esquerda democrática

Ricardo José de Azevedo Marinho: O sutil desprezo de Biden a Bolsonaro

Como se sabe, não há protocolos estabelecidos para reuniões ou conferências de Zoom, ou para cúpulas virtuais de chefes de Estado. Há meses atrás, elas praticamente não existiam. Nem é preciso dizer que houve encontros entre dois ou mais líderes em videoconferências, mas as cúpulas são outra coisa. São encontros onde os governantes de seus países podem se encontrar, ouvir uns aos outros, trocar declarações formais e manter diálogos informais.

Portanto, por si só, a forma como Bolsonaro participou da Cúpula do Clima convocada por Joe Biden, apesar de não ser grave, é no mínimo complicada. Se o presidente brasileiro decidiu que não estava interessado em ouvir as intervenções de seus colegas — com exceção talvez de Biden e quiçá Kamala Harris —, não há regra escrita ou não escrita que ele tenha violado. Claro: ele não foi muito cortês ou respeitoso com os outros vinte chefes de Estado ou de governo — além dos participantes não governamentais — que intervieram no debate. Mas talvez o presidente brasileiro não tenha entendido que deveria ouvir os outros se esperava que eles o ouvissem. Não se tratava de turnos de falas, mas sim de uma mesa redonda. É como se a cúpula tivesse sido presencial, Bolsonaro só esteve presente na sala para sua própria participação.

É verdade que, em outros debates que poderiam ser assemelhados a este — com dificuldades —, os primeiros líderes não se ouvem pessoalmente. É o que ocorre, em particular, no debate geral da Assembleia Geral da ONU no final de setembro de cada ano em Nova York. É bem sabido que, com exceção dos primeiros dez ou quinze oradores, na sequência não há sequer um chefe de Estado, nem mesmo chanceleres, no grande salão da Assembleia.

Tampouco é grave que Bolsonaro tenha feito um discurso totalmente oposto às balizas da nossa política externa, em uma palavra, pró-mercado. Ninguém mais espera muito dele; todos os seus colegas já sabem que o presidente brasileiro está focado nos assuntos internos, que só se interessava pela esfera internacional por ocasião de Trump. Dito de forma clara: não importa muito o que diz ou deixa de dizer.

Mas existe uma tradição nessas questões. O Brasil e os Estados Unidos frequentemente participam de várias cúpulas juntos, como a OEA e vários outras. Não me lembro de nenhuma em que o presidente dos Estados Unidos, principalmente se fosse o anfitrião, não tenha estado na sala quando o brasileiro falava. Minha memória pode falhar, mas pelos mais de quarenta anos em que tenho seguido esses tópicos — eu duvido.

Por isso é grave — agora é — que Biden não estivesse presente durante a intervenção de Bolsonaro. Todos os sábios que previram que não haveria consequências dos vários desprezos de Bolsonaro a Biden por ocasião da eleição norte-americana, por ser um profissional rodeado de profissionais, devem reconhecer que alguém assim não está ausente da “sala virtual” sem saber a quem não vai ouvir. Biden não estava, com pleno conhecimento de causa.

Segundo consta, quando Bolsonaro se conectou à transmissão Biden já não estava mais presente na reunião. O presidente democrata deixou seu lugar após ouvir o representante da ONU e os chefes de estado de China, Índia, Reino Unido, Japão, Canadá, Bangladesh, Alemanha, França, Rússia, Coreia do Sul, Indonésia, África do Sul, Itália e Ilhas Marshall. Biden saiu pouco antes de ouvir Alberto Fernández, da Argentina, o primeiro presidente ibero-americano a falar na cúpula.

Existem níveis entre os países. Pelo menos para os Estados Unidos, o Brasil pertencia ao nível do grupo descrito. Agora ele está na companhia do Argentina, do México e das outras “repúblicas irmãs”. Como Barack Obama sempre disse, as eleições têm consequências; decisões de política externa também.

*Professor da Unyleya Educacional e do Instituto Devecchi


Luiz Werneck Vianna: A hora e vez da esquerda democrática

Somos testemunhas ainda nessas primeiras décadas do século de uma grande transformação apesar de não a sentirmos, tal como no movimento da terra em suas rotações, expressão de Joaquim Nabuco, e já iniciamos, embora ainda tateantes e inconscientes o começo de uma nova era. Contudo, dos anos 1980, de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, retomados por Donald Trump no nosso século, foram feitas vigorosas tentativas no sentido de parar a roda da história e fazê-la girar para trás, tanto nos esforços de nos devolver aos nacionalismos outrora semeados pelos estados-nação como em preservar a ideologia produtivista do neoliberalismo. Esse foi um tempo de desmonte de instituições e de direitos, de esvaziamento de organizações internacionais, como a ONU, de tentativas de invalidar a União Europeia (caso do brexit inglês) de depreciação da democracia e de suas formas de representação política, com a ressurgência anacrônica do populismo, inclusive em alguns casos na sua versão fascista.

Vários marcadores denunciam que tais esforços não têm logrado os resultados que deles se esperavam, quer por que se defrontam com obstáculos derivados das suas próprias ações na medida em que edificaram uma sociedade de risco, não só com a proliferação dos artefatos de guerra nuclear como também pela depredação do meio ambiente expondo a sociedade humana a uma sucessão de epidemias letais, quer por que têm encontrado resistência política por parte de partidos, movimentos sociais, especialmente entre os jovens, governos e religiões, como no caso forte da igreja católica.

De outra parte, as desigualdades sociais que se extremam no período neoliberal, expostas na monumental pesquisa do economista Thomas Piketty, esgarçam ainda mais os laços de solidariedade social, numa polarização aberta entre as classes dominantes e os seres subalternos, produzindo conflitos sociais agudos e cada vez mais intensos, particularmente agravados pela questão racial, exemplar na cena atual pelas ruas das grandes cidades americanas e não poucas europeias. E também por aí, numa chave branda de interpretação ao estilo do velho e estimado Durkheim, se infiltram as convicções de que o capitalismo nessa versão vitoriana não reúne mais condições de reprodução – sem base de sustentação em recursos que induzam a solidariedade social as sociedades derruem.

A sociologia e as demais ciências sociais não têm o condão de mudar o curso das coisas no mundo, apenas explicam com diferentes capacidades de persuasão o que se passa nele. O meio idôneo para transformá-lo, como se sabe, pertence ao reino da política que se encontra, no momento atual, diante da oportunidade de romper caminho para uma trajetória alternativa na sucessão presidencial dos EUA ao alcance das mãos em apenas três meses, quando poderá abalar ou mesmo por abaixo este derradeiro pilar neoliberal com a derrota eleitoral de Donald Trump. Na pior hipótese, caso ele triunfe, dadas as expressivas forças que ora se opõem a ele, que seja por meio de uma vitória de Pirro.

Sem a escora da política de Trump, garantia até aqui da reprodução da modelagem neoliberal, o teatro de operações na cena mundial terá diante de si uma bifurcação, categoria a gosto de Piketty, abrindo-se a possibilidade para a imposição de rumos entrevistos no curso das lutas contra a atual pandemia, em particular na valorização das políticas públicas de saúde, claramente percebidas no Reino Unido e no Brasil, dos mecanismos de cooperação internacional e os diversificados movimentos de ação solidária saídos do ventre da sociedade civil, inclusive os originários dos seus setores subalternos, e, muito especialmente, no papel do Estado como lugar de articulação dos esforços em defesa da vida, em que foram exemplares a Nova Zelândia e tantos outros casos nacionais. Tudo isso levado em conta afirmam tendências que importam em viradas de páginas e na percepção de que um novo tempo faz parte do campo das possibilidades em presença.

Sem tal escora ou com seu enfraquecimento, políticas que nela se arrimam, como notoriamente a brasileira, devem experimentar inflexões benévolas no seu curso, a serem exploradas pelas correntes políticas democráticas, a começar pelas sucessões municipais que se investem de um papel estratégico, inclusive em razão do seu desenlace prefigurar o cenário da próxima sucessão presidencial. Nesse sentido, a hora dos partidos é esta, e o que cabe, na contracorrente de uma bibliografia irresponsável que medra por aí, é valorizá-los e procurar influir na composição de suas alianças sem sectarismos e em torno de ideais democráticos. Quanto às candidaturas é essencial conceder representação privilegiada àqueles que se destacaram nas lutas pela defesa da vida da população, como os profissionais da saúde e dos que organizaram os sistemas de cooperação solidária no mundo popular. Além, é claro, de selecionar políticos com credenciais que os identifiquem com a democracia e com os temas relevantes para o mundo popular.

A catástrofe da pandemia que nos assola pôs a nu o caráter patológico da modelagem de sociedades sob hegemonias da ideologia neoliberal, e não por acaso EUA e Brasil lideram o ranking macabro de óbitos, ocupando os dois primeiros lugares. Obviamente que as candidaturas em suas campanhas eleitorais devem estar centradas nos temas que digam respeito às concepções de sociedade e de justiça, traduzidas no plano concreto por enunciados por políticas distributivas e de promoção social. Essa hora tem a cara da esquerda democrática a ressurgir nas ruas e no voto.

*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, Puc-Rio


Cláudio de Oliveira: Esquerda democrática italiana contra Cesare Battisti

Como se sabe, Cesare Battisti foi membro do Proletários Armados pelo Comunismo, um grupo de extrema esquerda que praticou terrorismo na Itália na década de 1970.

Nessa época, o país sofreu com o terrorismo de extrema esquerda, sendo o caso mais famoso o sequestro e assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro, do Partido Democrata Cristão, pelas Brigadas Vermelhas, em 1978.

Tais grupos atentavam contra a Constituição antifascista da Itália, duramente conquistada pelos partidos da resistência à ditadura de Benito Mussolini. Promulgada em 1948, a Constituição democrática da Itália foi obra do PDC, de Alcide De Gasperi; do Partido Comunista, de Palmiro Togliatti; e do Partido Socialista, de Pietro Nenni.

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PDC, PCI e PSI se separaram com a guerra fria, mas se juntaram em uníssono para defender a Constituição antifascista e combater o terrorismo de extrema esquerda nos anos 1970.

O primeiro-ministro Aldo Moro havia respondido positivamente à proposta do líder comunista Enrico Berlinguer de um governo conjunto do PDC, PCI e PSI para modernizar a Itália. A proposta tinha a oposição dos setores mais conservadores dos democratas-cristãos.

Uma comissão do parlamento chegou à hipótese de que os grupos de extrema esquerda estivessem infiltrados por militantes de extrema direita com o propósito de tumultuar o ambiente político e evitar um governo com a participação do PCI, o segundo maior partido da Itália.

Com a morte de Moro, assumiu a liderança do PDC e o cargo de primeiro-ministro Giulio Andreotti, da ala contrária ao diálogo com o PCI. Em 1993, Andreotti foi acusado de ligação com a Máfia e de receber propina pela Operação Mãos Limpas. O eleitorado puniu severamente o PDC, que desapareceu da cena política.

Os setores progressistas do PDC, liderado por Romano Prodi, mais remanescentes do PSI se juntaram ao PCI para formar o atual Partido Democrático da Itália, situado na centro-esquerda e cujos líderes cobraram de Lula, em 2009, a extradição do terrorista Cesare Battisti.

Segundo Massimo D'Alema, ex-membro do PCI, então deputado pelo PD e ex-primeiro-ministro, Cesare Battisti ''é uma pessoa condenada em nosso país e é justo que cumpra a pena em nosso país. É normal. Ele está condenado por graves crimes, não por razões políticas'' [1].

A esquerda italiana, de longa tradição democrática, nunca tergiversou quando o Estado de Direito democrático estava em jogo. Battisti deve ser extraditado e cumprir pena na Itália, conforme a Constituição antifascista italiana.

Nota

[1] Lula diz que acatará decisão sobre Battisti

https://www.folhadelondrina.com.br/politica/lula-diz-que-acatara-decisao-sobre-battisti-699937.html


Alberto Aggio: O campo democrático e o petismo

Foi um acinte ver Fernando Haddad afirmar, na semana que passou, que um acordo com o PSDB passava por uma autocrítica deste em relação às eleições de 2014 e ao impeachment. Em seguida, vendo que havia esticado demais a corda, saiu-se com a conversa de que com o PSDB "o diálogo deve ser permanente".

Logo ele, representando o PT, vem exigir autocrítica, quando legou ao país a tragédia de milhões de desempregados e uma quebradeira da atividade econômica que já é identificada como a maior recessão da história do país. Por isso, não pode exigir autocritica de ninguém que faz parte do campo democrático.

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Nos ultimo dias, Haddad voltou à carga. Como moleque de recados de Lula e José Dirceu, diz que vai visitar FHC para conversarem sobre uma "suposta" aliança em defesa da democracia. Verbaliza com isso o discurso de um infeliz manifesto de intelectuais que décadas a fio foram apoiadores acríticos de um ex-presidente que roubou e deixou roubar o suado dinheiro dos brasileiros, em benefício próprio, do partido e de grandes empresários, e agora clamam em defesa do seu candidato e da democracia.

Logo "eles" que sempre apoiaram o chavismo e o regime de Maduro, na Venezuela, que causa indignação a quem observa minimamente os fatos que ocorrem no norte do país. Na Venezuela não há democracia alguma e Haddad bem como "nossos bravos intelectuais" se esqueceram disso num oportunismo que não necessita de palavras para ser denunciado.

A situação é bastante difícil e alguns princípios devem ser previamente estabelecidos. Os democratas não devem aceitar conluios secretos entre Haddad e FHC. A ameaça autoritária à democracia é real e tem dois lados muito claros. Um deles é o PT. Aqui não cabe a tal conversa de "ciscar para dentro". Isso acaba no dia 7 de outubro. Aqui cabem compromissos claros e firmados em público, em defesa da democracia:

1. Defesa da Constituição de 1988; rejeição da tese de convocação de uma nova Constituinte;

2. Garantia da liberdade de imprensa; rejeição às propostas de controle e regulação da mídia;

3. Defesa da Lava Jato, além de valorização e plenas garantias ao funcionamento regular do sistema de Justiça; admissão clara da independência da Justiça para deliberação do caso Lula;

4. Garantia da lei e da ordem pelo que reza a Constituição, não se admitindo nenhuma interferência nem na formação nem no papel constitucional das Forças Armadas; rejeição a quaisquer propostas de formação de milícias, como ocorre na Venezuela;

5. Preservação da moeda e garantia das reformas de modernização do Estado promovida nos últimos dois anos para que o país reencontre o caminho do crescimento.
Sem esses princípios preestabelecidos, não há como nenhuma força do campo democrático iniciar qualquer tratativa com Haddad e com o PT.

 


Paulo Fábio Dantas Neto: Pela política de volta aos seus postos. Espantar fantasmas, evitar esquinas

Entre 2013 e 2018, alusões a 1964 têm sido abundantes como retórica do embate político e midiático. Sérios transtornos sociais, prejuízos econômicos, complicação do problema fiscal e desdobramentos políticos do locaute das empresas transportadoras de carga que encorpou o movimento dos caminhoneiros deram, nos últimos dias, ainda mais audiência a quem difunde esse tipo de analogia.

Na mesma direção vai a percepção geral da fraqueza política do governo para deter a sabotagem perpetrada contra o país. O mesmo governo que vem saneando e recuperando a Petrobras caminha agora em direção ao passado recente, quando a instrumentalização política da empresa, associada a uma política de desoneração de empresários, afundou o tesouro nacional e ajudou a desarmar estado, economia e sociedade no enfrentamento de uma recessão que vinha então a galope, uma tempestade ocultada pela maquiagem marqueteira da campanha governista de 2014.

Analisado isoladamente, o caso da atual gestão da Petrobras é dos mais bem-sucedidos. Pode-se discordar da orientação adotada mas ali há (ou houve) política pública. Ali não houve (ou não havia) o vaivém do governo na busca do equilíbrio das contas públicas, visível em outros setores. Porém, o governo paga alto preço por ter permitido um tal grau de insulamento à Petrobras que a desconectou da grande política. Colocar fim na política de varejo e na instrumentalização partidária no atacado, marcas do período anterior, é um mérito, mas era preciso fazer isso com régua e compasso, atento à necessidade de ir ganhando mais aliados no curso da política adotada.

Num país onde o novo e o antigo sempre estão a se misturar, ir pelo incremental é sempre bom conselho. A gramática política do Brasil, como mostrou Edson Nunes, é sincrética e foi ignorada ao se fazer um tratamento de choque radical. Perdendo o compasso, o governo passou só a régua e — vê-se agora — produziu amplo leque de adversários, além dos inevitáveis. Implacáveis na defesa de seus interesses corporativos, transportadoras e caminhoneiros legaram um rombo financeiro ao país e abriram aos pés do governo uma cratera política, com aplauso ou silêncio de políticos acovardados e eleitoralmente ansiosos.

A realidade é que os defensores do status quo anterior ganharam de volta um discurso, ainda que mistificador. A imprudência encontra um limite espantoso quando gente de esquerda sai a reboque do locaute empresarial e de sabotagens populistas e autoritárias, ajudando a mergulhar o país no caos. Mas o que querem? Deixar faltar gasolina para que o preço baixe? Ou pensam em usá-la para atiçar o fogo no qual eleições podem ser incineradas? Fazem o jogo da direita na ilusão de que rirão por último. Essa fantasia e a aventura que dela decorre levam, à primeira vista, a nos lembrar de 1964.

Apesar das aparências é o caso de distinguir, não de confundir as coisas. Proponho que recusemos o raciocínio anacrônico que tenta exumar, como assombração, um fato relevante ocorrido no passado, como se fosse parte de uma tradição, daquelas tradições através das quais, conforme Marx, gerações mortas oprimem os cérebros dos vivos. Conferindo a conspirações e golpes o status de uma tradição nacional, essa narrativa agride o método de Marx, pois oculta, ideologicamente, um traço forte da tradição política brasileira: a aceitação, pela elite política, da sugestão de Tocqueville, de tratar a mudança mental de uma sociedade como se fosse desígnio da Providência, ao qual não cabe resistir, mas que é preciso fazer deslizar, o mais suavemente possível, para que não se torne um liberticídio.

A adoção dessa sugestão por uma elite politicamente ativa está na raiz da propensão ao acordo e à negociação que marca, mais que os momentos de ruptura, a nossa história política e a faz contínua, enquanto a sociedade se transforma. Os riscos que nossa democracia atual enfrenta — e eles não são desprezíveis — estão menos nessa nossa tradição e mais em desconsiderá-la, como fez o governo na condução política da mudança na Petrobras. Agora tenta retomá-la, para tentar diminuir o estrago.

Os riscos não compõem um flashback. Invisíveis pelo retrovisor, são próprios da complexidade e da intensidade inaudita de mudanças políticas, sociais, culturais e tecnológicas possibilitadas, inclusive, pela avenida institucional que se abriu, há 30 anos, com a promulgação da atual Constituição. O quadro é preocupante mas não porque as instituições políticas tenham trincado ou sejam más. O problema, está, em parte, na fortuna, ou seja, na objetiva e farta oferta de novos fatos sociais realmente difíceis de compreender e de incorporar ao cotidiano institucional. Mas está, também, em boa medida, na escassez de virtù, a virtude política que se tornou rara onde precisa ser comum.

Com as exceções de praxe — que devem ser valorizadas —, as instituições políticas e outras, que as devem controlar, estão sendo pilotadas sem imaginação e sem suficiente responsabilidade política. Refiro-me não só ao patrimonialismo tradicional e ao oportunismo raso, presentes na elite política propriamente dita. Ela é alvo de contundentes operações policiais e judiciais e recebe reprovação da sociedade pelo que faz, pelo que não faz e também pelo que lhe imputam demagogos de vários matizes, que batem ponto na própria política, em corporações estatais e empresariais e na imprensa. Refiro-me, também, ao corporativismo e messianismo difusos em elites que se pretendem moralizadoras, bem como no discurso e na práxis de sindicatos e outros entes da sociedade civil, entregues a um varejo medíocre.

Amantes de esquinas de variados tipos, com seus fundamentalismos e/ou pragmatismos, contribuem para travar a fluência do trânsito na avenida. A busca de atalhos e cirurgias, de tão insistente, pode acabar mesmo nos levando a novas esquinas. E uma vez diante delas, improvisos de má qualidade ou scripts inaptos à via democrática e pluralista aberta em 1988 podem nos enredar em becos. O locaute do setor de transportes apontou para um deles.

Movimento na estrada na contramão da avenida

A crise política prolongada estimulou empresários a seguirem, nesse maio de 2018, script análogo ao usado pelos irmãos Batista, no maio do ano passado, para chantagear o estado e a nação. Mas quem são os Janots do maio de 2018? Haverá hoje um Congresso disposto a frustrar suas intenções? Partidos e lideranças que ainda possam adiar táticas eleitorais para salvar uma pinguela estratégica? Presidente e governo em condição de operar a política real com habilidade e eficácia, sem ceder no essencial do seu programa de recuperação econômica? Ou de tratar com firmeza os sabotadores, sem contar apenas com as corporações armadas? Interpeladas com frequentes missões excepcionais, sob holofotes, essas corporações manter-se-ão inflexivelmente restritas a rotinas da vida profissional?

A inquietante resposta comum a quase todas as perguntas parece ser um genérico não. Mas a primeira das perguntas requer, para ter resposta, um entendimento prévio mínimo do que se passou no caso específico desse movimento de caminhoneiros e de empresas de transporte de carga.

Apesar de as declarações firmes e verazes do ministro Jungmann merecerem menção, bem como o sentido institucional da linha de ação que sugeriu, é recorrente e também veraz a avaliação de que a situação política do governo e do presidente não levou a posição clara e ação em tempo hábil para sanar a sabotagem. Na outra ponta da realidade, o ministro Marun levava ao presidente novas reinvindicações de caminhoneiros. Como as dos empresários, primeiros da fila, elas foram tratadas — e tinham de sê-lo — como se houvesse greve convencional, envolvendo trabalhadores e sindicatos, e não o que de fato havia: paralisação sustentada por movimento de empresários com objetivo econômico antissocial, sem armas, mas com metodologia paramilitar e potencial político explosivo.

Fique claro que não se trata de criticar o governo por ter negociado. É da sua índole e isso é bom. Trata-se é de ter realismo para reconhecer que o governo não estava em posição forte para negociar. E isso é ruim. Está sendo comemorado por quem de fato pensa e por quem só declara que pensa (a intenção aqui importa menos que o efeito do pensamento equivocado quando orienta a ação) defender o interesse público, ao enfraquecer mais o governo nessa hora. O equívoco está em não considerar que prejuízos coletivos serão proporcionais à força de quem estava do outro lado da mesa.

A falsidade das analogias com 64 não nos dispensa de tentar responder à pergunta sobre quem são os Batistas e Janots do maio de 2018. Buscar uma resposta a essa altura só tem sentido político se for para reverter o êxito da presumida ação ilegal. Tarefa que o ministro Jungmann assumiu ser dos órgãos de segurança institucional, mas que não teve até aqui serventia. Comprovado o locaute (e já há, ao que se diz, 48 processos), há possibilidade política de recuo em pontos já firmados do acordo, lesivos às contas públicas? Se não há, seria imprudente recusar a simultânea pauta encaminhada por Marun. Claro que as conclusões da investigação serão úteis, mas o tratamento político que se dará a elas já foge ao poder de decisão do governo Temer. O êxito do movimento está consumado, tenha sido ou não ilegal o seu método e mesmo que se confirme o caráter antissocial da sua motivação.

Mas, detectada a conspiração, resta ainda saber por que terá dado certo. Como já se disse bem sobre 64, o simples fato de uma conspiração existir não explica seu eventual sucesso. A questão em aberto conduz ao tema da fragilidade política do governo Temer, para entendê-la, do ponto de vista político. Tema que não é assunto maduro para cientistas políticos, menos ainda para historiadores. Mas uma elite política não pode adiá-lo, sob pena de praticar haraquiri antes de um golpe lhe ser imposto. Depois do fato consumado, a ela restará apenas confessar o ato de se ter autoconvertido em fantasma.

Por que a pinguela balança?

O tema central aqui, repito, é o que explica a fragilidade do governo Temer. Para se ter resposta útil e tempestiva sobre isso, é preciso pensar em quem tem responsabilidade política e institucional pela condução do país, além do próprio governo, cuja conduta já analisei.

Para começar, a fragilidade não é produto exclusivo do processo político que gerou esse governo. Essa é uma simplificadora e obviamente interessada explicação para um problema complexo. Se em política houvesse correspondência tão direta entre alhos e bugalhos, o colégio eleitoral inventado pela ditadura não teria sido, como foi, ponto de partida para a institucionalização prática de uma democracia de amplitude inédita no Brasil, processo de conflito e negociação que incluiu também praças e avenidas lotadas, como estiveram igualmente em 2013 e em 2015/2016.

Seguramente não é simples assim. A fragilidade inaugural do governo Temer seria (e estava sendo) superada pela entrega de uma das mercadorias prometidas, a reconstrução da economia. A outra meta, a pacificação do país, teve logo seu cumprimento travado por atores interessados, por razões diversas, em impedir que o governo acumulasse dividendos políticos com o êxito da primeira. A ilusão de que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa começou a se desfazer quando o governo começou a atirar em direções contraditórias para compensar os efeitos da gradativa deserção de aliados, cada vez mais focados no imediatismo eleitoral. Foi perdendo seu próprio foco e com ele a força relativa que ainda retirava da clareza de sua plataforma reformista. A realidade da conexão entre economia e política mostrou-se, explicitamente, dramaticamente, na conexão entre estradas bloqueadas e cidades desabastecidas. A política, aos poucos interditada durante a crise, sumiu da prateleira porque a elite política, sem combustível, sumiu dos postos que ocupa no mundo público.

Pontos fora dessa curva infeliz há talvez em todos os partidos que não são apenas siglas de aluguel. Necessitam de articulação transversal para vencerem a barreira da invisibilidade. Há um manifesto em circulação, assinado por gente de peso e respeito, tentando emitir um toque de reunir para democratas e reformistas. Até aqui, parca resposta, dando a suspeitar que a política chamada por Marco Aurélio Nogueira de “dos políticos” tenha sofrido edema de glote e agonize sedada na UTI.

Essa sensação de vácuo político conduz boas cabeças a se voltarem, como solução, para a política “dos cidadãos”. Há aí dois problemas: ela não é bem votada no eleitorado profundo e, principalmente, ela não governa, nem aqui nem em qualquer lugar do mundo. A democracia é (ainda) o governo dos partidos, portanto, dos políticos. E será assim enquanto não inventarem nada melhor, ou até que algo melhor entre, de fato, na política e não se limite a fazer a sua crítica. Macron pode estar sinalizando isso? Talvez (se a política externa deixar), mas até na França é preciso esperar um pouco para saber. E o Brasil em crise pede soluções para ontem.

Isso não significa desprezar a política do cidadãos. Ao contrário. Uma sociedade civil politicamente ativa é muito importante para democratizar a democracia. Mas governo é outra conversa, como mostraram nossas estradas bloqueadas e cidades desabastecidas. Terá sido por falta da política dos cidadãos ou pela omissão da política dos políticos, que segue sendo imprescindível?

Mais uma vez a história pode ensinar, em vez de confundir. É recorrente também lembrar de Ulysses Guimarães. Quero fazer isso salientando um determinando ângulo do seu legado. Através de sua liderança, a política dos políticos desobstruiu e pavimentou estradas, abasteceu e energizou o tráfego. O Ulysses que mais faz falta hoje não é o da resistência democrática e sim o artista da governabilidade. Sarney, o afortunado, e Temer, o sem fortuna, que o digam. Como se sabe, Ulysses foi cristianizado pelo seu próprio partido, nas eleições de 1989. Porém, profissional — como são os bons políticos —, ainda segurava o leme em 1992, quando foi preciso, por meio de um impeachment, consertar um erro das urnas, reconhecido pelos eleitores. Morreu duas semanas depois, em paz com sua missão. Simbolicamente não pode ser sepultado nem cremado. Impossível não lançarmos, nessa hora difícil, um olhar perdido sobre a Serra da Mantiqueira, em busca de luz. Ou do toque de reunir.

* Paulo Fábio Dantas é cientista político e professor da UFBA

 


Sergio Augusto de Moraes: Travessia e armadilhas

Parece que nestes tempos o povo, enojado com a corrupção que grassou no Brasil e castigado pela crise, virou as costas para o mundo político e apenas aguarda 2018 para tentar uma solução. Fazer deste modo tal travessia contém várias armadilhas. Uma delas é deixar que a polarização Lula-Bolsonaro cresça e chegue a outubro do próximo ano como a alternativa mais forte, o que, entre outros males, elevaria o absenteísmo, o voto nulo e em branco a patamares nunca antes atingidos. Outra é deixar espaço para que o Governo Temer e o Legislativo, juntos, empurrados pelo que têm de pior, anulem o trabalho da Lava-Jato.

É natural que esta descrença aconteça. Durante quase treze anos uma polarização primitiva patrocinada pelo PT e seus governos — “nós” contra “eles” — dividiu o povo brasileiro. Esta mercadoria, vendida por vários meios, foi comprada meio às cegas; aparecia para a grande maioria como “pobres” contra “ricos”.

Entretanto, a realidade era outra: foi nestes governos que os banqueiros realizaram os maiores lucros de sua história e outros setores do empresariado — a Lava-Jato escancarou boa parte deles — enriqueceram às custas de favores do Estado, numa aliança espúria que visava dominar o Brasil no mínimo por vinte anos, segundo verbalizado por alguns líderes petistas. Na verdade, o “nós” significava quem estava ou apoiava os governos de Lula e Dilma e o “eles” aqueles que lhes faziam críticas ou simplesmente não os apoiavam.

Ao passar do tempo, o verdadeiro caráter destes governos foi revelando-se. De repente, sem que os analistas ou os políticos previssem, o povo acordou. Em junho de 2013 milhões saíram às ruas pedindo mudanças, verberando os políticos de maneira indiscriminada. Não tinham uma proposta única, apenas gritavam que aquilo não podia continuar, era preciso fazer algo diferente.

Em março de 2014 veio uma primeira resposta: a Lava-Jato começou a tarefa de combater a corrupção, fosse de quem fosse. Preferencialmente daqueles que haviam indevidamente se apropriado dos recursos das empresas ou de setores públicos. Foi e continua sendo uma resposta do Poder Judiciário às demandas populares, instituição da democracia brasileira que demonstra ter meios de defendê-la no terreno que lhe cabe.

Mas isto não bastava. Sem entrar em questões jurídicas, vemos que foi a incapacidade do governo Dilma de articular uma resposta à altura da indignação popular, expressa em novas grandes manifestações de rua, e de lidar com a “crise de governabilidade”, os motores que levam ao seu impedimento em agosto de 2016. Este e a assunção de Michel Temer ao governo central dão-se de acordo com a Constituição da República. Era para ser uma resposta no terreno do Poder Executivo ao clamor do povo.

Entretanto, o DNA do PMDB e do próprio Presidente não lhes permite responder à expectativa popular. O governo Temer não consegue mudar o rumo do despenhadeiro para o qual apontava o governo Dilma e aos poucos se tornou refém do “centrão”, a parte mais fisiológica do Poder Legislativo. De tropeço em tropeço, seus esforços principais vão, hoje, no sentido de chegar vivo às eleições de 2018.

É este cenário de longos e sucessivos engodos que, hoje, joga para baixo a expectativa popular em relação à política. Se isto persistir neste tempo de travessia, será o pior, porque é nele que vai ser decidido o futuro do Brasil nos próximos anos. A pergunta que não quer calar é: o que fazer de agora até outubro do próximo ano, diante da campanha pela sucessão presidencial já começada?

A alternativa é, desde já, iniciar a formação de um bloco político de centro-esquerda que mobilize o povo e possa plasmar neste período e em outubro de 2018 uma solução democrática e republicana. Esta é a grande tarefa que está colocada para o vasto mundo que não se identifica com extremismos. Difícil? Sem dúvida, mas é possível realizá-la.

Agora, o primeiro passo nesta direção será lançar um nome que tenha, pelo seu passado, um sólido compromisso com a ética política, experiência administrativa e uma proposta para o futuro do País que coloque os interesses do povo à frente daqueles que vêm marcando a política brasileira nos últimos tempos.

Até hoje nenhuma pré-candidatura presidencial demonstrou potencial para realizar essa tarefa. Pelo centro surgem nomes, principalmente em São Paulo. Eles não levantam o ânimo, não acendem a esperança das mudanças sonhadas. À exceção do prefeito de São Paulo, que mais parece um pescador de águas turvas, os nomes levantados são de políticos conhecidos, alguns que podem até ser administradores razoáveis, porém incapazes de entusiasmar as multidões.

Mas também se ouve nas redes sociais o nome do senador Cristovam Buarque. Quem escuta ou lê suas propostas percebe que ele é portador de um projeto moderno, centrado na redução das desigualdades e na educação. Seu passado de político é exemplar, nada a ver com a Lava-Jato. Como governador de Brasília fez um trabalho que marcou época.

Quando foi eleito senador, tinha direito a dois salários: um de sua aposentadoria na Universidade de Brasília e outro de parlamentar. Abriu mão de seu salário como senador. Não usa carro oficial, vai para o senado em seu próprio veículo. Rara mercadoria entre os políticos de hoje, ele tem condições para acender a esperança do nosso povo, tornando-se o aglutinador da aliança apontada acima, única que pode tirar o Brasil do lamaçal onde está atolado e levá-lo à posição que todos almejamos.

* Sergio Augusto de Moraes é engenheiro e Conselheiro Vitalício do Clube de Engenharia.


Silvio Pons: O Gramsci que fala sobre nós   

Dossiê Gramsci, oitenta anos depois

Dois mil e dezessete é um “ano gramsciano”, por marcar o octogésimo aniversário da morte do pensador sardo, em 1937. Não é de hoje sua presença no debate político e na produção acadêmica brasileira. Uma presença que não é unívoca nem tem a mesma valoração por parte de todos os que se inspiram em maior ou menos medida nos textos daquele pensador. Nossa perspectiva — democrática e reformista — é uma das formas de acolher seu complexo legado. Sem a menor pretensão de qualquer monopólio ou ortodoxia, temos um objetivo “simples” e direto: pôr Gramsci a serviço da democracia brasileira.

Acolhemos a ideia de historicizar radicalmente os escritos do pensador, relacionando-os às diferentes circunstâncias em que foram produzidos — circunstâncias que inauguram nosso tempo, mas não são nem podem ser exatamente as mesmas aqui e agora. E tudo sem censuras, cortes ou embelezamentos. Certamente, este é um pressuposto da apropriação crítica, e não doutrinária, do autor, tornando-o apto a ajudar na compreensão de nossos problemas. Frases soltas ou conceitos descontextualizados têm assim validade muito restrita, ainda que possam ressaltar o brilho do escritor. Mas, como dissemos, nosso objetivo é de outra natureza.

Aqui reunimos três referências internacionais na área. Na abertura, Silvio Pons, atual presidente da Fundação Gramsci, em Roma, e sucessivamente Francesco Giasi e Giuseppe Vacca, diretores da mesma Fundação. Um tema recorrente nestas entrevistas é a monumental Edição Nacional dos Escritos, em curso de publicação. Mas não faltam alusões a questões substantivas da atualidade: a globalização e sua crise, para não falar dos imensos dilemas da própria esquerda.

A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e a Fundação Gramsci atuam conjuntamente no plano editorial, especialmente na coleção Brasil & Itália, acolhida e apresentada por Armênio Guedes, dirigente histórico do PCB associado entre nós às “ideias italianas”. De Giuseppe Vacca, já publicamos Por um novo reformismo; Gramsci no seu tempo (com Alberto Aggio e Luiz Sérgio Henriques); Vida e pensamento de Antonio Gramsci, 1926-1937; e Modernidades alternativas. O século XX de Antonio Gramsci. De Silvio Pons, publicamos A revolução global. História do comunismo internacional, 1917-1991, densa narrativa do impacto do comunismo no século passado.

Entrevista dada a Beatrice Rutiloni, Democratica, 14 jul. 2017

Deve-se dizer que Antonio Gramsci se tornou um ícone pop. Como a Marilyn de Andy Warhol ou o Che nas camisetas dos sonhadores de todo o mundo, Gramsci, com aquela face de “intelectual orgânico”, tornou-se o rosto mais conhecido da política com P maiúsculo, a que mistura pensamento, estudo, seriedade, paixão. E sobriedade. Gramsci como o novo ídolo de uma geração um tanto nerd, que de todo canto do mundo encontra naquele olhar moderníssimo a própria fuga do presente. O último dos utopistas, com os pequenos óculos redondos que passaram de John Lennon para Harry Potter, é hoje mais celebrado do que Lenin: há quatro anos, no Bronx, o artista suíço Thomas Hirschhorn criou a instalação The Gramsci Monument, um lugar de agregação que deu lugar a leituras, aulas, cursos para crianças, concertos e seminários. Da casa-museu de Ghilarza, na Sardenha, onde Gramsci viveu sua infância, até Nova York, o tesouro gramsciano parece se enriquecer de ano em ano. A demonstrar o fato de que a herança cultural, quando é viva, é como um clássico: não morre nunca — ao contrário, renasce na memória.

Oitenta anos depois da morte do político, definição que em sua máxima expressão é capaz de reunir todas as outras, a de filósofo, historiador, linguista, jornalista e escritor, resta muito de Gramsci: restam suas belíssimas cartas privadas, que expressam o homem, e restam os Cadernos, traduzidos em todo o mundo e abertos mil vezes na vida. Uma daquelas leituras que se fazem e refazem, porque sempre têm algo a dizer, um pouco como a Recherche de Proust. E permanece a impressão de Gramsci, o mesmo traço inquieto e ordenado de sua face está em sua página escrita, com aquela inesquecível grafia, muito pequena, precisa, de um homem que sabe que não se desperdiça e não se perde o tempo. Um dos maiores conhecedores da obra gramsciana é Silvio Pons, historiador da Europa Oriental, um dos maiores especialistas do comunismo internacional e presidente da Fundação Gramsci.

• Ocorre-nos perguntar neste 14 de julho, aniversário da Revolução Francesa, quanto vale hoje a liberdade.

É um valor global e é mais atual do que nunca. Vivemos uma época de grande desordem mundial em que foram recolocados em discussão os princípios fundamentais da democracia. O último exemplo de revolução em nome da liberdade foram as primaveras árabes que agora cancelamos à luz da catástrofe da Síria e de todos os eventos violentos que se seguiram à queda dos regimes. Poderíamos dizer que do final do século XX até o início do século muitas comunidades se movimentaram para reivindicar liberdades. Não houve só 1989 na Europa, houve muitas outras revoluções pacíficas entre os Bálcãs, o sul da África e até o Irã. Houve comunidades inteiras, destituídas de nome, que impuseram à agenda mundial uma exigência de liberdade que vai muito além da tradição eurocêntrica da Revolução Francesa.

• A egocêntrica Revolução Francesa.

Digo que os europeus monopolizaram alguns valores, entre os quais a liberdade. A Revolução Francesa foi a revolução política que gerou a modernidade política europeia, o evento genético do nacionalismo ocidental. Agora estamos numa época em que Ocidente e americanismo parecem pertencer ao passado e estão superados, mas uma certa ideia de liberdade e até de igualdade que se podem relacionar à nossa história moderna se globalizaram. Existem muitas revoluções francesas, na frente das quais coloco a primavera árabe.

• Mas ela fracassou.

As revoluções podem fracassar, mas seu fracasso também expressa significados importantes, sobretudo em relação à parte do mundo em que se originam. Até diria que justamente porque fracassaram devemos prestar ainda mais atenção. O fantasma das liberdades modernas ainda está entre nós.

• E o da igualdade?

Muito menos. Vivemos num mundo desigual: por uma parte, há o crescimento da riqueza global — mas sou ferozmente contrário a quem acusa a globalização de ser portadora de pobreza — que semeou riquezas no mundo de modo desigual. A China ou a Índia são as novas potências, o Ocidente não controla mais, não influencia mais. A redistribuição dos recursos deslocou o eixo da riqueza do Ocidente para o Oriente, trazendo como danosa consequência que, entre nós, o bem-estar está polarizado nas mãos de poucos e assistimos a um tendencial empobrecimento das classes médias, verdadeiro fulcro da democracia ocidental. Diante de tudo isto continua a me surpreender que a exigência de maior equidade ainda não tenha suscitado protestos sociais que era legítimo esperar.

• Será talvez ainda cedo?

A questão é que as sociedades hoje são muito corporativas e, portanto, custa-nos imaginar um bloco social e político que levante a questão de uma igualdade maior. Vejo um fenômeno que implica diminuição de igualdade mas não vejo os sentimentos de protesto e contestação, que permanecem limitados e marginais ou então se expressam sob a forma de populismos.

• E que tipo de forma social são os populismos?

Primitivos. Ilusórios. A ideia de que seja suficiente conquistar parcelas de soberania nacional para melhorar a vida das pessoas é uma miragem. No mundo de hoje, o primado dos Estados individuais está limitado por uma série de forças que não se deixam desafiar pelo poder de cada um deles. A única forma possível de resistência e de reforma, a única resposta positiva aos processos de globalização é supranacional.

• A única resposta é a Europa?

O tema de uma governance global continua a ser um grande tema, mas muito distante de nós. A Europa é uma resposta, por certo. O processo de integração europeia nasce como recusa às guerras entre Estados-nação que marcaram a história do século XX. A isto se soma a consciência de que só uma grande área supranacional em termos econômicos, democráticos e produtivos, pode sustentar a globalização.

• O problema são os líderes?

Os líderes são o espelho da sociedade. A questão é que não se criou um espaço político legitimado e aceito por todos. O nível nacional continua a ser mais forte e isto determina tensões contínuas entre cada Estado e a Europa. Acrescentemos que, em tempos de crise, com a Europa frágil, o populismo com sua carga de ilusões encontra uma porta aberta.

• Gramsci, encerrado numa cela, entreviu nossos dias: nos Cadernos falou de mundialização da economia contraposta à nacionalização da política. É impressionante.

Na realidade, este processo estava particularmente visível já depois da Primeira Guerra Mundial: o tempo de Gramsci está ligado ao nosso. Observo duas coisas: que a globalização começa muito antes do fim da guerra fria, uma vez que uma crescente interdependência já se inicia no final do século XIX, e também que não existia uma forma de hegemonia evidente. Com a linguagem de hoje, poderíamos dizer que não havia nos anos vinte e trinta uma governance mundial, e esta também é uma tendência de nosso século.

• Outra tendência de nosso século é a crise da esquerda praticamente por toda parte. Como explicá-la?

É um tema que nos atinge e preocupa há tempos. Não é uma crise recente e devemos recuar uns passos, embora seja verdade que ninguém tem a receita. No entanto, existem muitas razões para tal crise: houve a ideia segundo a qual, depois do fim do comunismo, fosse possível fazer uma nova esquerda democrática, era a época da Terceira Via, dos Blairs e Clintons. Uma experiência de esquerda reformista e antitotalitária que emperrou no final do século. Acredito que este foi o início do declínio. Ainda estamos um pouco presos ali e penso que a esquerda, hoje, ainda não ajustou as contas com o paradigma progressista segundo o qual o progresso é sempre linear e irrefreável. A esquerda é uma das vítimas da globalização e entrou em crise com o esgotamento do welfare state. E afinal, como se sabe, quando a política está em crise, com mais razão está a esquerda.

• A direita se ressente menos disso?

A direita é mais capaz, desde sempre, de se valer dos sentimentos das pessoas, do medo. A esquerda não tem este tipo de possibilidade e, portanto, na falta de Política, aquela com o famoso P maiúsculo, sofre mais.

• Um conselho seu.

Estamos sempre naquele ponto: comecemos a rever o paradigma progressista. A esquerda deve viver e deve se contrapor à direita. Cometeremos um erro histórico se pensarmos que estes valores não mais existem.

• Tem razão. Basta ver as reações à lei contra a apologia do fascismo. Disseram que é liberticida. E foi a coisa mais gentil que disseram.

É um fato preocupante porque se baseia numa perda da memória: devemos conservar a consciência de que o fascismo foi uma catástrofe. Não se trata de antifascismo banal, mas de reafirmar a não neutralidade de nossa história. Também os valores da Europa são antitotalitários e a perda de memória é visível naquilo que acontece na Hungria ou na Polônia. Dizer que é liberticida uma lei que condena a apologia do fascismo é contraditório, e o é duas vezes se quem assim se expressa são os que até alguns meses atrás se atribuíam a defesa de nossa Constituição.

• A quem se refere?

Ao Movimento 5 Estrelas, que se entrincheirou por uma Carta que é profundamente antifascista e, ao mesmo tempo, afirma que uma lei que condene a exaltação do vintênio fascista é liberticida.

Democratica & Gramsci e o Brasil