. Não é segredo para ninguém que os evangélicos buscam alcançar, sem intermediários, o poder máximo da República, depois de eleger prefeitos, governadores, senadores, deputados e ministros das Cortes de Justiça. A Igreja Universal ataca a Igreja Católica e exerce uma ação voltada para assumir a hegemonia do Estado.

Não se pode negar a competência e a eficiência da atuação da militância evangélica, instalada agora em diferentes órgãos públicos federais, na defesa de sua agenda de costumes, social, financeira e mesmo política, como estamos vendo nas ações do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e na política externa, nos últimos dois anos.

Pela primeira vez na História do Brasil, as igrejas evangélicas atuam de maneira coordenada para chegar ao comando do poder político. Em política não existe vazio. Se alguns setores ganham espaço, outros perdem. É surpreendente que representantes da alta hierarquia da Igreja Católica, em especial, não se tenham manifestado até aqui em defesa do Estado laico e da separação clara do Estado e da religião.

Estamos diante de um problema político sério que a direita evangélica traz para a democracia e afeta liberais, conservadores e progressistas. Trata-se, na realidade, de um problema de dominação por uma minoria e de reação contra o pluralismo


Eliane Cantanhêde: Bolsonaro tenta fazer, do limão, da CPI e das mortes, uma limonada

Presidente finge que não tem nada a ver com pandemia e faz chantagens contra ministros do Supremo, governadores e prefeitos

O ambiente está como o diabo e o presidente Jair Bolsonaro gostam: uma verdadeira bagunça, com a pandemia fora de controle, as mortes disparando e as vacinas e leitos acabando, mas todas as atenções de Executivo, Legislativo e Judiciário estão na CPI da Covid no Senado. Em vez de discutir e agir contra a pandemia, Brasília faz o que Bolsonaro quer: esquece a covid para privilegiar a guerra política.

Em conversa gravada com o curioso senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO), Bolsonaro resumiu sua estratégia: fazer do limão uma limonada. Finge que não tem nada a ver com pandemia – nem com o próprio governo e os erros do governo – e faz chantagens contra ministros do Supremo, governadores e prefeitos, enquanto compra apoios no Senado.

A sensação, porém, é de que a CPI vai pegar fogo contra Bolsonaro e o Ministério da Saúde, porque há uma consciência generalizada, dentro e fora do Congresso, de que os fatos, as falas e os resultados não admitem tergiversação nem jogar a poeira – e os mortos – para debaixo do tapete.

No meio, entre os pró e os contra a CPI, o plenário do Supremo poderá dar uma mãozinha para Bolsonaro amanhã, ratificando a liminar do ministro Luís Roberto Barroso que mandou instalar a CPI, mas ressalvando que o funcionamento depende de condições práticas e reuniões presenciais. Em resumo: o STF mantém a instalação da CPI, mas liberando os trabalhos depois da pandemia. Esquisito? Muito. Mas o que não é esquisito no Brasil hoje em dia?

Desde que Barroso determinou a instalação da CPI, ninguém mais fala nos erros criminosos de Bolsonaro na pandemia e que faço questão de frisar aqui: troca de ministros na pior hora, desdém ao tratar da crise e das mortes, péssimos exemplos para a cidadania, gastança com remédios inúteis e perigosos e desleixo ao contratar vacinas.

Assim, Bolsonaro vai fazendo a limonada. Dá o grito de guerra à arquibancada bolsonarista e não se fala de seus erros, só contra ministros do STF e de estender as investigações para governadores e prefeitos. Exemplo: em vez de cuidar de Queiroz, rachadinhas, funcionários fantasmas e mansões de R$ 6 milhões, o senador Flávio Bolsonaro está a mil por hora para enlamear os outros.

Então, a CPI é boa para Bolsonaro e ruim para seus adversários e todos os demais? Não! Hoje será a leitura da CPI, e é hora de organizar os times para anunciar os 11 titulares e seus reservas amanhã. Apesar das chantagens de Bolsonaro e de eventuais saídas heterodoxas do Supremo, é isso, a composição da comissão, que vai definir o principal: até onde a CPI irá.

Pode até resvalar para Estados e municípios, mas seu alvo principal é, evidentemente, Jair Bolsonaro. É ele, sem sombra de dúvida, o grande responsável pela tragédia, pela carnificina. A pandemia, como o nome já diz, atingiu o mundo todo, mas cada país cuidou de um jeito. Bolsonaro foi quem cuidou pior e o resultado está aí.

Uma CPI paralela ou a inclusão de governadores e prefeitos no escopo da própria CPI da Covid enfrentam obstáculos, porque, segundo seu regimento interno, o Senado não pode investigar Estados e municípios. Mas há um atalho para chegar lá naturalmente, pela própria dinâmica das investigações. Basta seguir o dinheiro federal e apurar se houve desvios.

Quanto ao impeachment e à CPI contra ministros do STF, é para fazer barulho e dar carne aos leões bolsonaristas contra as instituições e a democracia. A oposição grita “genocida” para Bolsonaro e os bolsonaristas gritam contra ministros do STF e Congresso. Mas o passado, o presente e os fatos condenam Bolsonaro. Ele personaliza os ataques contra Barroso, mas, sem defesa, não tem interesse nenhum numa guerra desse tamanho contra o Judiciário e Legislativo. 


Paulo Hartung: 2021, ano decisivo para um futuro mais verde

O Brasil tem a chance de se tornar um farol a iluminar o horizonte dessa caminhada global

 “O futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas um lugar que estamos construindo.” Nos dias que se sucedem neste 2021, a máxima de Saint-Exupéry deve ser observada com preciosa atenção: a significativa agenda ambiental que mobiliza o planeta este ano tem o condão de firmar as bases de um novo futuro, para as atuais e as próximas gerações.

Não podemos mais negligenciar discussões e decisões sobre a sustentabilidade do planeta. A covid-19, que, tragicamente, tem sido muito dura e vem ceifando milhares de vidas, é também fruto do descontrole na relação entre humano e natureza. Temos de agir e aproveitar as oportunidades para acelerar uma retomada verde.

Joe Biden convocou a Cúpula do Clima para o próximo dia 22, com o objetivo de ampliar políticas de combate a desmatamento e redução de emissões de dióxido de carbono (CO2). Também haverá duas Conferências da ONU. A COP-15 da Convenção da Diversidade Biológica, que negociará o novo Marco Global de Biodiversidade. Já a COP-26 sobre Mudança Climática será a chance para, enfim, aprovar o artigo 6.º do Acordo de Paris, que estabelece e regula um mercado global de carbono.

Nacionalmente, Belém (PA) será a sede do Fórum Mundial da Bioeconomia, pela primeira vez realizado fora da Finlândia. Voltar os olhos para o Brasil pode nos dar a chance de protagonizar as discussões e estimular a estruturação de uma economia de baixo carbono.

Para ingressar numa nova economia não podemos mais nos basear nos velhos conceitos que nos guiaram até aqui. O meio ambiente sempre foi pensado sob o olhar de comando e controle, mas chegou o momento de enxergar além e criar estímulos, como o pagamento por serviços ambientais (PSA).

Devemos monetizar a floresta em pé. Essa é uma chance inigualável para o Brasil, que possui a maior floresta tropical e a maior biodiversidade do mundo. Preservando a Floresta Amazônica e com um comércio regulado de crédito de carbono, há estimativas de que poderíamos ter ganhos de até US$ 10 bilhões por ano. Montante que poderia ser um alento para os 25 milhões de brasileiros que vivem na região e sofrem com a falta de infraestrutura, como saneamento básico, serviços de saúde e de telecomunicações, entre outros.

Tem de se dar o devido valor ao cuidado com os recursos hídricos, lembrando que concentramos 12% da água doce do planeta. A matriz energética brasileira é uma referência, com cerca de 45% de geração limpa, mas com campo para avançar a partir, também, da energia eólica, solar e da biomassa.

Na seara da bioeconomia, não precisamos inventar a roda. Podemos dar escala a experiências de sucesso País afora. Na Amazônia, entre outros exemplos, o açaí movimenta cerca de US$ 1 bilhão por ano, a castanha e o cacau proporcionam sustento às comunidades, com espaço para avançar.

Outras regiões também produzem casos bem-sucedidos. O Brasil destaca-se como o segundo maior produtor de etanol do mundo, até exportando tecnologia. O setor de árvores cultivadas trabalha há anos com os dois pés na bioeconomia. Enquanto planta, colhe e replanta árvores para fins industriais em 9 milhões de hectares, destina outros 5,9 milhões de hectares à conservação, entre áreas de preservação permanente, de reserva particular do patrimônio natural e reserva legal. Juntas, essas florestas removem e/ou estocam 4,48 bilhões de toneladas de CO2 equivalente.

Nossas potencialidades estão postas à mesa. Precisamos transformá-las em oportunidades reais para ingressar nesta nova era da economia verde, que será marcada pelo mercado de carbono e outros mecanismos igualmente transformadores de nossa relação com a natureza.

Política ambiental é tema de Estado, e não de um governo específico ou de um partido. Trabalhar desde já com planejamento é cuidar da sociedade, proteger o meio ambiente e beneficiar até mesmo nossa competitividade internacional, que tem no comércio exterior um dos motores da economia brasileira. São nossas atitudes que farão o mundo confiar novamente no País e valorizar os produtos “made in Brazil”, em vez de criar barreiras comerciais.

Para isso temos uma lição de casa a fazer. Como prioridade, combater as ilegalidades, especialmente na Amazônia. Desmatamento, queimadas, garimpo e grilagem de terras devem ser coibidos. Em segundo lugar, implementar, de fato, o Código Florestal. Essa lei é moderna, pensada juntamente com a sociedade civil, e dispõe sobre PSA em seu artigo 41. Não é exagero imaginar que seu modelo possa ser exportado, apresentando-se como uma legislação de referência para o mundo.

O Brasil tem em suas mãos a chance de se tornar um dos faróis a iluminar o horizonte da caminhada verde do planeta. Até 2050 o mundo terá 9,7 bilhões de pessoas, que necessitarão de mais alimentos, mais roupas, mais moradias, mais infraestrutura e, sobretudo, uma vida mais sustentável. É preciso que iniciemos de fato a travessia rumo a um outro tempo, “atribuindo um novo sentido à existência de cada um e, também, do planeta”, como preconizou o saudoso geógrafo Milton Santos.

*Presidente Executivo do IBÁ, membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Pedro Fernando Nery: Após a queda de Trump, quem será o 'Biden brasileiro'?

Caberá ao Biden nacional combater a desigualdade de renda e abrir um futuro de maior produtividade para a economia

Pela ocasião da alta votação de Joe Biden em 2020, que reuniu um amplo espectro de apoio para derrotar Trump, muito se especulou sobre quem seria “o Biden brasileiro”. Perto da marca dos 100 primeiros dias do novo presidente americano, já é possível vislumbrar quais temas quer transformar. Um que destoa é o da infância, com uma espécie de renda universal infantil. Quem será o Biden brasileiro?

Biden já conseguiu sancionar uma de suas propostas de campanha: o pagamento de US$ 250 mensais para a maior parte das crianças e adolescentes americanos, com valor ampliado para US$ 300 no caso das crianças de até seis anos (1.ª infância). Não se exige que pais não tenham emprego.

Os valores passam a ser decrescentes para famílias com maior renda. Para outro limite de renda, não há direito ao pagamento (uma renda equivalente à do décimo mais rico dos americanos). Como poucas crianças estão em famílias no topo da distribuição de renda, o benefício é semiuniversal. 

É uma grande mudança: os EUA estão entre poucos países desenvolvidos a não possuir esse benefício. Uma renda universal para crianças, ou semiuniversal, é praticada em boa parte da OCDE e é parte integrante do modelo de Estado de bem-estar social europeu – só parcialmente importado por essas bandas. Mesmo países de tradição anglo-saxônica pagam o benefício, como Austrália e Canadá

Como seria se o Brasil replicasse a iniciativa americana? Evidentemente os valores de US$ 300 mensais estão distantes de nossa realidade. Mas comparando com a renda per capita dos dois países, o plano de Biden equivaleria no Brasil a dobrar o benefício variável do Bolsa Família – hoje de R$ 41 por criança. 

Significaria também estendê-lo para milhões que não recebem benefício algum, por não serem de famílias pobres o suficiente para receber o Bolsa nem ricas o suficiente para declarar imposto de renda (que gera um benefício indireto: a dedução por dependente). 

Sempre cabe ressaltar que 4 a cada 10 crianças brasileiras viviam na pobreza mesmo antes da pandemia, com número piores para as que vivem somente com a mãe, as negras, as na 1.ª infância. Entre estas, no cálculo de Naercio Menezes, metade continua abaixo da linha da pobreza mesmo recebendo o Bolsa Família – tamanha a insuficiência de renda. Nos EUA, estima-se que a taxa de pobreza infantil caia agora à metade.

Da Universidade de Columbia em Nova York, o Centro de Pobreza e Política Social estima que o retorno da nova política de proteção social americana será de oito vezes o seu custo para o contribuinte, pelos seus efeitos poderosos sobre o desenvolvimento infantil. O retorno vem no futuro de mais impostos arrecadados (porque o benefício amplia as possibilidades de o adulto de amanhã conseguir emprego, e emprego com melhores salários) e menos gastos (inclusive com saúde e até segurança pública e justiça, dada a triste vulnerabilidade do público beneficiado).

Propostas responsáveis de uma renda universal infantil foram feitas no Brasil em anos recentes por pesquisadores associados ao Ipea. Versões tramitam no Congresso. Em 2019, especulou-se que o governo Bolsonaro apresentaria uma proposta. Nicholas Kristof, articulista do The New York Times, resumiu a dificuldade que esse tipo de proposta tem em angariar apoio da sociedade: crianças não escrevem colunas, não votam e não contratam lobistas.

Rosa DeLauro, deputada americana que autorou o projeto da Lei da Família Americana – base do programa de Biden, acredita que a pandemia expôs a vulnerabilidade desse grupo da população e permitiu a aprovação da proposta. Ela advogou pelo benefício por 18 anos. DeLauro, como Biden e Nancy Pelosi (presidente da Câmara), integram o grupo de democratas católicos – influenciados pela doutrina social.

Mas lá, ao contrário daqui, conservadores também aderiram à pauta. Mitt Romney, o republicano vencido por Obama nas eleições presidenciais de 2012, apresentou proposta de renda universal infantil permanente, ainda mais ousada que a de Biden (que é por ora apenas temporária). Justificou o projeto da Lei de Segurança das Famílias tanto pela redução da pobreza como pela promoção dos casamentos. 

Outros conservadores americanos interessados nesse tipo de benefício argumentam pela diminuição de divórcios, aumento da natalidade, redução de abortos e maior estabilidade nos lares. Pauta que deveria ser abraçada pelos defensores da família.

Com a solução apenas temporária para o auxílio emergencial de 2021, o debate sobre proteção social segue aberto no Brasil. Caberá ao Biden brasileiro liderar uma transformação do Orçamento, combatendo desigualdade de renda geracional e abrindo um futuro de maior produtividade para a economia.

*Doutor em economia 


Eliane Cantanhêde: Liberar cultos, missas e aglomerações equivale a mandar o gado para o matadouro

Em meio ao caos, o bolsonarista do Supremo, Kassio Nunes Marques, passa por cima de decisões do plenário

O Brasil vive duas tragédias simultâneas, em meio a um negacionismo criminoso que tenta garantir até aglomerações em igrejas e cultos: o número de infectados e mortos pela covid-19 só dispara, enquanto as previsões de doses de vacinas só caem. A boca do jacaré aumenta e vai devorando vidas, a economia, os empregos, a comida na mesa. E não está se falando de jacaré que tomou vacina...

Como advertiam desesperadamente os epidemiologistas, março de 2021 foi o mês mais macabro da pandemia, com o dobro das mortes registradas em julho de 2020, até então o pior mês em mortes e infecções. E a nova má notícia é que a escalada da carnificina deve continuar em abril.

Quanto mais brasileiros morrem, mais a previsão de vacinas cai, em sentido inverso. No dia 17 de fevereiro, quando o Brasil atingiu 242.178 mortos, o então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, anunciou 46 milhões de novas doses em março. O número de mortes disparou desde então, mas o de doses minguou. Março fechou com menos de 10% dos brasileiros vacinados.

Em 28 de fevereiro, os mortos haviam subido para 255.018 e a previsão de vacinas caía para 39,1 milhões. Em 3 de março, 259.042 mortos contra 38 milhões. Em 6 de março, 264.446 e 30 milhões. Em 8 de março, 266.614 e de 25 milhões a 28 milhões de doses. Em 10 de março, 270.917 e de 22 milhões a 25 milhões. O gato comeu milhões de doses. Gato guloso, Ministério da Saúde pouco confiável.

Para abril, as previsões de mortes são aterrorizantes e, num estalar de dedos, a expectativa de novas doses já caiu de 40 milhões para 25 milhões. O nosso Estadão revelou a realidade: a vacinação dos grupos prioritários – atenção, não da população toda, apenas dos prioritários – só deve ser concluída em setembro. Deus nos livre!

A situação é caótica, com o sistema de saúde super pressionado, os profissionais do setor esgotados, risco de falta de oxigênio e medicamentos, milhões de pessoas passando fome e vans escolares já sendo usadas para transportar corpos em São Paulo, o Estado mais rico do País.

O presidente Jair Bolsonaro, porém, só pensa no seu marketing pessoal. Os filhos jogam na internet o slogan “nossa arma é a vacina”, o Planalto sedia reuniões inúteis da frente contra a covid e todo o governo corre para dar ao presidente o discurso mentiroso, a propaganda enganosa, de que ele, imaginem, lidera o esforço por vacinas. Nenhuma fake news poderia ser mais absurda, depois de tudo o que Bolsonaro disse e não disse, fez e não fez na pandemia.

Não atuou a favor e guerreou contra as vacinas, não atuou a favor e guerreou contra o isolamento social, não atuou a favor e guerreou contra as máscaras e, em vez de guerrear contra, atuou a favor da cloroquina – os efeitos já começam a aparecer... E seus seguidores vão atrás. Que tal a comparação das vacinas com a talidomida nas redes, quando Bolsonaro dizia que a Coronavac “matava e mutilava”?

Em meio ao caos, o bolsonarista do Supremo, Kassio Nunes Marques, passa por cima de decisões do plenário e libera cultos e missas durante a pandemia. Equivale a mandar o gado para o matadouro. Com a suspeita de que o ministro segue as máximas do presidente: “aos aliados tudo” e “um manda, outro obedece”. Mesmo não devendo obediência nenhuma.

O ex-juiz Sérgio Moro foi expelido por resistir à ingerência política na Polícia Federal. O general Fernando Azevedo e Silva foi demitido por evitar a ingerência política no Exército. Como impedir a ingerência negacionista no Supremo? Em 5 de julho, Marco Aurélio Mello se aposenta, Bolsonaro nomeia o “seu” segundo ministro e os dois, juntos, mudam o equilíbrio do plenário. Para melhor, não será. E a pandemia estará correndo solta.


Rosângela Bittar: omissão fatal

Lira e Pacheco comportam-se como reféns de uma dívida acidental com Jair Bolsonaro

Com a pressão elevada pela carta de exortação dos banqueiros e o apelo direto do empresariado paulista à interferência dos presidentes da Câmara e do Senado, o presidente Jair Bolsonaro pode estar entrando hoje numa nova onda. Participa de encontro com os presidentes dos três Poderes, governadores e ministros para ser aconselhado sobre a gestão da pandemia.

Todos sabem, trata-se de um faz de conta institucional, como se o presidente já não soubesse o que precisa fazer. Vá lá, serve o pretexto. Apostas na mesa sobre o resultado desta iniciativa:

Um. Os financiadores de campanha abrem a Bolsonaro a brecha para abandonar os delírios impostos pelo obscurantismo que move suas atitudes e assumir a coordenação das soluções da crise de saúde pública com base na ciência e eficiência.

Dois. O presidente usa a reunião para promover um movimento circense destinado a distrair a arquibancada e dar a impressão que faz alguma coisa com seu mandato presidencial.

Três. Bolsonaro busca e encontra, no grupo, disposição para socialização do prejuízo e da impopularidade. Como de hábito, ouvirá uma coisa, fará outra e, diante das consequências trágicas, coletivizará as culpas.

O histórico da personalidade do presidente manda jogar as fichas na terceira opção.

Mas só ele tem o comando executivo das soluções. Não é mais possível viver na expectativa dos recuos de Bolsonaro, cujas mutações obedecem apenas às suas conveniências pessoais e eleitorais.

Supremo Tribunal Federal, única instância que parece estar cuidando do interesse da população aflita, submeteu o convite para o encontro ao seu colegiado. Que o aprovou, desde que não haja conflito de interesse.

Ora, é só o que há. Na reunião do Palácio do Planalto, o presidente do STF poderá recomendar o isolamento social para enfrentar o colapso hospitalar. Ao atravessar a praça, de volta ao seu plenário, estará diante de ação de Jair Bolsonaro contra os que decretaram o isolamento. Como ele fica?

O ceticismo em torno deste Conselho se impõe. Parece haver uma só saída para reinserir o Brasil na rota da humanidade nesta pandemia sem controle: a intervenção objetiva, seja pelo afastamento do presidente da República, seja por algum tipo de sobreposição às suas funções executivas.

A qual instituição, senão ao Poder Legislativo, caberia esta função? Pode o Congresso, no limite, tentar algo parcial, assumindo tarefas e deixando ao presidente o papel de malabarista verbal nos encontros com sua claque, no gradil do Alvorada.

Mas há abertura para ir além disto. Se por ela optasse, o Brasil não precisaria esperar mais dois anos, quem sabe seis, para se salvar.

Congresso tem uma velha tradição de astúcia em negociações de acordos. Estabelece um contrato de compra e venda do varejo político que, um dia, a depender do objeto determinado, transforma-se em cumplicidade dolosa.

Os presidentes da Câmara e do Senado comportam-se como reféns de uma dívida acidental com Jair Bolsonaro, contraída por ocasião de sua eleição. Sua propalada independência tem sido pura ficção.

No Senado, os pruridos da reciprocidade impedem que Rodrigo Pacheco instale a CPI da pandemia, única medida capaz de conter, até pelo medo, os desmandos do governo. Tem sido excessiva e injustificada a prudência do Poder Legislativo.

Na Câmara, Arthur Lira já teria quitado sua fatura com a prioridade a um assunto fisiológico, a PEC da impunidade parlamentar, e a surdez ao clamor contra a entrega da presidência da CCJ ao governo, para ser exercida por uma parlamentar extremista e investigada. Mas foi além, condenando ao esquecimento 50 pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro.

As abstenções, tanto quanto as ações, não permitem reconhecer que o Congresso esteja cumprindo sua parte na luta contra a pandemia.


Pedro Fernando Nery: A falácia dos deveres que recai sobre os brasileiros mais pobres

A contrapartida de direitos são os tributos, que aparecem fartamente na Constituição

O argumento é recorrente. Os brasileiros mais pobres já possuem benefícios demais: a própria Constituição citaria “direitos” dezenas e dezenas de vezes, mas “deveres” somente em um punhado de ocasiões. Com tantos direitos sem deveres correspondentes, o arranjo seria insustentável. O argumento é falacioso: a contrapartida de direitos são os tributos, eles são fartamente previstos na Constituição e incidem mais justamente sobre os mais pobres – aqueles que teriam direitos demais.

Comecemos com um Ctrl+F na Constituição. Tributos e seus tipos – impostos e contribuições – aparecem mais de 300 vezes. São eles os espelhos dos direitos, e não um termo genérico como “dever”. O direito à saúde é concretizado com contribuições sociais. O direito à educação é efetivado com impostos. E assim vai.

No Brasil, muitos desses tributos, ou deveres, recaem sobre quem ganha menos, que paga a conta indiretamente quando compra um produto. Na verdade, os mais pobres pagam mais em tributos indiretos do que os mais ricos, quando considerado o peso dos tributos em proporção à renda de cada grupo.

Essa distribuição é muito diferente da de vários países desenvolvidos, que exigem mais esses deveres dos mais ricos. Mesmo uma reforma da tributação sobre o consumo, como a PEC 45, pode atenuar a situação, ao distribuir melhor a carga entre o que é consumido pelos mais bem posicionados na distribuição de renda e os mais vulneráveis. Estudo da economista Débora Freire conclui que essa reforma tributária traria “ganhos de bem-estar” para as famílias mais pobres, pelo seu efeito nos preços.

Para que as elites tenham mais deveres, são importantes também medidas relacionadas à tributação da renda. Embora a Constituição demande tratamento igual entre os cidadãos em geral, e progressividade no Imposto de Renda em particular, o fato é que ele é regressivo para rendas mais altas: quanto mais se ganha, menos se paga (a alíquota efetiva chega a 5% para o grupo que ganha mais de R$ 300 mil). Isso porque para este dever muitos pagam 0% em relação a certas rendas, isentas legalmente de pagar o IR – em provocação à Constituição.

Temos também muitos problemas com isenções ou outros auxílios a empresários de setores específicos da economia. Estes ficam dispensados de seus deveres constitucionais parcial ou totalmente, por um prazo definido ou indefinidamente. São os chamados gastos tributários (renúncias, benefícios fiscais): um montante que eleva a nossa dívida com pouca clareza sobre suas vantagens em termos de políticas públicas. 

Um passo, ainda que tímido, foi dado semana passada para que os deveres sejam distribuídos de forma mais igualitária. Com a nova Emenda Constitucional n.º 109, decorrente da PEC emergencial, uma nova lei complementar passa a ser exigida regulamentando a criação desses benefícios fiscais, regras para avaliação e um plano para sua redução. É importante que a regulamentação do tema enquadre mecanismos que dão menos deveres a grupos mais prósperos, como isenções no IR ou tributação do patrimônio favorecida, abaixo dos limites da Constituição.

É verdade que em nosso pacto social é possível identificar direitos em excesso, mas a evidência é de que isso não ocorre entre os mais pobres. Se consideramos deveres os tributos, consideremos agora o gasto público como uma aproximação de direitos. Os dados apontam que transferências do governo são regressivas quando dividimos a população – por exemplo – em cinco grandes grupos de renda: isto é, quanto menos pobre cada quinto da população, mais recursos recebem. 

De tal forma que para o quinto mais rico pesam em sua renda os recursos recebidos do governo quase o mesmo tanto que para os mais pobres. Como mostra estudo da antiga Secretaria de Acompanhamento Econômico, esse padrão é muito divergente do de países da OCDE, em que o gasto é muito mais direcionado aos mais vulneráveis.

Como evidencia o debate do auxílio emergencial, uma larga parcela da população está, na verdade, com poucos direitos. Centenas de economistas lançaram no último fim de semana uma carta que chamou atenção pelas cobranças quanto à pandemia, mas que também defende de forma contundente uma reforma no sistema de proteção social – exatamente pela cobertura insuficiente. 

Muito mudou no País desde que Roberto Campos fez a crítica que seria popularizada nas décadas seguintes – de que a Constituição prevê direitos demais e deveres de menos. À época, ainda não haviam sido montados os mecanismos legais que hoje distorcem tanto nosso sistema tributário em benefício de quem está no topo. Que as mudanças que esperam nosso País nos próximos anos se orientem por uma verdade inconveniente: são os mais ricos que têm deveres de menos.

*Doutor em economia 


Eliane Cantanhêde: Quanto mais mortes, mais a Nação se une e o bolsonarismo se isola, tosco e incendiário

Ao falar em ‘caos’, ‘ação dura’, ‘esticar a corda’, Bolsonaro demonstra desespero e tenta radicalizar ainda mais os seus radicais

Montanhas de fake news desvirtuam a internet, vídeos de sujeitos com boinas militares e caras de milicianos ameaçam guerra à bala, o ministro da Justiça usa a Lei de Segurança Nacional contra críticos do presidente Jair Bolsonaro... Essas investidas, que não são inocentes nem isoladas, fazem parte da alma autoritária do bolsonarismo e enfrentam crescente resistência de todos os lados.

Centenas de banqueiros, empresários e economistas criticam o governo e rechaçam o “falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável”. O presidente do SenadoRodrigo Pacheco, pediu aos EUA para negociarem vacinas excedentes com o Brasil. E 62 dos 81 senadores assinaram uma moção liderada por Kátia Abreu (TO) implorando ajuda à comunidade internacional.

Todos se mexem para cobrir o vácuo do presidente e não dá para acusar de “comunistas”, “esquerdistas” e “petistas” gente como Pacheco e Kátia, Roberto SetúbalPedro Moreira SallesPedro Malan... Será que são esses os alvos do bolsonarista ignorante, valentão, com pose de militar, mas linguajar de miliciano? Que provoca “esse pessoal da canhota, que quer derrubar o nosso presidente”: “Deixa eu dizer um negocinho pra vocês. Ele não tá sozinho, não, tá? Junta o que vocês tiver de melhor e tenta” (sic sic sic). 

Ao falar em “caos”, “ação dura”, “esticar a corda”, Bolsonaro demonstra desespero e tenta radicalizar ainda mais os seus radicais. Isso, porém, equivale a demonstrar fragilidade e a afastar a direita consciente, cada vez mais indignada com ele e seu governo na pandemia. Se o desespero de Bolsonaro é porque a realidade ameaça seu pescoço e sua reeleição, o do Brasil é por um motivo nada personalista: o pânico por leitos faltando, oxigênio e remédios escasseando, vacinas devagar, quase parando.

O negacionismo de Bolsonaro e da sua turma não resiste às cenas tétricas de famílias destroçadas pela dor e pelo luto, aos doentes sem leitos e assistência, ao número cada vez maior de jovens mortos, aos cadáveres no chão de hospitais, seja no Piauí, seja no DF, a poucos quilômetros dos palácios de Bolsonaro.

A estratégia dele, porém, continua sendo a de falar absurdos e empurrar a culpa para os outros, insistindo em mentiras: não fez nada (e não fez mesmo...) porque Supremo impediu; só atrapalhou tudo (e atrapalhou muitíssimo...) para tentar salvar a economia; gastou dinheiro público com cloroquina (e gastou bastante, sim...) porque só o “tratamento precoce” salva. O céu está cheio de “salvos” pela cloroquina...

A essa estratégia Bolsonaro adicionou uma aposta: fingir que apoia as vacinas desde criancinha e atrair os louros pelas doses que estão vindo. Como se fosse possível esconder que o Brasil só está realmente vacinando por causa da Coronavac (“a vacina chinesa do Doria”) e que seu governo se pendurou num único imunizante – a Oxford-AstraZeneca, que tem atrasado – e desdenhou de Pfizer, Moderna, Janssen, Sputnik V... 

Assim como o governo fez comemoração patética para receber 2 milhões de doses da Oxford, quer fazer oba-oba político por acertar com a Pfizer nove meses depois – e passando ridículo no mundo: não bastasse ter o quarto ministro na pandemia, Bolsonaro agora tem dois ao mesmo tempo. Quem tem dois não tem nenhum. E o que dizer do capitão criando um ministério para premiar o general pelos péssimos serviços prestados?

A divisão do País não é entre Bolsonaro e Lula, direita e esquerda, mas sim entre um bolsonarismo tosco e incendiário e todo o resto que, independentemente de ideologia, usa outro tipo de armas: inteligência, competência, defesa da economia e da vida. Cada um escolhe o seu lado. E que depois preste satisfações à história e ao Brasil.