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El País: Lula e Marielle, símbolos de duas esquerdas separadas nas ruas

Ato da campanha Lula Livre, semanas depois das homenagens à vereadora assassinada, marcam as diferenças de idade e prioridades temáticas das mobilizações progressistas

O ato realizado em São Paulo neste domingo pedindo a libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi marcado por algumas ausências. A pequena multidão reunida na avenida Paulista entre às 14h e 17h para recordar o primeiro ano de prisão do petista era composta, em sua maioria, por pessoas oriundas de uma classe média trabalhadora que possuíam uma média de idade que facilmente beira os 50 anos. Sobrou melancolia e nostalgia por tempos vividos num passado não muito distante, quando o país fazia sua transição para a democracia ou vivia o auge da inclusão social e do pleno emprego durante os Governos do Partido dos Trabalhadores. Mas, salvo exceções, como os militantes da União Nacional dos Estudantes (UNE) ou do Levante Popular da Juventude, faltaram os jovens. Jovens negros e periféricos que há menos de um mês, no dia 14 de março, engrossavam outra manifestação, a que recordava o primeiro ano da brutal execução da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.

Lá os protagonistas eram outros. Chamou atenção o fato de que poucos homens e lideranças partidárias — com exceção das deputadas Talíria Petrone, Mônica Francisco, Dani Monteiro e Renata Souza, consideradas as herdeiras políticas de vereadora assassinada — tenham subido no palco montado na Cinelândia, no centro do Rio. No festival de música e poesia organizado por Anielle e Luyara Franco, irmã e filha de Marielle, estavam artistas e coletivos negros e feministas como o Slam das Minas, que dizia que "a justiça não é cega, é daltônica". Também escutava-se uma multidão entoando o samba enredo da Mangueira, campeão do carnaval de 2019, que evoca um país "que não está no retrato" e que deve ouvir "as Marias, Mahins, Marielles, malês". Ao invés de um discurso político como gran finale, o ato terminou com um grande baile funk — porque, quando era adolescente, Marielle fugia de casa para escutar Furacão 2000, recordava Anielle no microfone.

A vereadora representa para Amanda Gabriela, uma estudante de História de 30 anos que participava do ato, "a força da mulher dona de seu mundo, de sua verdade e de seu caminho". Também enxergava um sentido de urgência em estar na rua. "Se ficarmos em casa, sem trazer as pautas para a rua, vamos morrer", dizia.

Em São Paulo, escutava-se o clássico Guantanamera, uma marca da ainda reivindicada Revolução Cubana, apesar do Governo autoritário da ilha, e o vereador Eduardo Suplicy acalentando corações com Blowing in the Wind, de Bob Dylan. Maria de Lourdes, uma bancária aposentada, de 64 anos, viajou de Marília, interior de São Paulo, para acompanhar o ato. "Eu poderia estar em casa descansando na piscina, assistindo de camarote. Mas não consigo. Me sinto fazendo parte de um momento importante da vida do país. E também retribuindo por todas as oportunidades que tive, por terem dado o direito ao voto e aberto o mercado de trabalho para as mulheres", explicava.

Havia jovens com suas famílias e jovens que estavam de passagem. Alguns chegaram a fazer fila para tirar foto com Guilherme Boulos, principal liderança do MTST e candidato a presidente pelo PSOL em 2018. Uma liderança política nova que começa seu discurso com um "boa tarde a todos e todas", ao invés do velho "companheiros e companheiras" que seus colegas tanto usaram neste domingo para defender Lula e a democracia.

Em uma entrevista para este jornal sobre a falta de renovação da esquerda, a filósofa e matemática Tatiana Roque falava sobre como os protestos de junho de 2013, que eclodiu em todo o país, embaralhou o campo progressista. "Novos atores estavam se apresentando ali na cena política e foram rechaçados pela esquerda, que não conseguiu até hoje dar um sentido para junho de 2013 e entender as pautas, as formas de organização, a estética... Não conseguiu entender o movimento". É dela também a explicação de que a esquerda ainda carrega uma ideia de trabalhador muito "homogeneizante" que dificilmente se aplica nos dias de hoje. "Os modos de vida, as experiências, as sensibilidades se tornaram muito mais importantes ao se inserir num coletivo. Não à toa vemos tantos coletivos feministas, negros, LGBTs, de legalização das drogas, de ambientalistas... Os coletivos se organizam mais em função daquilo que os afeta de modo singular", explicava em outra entrevista para este jornal.

"A esquerda precisa de unir em grande frente progressista", dirão uns. Uma frente que chegou a se desenhar nas ruas com o movimento #EleNão, contra o então candidato e atual presidente Jair Bolsonaro. O problema é que questões temáticas e até estéticas parecem separar essas duas esquerdas, que têm pautas em comum e se solidarizam uma com a outra, mas nem sempre se encontram nas ruas. Uma tem Lula como símbolo. A outra tem Marielle Franco como símbolo. Uma acha graça quando o ator José de Abreu se autoproclama presidente e diz que Marielle seria sua primeira dama in memorian. A outra acha a piada ofensiva e gostaria que Marielle tivesse sido a presidente. Uma veste camiseta vermelha. A outra exibe com orgulho cabelo estilo black power. Uma mira com nostalgia o passado e se apoia em antigas lideranças. A outra surge como uma grande potência transformadora, aponta questões consideradas mais urgentes — o racismo, o machismo e a LGBTfobia que mata milhares diariamente, por exemplo — e quer ser protagonista do futuro, não apenas mera espectadora.

Lula e Marielle representam, ontem e hoje, lutas pela democracia mais que legítimas. Nessa equação está uma imensa massa de pessoas historicamente abandonada pelo Estado que ainda tem o petista como principal referência e fizeram que Fernando Haddad chegasse ao segundo turno no ano passado. Mas isso já não é suficiente. Resta saber agora quando essas esquerdas voltarão a confluir, se é que isso acontecerá, em um novo projeto que volte a conquistar os setores populares, geralmente ausentes das ruas. Não é fácil.


El País: “O problema da esquerda não é a pauta dita identitária, mas sim a lacração”, diz Tatiana Roque

Para filósofa e matemática, campo progressista deve se opor à reforma da Previdência de Bolsonaro apresentando seu próprio projeto. Defende que a renovação deve vir a partir dos municípios

Por Felipe Betim, do El País

No ano passado, a filósofa e matemática Tatiana Roque, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), decidiu se filiar ao Partido Socialismo Liberdade (PSOL) e se candidatar a deputada federal pelo Rio, conseguindo 15.789 votos. Não foi o suficiente para entrar na Câmara dos Deputados. De volta a vida acadêmica, Roque agora ajuda a articular um movimento transversal de pessoas independentes que não se encaixam ou não identificam com as correntes de partidos como o PT e o próprio PSOL, mas que querem fazer política e ter propostas progressistas concretas. "Muitos expressam vontade de fazer trabalho de base. A experiência do 'vira voto' [às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro] foi muito marcante para todo mundo. Eram pessoas que estavam afastadas da política. E elas vão fazer política onde agora? Como?", explica Roque em entrevista ao EL PAÍS. O principal foco, acredita, é reconstruir a esquerda, derrotada nas últimas eleições pelo ultraconservador Bolsonaro, a partir das eleições municipais de 2020.

Pergunta. O que você destacaria de positivo e negativo na reforma da Previdência?
Resposta. Antes de fazer uma discussão técnica, há uma discussão política. Ela precisa ser pensada num contexto político muito especifico. Existe um campo liberal que realmente não está interessado em combater os privilégios, mas em diminuir os direitos. Fez uma aliança com o Governo Bolsonaro, o que há de mais retrógrado e antidemocrático, para empurrar essa reforma. Independentemente de pontos que sejam pertinentes, como a idade mínima, que diz respeito a uma mudança demográfica e que é consenso, tem esse problema político. A reforma é fruto de uma aliança entre uma força ultraliberal representada por Paulo Guedes, que quer fazer não só essa como várias reformas que vão no sentido de diminuir o estado de bem-estar social, e uma força ultraconservadora antidemocrática.

P. Em outra entrevista, no auge do Governo Temer, você afirmou que a esquerda deveria ter um projeto de reforma da Previdência, mas que aquele Governo era ilegítimo. Bolsonaro chegou pelas urnas. A esquerda deve se opor a uma reforma mais uma vez, ou negociar no Congresso?
R. Uma coisa não anula a outra. A esquerda deve ser uma oposição radical a um Governo radical. O que eu dizia e continuo dizendo é que a esquerda tem que fazer oposição a essas reformas ultraliberais tendo um outro projeto de reforma da Previdência. Isso foi inclusive apontado pelo Nelson Barbosa [ex-ministro da Fazenda do Governo Dilma Rousseff]. Agora, é claro que, na ação parlamentar, você deve tentar diminuir aqueles pontos mais prejudiciais para os mais pobres, como as mudanças no Benefício da Prestação Continuada (BPC), na aposentadoria rural... Existem mudanças claramente prejudiciais aos mais pobres e acho que existe uma aliança mais ampla contra esses pontos. E é claro que a esquerda deve se unir a esse bloco parlamentar e negociar junto. Mas, de um modo geral, como força de oposição, deve ser contra. Mas deve ter um projeto próprio.

P. Isso parece estar longe de acontecer...
R. Vai ter que caminhar junto com uma renovação da esquerda. Ela está numa fase de mutação, passando de uma fase de hegemonia do PT para uma fase em que varias forças estão disputando essa hegemonia. O PSOL está em boas condições de disputar essa hegemonia, mas esse projeto só vai ser possível assim que essa esquerda conseguir se renovar e renovar seu quadro institucional. É natural que, nesse processo, a ação seja mais de resistência. Precisamos passar urgentemente dessa fase, com projetos mais afirmativos. E não acho que serão, em um primeiro momento, projetos nacionais. A tendência, e foi assim na história do Brasil, é que a esquerda comece a firmar seus projetos mais positivos no âmbito local.

P. Isso tem a ver com o conceito de municipalismo que você vem trabalhando? O que significa?
R. Existe uma tendência internacional, em países como Espanha e Bolívia, em dar maior poder aos municípios, tanto do ponto de vista da gestão como da arrecadação e do desenvolvimento econômico. Mas, sobretudo, do ponto de vista do aprofundamento da democracia, no sentido de torná-la mais participativa e menos representativa. Trata-se de buscar os mecanismos que podem nos fazer sair dessa crise da democracia representativa. E podemos tanto utilizar experiências do passado como propor experiências novas. A instância que permite fazer isso é o município. É uma instância que favorece a participação, o controle social, a transparência e as políticas participativas. Focar nos municípios é o caminho mais efetivo para renovar a esquerda.

P. No Brasil isso passa por rever o pacto federativo?
R. Exatamente. O Brasil tem um problema: a Constituição de 88 teve um grande avanço ao dar mais autonomia aos Estados e municípios, mas isso não se traduziu em uma descentralização orçamentária que acompanhasse a execução das políticas. Muitas responsabilidades foram transferidas sem uma contrapartida orçamentaria, sendo que a capacidade de arrecadação própria é pequena. Isso gera aquelas missas de prefeitos e governadores indo pedir mais e mais para a União. Também acho que existe uma cultura em não se investir em desenvolvimento econômico local, a partir de suas vocações territoriais.

P. As eleições de 2020 são um ponto de partida?
R. Totalmente, acho que precisamos investir muito nisso, não só no PSOL. Esse tipo de construção na esquerda tem uma longa tradição na história do PT, que começou a ocupar governos locais e a se distinguir por um modo singular de governar, o modo petista de governar. A experiência do Orçamento participativo é tida como referência de aprofundamento da democracia e de experimentação de mecanismos participativo no mundo inteiro. Mas essas experiências tão inovadoras implementadas pelo PT foram deixadas de lado pelo próprio PT. Isso faz parte dessa mudança que o PT teve quando foi para o Governo Federal, em que as políticas locais se tornaram secundárias, fazendo com que o partido aderisse a práticas de governo viciadas e clientelistas que interromperam esse caminho de renovação. O grande dilema que temos é como renovar a esquerda a partir dessas práticas renovadoras sem cair nos vícios dos governos petistas.

P. O PT demorou 20 anos para chegar ao poder federal. A esquerda pode demorar tudo isso para voltar?
R. A reconstrução não vai ser rápida. Se nesse meio tempo vamos a um Governo Federal não dá para saber. A situação está muito aberta, muitos não esperavam a eleição de Bolsonaro. Seria bom que a esquerda estivesse preparada para voltar, mas isso depende de uma reorganização dessas forças muito mais difícil e imprevisível de se fazer. Devemos investir agora, principalmente no caso do PSOL, que está mais bem posicionado para isso, nessas experiências de governo locais. No Rio, talvez com Marcelo Freixo candidato, vamos fazer esse debate.

P. As chamadas questões identitárias parecem não ter apelo junto a setores populares. Como acha que a esquerda deve abordar essas pautas?
R. Não é que as ditas questões identitárias não tenham apelo popular. Acho que o modo como muitas vezes a luta é travada chega a população de um jeito distorcido. É menos a pauta dita identitária que o modo lacrativo de se fazer política. Essa cultura da lacração está atrapalhando não só as pautas identitárias, está atrapalhando geral. Se a gente tiver propostas concretas de políticas públicas voltadas para as mulheres, por exemplo, acho que teria receptividade na população mais pobre e na despolitizada. O problema é como abordar isso. Elas precisam ser abordadas dentro de um trabalho político mais amplo, que não seja só essa disputa de marcação de posição.

P. A esquerda perdeu conexão com a classe trabalhadora?
R. A esquerda tem a concepção de que o agente da transformação é baseado nessa ideia de trabalhador, que é uma ideia muito homogeneizante. Isso continua existindo, apesar de o trabalho ter mudado. Só que os grupos que se organizam para melhorar suas condições de vida não se organizam mais em função de categorias tão homogeneizantes. Os modos de vida, as experiências, as sensibilidades se tornaram muito mais importantes ao se inserir num coletivo. Não à toa vemos tantos coletivos feministas, negros, LGBTs, de legalização das drogas, de ambientalistas... Os coletivos se organizam mais em função daquilo que os afeta de modo singular. Muito mais do que uma categoria de trabalho. As pessoas são trabalhadoras de jeitos tão diferentes que não necessariamente vão se identificar pelo fato de serem trabalhadoras. O movimento dos Coletes Amarelos, na França, é um ótimo exemplo. Trouxe uma série de atores invisíveis. A esquerda tem que estar muito atenta porque esses atores estão demandando atenção. E a esquerda tem que se abrir para isso. A greve dos caminhoneiros foi isso. No Brasil temos uma enorme categoria de jovens nem nem, que nem estudam nem trabalham. Se a esquerda não fala com elas, algo está errado. Um projeto de Previdência tem que dar proteção para essas pessoas que têm trabalho informal, situação de vida instável, intermitente... E a proposta não pode ser pleno emprego, porque isso não é muito realista.

P. O que aprender com a nova esquerda norte-americana?
R. Precisamos de uma mudança econômica de fundo, e essa nova esquerda americana vem falando muito no Green New Deal. É algo fundamental, porque por trás de Trump está o negacionismo climático. Então a oposição a ele também deve focar nisso, tem que levar a sério o aquecimento global e as limitações ecológicas. As mudanças econômicas têm que ser pensadas a partir disso.

P. Como isso poderia ser aplicado no Brasil?
R. Existe uma esquerda brasileira com uma visão muito industrializante, que acha que a solução para o desenvolvimento econômico é industrializar, e a partir disso criar emprego e resolver as questões sociais a partir do emprego. Tudo bem, acho que um país como o Brasil, que tem pouca indústria, precisa fazer isso. Mas principalmente fazer isso com um modelo produtivo mais tecnológico, não uma industrialização atrasada —e não vai criar emprego suficiente pra resolver o problema social. Acredito cada vez mais que esse outro modelo tem que partir da limitação ecológica, encarando com seriedade o problema das mudanças climáticas. Não adianta um projeto econômico baseado em commodities e mineração que afete o meio ambiente e leve a um desastre como o de Brumadinho. Não dá mais. E isso tem a ver com o municipalismo, porque a partir das iniciativas de desenvolvimento econômico local, de economias territoriais, é mais possível desenvolver alternativas que em escala nacional. E aí tem duas vias fundamentais: uma é a questão dos cuidados, uma proposta de trabalho e proteção social baseado numa economia dos cuidados, que cuide desse problema e crie postos de trabalho voltados para isso, já que é uma tendência mundial; outra coisa é a questão dos bens comuns, como a água, a energia.... Essa gestão dos bens comuns com uma preocupação ecológica é uma outra tendência que a gente tem que incorporar nesse modelo municipalista. Tem a ver também com saneamento básico, que é um ponto terrível e que o Brasil não consegue fazer.

P. Vê riscos para a democracia?
R. Estamos vivendo uma fragilização em várias camadas. Do ponto de vista econômico, é um ataque ao estado de bem-estar social, que é o que temos de democracia mais efetiva no mundo. Acho que isso é o mais grave para a democracia. É uma tentativa de fazer com que áreas do bem-estar social passem a fazer parte de um campo de acumulação de capital. A questão da capitalização da Previdência é isso, a privatização da saúde e educação é isso. O SUS é referência mundial, a educação universal pública precisa melhorar qualidade e a gestão, mas o modelo a gente conseguiu implementar. Não é andando pra trás que vamos resolver.

Também temos que estar atentos porque a democracia não se fragiliza com práticas ditatoriais, mas com mecanismos antidemocráticos sendo inseridos dentro das instituições democráticas e dentro das leis. Por isso, muitas vezes não reparamos como sendo antidemocráticos. É o que Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, chama de "democracia iliberal". Trata-se de minar as instituições da democracia liberal por dentro.

P. Como responder a essas ameaças?
R. Existe uma demanda por mais participação, por um aprofundamento da democracia que foi deixada nas mãos das elites e econômicas, e as pessoas não se sentem participando após o momento do voto. Muitas decisões que afetam a população são tomadas por uma tecnocracia, uma elite de experts que não é eleita. Isso é algo aprofundado pelo neoliberalismo. Dá a sensação de que não importa em quem você vote, vão ser sempre essas pessoas que tomam decisões. O maior exemplo é a União Europeia. O ápice foi quando os gregos votaram 'não' no plebiscito sobre o ajuste, mas o Governo fez o contrário porque era uma determinação da troika [Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional]. No Brasil, muitos votaram em Bolsonaro por protesto, de saco cheio de tudo. Temos que ter uma resposta para isso.

P. Que tipo de resposta?
R. Não temos instituições de controle, de acompanhamento, de accountability, de transparência entre as ações de quem elegemos e a população. Votamos e depois acabou. A solução para isso não é um incentivo ao nacionalismo. Precisamos inventar novas instituições democráticas. Quando os livros que estão aí falam em "fim da democracia", acho que isso significa um esgotamento de uma forma de democracia que vivemos desde o fim de Segunda Guerra. Não é o fim, é a necessidade de pensar em inovações democráticas, mecanismos democráticos que respondam a esse anseio da população e que faça que tenha um engajamento com as decisões e políticas.

P. Durante a campanha o PSOL falou muito em realizar referendos. Acredita que a democracia direta é o caminho?
R. Existe uma idealização do uso do referendo como forma de aprofundamento da democracia. Não sei se é via referendo que vamos deixar mais direta a democracia. Acho que podemos pensar em novas instituições que vão além da temporalidade do voto, instituições que mantenham uma participação contínua. Por isso gosto das experiências participativas que se dão nas esferas locais, como foi o caso dos Orçamentos participativos no Brasil.


Luiz Sérgio Henriques: A filósofa e o autocrata

Agnes Heller adverte que a democracia liberal é nossa única chance de sobrevivência

Talvez não seja vezo, vício, muito menos viés o que tem garantido no debate corrente a fortuna do termo “ideologia”, especialmente no seu mau sentido, aquele segundo o qual, se não formos capazes de um esforço severo e constante, terminaremos por ver o mundo com lentes deformadas ou mesmo de ponta-cabeça. A acreditarmos em Agnes Heller, filósofa de sólida formação marxista e há décadas influenciada pelo liberalismo político, passamos rapidamente de uma sociedade de classes para uma sociedade de massas, em que, se as classes obviamente não desapareceram, foram fortemente redefinidas e deixaram de ser percebidas como o motor único ou mesmo principal do comportamento político.

Neste contexto de massas, ideologias tóxicas de novo tipo, manipuladas por aventureiros, tomam a cena, insuflam atitudes irracionais e servem de escora para modalidades inéditas de tiranos e tiranias. As palavras de Heller, registradas por Le Nouvel Observateur e reproduzidas por O Globo, provêm de um dos vários laboratórios atuais dessas perigosas experiências, a sua Hungria natal. Nela, com efeito, Viktor Orbán, personagem com quem nos familiarizamos já no primeiro dia do ano, com sua presença na posse do novo presidente, radicaliza o projeto de democracia iliberal, oposto ao liberalismo não democrático que, segundo ele, assinalaria uma Europa extenuada, sem cultura e sem alma, termos afins aos do nosso ministro das Relações Exteriores.

A “democracia cristã” do autocrata húngaro nada tem que ver com grupos e correntes da mesma denominação que, no segundo pós-guerra, reuniram partes muito expressivas de eleitores influenciados pelo catolicismo, muitas vezes em confronto aberto, mas institucionalmente regulado, com setores do mundo laico, fossem eles liberais ou socialistas. Conflitos ásperos à parte, a velha democracia cristã incorporava amplos contingentes populares à vida do Estado democrático, vitalizando-o e tornando-o mais representativo, transformando-o, por conseguinte, na arena por excelência da disputa política civilizada. Nessa arena preciosa, resultado de longo e cruento percurso histórico, o conflito, então, poderia ser produtivo para todos, tal como provado por décadas de políticas de bem-estar social que não se restringiram à Europa ou aos Estados Unidos de Roosevelt, mas deixaram marcas por toda parte, até no Brasil.

A nova “democracia cristã”, ao contrário, gostaria de generalizar ideias fora de lugar e de tempo – ideologias, exatamente –, como, em particular, o recurso demagógico a egoísmos nacionais e a extremado conservadorismo de valores. O primeiro de tais recursos choca-se, evidentemente, com os traços de uma época em que o gênero humano, provavelmente pela primeira vez, deixa de ser construção mais ou menos abstrata dos filósofos e passa a ser realidade imediata para cada indivíduo, em qualquer canto que esteja. Difícil contornar essa evidência apontando o dedo contra “globalistas”, uma vez que cada país se vê às voltas com fenômenos de todo tipo que escapam às próprias fronteiras. A interdependência, por isso, é o horizonte do nosso tempo para o bem ou, certamente, para o mal, se não soubermos construir os instrumentos capazes de governá-la.

O conservadorismo de valores assenta-se, no caso de Orbán, e não só nele, numa religião singularmente reativa aos processos de modernização e secularização, além de amputada da dimensão solidária e fraterna que nos acostumamos a encontrar nos fatos religiosos. Não há aqui nem sombra de períodos marcados pelo ecumenismo ou pelo “diálogo” com os não crentes, mas, ao contrário, espírito de cruzada a ser invocado na perspectiva de uma guerra de civilizações. Imigrantes são mal-vindos, as religiões que trazem maculam a pureza dos valores locais, o multiculturalismo próprio de uma vida cosmopolita deve ser desprezado. E não é complicado, para demagogos, explorar ressentimentos incrustados no senso comum e produzir tiradas em série contra o “politicamente correto”, denunciado como insuportável “ditadura” de minorias, quando, nos casos melhores, ele é sinal de atenção e reconhecimento de sujeitos e realidades antes invisíveis.

Viktor Orbán, como dizíamos, não está só no mundo. Pertence a uma galeria de personagens autocráticos que pouco a pouco passaram a fazer parte das nossas preocupações cotidianas. Alguns deles, mais agressivos, certamente por agirem em contextos de tradições democráticas mais frágeis, chegaram a concretizar os elementos iliberais com que sonharam. Outros, como Trump ou Salvini, mesmo implementando políticas regressivas, veem-se constrangidos ou limitados por aquilo que se tem chamado de “regras não escritas da democracia”, as quais, materializando amplo consenso em torno das instituições, impedem que as liberdades morram, para aludir ao livro conhecido de Levitsky e Ziblatt. E não se entende muito bem por que o Brasil, segundo palavras recentes do presidente Bolsonaro, deva se aproximar de países, como esses, ideologicamente vizinhos. Só haveria perdas reais e ganhos imaginários, a não ser que a realidade passe a ser percebida de cabeça para baixo.

A voz da outra Hungria, a de Agnes Heller, adverte-nos que a democracia liberal é a nossa única chance de sobrevivência, ainda que nem todas as suas promessas tenham sido cumpridas nem tenham sido exploradas todas as dimensões da liberdade. Mas nenhuma hipótese de mudança social poderá doravante cancelar o regime de liberdades “liberais”, ao contrário do que políticas puramente classistas do passado admitiram e promoveram, com resultados em geral negativos ou até catastróficos. E não há “populismo dos povos” a ser contraposto ao “populismo ideológico” dos grupos de extrema direita. Mas essa é uma outra frente de combate ideal que se deve travar no âmbito dos progressistas. Incessantemente, aliás.

 


Bruno Boghossian: O pastelão da oposição

Participação de políticos em piada de ator global revela oposição ingênua e sem rumo

Como se não bastasse um governo alucinado, a oposição também migrou para o mundo do delírio. Ex-presidentes, líderes parlamentares e dirigentes de partidos de esquerda tentaram fazer uma brincadeira e declararam apoio ao ator José de Abreu como presidente autoproclamado do Brasil.

A piada começou como uma crítica ao venezuelano Juan Guaidó, que fez o mesmo em seu país para tentar derrubar Nicolás Maduro. O ator global gostou do personagem e transformou a esquete em um palanque contra Jair Bolsonaro. Os políticos que entraram na onda talvez não tenham percebido, mas são estrelas de uma comédia pastelão barata.

Abreu começou a convocar figuras da esquerda nas redes sociais para seu governo fictício —e elas responderam. Chamada para o Ministério de Energia Convencional e Alternativa, Dilma Rousseff pediu que ele conduzisse o Brasil “com perseverança e olhando para nossa gente”.

Na partilha de cargos, Lula recebeu o Ministério dos Justos. Da prisão, mandou um bilhete ao ator declarando ser seu cabo eleitoral.

Além dos petistas, Jandira Feghali (PC do B) chegou a publicar uma foto de um evento convocado por Abreu em seu desembarque no aeroporto do Rio, na sexta (8). “O presidente chegou!”, exclamou.

O que deveria ser um protesto bem-humorado revelou uma oposição ingênua e sem rumo.

Convidado pelo global para ser o ministro fictício das Relações Institucionais, o deputado Marcelo Freixo (PSOL) respondeu:

“Kkkkkk”. Criticado por um seguidor, argumentou que o humor “também desestabiliza a tirania”. E completou: “A ação da esquerda no Congresso não tem sido pequena, seja justo”.

Até agora, quem mais incomodou o governo na Câmara e no Senado foi o centrão, que conseguiu emparedar Bolsonaro.

Enquanto isso, a oposição parece não ter ideia de como fazer oposição. Rachada entre siglas que disputam protagonismo, a esquerda mostrou que só consegue se unir no campo da ficção.


Ricardo Noblat: Governo quer digital da esquerda na faca

À procura de outra conclusão para o atentado a Bolsonaro

Sem essa de que Adélio Bispo, o pedreiro desempregado que esfaqueou Jair Bolsonaro em Juiz de Fora, agiu sozinho, por vontade própria e que sofra de doença mental como atestaram 7 peritos indicados pela Justiça Federal.

Busque-se para o caso uma solução plausível que não seja essa, recomendou o general Otávio Rêgo Barros, porta-voz da Presidência. O segundo inquérito feito pela Polícia Federal está perto do fim e o governo se recusa a aceitar seus resultados.

Para o governo, só existe um resultado plausível: ex-filiado ao PSOL, Adélio tentou matar Bolsonaro a mando da esquerda, e ponto final. Do contrário, como justificar a narrativa sustentada até hoje por Bolsonaro e seus devotos de que por pouco a esquerda não o matou?

A narrativa serviu para que o candidato se elegesse, e serve agora para que o presidente governe em oposição à esquerda. Sem a facada, Bolsonaro teria dificuldades para se eleger. Sem a impressão digital da esquerda na faca, terá dificuldades para governar.

Falou-se muito do PT como dependente de Lula, e isso está certo. Os devotos de Bolsonaro resistem a ideia de que ele seja dependente do PT. É o que ele é. Boa parte dos 58 milhões de votos que obteve foi de eleitores que queriam derrotar o PT e não necessariamente elegê-lo.

É de se ver como desatará esse nó o ministro Sérgio Moro, ao qual se subordina a Polícia Federal. Até aqui, ele tem se comportado como um fiel vassalo do presidente.

Calma, dará errado

E viva a Mangueira!

Prognóstico cada vez mais compartilhado pelos cariocas sempre que se fala sobre o futuro do governo de Wilson Witzel, o juiz federal que surfou na onda bolsonarista para se eleger: “Fique tranquilo, não dará certo”.


José Antonio Segatto: Incivilidade política

Podemos ter de viver tempos infaustos para os valores democráticos e o exercício da cidadania

Um importante intelectual alemão, Karl Marx, em 1852, no livro O 18 de Brumário, em perspicaz análise do processo político francês dos anos 1848-51, revela como foram criadas as “circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco (Luís Bonaparte) desempenhar um papel de herói”.

Guardadas as singularidades dos acontecimentos na França da época, posteriormente, nos séculos 20/21, fenômenos com alguma similitude com aqueles se sucederam em outros lugares e situações particulares, até mesmo em tempos recentes. Podemos citar como exemplos, circunscrevendo-nos apenas ao continente americano e à contemporaneidade, as eleições presidenciais que elegeram o agrônomo Alberto Fujimori (Peru, 1990), o coronel Hugo Chávez (Venezuela, 1998), o empresário Donald Trump (Estados Unidos, 2016) e o capitão Jair Bolsonaro (Brasil, 2018).

O caso do Brasil, o mais recente, é deveras ilustrativo desses fatos. Político obscuro e sem qualidades, que durante quase três décadas engrossou as fileiras do baixo clero no Congresso Nacional, Bolsonaro fez carreira de deputado federal por partidos fisiológicos e clientelistas ou de aluguel. Representante do corporativismo militar e do nacional-estatismo, arauto do regime ditatorial e apologeta de seus métodos despóticos e cruéis, manteve sempre a coerência de concepções e a constância de práticas em sua trajetória parlamentar: a demonização da política e o ultraje da democracia, a glosa dos direitos de cidadania e a hostilidade aos valores humanistas, o combate às manifestações identitárias e multiculturais.

O desafio, todavia, é explicitar como um sujeito incivil e rústico, sem projeto, sem estrutura partidária e com recursos limitados, pôde angariar tantos adeptos e obter tamanha votação, que permitiu sua eleição para a Presidência da República de um país deveras complexo.

Inúmeras têm sido as respostas dadas por jornalistas e cientistas políticos, por especialistas e leigos, para compreender o sucedido. Dentre elas, algumas podem ser destacadas:

1) A severa crise econômica e suas sequelas teriam criado insatisfação generalizada.

2) A revelação dos muitos e graves escândalos de corrupção nos diversos níveis do aparato estatal, envolvendo partidos governistas – sobretudo o consórcio PT-PMDB –, associados a práticas fisiológicas, clientelistas e patrimonialistas, teria produzido reprovação indignada do establishment político pela opinião pública. Ademais, seria responsável pelo depauperamento do centro político e pela perda de credibilidade do sistema partidário, permitindo a emergência no cenário político de novos atores.

3) A incapacidade de governos na segurança pública teria propiciado as condições para o aumento exponencial da criminalidade, da violência e da disseminação do medo e da apreensão social.

4) A ineficácia da gestão do Estado e da condução das políticas públicas, concatenada aos malfeitos dos donos do poder, teria criado clima de insatisfação e descrédito sem precedentes da política e dos políticos, dos partidos e das instituições.

5) O ativismo de entidades e movimentos identitários, na busca de reconhecimento, teria desencadeado uma reação conservadora afrontosa, em especial de igrejas evangélicas, em defesa de valores tradicionalistas.

6) Os influxos da onda conservadora e/ou de direita em ascensão na Europa e nos Estados Unidos teriam fomentado a disseminação de concepções extemporâneas e reacionárias: xenófobas, racistas, populistas, nacionalistas e antiglobalistas – em consonância, propalou-se uma atroz persecução a socialistas e partidos de esquerda em geral, além de movimentos identitários, de defesa de direitos civis e/ou humanos. A ira antipetista propagou-se como uma centelha e atingiu a esquerda indistintamente.

Esse conjunto de fatos e fatores teria produzido uma situação de mal-estar sociopolítico de vulto, um verdadeiro estado de anomia e seria mesmo responsável pelo desencadeamento, em 2013-15, de um agressivo e inusitado movimento antissistema, que conseguiu mobilizar grandes contingentes de manifestantes nas ruas e nas redes sociais. Com palavras de ordem “contra tudo o que está aí” e profissões de fé cruzadistas – em resguardo da pátria e da ordem, da família e dos “bons costumes”, de Deus e da civilização cristã – foram aguçados sentimentos elementares e ordinários que estariam latentes e afloraram de maneira impetuosa.

Nesse clima e/ou conjuntura é que teriam sido criadas as condições para a emergência da candidatura Bolsonaro. Apresentado como outsider, antipolítico, salvador da pátria, com uma retórica insolente e beligerante, preconceituosa e regressista, anti-secularista e anticosmopolita, conquistou ampla massa de adeptos dos mais variados estratos sociais. Explorando ardilosamente a mídia eletrônica, reuniu uma legião de tuiteiros, youtubers, blogueiros, etc. – orientados por ideólogos do submundo da internet – numa incomensurável operação de propaganda e proselitismo político-ideológico.

Se as interpretações ou constatações acima expostas forem verossímeis, elas sinalizam que podemos ter de vivenciar, nos próximos anos ao menos, tempos infaustos para os valores e procedimentos democráticos e para o exercício da cidadania. O cargo de presidente da República não enseja, entretanto, per se, prerrogativas de domínio desmesurável e arbitrário – os mecanismos de poder e os meios de exercê-lo tendem a restringir possíveis investidas antirrepublicanas, de insolência política, de ultraje da democracia e de constrangimento de direitos. As garantias institucionais e constitucionais vão depender, contudo, do ativo e engenhoso protagonismo dos agentes da sociedade civil e política, comprometidos com a manutenção do Estado de Direito Democrático, com a publicização do Estado e com as liberdades em sentido lato.

* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp


El País: “A esquerda não volta ao poder se não fizer uma renovação total. É um processo de 8 a 12 anos”, diz James Green

Historiador e brasilianista norte-americano conversa com o EL PAÍS sobre ditadura brasileira e a renovação que o campo progressista terá que enfrentar

Por Felipe Betim, do El País

James Green já foi chamado de "namorado" da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), com quem foi visto passeando nos Estados Unidos em 2017. Ambos se aproximaram quando ela ainda estava na presidência e ele escrevia um livro sobre o militante de esquerda Herbert Daniel, que participou da luta armada durante a ditadura, foi amigo de Rousseff e teve que, numa época em que a homossexualidade era vista como um desvio burguês pela esquerda, reprimir sua sexualidade. Revolucionário e gay: A extraordinária vida de Herbert Daniel foi lançado no Brasil em agosto de 2018 pela editora Civilização Brasileira. Historiador e brasilianista norte-americano, Green estudou ciências sociais na Universidade de São Paulo (USP) no final dos anos 70 e ajudou a fundar o PT em plena transição para a democracia. Hoje, conta, vem ao Brasil ao menos quatro vezes por ano.

Aos 68 anos, o também ativista LGBT e professor de história latino-americana e brasileira da Brown University coordena um movimento internacional nos Estados Unidos para informar sobre a atual conjuntura política do Brasil. "Já temos uma rede com 40 grupos filiados e vamos organizar 100 atividades no aniversario do assassinato de Marielle Franco, no dia 14 de março", explica. "E vamos lançar um observatório em inglês sobre a democracia no Brasil, para o público norte-americano que quer acompanhar a situação. Vamos fazer um trabalho no Congresso americano sobre o Brasil e organizar um lobby popular", conta. "Estive em Washington para falar com assessores de congressistas que estão muito interessados no Brasil, e muito preocupados com o que está acontecendo", acrescenta ele, que costuma dizer que o presidente Jair Bolsonaro "é 10 vezes pior" que seu homólogo Donald Trump. "E isso assusta as pessoas".

O historiador recebeu o EL PAÍS para uma conversa na quinta-feira, 21 de fevereiro, véspera do lançamento, para o qual foi convidado, de um site do Ministério Público Federal sobre Justiça de Transição no Brasil, um conjunto de medidas para reparar as violações de Direitos Humanos cometidas pelo Estado durante a época da última ditadura militar (1964-1985). Estudioso sobre esse período, Green acredita que as forças conservadoras que fizeram o impeachment de Rousseff e depois impulsionaram a candidatura do hoje presidente Jair Bolsonaro são as mesmas que patrocinaram o golpe de 1964. "É horrível ver tudo de novo", afirma. Para superar essa conjuntura, prega uma renovação total da esquerda, algo que ele prevê que demorará de 8 a 12 anos.

Pergunta. Na resistência ao Governo Donald Trump, uma nova esquerda surgiu nos Estados Unidos no ano passado. O que a esquerda brasileira pode aprender com ela?
Resposta. A primeira resistência a Trump foi quando ele não conseguiu músicos para a posse dele. E, depois, as mulheres organizaram milhões de pessoas, e organizaram pela base, em todos os distritos eleitorais. Houve campanhas de base em todo o país. Essa resistência refletiu nas eleições de 2018, quando mais pessoas progressistas foram eleitas com capacidade de colocar uma nova pauta de ideais sociais-democratas —não são mais que isso, mesmo o Bernie Sanders não é um revolucionário.

P. Como essa resistência deve ser organizada no Brasil?
R. Fiquei surpreso que [Fernando] Haddad tenha conseguido 45% dos votos. Mas fiquei ao mesmo tempo feliz e decepcionado, porque as pessoas acordaram muito tarde. Já estava evidente que Haddad iria para o segundo turno contra Bolsonaro, mas só depois é que as pessoas decidiram sair na rua para oferecer café e bolo para tentar virar voto. Ao invés de entender que era necessário fazer campanha eleitoral para esquerda, de qualquer partido. De todas as formas, 45% é muito se considerada a conjuntura. E uma unidade vai ser forjada concretamente ao longo dos próximos quatro anos nas práticas e frentes contra as medidas do Governo. Entendo que os partidos queiram manter seu perfil, sem querer uma frente única forte, mas se as pessoas não se unirem não vão derrotar esse Governo.

P. O que a esquerda deve trazer de novo, de propositivo?
R. Precisa pensar em como organizar as pessoas terceirizadas, as que não têm garantias de emprego, que estão marginalizadas pela maneira que o capitalismo quer desconstruir os sindicatos e uma relação de emprego estável para explorar mais as pessoas. Não existem soluções fáceis, é um processo que temos que entender, enfrentar e responder. Mas esses setores têm que ser protegidos pela sociedade. Nos EUA, uma saúde pública universal é fundamental. Porque se você é terceirizado, é um freelance, você não ganha um seguro de saúde como antigamente. Então, o Estado tem que oferecer essas proteções para as pessoas vulneráveis. Tem que garantir uma aposentadoria digna. Não vai ser fácil. O sistema antigo de financiamento da Previdência tem que ser repensado. E, neste país, os ricos não pagam impostos, quem paga é pobre e classe média. Tem que inverter isso.

P. A esquerda, não apenas a brasileira, está hoje muito engajada nas chamadas pautas identitárias. Fala-se muito sobre racismo, LGBTfobia, feminismo, questões indígenas... Mas muitos acusam esses setores progressistas de serem elitistas e sectários, por supostamente focar em pautas que não têm apelo popular, esquecendo de projetos para áreas como saúde e educação, e afastando parte do eleitorado. Concorda com essas críticas?
R. É falso, porque as campanhas de Guilherme Boulos (PSOL) e Fernando Haddad (PT) tiveram todas essas questões. Acho que a esquerda, neste momento em que está na oposição, pode cometer um grande erro de pensar que, como a direita está mobilizando sua base por valores conservadores religiosas, nós precisamos esquecer e abandonar as questões sobre a defesa dos direitos humanos e democráticos da sociedade. Você acha que não há homossexuais da classe trabalhadora? Claro que sim, e muitos. Tem em todos os setores sociais. Será que a mulher trabalhadora não é vitima de assédio e violência? Claro que é vitima, e muito. São questões totalmente integradas à luta por uma sociedade justa, que não é somente uma sociedade onde a pessoa ganha um salário mínimo de 2.000 reais. É um conjunto de necessidades para uma vida digna de qualquer pessoa. Todas as famílias brasileiras têm filhos e filhas lésbicas e gays. A maioria da população é afrodescendente e sofre discriminação todos os dias, mesmo com o discurso de democracia racial. Os povos indígenas, que são os donos dessas terras, estão ameaçados a tal ponto que suas lideranças estão tentando ter um diálogo com o novo Governo, para evitar um genocídio total. Então, dizer que são questões secundárias é não reconhecer a realidade brasileira.

P. Como esse debate se dava na época da transição para a democracia?
R. Havia setores da esquerda que diziam que havia uma única luta contra a ditadura e que todo mundo tinha que se unir, que as outras questões eram menores. Era um debate falso porque as pessoas não perceberam que a abertura implicava em democracia para todo mundo, implicava no direito das mulheres de começar a conversar sobre sua opressão, em que os negros tivessem espaço pela primeira vez criticar o racismo da sociedade brasileira, em que os LGBTs levantassem uma pauta política. Lutar pela democracia era lutar pelas liberdades democráticas para todo mundo, não só para os trabalhadores do ABC. Mas muitos utilizavam rótulos marxistas antigos do século XIX aplicado para o final do século XX, e agora estamos no XXI.

Hoje o PSOL consegue articular melhor essas questões, mas ainda é minoritário no campo da esquerda. O movimento Ele Não foi muito importante, acho que foi uma das maiores mobilizações da história do país. E é claro que isso provocou uma reação das forças conservadoras. O século XXI é o século de eliminar todas essas discriminações. E a onda Bolsonaro representa uma reação a 50 anos da esquerda lutando pelos seus direitos. Acredito que vamos acumular forças para uma contraofensiva, mas não será fácil e nem será amanhã. E, neste processo, as pessoas vão começar a perceber, como já está acontecendo com os filhos de Bolsonaro, que são populistas de direita autoritários que utilizam o discurso anticorrupção, mas são tão corruptos quantos os setores que estão criticando.

P. Mas basta se aproximar desses novos movimentos? Ou a esquerda precisa também renovar seus próprios quadros?
R. A esquerda não vai voltar ao poder se não fizer uma renovação total. É uma ilusão. Acho que é um processo de 8 a 12 anos. Se a esquerda não conseguir se recompor e incluir de maneira inteligente setores sociais, não vai ganhar a eleição. A derrota foi da esquerda como um todo. O PT vai ser fundamental nessa resistência, ele tem um apoio social que outros setores da esquerda ainda não possuem. E nós vamos recompor a esquerda na resistência contra o governo Bolsonaro e governos militares e neoliberais que vão vir depois. Bolsonaro pode se reeleger, mas Moro também pode ser presidente, Mourão pode ser presidente... Pode haver uma crise e os militares tomarem o poder. Bolsonaro é um cara muito fraco nesse movimento, ele não está preparado. Mas há um processo por trás dele.

P. Como vê a saída de Jean Wyllys do Brasil?
R. Convivo com ele, e me sinto triste porque uma pessoa tão engajada e comprometida que se sente obrigada a sair do país pode sentir como se isso fosse uma derrota. E falei para ele algo muito importante. Quando as pessoas que resistiram durante a ditadura deixaram o país, eles fizeram do exílio uma resistência. Então ele vai poder, fora do país, conversar sobre a realidade brasileira. Ele viveu isso, foi congressista três vezes, foi ameaçado, foi alvo de fake news... Ele tem capacidade de explicar essa realidade, porque ele viveu em carne e osso. Ele vai ser ainda maior no exílio que dentro do país. Mas, claro, tem que se readaptar, conhecer seus rumos... Ele não é o único exilado, e outras pessoas vão sair. Não é um exílio dourado, é muito isolamento e angústia.

P. Qual a importância de o Ministério Público lançar um site sobre Justiça da Transição no contexto político atual?
R. Estamos preocupados com a possibilidade de o novo Governo tirar os sites que já existem, como os arquivos de memórias reveladas, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), os arquivos do DOPS dos Estados... Então, a iniciativa de lançar um site novo, que vai recuperar, registrar e oferecer para o público informação sobre esse processo da Justiça de Transição, é muito importe. No Brasil a história é bem diferente das de outros países da América Latina, porque foram quase 15 anos de transição democrática e os militares conseguiram controlar esse processo. A Anistia perdoou agentes do governo que cometeram graves violações de Direitos Humanos, algo totalmente diferente da realidade argentina, por exemplo. Lá, o processo foi muito rápido, porque o Governo era brutal, torturava e matava muito mais gente. Foi um Governo de seis anos derrotado pela guerra das Malvinas, e imediatamente houve investigação sobre os crimes da ditadura. No Chile, houve o plebiscito de 1990 que Pinochet perdeu, e logo depois fizeram a comissão para investigar os crimes da ditadura. No Brasil, os anos 80 e 90 foram um momento de organização de novos partidos políticos, de canalização de toda uma energia anterior que lutava pela democratização para os novos movimentos sociais. Na Argentina e Chile, partidos que foram proibidos se reorganizaram rapidamente. Já estavam preparados, com projetos de Governo.

P. Essa demora em começar a falar do passado tem a ver também com a crise econômica e inflacionária que assolava o Brasil no momento da transição?
R. Sim, era uma crise econômica muito forte e um setor das esquerdas optou, por uma questão pragmática, e já derrotado pela Lei da Anistia, por enfatizar possibilidades novas e construir uma democracia com novos partidos e novos movimentos sindicais e sociais. Mas deixaram de lado a revisão do passado. E outros setores do PCB, que entraram no MDB, já não estavam interessados em revisitar o passado, com exceção de alguns casos pessoais. Então os familiares das vítimas e as pessoas mais comprometidas não tiveram um apoio social para levar o processo adiante. Anos depois houve uma acumulação de forças para fazer as várias comissões.

P. Muitos comparam o número de mortos da ditadura brasileira com as cifras das ditaduras argentina e chilena, para dizer que aqui não houve ditadura. Por que aqui essa narrativa persiste? Acredita que os mecanismos de censura e propaganda do dos Governos militares no Brasil eram mais sofisticados?
R. O fato de a ditadura brasileira ter durado 21 anos e ter mudado as regras do jogo para se manter no poder, manipulado muito a situação, facilitou a falta de clareza das classes médias sobre a natureza da ditadura. Também tem o fato de que menos pessoas foram atingidas diretamente. O Brasil é muito maior que a Argentina, onde a repressão foi concentrada em Buenos Aires. Lá existe uma tradição muito forte de luta e resistência, enquanto que no Brasil uma parcela muito menor resistiu e durante um processo muito longo. E também houve a capacidade, tanto da ditadura como da mídia, de manipular a informação.

P. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) contabilizou 434 mortes causadas pelo Estado brasileiro. Mas foi na ditadura que, por exemplo, os esquadrões da morte mais aterrorizaram favelas e periferias. E também populações indígenas inteiras foram dizimadas. Acha que a história da ditadura ainda não está completa?
R. A história foi contada num primeiro momento por exilados, pessoas que estiveram envolvidas na luta armada. Então óbvio que eles vão enfatizar a história deles. Mas, nesses 21 anos de ditadura, a polícia e os coronéis do interior tiveram toda a liberdade para fazer o que queriam. Entre os camponeses, houve massacre atrás de massacre de pessoas que lutavam pela sua sobrevivência. A política do Governo Médici de abrir a Transamazônica levou a massacres de povos indígenas. Estamos vendo isso agora, mas não havia registros sobre essa situação. A mesma coisa sobre a questão LGBT. Não é que não existia repressão contra os LGBT antes do golpe, mas com o Governo censurando as noticias, com a licença para a polícia fazer qualquer coisa, havia uma violência muito grande contra esse setor que seria mais difícil de ocorrer durante o Governo democrático. O conceito da CNV, que foi o correto, foi o de apurar, tentar saber quais foram as pessoas que participaram da tortura, tentar encontrar mais informação sobre os desaparecidos, denunciar o número de colaboradores do regime... Mas eles tiveram uma missão mais restrita. Eu e outras pessoas que participamos como assessores conseguimos ampliar leque e mostrar que a repressão não foi só contra o Partido Comunista, mas contra a sociedade como um todo. Havia censura e impunidade da polícia quando quiseram matar negros e gays nas ruas e favelas.

P. Qual é a relação que enxerga entre violações que já ocorriam antes e durante a ditadura com as violações que continuam ocorrendo durante o período democrático, inclusive durante os Governos petistas? A construção de Belo Monte significou remoções forçadas de povos inteiros, como na ditadura. O fato de a história não ter sido bem contada influencia?
R. Não é que não foi bem contada.O processo de transição, de conciliação de forças políticas para manter-se no poder, evitou um questionamento mais profundo. Como houve a anistia para torturadores, a polícia aprendeu que nada acontece se você torturar um negro e até matar. Se mata, vou dizer que ele tentou me matar primeiro. Há impunidade por causa da falta de um balanço sério sobre as implicações das violações de Direitos Humanos durante a ditadura. Houve essa continuidade, e uma continuidade de uma elite que se manteve sempre no poder e manipulou a transição e o processo democrático. E uma certa continuidade de práticas de clientelismo, de acordos de corrupção que se tornaram mais importantes que os programas para o país. O PT também se adaptou a essa realidade ao longo do tempo no poder, fazendo uma série de coisas que foram debilitando sua legitimidade na sociedade. O mensalão significou ganhar uma maioria, que não conseguiram nas urnas, com pessoas que não tinham compromissos ideológicos.

P. Quem foi Herbert Daniel? Foi um militante gay numa época em que nem a esquerda abraçava essa pauta?
R. É mais complicado. Num primeiro momento ele era um jovem estudante querendo fazer faculdade de Medicina. No último ano de colégio ele descobre que é gay e descobre um mundo clandestino de pessoas que se encontram na rua para ter relaciones sexuais... Mas, ao mesmo tempo, ao entrar na faculdade, ele descobre o mundo da esquerda contra a ditadura. E ele percebe que não tem espaço dentro dos grupos para ser gay, que há uma marginalização. Então ele opta por reprimir sua sexualidade e se compromete com a luta armada. Em determinado momento ele se apaixona por um companheiro e foi Dilma Rousseff quem o incentivou a se declarar para essa pessoa. O cara não gostou, disse que podiam continuar amigos, mas que não era gay. E isso foi um golpe muito forte. Ele percebe que, se queria fazer a revolução, então não dava para manter uma vida homossexual.

Através de pessoas que o ajudam a se esconder em Niterói, ele conhece um casal. E o homem desse casal, Claudio Mesquita, era bissexual. Ficaram grandes amigos e, quando fogem para a Europa, começam uma relação. Foram companheiros durante 20 anos. Então foi no exílio, quando já não era militante, que ele começa a repensar tudo e perceber que não pode mais reprimir sua sexualidade. Em Paris ele passa a trabalhar como porteiro e assistente de uma sauna gay e a viver dentro desse mundo. Começa a pensar e a escrever suas memórias. Ao voltar, em 1981, ele publica suas experiências na luta armada, sendo bastante crítico com relação às estratégias da esquerda e colocando suas ideias com relação à homossexualidade.

Ele contava sobre sua vida sexual, algo bastante chocante para esquerda, que considerava a homossexualidade um desvio burguês, uma preocupação pequena burguesa sobre a sexualidade. Achava ia acabar a homossexualidade depois da revolução... A sociedade brasileira ainda era muito conservadora nos anos 60. Havia essa juventude que estava rompendo com valores tradicionais conservadores, mas ela mesmo vinha de famílias muito conservadoras. Quando Herbert Daniel volta para o Brasil, ele vai participar da campanha eleitoral de um ex-guerrilheiro para deputado estadual no Rio e vai introduzir não somente a questão homossexual como também a ambiental, que a esquerda ainda achava que era uma preocupação dos países imperialistas. Mesmo hoje muitos argumentam que questões de desenvolvimento são mais importantes que o meio ambiente. Belo Monte é um exemplo desse conflito.


Candido Mendes: O Brasil viúvo da esquerda

A desaparição das esquerdas no Brasil só ecoa uma perspectiva global dos nossos dias. É só deparar a ruína do socialismo francês, despencado para o quinto lugar nas opções eleitorais do país, ou o esvaziamento espanhol e a agregação à chanceler Merkel dos contingentes restantes do que poderia ser a sua contraposição na Alemanha.

Verificamos, ao contrário, esta cumulação das direitas em superdireitas, e toda a série de novos extremos partidários ao redor do mundo. É o que leva, inclusive, em tal radicalização, a confundir estabilidade com mudança, e à confusão de programas como o do governo Bolsonaro. Só deparamos o entulho do setor público, ao se cogitar, hoje, da sua privatização. Claro, como já viram os especialistas, ela envolve uma primeira desconcentração dessas atividades e, por força, a gradação dos setores a virem ao domínio particular. Não tem o governo ainda a noção da escalada desestatizante, e dos seus círculos viciosos, senão de seus bloqueios. Além disso, o Executivo não se decidiu ainda sobre a entrada, ou não, do capital estrangeiro nessa nova frente, e do volume e impacto de seu aporte.

Ressente-se de qualquer novo protagonismo de esquerda nessa alternativa, tanto se depara a evanescência do PT e de seu corpo político. Só se multiplicam os donatários das antigas siglas, ciosos da sua independência, e hoje prisioneiros de um irredutível divisionismo programático. Fica a interrogação sobre Ciro Gomes, na expectativa de seu retorno, na retirada siberiana a que se voltou. Mas expõe-se a um protagonismo obsoleto, numa torna descompassada.

Nenhuma nova liderança emerge para polarizar o desempenho que Lula encarnou, e agora vemos o abate do personagem, mas a deixar intactos a relevância de seu papel na história brasileira e seu carisma incontornável. O quadro é implacável para que nele se possam arriscar novas ambições políticas. E é sobre esse cenário falseado que Bolsonaro pode —até quando? —desfrutar de uma imunidade histórica.

*Candido Mendes é membro do Conselho das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações


El País: Um ano após derrota histórica, esquerda italiana elege líder para tentar voltar à essência

Atual governador do Lazio, Nicola Zingaretti arrasa nas primárias do PD e tentará criar um novo esquema de alianças para mudar o rumo da esquerda no país

O Partido Democrático (PD) da Itália enterrou o renzismo e iniciou um novo capítulo político em que pretende recuperar o espaço ideológico perdido nos últimos anos. Nicola Zingaretti, atual governador da região do Lázio, será o novo secretário-geral da formação socialdemocrata italiana. Cerca de 1,7 milhão de pessoas o elegeram em primárias abertas que superaram em muito as previsões de participação, que eram pessimistas. Antes da contagem final, Zingaretti tinha o apoio de mais de 65% dos votantes, número que permite evitar uma assembleia fratricida e impor um programa estratégico e ideológico que virará definitivamente a página de uma etapa catastrófica nas urnas. “Hoje é o começo de um caminho difícil. Vamos abrir um processo constituinte para um novo PD”, afirmou o novo secretário-geral, anunciando uma mudança de rumo total no partido.

Faz exatamente um ano que a formação de centro-esquerda enfrentou uma enorme crise política com o pior resultado eleitoral desde sua fundação, em 2007 (perdeu sete pontos em relação a 2013). As eleições de 4 março do ano passado mostraram uma desconexão com o eleitorado de esquerda e a profunda aversão de grande parte da base social do partido contra o então secretário-geral, Matteo Renzi. Houve decepção com a virada ideológica, a falta de respostas aos problemas reais dos cidadãos. Muitos de seus eleitores ficaram em casa naquele dia. Outros optaram por uma resposta mais simples e direta, como aquela proposta pelo Movimento 5 Estrelas (M5S).

O ultimato que lançaram neste domingo, 3, esses mesmos eleitores, considerando o perfil de seu novo secretário-geral, é claro: voltar à essência de esquerda, abandonar a vertente mais populista e tentar cicatrizar as feridas com todas as facções às quais Renzi declarou guerra. Ontem, no entanto, o toscano, cujo candidato ficou em terceiro lugar, foi o primeiro a dizer que é hora de acabar com o “fogo amigo”.

Zingaretti (de 53 anos), muito mais próximo das correntes do antigo Partido Democrático Socialista (PDS) e aberto à exploração de novas estratégias, tem um caráter aberto e de diálogo. A ideia do irmão do comissário Montalbano –o ator principal da série de maior audiência, Luca Zingaretti– é construir uma nova grande aliança que percorra todo o espectro de esquerda e chegue até o +Europa, o partido de Emma Bonino. Ele mesmo se encarregou de lembrar disso em suas primeiras palavras enquanto a contagem continuava: “Um partido fundado em duas palavras: unidade e mudança”.

Uma série de movimentos de cidadãos que se opõem ao Governo e ao autoritarismo crescente que atravessa a Itália tomaram as ruas há semanas. A revolução prometida pelo M5S há um ano não veio e o país caminha para uma recessão. No sábado, além disso, cerca de 200.000 pessoas se manifestaram em Milão contra Salvini. A esquerda agora se vê capaz de cavalgar esse mal-estar com um perfil como o de Zingaretti, que não tem inconvenientes em voltar aos velhos esquemas ideológicos, abraçar o ecologismo, admitir que o PD decepcionou profundamente seus eleitores e agir para criar uma nova comunidade. “Foram primárias para a Itália. E isso reativa uma esperança para o futuro. Centenas de milhares de pessoas confiaram em nós hoje e seremos dignos dessa confiança. Eu penso nos desiludidos. Naqueles que não foram votar um ano atrás e hoje estavam nas urnas. Naqueles que nos criticaram; naqueles que, não confiando em nós, votaram em outras forças políticas que expuseram melhor suas ideias. Penso neles porque vejo neste resultado um primeiro sinal. Construiremos um novo PD e uma nova aliança”, disse.

Um dos grandes debates que enfrentará o novo secretário-geral, que recebeu o apoio explícito do ex-primeiro-ministro Paolo Gentiloni, é a possibilidade de chegar a um pacto com o M5S. Uma parte importante do partido considera que essa opção deveria ser explorada quando os atritos no Executivo, que os grilinos formam com a Liga, provocarem uma possível crise de Governo. Outros acreditam que, precisamente, é o momento de recuperar todos os votos roubados em sua própria casa por Luigi Di Maio. Por enquanto, Zingaretti já começou a enviar uma mensagem dirigida aos mais desfavorecidos e aos milhões de pobres que o M5S conquistou nas últimas eleições. “Dedicamos eles a vitória nessas primárias.”


Bruno Boghossian: Rejeição de Bolsonaro a autocratas depende da cor da boina do ditador

Presidente ataca esquerda por crise na Venezuela enquanto festeja ditaduras de direita

No discurso que fez ao lado de Juan Guaidó no Planalto, Jair Bolsonaro não usou a palavra “ditadura” para descrever o regime de Nicolás Maduro. O presidente brasileiro, como se sabe, até tem simpatia por governos autoritários. A razão da crise no país, ele sugeriu, é o fato de a esquerda estar no poder.

Bolsonaro resolveu contaminar o encontro com sua obsessão ideológica. Ignorou um alerta feito dois minutos antes pelo próprio convidado. “Não é certo que exista um dilema entre uma ideologia e outra. O dilema na Venezuela é entre democracia e ditadura”, afirmou Guaidó.

O presidente brasileiro até se comprometeu a trabalhar para restabelecer a democracia no país vizinho, mas também quis culpar as gestões petistas pelo apoio à ditadura chavista e disse que o Brasil quase seguiu o caminho da Venezuela.

Nunca houve dúvidas de que Bolsonaro usaria o governo como palanque para embates políticos com a esquerda. A referência ao regime venezuelano é singular porque, dois dias antes, o presidente se derramou em elogios a ditadores de direita.

Bolsonaro explorou um evento oficial na usina de Itaipu, na terça (26), para celebrar os generais do regime militar brasileiro e fazer uma homenagem ao paraguaio Alfredo Stroessner —corrupto, líder de um regime torturador e acusado de pedofilia.

O presidente gosta de jogar confetes sobre autocratas. Em 2006, quando era deputado, ele tentou usar a Embaixada do Brasil no Chile para enviar uma mensagem ao neto do “saudoso general Pinochet”. Em vez de condenar a perversidade de qualquer governo autoritário, Bolsonaro só enxerga a cor da boina do ditador.

*
A indicação da especialista Ilona Szabó para o conselho de política criminal do Ministério da Justiça indicava que Sergio Moro estava disposto a escutar opiniões divergentes. A revogação dessa escolha “diante da repercussão negativa” mostra que o governo decidiu ouvir só um lado: a gritaria das redes sociais.


Cristovam Buarque: As curvas da história

A história da humanidade e de cada país segue rumo, com avanços e retrocessos, em direção à eficiência e à justiça. O papel dos políticos conservadores é dificultar essa marcha, como fizeram adiando a Abolição da Escravatura. O papel dos políticos progressistas é apressar a marcha em direção ao futuro. Mas a história faz curvas, independentemente da vontade dos políticos. Nos últimos anos, o avanço técnico forçou uma curva com o surgimento do computador, da inteligência artificial, da robótica e das comunicações instantâneas. Outros movimentos fizeram o mundo ficar global na economia e a sociedade ficar corporativizada na defesa de interesses individuais; o cidadão virou consumidor; o crescimento econômico ficou limitado pela ecologia. Mas, apesar da clareza dessas mudanças na realidade, muitos ainda não percebem a curva feita pela história; continuam prisioneiros de ideias anteriores, querem o avanço em uma linha reta que já não existe.

Não entendem, por exemplo, que o Estado gigante defendido pela esquerda soviética e social-democrata ficou ineficiente na gestão e insensível às necessidades do povo, criou uma classe privilegiada entre seus dirigentes; e tem custo que rouba recursos da sociedade obrigada a pagar impostos elevados; e, ainda, incentiva a corrupção. A curva da história fez o Estado gigante ser um dinossauro político, apesar disso, muitos dos que se dizem progressistas continuam presos à ideia do Estado burocrático, caro e divorciado do povo.

Tampouco entendem que a justiça social e o bem-estar só podem ser construídos sobre economia eficiente. Até recentemente, a justiça se fazia dentro da economia, na repartição entre salário e lucro. Hoje a maior parte da população está fora da chance de ser incluída na economia formal, porque a curva da história eliminou empregos e exige formação profissional dos empregados. O desafio dos que buscam justiça social é desfazer a apartação, que separa de um lado os incluídos e, de outro, os excluídos. O caminho para isto está na educação de qualidade igual para todos, o filho do pobre na mesma escola do filho do rico. Mas os que não perceberam a curva da história esquecem os analfabetos e os que não terminam o ensino médio com qualidade, defendem a ilusão de universidade para todos, sem lutar pela erradicação do analfabetismo, pela educação de base de qualidade igual para todos e por uma reforma na universidade para que seus formandos estejam preparados para o dinâmico mundo do conhecimento em marcha.

A curva na história, que reduziu drasticamente a taxa de natalidade e aumentou a esperança de vida, exige reforma no sistema previdenciário; a velocidade do avanço técnico exige reforma nas regras das relações entre o capital e o trabalho. Mas os progressistas amarrados nostalgicamente às ideias do passado, no lugar de propostas progressistas que construam sustentabilidade para as próximas gerações, que eliminem privilégios de alguns grupos e colaborem para dinamizar a economia, preferem ficar contra as reformas que a curva da história exige. Estes progressistas não entendem ainda a verdade dos limites ecológicos que impedem a promessa de igualdade com alto consumo para todos.

O socialismo soviético acabou porque o Partido Comunista não entendeu a curva na história, ficou prisioneiro de ideias que se divorciaram da realidade na segunda metade do século XX. O mesmo acontece com a velha e tradicional esquerda brasileira, que não percebeu ainda a nova revolução tecnológica e social do mundo global e informatizado, com o agravante de se comportarem assim pelo reacionarismo de ideias superadas, mas também pela forte atração oportunista pelos votos dos eleitores seduzidos com falsas promessas. Neste ponto, esquerda e direita se unem, caindo na tentação populista, por oportunismo eleitoral ou por falta de conhecimento e de percepção da história e suas curvas. Foram muitos os erros que levaram os democratas-progressistas brasileiros a sofrerem a derrota na última eleição, mas o maior foi não perceber a curva da história nas últimas décadas no mundo.

O discurso de uma nova esquerda deve aceitar a desigualdade dentro de limites que ofereçam o mínimo para uma vida digna a todos, impeça o consumo que destrói o meio ambiente; aceite os limites do Estado e da Natureza, entenda a realidade da globalização e do potencial do avanço técnico; e adote o compromisso com a educação de máxima qualidade e igual para todos. (Correio Braziliense – 12/02/2019)

Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília) e ex-senador

http://www.pps.org.br/2019/02/12/cristovam-buarque-as-curvas-da-historia/


Eliane Cantanhêde: O Brasil em choque

Na guerra entre esquerda e direita, que só piora, quem vence é o descaso e a morte

Este ano de 2019 começou com 339 mortos e desaparecidos em Brumadinho, dez lindos talentos dizimados no Flamengo, sete vítimas da tempestade no Rio, 13 mortos num único tiroteio também no Rio, o presidente da República internado em São Paulo em função de uma facada brutal, o ex-presidente mais popular da história preso e condenado pela segunda vez por corrupção e os senadores dando vexame ao vivo e em cores.

O Brasil está perplexo, irritado, desanimado e a palavra-chave por trás das três catástrofes foi dada pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge: “Estamos vendo fatos e desastres evitáveis, preveníveis e precisamos estar atentos a eles”. De todas as tragédias, a maior tragédia é descobrir que todas aquelas perdas seriam perfeitamente “evitáveis” se todos e cada um cumprissem com responsabilidade suas funções.

O que foi Brumadinho? De certa forma, uma repetição espantosa do crime de Mariana, em que setor público, companhias privadas e legisladores se embolaram numa valsa macabra de descaso, negligência, omissão, quem sabe embalada pela velha e arraigada corrupção. Uma represa ultrapassada, fiscalização precária, alertas frágeis e ignorados, refeitório e administração como alvo diretos. Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas daqueles que foram soterrados, agonizando na lama.

O que foi o fogo voraz no Ninho do Urubu? De certa forma, uma repetição aterrorizante do que ocorreu na Boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Mete-se um monte de jovens numa arapuca e lá se vão os craques mais promissores e saudáveis universitários cheios de sonhos. Locais precários, fechados, sem alvará, sem fiscalização. E o CT do Flamengo com pedido de interdição ignorado desde 2017.

Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas daqueles que seriam a saída para o futuro e arderam em chamas, sem chance de escapar.

O que foi o temporal que matou sete pessoas na cidade maravilhosa? A história anunciada de desabamentos, destruição e mortes que se repete a cada ano, a cada verão, a cada temporal, embalada pela incapacidade dos governos, pela má-educação da população, por erros que se eternizam.

Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas daqueles que afundaram na água, asfixiados, impotentes para reagir.

O que foi a morte dos 13 bandidos no bucólico (e perigoso) morro de Santa Tereza? Armados até os dentes e cada vez mais audaciosos, eles montaram um bunker para reagir à polícia. Foram dizimados, na maior chacina de criminosos desde 2007 no Rio. Por trás dessa única cena, uma realidade carioca e nacional: a violência fora de controle. Não se combatem as causas, se passa a eliminar o efeito. Na “nova era”, vão ter de matar milhões de bandidos. Uma carnificina.

Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas das vítimas daqueles criminosos, mas também os dos próprios criminosos mortos. Por trás de cada um, provavelmente há a história de uma criança sem futuro.

Nós, a Nação dessas mães, pais, avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas de toda essa tragédia coletiva, nos perguntamos: onde foi que erramos? São muitas respostas, uma dor que dói na alma e estremece o corpo, mas uma coisa é certa: os representantes do povo, os funcionários do povo e quem deveria proteger o povo estavam mais preocupados em combater os adversários do que garantir a segurança e o bem-estar das pessoas.

Na guerra entre direita e esquerda - que não acabou, só piora -, os vencedores são o descaso, a incompetência, a corrupção e a impunidade. O Brasil está em choque.