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Eros Grau: La Casserole também para sempre!

No futuro, meu pai, o Donda, o Paulo Bomfim e eu desceremos do Céu para almoçarmos lá

Começo a escrever estas linhas lembrando a afirmação contida numa linda canção para sempre em meus ouvidos, Porto dos Casais: é sempre bom lembrar coisas passadas! Maravilhosamente, mais e mais quando elas permanecem no presente.

Retomo em minhas mãos nossa edição do dia 13 de junho passado e lá reencontro o que escrevi sobre o Itamarati. De repente me dou conta de que bom mesmo é relembrarmos o todo, sobretudo quando alguns pedaços do passado são parcelas do presente! Restaurando o tempo – uso o verbo restaurar sorrindo! –, uma encantadora porção do tempo cá em minha memória é o restaurante (!) La Casserole, no Largo do Arouche.

Retornando ao passado é, agora, como se eu lá estivesse, caminhando pela chácara de José Arouche de Toledo Rendon, primeiro diretor – entre 1827 e 1833 – das minhas velhas e sempre novas Arcadas do Largo de São Francisco. Passeio por esse espaço e, concomitantemente, pelo Tempo. Em seguida, no início dos anos 60, ao lado de meu amigo Prado Veppo, poeta de Santa Maria, lá no Rio Grande do Sul, ouvindo-o declamar os primeiros versos de um dos seus mais belos poemas: Largo do Arouche, praça do amor, amplo mercado, sexo e flor.

A vida não apenas pode ser, a vida é maravilhosa!

Novamente transitando pelo tempo, retorno à São Paulo do início dos anos 50 e caminho por ali com meu pai, carregando flores que compramos para minha mãe numa barraca em frente ao La Casserole. Depois, 1954, aos domingos almoçávamos nós três, lá nos instando para sempre, no Casserole. O tempo veio passando e permanecemos juntos. Hoje também por conta da Academia Paulista de Letras, ao seu lado, onde encontro meus confrades, elas e eles, todas as quintas-feiras nos finais de tarde. Nestes últimos meses via Zoom, em razão da pandemia que estamos a suportar.

E lá está o Casserole, há 66 anos. Roger e Touna, sua esposa, o abriram em maio de 1954. Depois que Roger se foi para o Céu, em 2005, encontrei-a algumas vezes por lá. Serena, elegante, sorrindo para mim, sempre na mesa 21. Ela também se foi em 2009. Sua filha Marie, minha amiga generosa, o dirige desde 1987. Hoje ao lado de seu filho, Leo.

De repente é como se seu tio, Georges Henry, estivesse também ao nosso lado. Diretor musical da TV Tupi lá no passado, amigo próximo de Tito Madi e Henri Salvador, escreveu um belo livro que tenho entre as mãos agora, Um Músico... Sete Vidas. Ao envelhecer passou a viver em Amparo, em 2017 de lá também partindo para o Céu.

Recanto de afeto, desfruto o Casserole sem limites. Comer muito, muito bem, reencontrar amigos, recuperar o passado. Relembro momentos inesquecíveis que lá vivi. Quase ao lado de Di Cavalcanti e Procópio Ferreira e, de verdade, ao lado de meu amigo Ulysses Guimarães. E outros seres humanos maravilhosos hoje na mesma mesa que eu, especialmente os da APL, a nossa academia.

Alguns almoços por lá são inesquecíveis. Um deles em 2006, almoço de sexta-feira com Eduardo Kugelmas – o Donda –, meu irmão de coração desde o início dos anos 50, irmão que se foi deste mundo no dia 14 de novembro de 2006. Conhecemo-nos em 1951, quinto ano do primário no então chamado Instituto Mackenzie. Depois disso, tudo. Tudo, mil momentos de amizade e fraternidade, ele na Faculdade de Filosofia da USP, então na Maria Antônia. Episódios marcantes nos tempos duros e sofridos dos anos 60. Sua ida para o Chile, depois Paris e retorno ao Brasil. Logo após a sua volta veio passar longo período em nossa casa em Tiradentes, onde agora estamos já há meses isolados, Tania e eu, por conta dos maus momentos que suportamos. Nosso derradeiro encontro nesta esfera foi no Casserole, em 2006, mas estou certo de que no futuro estaremos juntos.

Além dele Paulo Bomfim, meu Amigo com maiúscula, a respeito de quem tenho mil momentos a relembrar. Belos almoços em seu apartamento, um nosso encontro no pátio das velhas Arcadas no dia 25 de outubro de 2017, quando lá fixaram uma placa em sua homenagem. Cá está ele, ao nosso lado agora, superando o Tempo. A dizer-nos que o Universo não existe, o que há em torno de nós é o Multiverso. Por isso o nosso encanto com o Largo do Arouche, as barracas de flores, e as flores renascerão para sempre no e a partir do Casserole.

O Céu, diz o Álvaro Moreyra num lindo poema, é uma cidade de férias, de férias boas que não acabam mais! Daí que no futuro – tenho certeza – estaremos todos juntos reunidos, reunidos lá no Céu. E de lá meu pai, o Donda, o Paulo Bomfim e eu um dia desceremos à Terra para almoçarmos, todos juntos reunidos, no Casserole. Meu pai relembrando as flores que comprávamos para minha mãe na barraca em frente, o Paulo em dúvida a propósito de passarmos ligeiramente pela APL, unicamente para uma olhada. Nada prontamente decidimos, meu pai sussurrou “já volto, vou só pegar umas flores” e o Donda disse tudo: “Vamos mudar de assunto, apenas lembrar, relembrar nosso derradeiro almoço aqui, Eros e eu, em 2006. O Tempo não existe, mas nosso Casserole existirá para sempre!”.

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO  DA USP, FOI MINISTRO DO STF


Eros Roberto Grau: Ainda a prisão em segunda instância

É só o Legislativo inovar, com prudência, nossos Códigos de Processo Penal e Civil

O texto do artigo 5.º, inciso LVII, da nossa Constituição - uma de suas cláusulas pétreas - é cristalino: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A partir daí afirmei aqui mesmo, em texto publicado no dia 22 de novembro, que só uma nova Assembleia Constituinte poderia impor a prisão após condenação em segunda instância. Desejo agora dar a mão à palmatória, pois essa minha afirmação decorreu da consideração isolada do artigo 5.º, inciso LVII, e não do todo que a nossa Constituição compõe.

Há alguns dias li num jornal uma notícia muito interessante. Plenamente consciente de que o artigo 60, parágrafo 4.º, IV, da nossa Constituição estabelece que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, cogita de algo novo. Uma emenda constitucional que estabeleça que as sentenças penais condenatórias transitarão em julgado imediatamente após sua confirmação em segunda instância, a partir daí tornando-se possível a propositura de ações rescisórias perante o Superior Tribunal de Justiça.

Retornei, então, à Constituição no seu todo e à prática da pesquisa, como a exercitava no meu tempo de jovem. De lá para cá, de cá para lá encontrei a ata da 23.ª Reunião Extraordinária da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, realizada em 7 de junho de 2011. Uma audiência pública destinada a debater a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 15/2011, que alterava os artigos 102 e 105 da Constituição para transformar os recursos extraordinário e especial em ações rescisórias. Audiência em torno da exposição do ministro Cezar Peluso, então presidente do Supremo Tribunal Federal, sobre a matéria.

A leitura dessa exposição muito esclarece, especialmente quanto à origem dessa PEC, uma ideia do próprio ministro Peluso. Não de transformação desses recursos em rescisórias, porém de exclusão, retirada dos seus efeitos obstativos. Em síntese, o que ele então sugeria era que esses recursos passassem a ser dotados de eficácia rescindente ou rescisória. Vale dizer, desconstituição ou substituição de determinado juízo por outro.

Essa proposta de emenda constitucional, por alguma razão, não sei qual, foi arquivada. Mas a releitura da exposição de Peluso - além do quanto me esclareceu meu irmão de coração Aloysio Nunes Ferreira, que foi seu relator - é hoje, aqui e agora, fundamental. Permitam-me dela extrair alguns ensinamentos.

Nosso sistema recursal sendo composto de quatro instâncias, a mera admissibilidade de recursos impede o trânsito em julgado do quanto afirmado pelos nossos tribunais. Acontece que a nossa Constituição nada define sobre a coisa julgada e sobre o marco do trânsito em julgado. Faz referência a ambos os institutos, cuja definição é objeto de normas infraconstitucionais. Sucede que hoje, em virtude de um preceito infraconstitucional do Código de Processo Civil, a concepção de coisa julgada está ligada à condição de exaustão de todos os recursos possíveis. Bastará, portanto a alteração do seu texto para impor a prisão após condenação do réu em segunda instância.

A admissibilidade dos recursos não impedirá o trânsito em julgado das decisões recorridas. Seu eventual provimento pode conduzir à desconstituição, anulação ou cassação da decisão impugnada, caso em que o processo retornará ao tribunal de origem para que nova decisão seja proferida. Daí que esses recursos não consubstanciam ações rescisórias. Não se instaura um novo processo a partir deles. Eles somente ganham uma eficácia diversa, eficácia rescisória da coisa julgada, em caso de provimento. Coisa julgada que já se terá formado por julgamento nos tribunais de Justiça de segundo grau e nos tribunais regionais. O recurso extraordinário, o recurso especial e o recurso da área trabalhista continuarão sendo instrumentos de revisão do acerto jurídico das decisões dos tribunais locais e regionais. Recursos que não permitem exame de questões de fato e cuja possibilidade de conhecimento está adstrita unicamente a questões jurídicas, questões de Direito.

Outro ponto a considerarmos está em que a prisão após condenação do réu em segunda instância não reduz os direitos e garantias individuais. Nosso direito positivo assegura plenamente aos réus o direito de defesa mediante alegações e provas produzidas em primeiro e segundo grau de jurisdição. Em terceira e quarta instância as alegações giram apenas em torno de questões jurídicas.

No mais, procurando sintetizar suas afirmações quanto à presunção de inocência, nada, nenhuma referência a ela encontramos na nossa Constituição. Nada. Ao afirmar que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, ela apenas confere a cada réu uma garantia de tratamento digno no curso do processo. É isso que a Constituição assegura.

A leitura da notícia que li num jornal a respeito do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e a lição do Peluso, meu amigo, me fazem mesmo dar a mão à palmatória. Além de tudo, porque não me farto de afirmar, no quanto escrevo, que não se interpreta a Constituição em tiras.

A volta à juventude, quando eu não gozava da presunção de que sabia tudo e me dedicava mais à pesquisa, me dá plena consciência de que a nossa Constituição nada dispõe a respeito dos efeitos dos recursos especiais e extraordinários, matéria processual a respeito da qual a lei - não ela, a Constituição, em razão dessa ou daquela emenda - poderá/deverá dispor. O que me leva a sugerir que o nosso Poder Legislativo tudo resolva limitando-se a inovar, prudentemente, nossos Códigos de Processo Penal e Civil.

*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do STF


Eros Grau: O STF, a prisão e a Constituição

Só nova Constituinte poderá impor a prisão após condenação em segunda instância

Podemos falar e escrever como juízes, advogados ou cidadãos. Agora, escrevo como a relembrar voto que proferi como relator do Habeas Corpus 84.078-7, em 2009, quando eu era membro daquele tribunal lá de Brasília, o Supremo Tribunal Federal (STF).

Ao me referir aos juízes, desembargadores e ministros dos nossos tribunais seguidamente me repito, lembrando um texto de Sartre a propósito da conduta do garçom que executa uma série de gestos solícitos para atender o cliente. Os garçons cumprem seu papel no café ou restaurante onde trabalham sendo gentis até mesmo com clientes que detestem.

Assim é o juiz. Cumpre o papel que a Constituição lhe atribui. Não é perpetuamente juiz. Mas enquanto juiz deve representar o papel de magistrado, nos termos da Constituição e da legalidade. Não o que é (e pensa) ao cumprir outros papéis, quais os de artesão ou jardineiro, por exemplo. Poderão então prevalecer os seus valores. Enquanto juízes, contudo, hão de se submeter à Constituição e às leis.

O que me traz a escrever este texto é o recente julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) n.ºs 43, 44 e 54, o Supremo Tribunal Federal recuperando e reafirmando o quanto decidiu em 2009, no julgamento do Habeas Corpus 84.078-7.

Outro é o meu sentimento como cidadão, distinto do que dispõe a Constituição, que estabelece, no seu artigo 5.º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. E o inciso LXI desse mesmo artigo 5.º, por outro lado, aplica-se não ao cumprimento de pena, mas à prisão preventiva “em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”.

A distinção entre ambos é evidente: o primeiro – inciso LVII – diz respeito à prisão preventiva e o segundo – inciso LXI –, ao cumprimento de pena.

Mais, o preceito estabelecido pelo artigo 283 do Código de Processo Penal, que autoriza a prisão por “ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”, não é suficiente para justificar a execução antecipada da sentença. Preceitos constitucionais não podem ser expurgados por leis ordinárias.

A circunstância de ter procedido como um “garantista” durante o tempo no qual exerci a magistratura – e não como “consequencialista”, designação hoje atribuída aos juízes praticantes de direito alternativo – me traz serenidade.

Não me cansarei de repetir que vamos à Faculdade de Direito aprender Direito e não justiça. Uma indagação de Bernd Rüthers é de todo aplicável aos nossos tribunais e juízes: pode um Estado, pode uma democracia existir sem que os juízes sejam servos da lei? A resposta é negativa, dado que a independência judicial é vinculada à sua fiel obediência ao Direito positivo.

Pequenos trechos extraídos do voto que proferi no julgamento do Habeas Corpus 84.078-7, no STF, dizem o quanto desejo aqui enfatizar.

A ampla defesa não pode, em face do que dispõe a nossa Constituição, ser visualizada de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, incluídas as recursais de natureza extraordinária. A execução de sentenças após o julgamento do recurso de apelação significa restrição do direito de defesa. Uma assertiva de um meu amigo de verdade, o ministro Evandro Lins, tudo sintetiza: “Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente”.

Nas democracias, mesmo os criminosos são sujeitos de direito, não meros objetos processuais. E as singularidades de cada infração penal somente podem ser plenamente apuradas quando, nos termos do que define o artigo 5.º, inciso LVII, da nossa Constituição, transitada em julgado a condenação de seus autores.

Não fosse assim, melhor seria que os magistrados abandonassem o seu ofício e saíssem por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem os contrariasse. Cada qual com o seu porrete! Cada um por si e a Constituição contra...

A lição do profeta Isaías que se lê na Bíblia (32,15-17) basta-me por tudo: “O direito habitará no deserto e a justiça morará no vergel. O fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça consistirá na tranquilidade e na segurança para sempre”.

É certo que enquanto cidadãos gozamos da liberdade de falar como quisermos, mesmo correndo o risco de afirmar o que não tem sentido. A respeito da chamada “prisão em segunda instância”, por exemplo, há até quem chame os ministros do STF de “centauros com quatro patas de cavalo”.

Essa liberdade não deveria ser excedida mesmo pelos que não frequentaram Faculdades de Direito. Leio aqui e ali afirmações inconcebíveis, tal qual a de que as regras jurídicas podem elidir os princípios jurídicos – vale dizer regras-princípio. Mais, ignorância total do fato de que nossa Constituição, como afirmei linhas acima, nos incisos LVII e LXI do seu artigo 5.º distingue a prisão preventiva do cumprimento de pena. E, sobretudo, ironias, qual a de que o Supremo Tribunal Federal solta presos que não foram condenados em última instância para beneficiar outros.

Sei bem que uns e outros desejam fazer justiça com as próprias mãos, mas não me cansarei de reafirmar que nem mesmo os juízes fazem justiça. Pois são vinculados pelo dever de aplicar as leis e a Constituição. Justiça é lá no Céu!

Permito-me, por fim, lembrar que, como dispõe o artigo 60, parágrafo 4.º, IV, da nossa Constituição, não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais. Percebem? Somente uma nova Assembleia Constituinte poderá impor o cumprimento de sentença condenatória a partir de condenação em segunda instância!

*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do STF


Valor: Eros Grau, ex-ministro do Supremo, lança livro sobre o militante Armênio Guedes

Para ex-ministro do STF Eros Grau, que organiza livro sobre o militante Armênio Guedes, há risco de retorno aos tempos da ditadura

Por Roldão Arruda – Eu & Fim de Semana

Desde que deixou o Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, o jurista Eros Grau divide o tempo entre seus escritórios em São Paulo e Paris e sua residência em Tiradentes, interior de Minas. Aos 79 anos, dedica-se sobretudo a produzir pareceres jurídicos. Também escreve para jornais - mantém uma coluna quinzenal no “Diário de Santa Maria”, a cidade gaúcha onde nasceu - e produz obras de ficção. É um duplo, como gosta de se definir: “Um cara que faz literatura e também faz direito”. Entre um escrito e outro, ele acaba de organizar o livro de artigos “Nosso Armênio” (Globo), sobre o jornalista e militante político Armênio Guedes (1918-2015).

O volume reúne 33 artigos escritos por amigos e admiradores de Armênio. Entre eles estão os jornalistas Elio Gaspari, Juca Kfouri e Ricardo Lessa, o cientista político Marco Aurélio Nogueira, os políticos Aloysio Nunes, Almino Afonso e Milton Temer e o cineasta Zelito Viana. Trata-se sobretudo de uma homenagem a Armênio, que militou no Partido Comunista Brasileira, o “Partidão”, durante 48 anos e que mesmo antes de se desligar da legenda, em 1983, já se destacava de seus pares no debate político e empolgava militantes mais jovens por sua defesa intransigente da liberdade e da democracia.

Armênio tinha quase a mesma idade do pai de Eros Grau, mas era visto pelo jurista como uma espécie de irmão mais velho. Na entrevista a seguir, concedida em seu escritório em São Paulo, onde mantém à direita de sua mesa uma foto do pai e da mãe e, à esquerda, uma foto de um jovem e elegante Karl Marx (1818-1883), o ex-ministro fala dessa amizade e também da conjuntura política.

Valor: Como o senhor conheceu Armênio Guedes? Foi no tempo em que o senhor também militava no “Partidão”, nos anos 60 e 70?
Eros Grau: Não. Na época em que eu tinha ligação com o partido, ouvi falar do Armênio, sabia quem era, mas nunca tive contato com ele. Nosso primeiro encontro aconteceu em 1980, após a Lei da Anistia, quando ele retornou do exílio em Paris e o Roberto Miller, então diretor da “Gazeta Mercantil”, chamou-o para trabalhar com ele. Na época eu era colaborador daquele jornal, e foi lá que nos aproximamos, o que foi uma grande vantagem para mim.

Valor: Por quê?
Grau: O Armênio me orientava, dava dicas de como escrever, que assuntos abordar, que formas de abordar. Posso dizer que fui iluminado por ele. Na biblioteca da minha casa em Tiradentes, tenho na parede uma bela foto dele, que tirei num de nossos vários encontros naquela casa. Eu a mantenho lá porque me faz pensar que, embora não esteja mais por aqui, ele ainda me ilumina. Isso faz bem para a alma.

Valor: Foi por causa de sua ligação com o “Partidão” que o senhor foi preso em 1972?
Grau: Sim. Na época eu trabalhava no gabinete do Dilson Funaro [1933-1989], que era secretário do Planejamento do Estado de São Paulo. Certo dia, precisando de alguma coisa minha, ele perguntou: “Cadê o Eros? Por que ele não está aparecendo por aqui? Mande chamá-lo”. Nessa hora, um de seus assessores mais próximos criou coragem e contou que eu havia sido preso uma semana antes e estava detido no Doi-Codi de São Paulo. Depois de ouvir aquilo, o Dilson foi até o gabinete do governador, que era o Roberto Abreu Sodré [1917-1999], e disse: “Olha aqui, eu tenho um assessor, meu amigo, que foi preso. Se ele não for solto hoje, até a meia-noite, amanhã cedo eu me demito e chamo a imprensa para dizer que não posso seguir em frente com uma situação dessas”. Não sei o que o governador fez, mas sei que fui liberado naquele dia. Se eu não tivesse saído, poderia ter morrido ou ido para o exílio.

Valor: Sua prisão foi relembrada quando, em 2008, o Conselho Federal da OAB ingressou com uma ação no Supremo solicitando a revisão da aplicação da Lei da Anistia, com a anulação do perdão dado aos agentes do Estado que torturaram presos políticos. Sua indicação como relator do caso levou muita gente a pensar que, como havia sido torturado, seria favorável à revisão. Mas o senhor negou o pedido, e a ação foi rejeitada. O que o levou a essa atitude?
Grau: Desde quando cheguei ao STF em 2004, conduzido pelas mãos do Márcio Thomaz Bastos [1935-2014], todo mundo imaginou que um comunista estava chegando àquela corte e que eu seria capaz de descumprir a Constituição. Mas depois todo mundo se surpreendeu porque fui, graças a Deus, um fiel cumpridor da Constituição. Fiz o que um juiz deve fazer: aplicar a Constituição e as leis, mesmo quando não gosta. O que diz a Lei da Anistia? Diz que foi ampla, geral e irrestrita, o que significa que atingiu os dois lados. Perdi amigos e ganhei uma coleção de inimigos por causa daquele voto, mas não me importo com isso. O que importa e me dá orgulho até hoje é ter sido fiel à Constituição e às leis. Eu cumpri a lei.

Valor: Armênio Guedes, que sofreu na ditadura e teve um irmão morto sob tortura, foi ouvido pelo senhor? Ele o ajudou a tomar a decisão?
Grau: Muito. O pensamento dele está retratado no meu voto. Ele era um homem muito culto, sereno e prudente, e nós dois sempre nos colocamos um diante do outro como irmãos. Acho isso engraçado porque, embora fosse apenas um ano mais novo que meu pai, nós dois conversávamos sempre como se tivéssemos a mesma idade. Ele era meu irmão.

Valor: O que o senhor acha que Armênio diria da atual conjuntura política do país?
Grau: Eu acho que diria: raciocine com prudência, cada coisa a seu tempo. O tempo que estamos vivendo exige certa serenidade. Tenho conversado muito sobre isso com meus amigos nos encontros em minha casa em Tiradentes.

Valor: Como viu o debate sobre prisão em segunda instância? Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal decidiu que réus condenados só poderão ser presos após o trânsito em julgado, isto é, depois de esgotados todos os recursos.
Grau: A questão está definida na Constituição, no artigo 5º, inciso 57, que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória”. O STF decidiu com prudência, nos limites do quanto estabelece o artigo 2º da nossa Constituição, nos termos do qual o Legislativo faz as leis e a Constituição, o Executivo governa dentro da lei e da Constituição e o Judiciário examina se tudo está de acordo com a Constituição e as leis. Um poder não pode usurpar atividades do outro. Pode ser até que, pessoalmente, eu acredite que a prisão deveria ocorrer após a decisão de primeira instância, mas como juiz tenho que cumprir a lei e a Constituição. Sempre me orientei por isso em tudo que decidi. Fico imensamente feliz pelo fato de o STF ter confirmado o quanto afirmei em 2009, como relator do habeas corpus 84.078-7.

(Neste ponto da entrevista, Eros Grau pede ao repórter para pegar um livro na estante e ler o título. Trata-se de “Por Que Tenho Medo dos Juízes”, obra em que fala de magistrados que, alegando questões de princípios, acabam julgando de acordo com leis próprias. Conta que o assunto o interessa há muito tempo e que o livro já foi traduzido para o francês e o alemão e que brevemente será publicado em inglês.)

Valor: O senhor deu esse título para o livro em 2009. Acha que ele continua atual?
Grau: Mais do que atual.

Valor: Uma das características de Armênio Guedes mais destacadas nos artigos do livro é o apreço pela democracia. Neste momento da vida política, no qual se fala até em retomada do AI-5, o senhor acha que a democracia corre algum risco?
Grau: Sim. Observo uma tensão muito grande, com o risco de retorno aos tempos da ditadura.

Valor: Um livro sobre o Armênio pode ser útil nesta conjuntura?
Grau: Ele foi sempre um exemplo de prudência e serenidade. Foi um homem que, embora nunca tenha deixado de lado essas duas virtudes, jamais aceitou as injustiças. É um exemplo.

Valor: Quais seriam suas sugestões para se atravessar este período de tensões ao qual se referiu?
Grau: Há um grande poeta gaúcho, já um pouco esquecido, chamado Alvaro Moreyra [1888-1964], que tem um poema de dois versos que é uma maravilha. Ele diz: “A vida está toda errada/ vamos passá-la a limpo?”. É isso. Tem que passar a limpo tudo isso, o Poder Executivo tem que ser um fiel cumpridor das leis e da Constituição, o Judiciário tem que ser o controlador dos atos que se praticam e o Legislativo pode eventualmente pensar em reformular as leis.


Eros Grau escreve sobre Armênio Guedes à Política Democrática online

Em artigo exclusivo e de sua autoria, ministro aposentado do STF conta um pouco do homem que teria mais de 100 anos

Ministro aposentado do STF (Supremo Tribunal Federal), o advogado Eros Grau publicou artigo exclusivo de sua autoria na 12 edição da revista Política Democrática online. Com linguagem em primeira pessoa e narrativa que denota leveza, ele conta um pouco sobre Armênio. Saiba quem é essa pessoa que, em 30 de maio do ano passado, teria completado 100 anos. O artigo está publicado na revista produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e que disponibiliza todo o conteúdo, de forma gratuita, em seu site.

» Acesse aqui a 12ª edição da revista Política Democrática online

A seguir, leia trechos do artigo de Eros Grau:

Há uns dois anos – após uma conversa fraterna com a Cecília Comegno, Marcello Cerqueira, Élio Gaspari e outros camaradas –, a mim foi atribuída a organização de um livro lembrando nosso Armênio. Uma tarefa que encantou minha vida. Lá pela segunda quinzena de novembro será lançado, em São Paulo, pela Globolivros.

Armênio Guedes se foi para o Céu no dia 12 de março de 2015. No ano passado, 30 de maio, teria completado cem anos. Lá em cima será, no entanto, eterno.

Nascido em Mucugê, a capital baiana dos diamantes, Armênio era um deles. Sereno, aristotelicamente prudente. A serenidade ao alinhar-se à esquerda democrática europeia, ao opor-se à luta armada durante o regime militar cá entre nós e ao defender a aliança com o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) - o único partido de oposição autorizado pela ditadura --- evidenciam ter sido ele, para sempre, um diamante de humanismo. A noite de 30 de março de 2012, quando recebeu o título de Cidadão Paulistano oferecido pela Câmara Municipal de São Paulo, é inesquecível.

Durante seu exílio no Chile e na França cultivou a fraternidade, ensinando-a a todos nós. Tento colher trechos que tudo dizem nos mais de trinta textos que compõem este livro, mas me perco, incapaz de escolher este ou aqueles no multiverso da amizade. Só me resta, portanto, a opção de transcrever, nas linhas que seguem, o que brotou do meu coração.

 

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Eros Roberto Grau: Cumprimento de pena e Constituição

Ampla defesa engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária

Estou de acordo com a afirmação que li no GLOBO de domingo, 3 de novembro, na página 2, de que “nas democracias consolidadas o padrão é a pena começar a ser aplicada na condenação em segunda instância”. Outra contudo, a partir do que está escrito na nossa Constituição, é a minha convicção.

Pois ela estabelece, no seu artigo 5º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. E o inciso LXI desse mesmo artigo 5º, por outro lado, aplica-se não ao cumprimento de pena, mas à prisão preventiva “em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”.

A distinção entre ambos é evidente: o primeiro — inciso LVII — diz respeito à prisão preventiva, o segundo — inciso LXI — ao cumprimento de pena.

Mais, o preceito estabelecido pelo artigo 283 do Código de Processo Penal, que autoriza a prisão por “ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”, não é suficiente para justificar a execução antecipada da sentença. Preceitos constitucionais não podem ser expurgados por leis ordinárias.

A circunstância de ter procedido como um “garantista” durante o tempo no qual exerci a magistratura — e não como “consequencialista”, designação hoje atribuída aos juízes praticantes de direito alternativo — me traz serenidade.

Não me cansarei de repetir que vamos à Faculdade de Direito aprender direito e não justiça. Uma indagação de Bernd Rüthers é de todo aplicável aos nossos tribunais e juízes: pode um Estado, pode uma democracia existir sem que os juízes sejam servos da lei? A resposta é negativa, dado que a independência judicial é vinculada à sua fiel obediência ao direito positivo.

E uma afirmação de Kelsen também ressoa, cotidianamente, em meus ouvidos: a justiça absoluta é um ideal irracional; a justiça absoluta “ só pode emanar de uma autoridade transcendente, só pode emanar de Deus (...) temos de nos contentar, na Terra, com alguma justiça simplesmente relativa, que pode ser vislumbrada em cada ordem jurídica positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos assegurada”. A Justiça é lá em cima!

Pequenos trechos extraídos do voto que proferi no julgamento do habeas corpus 84.078-7, no STF, dizem o quanto desejo aqui enfatizar.

A ampla defesa não pode, em face do que dispõe a nossa Constituição, ser visualizada de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. A execução de sentenças após o julgamento do recurso de apelação significa restrição do direito de defesa. Uma assertiva de um meu amigo de verdade, o ministro Evandro Lins, tudo sintetiza: “Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente”.

Em certos momentos a violência integra-se ao cotidiano da nossa sociedade. Cumpre então aos juízes permanecerem atentos, em especial naqueles de desvario nos quais as massas despontam na busca de uma ética que irremediavelmente conduz ao “olho por olho, dente por dente”. Isso lhes incumbe impedir no exercício da prudência do direito.

Nas democracias, mesmo os criminosos são sujeitos de direito, não meros objetos processuais. E as singularidades de cada infração penal somente podem ser plenamente apuradas quando, nos termos do que define o artigo 5º, inciso LVII da nossa Constituição, transitada em julgado a condenação de seus autores.

Não fosse assim, melhor seria que os magistrados abandonassem seu ofício e saíssem por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem os contrariar. Cada qual com o seu porrete! Cada um por si e a Constituição contra...

A lição do profeta Isaías que se lê na Bíblia (32, 15-17) basta-me por tudo: “O direito habitará no deserto e a justiça morará no vergel. O fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça consistirá na tranquilidade e na segurança para sempre”.

*Eros Roberto Grau é ministro aposentado do STF


Revista Política Democrática || Eros Roberto Grau: Nosso Armênio

Há uns dois anos --- após uma conversa fraterna com a Cecília Comegno, Marcello Cerqueira, Élio Gaspari e outros camaradas ---, a mim foi atribuída a organização de um livro lembrando nosso Armênio. Uma tarefa que encantou minha vida. Lá pela segunda quinzena de novembro será lançado, em São Paulo, pela Globolivros.

Armênio Guedes se foi para o Céu no dia 12 de março de 2015. No ano passado, 30 de maio, teria completado cem anos. Lá em cima será, no entanto, eterno.

Nascido em Mucugê, a capital baiana dos diamantes, Armênio era um deles. Sereno, aristotelicamente prudente. A serenidade ao alinhar-se à esquerda democrática europeia, ao opor-se à luta armada durante o regime militar cá entre nós e ao defender a aliança com o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) --- o único partido de oposição autorizado pela ditadura --- evidenciam ter sido ele, para sempre, um diamante de humanismo. A noite de 30 de março de 2012, quando recebeu o título de Cidadão Paulistano oferecido pela Câmara Municipal de São Paulo, é inesquecível.

Durante seu exílio no Chile e na França cultivou a fraternidade, ensinando-a a todos nós. Tento colher trechos que tudo dizem nos mais de trinta textos que compõem este livro, mas me perco, incapaz de escolher este ou aqueles no multiverso da amizade. Só me resta, portanto, a opção de transcrever, nas linhas que seguem, o que brotou do meu coração.

Lá se foi o tio!

Não sei por onde começar, de verdade.

Karin e Werner, meus filhos, passaram a conviver com Armênio, pelas mãos da Rosa, antes de nós. Com ele aprenderam, como nós, Tania e eu, que a vida não pode ser, a vida é maravilhosa!

Nossos jantares em Paris, em São Paulo, em Tiradentes e nos restaurantes da Ida Maria eram formidáveis. Armênio está/estará conosco sempre que nos reunirmos, Cecília, Ida Maria, frei Oswaldo, Tania e eu.

Não sei por onde começar, de verdade.

Ele nasceu em 1918, dois anos após meu pai, mas era como se fôssemos da mesma idade, como se fôssemos irmãos.

Todo o tempo durante o qual exerci a magistratura, o olhar de Armênio, iluminado pela phrónesis de Aristóteles, me inspirou. Nada de ciência, prudência. Armênio iluminou o voto que proferi, como relator, no processo no qual se discutia amplitude da anistia, a ADPF 153. Conversamos muito, longamente, e o Tio inspirou caminhos que me levaram ao correto.

Tenho inúmeras histórias a contar de meu irmão mais velho, mas vou me conter, relatando uma apenas.

No dia 14 de dezembro de 2011, arrematei em um leilão na Rua Oscar Freire, por uma ninharia [trinta reais], um bilhete manuscrito atribuído ao Prestes, assinado “CP[1]. Sabia que o bilhete não era dele, mas comprei. No dia seguinte, à tarde, fui visitar o Armênio, levando o bilhete comigo. Era dezembro, Tania e eu iríamos à França, eu desejava abraçá-lo.

Armênio confirmou imediatamente que não era de Prestes. Em seguida, abriu uma gaveta de sua escrivaninha e me deu, dobrado, acondicionado em um pequeno envelope de plástico --- destes para guardar CPF --- outro bilhete, este realmente a ele enviado pelo Prestes.

16 de fevereiro de 1974. Um bilhete enviado a André, codinome do Armênio. Fiquei encantado. E tanto que o Tio --- em gesto largo e demorado, moscovita --- disse-me que ficasse com ele.  Senti-me imensamente feliz e o guardei dentro de uma pasta de elástico, na qual trazia o papel arrematado no dia anterior.

Desci do apartamento do Armênio, na Rua Aracaju, caminhei até a Praça Vilaboim e tomei um táxi. Vinha comigo um segurança que, por conta de ter sido ministro do STF, ainda então me acompanhava.

Cheguei em casa um pouco antes de Tania, que saíra por outra razão. Assim que ela entrou no escritório, entusiasmado abri a pasta de elástico e o bilhete de Prestes desaparecera... Eu o havia perdido. Sentia-me perdido, tudo estava perdido. Desci até o lugar em que o taxi me deixara, procurei, na rua, no elevador, mas nada.

Iríamos a uma pizzaria, jantar com colegas da Faculdade. Tania insistiu em que fôssemos. Eu queria desaparecer do mundo. Estava desolado, como se para sempre desolado. De repente meu telefone celular tocou! Era o segurança, contando que voltara à Rua Aracaju (ele sentira que eu estava desolado) e, ao passar pela frente do prédio do Armênio, o zelador fez um psiu e disse “olha aqui, vocês deixaram cair quando saíram”.

O bilhete do Prestes recuperado, reencontrado, como se eu novamente o ganhasse de presente!

Conservo esta preciosidade em uma caixinha vermelha --- é óbvio! --- feita especialmente para que eu o conservasse!

Sinto um nó na garganta pensando nele e, como as palavras não dizem quase nada, permito-me em seguida reproduzir um pequeno texto meu publicado n'O Globo, no dia 17 de março de 2015, cinco dias depois da partida do Armênio:

Lá se foi Júlio, o “tio”.

Está lá, no céu --- “uma cidade de férias, férias boas que não acabam mais”, como diz, em um lindo poema, Álvaro Moreyra.

Armênio Guedes --- Júlio, o “tio” --- certa vez me contou de sua proximidade a Álvaro, que se foi há cinquenta anos. Armênio partiu na quinta-feira passada.

Agora é como se eu corresse os olhos, dominando o tempo, por inúmeros momentos do passado. Em Paris --- um jantar espetacular que Ida Maria, Cecília e Tania, minha mulher, prepararam para nós. Em nossa casa, em Tiradentes. Em São Paulo. Armênio ensinando o futuro a minha filha. A mim recomendando prudência, mais de uma vez.

Lá se foi o amigo mais sereno. Seu olhar desdobrava esperança, paz. Revolucionar o mundo, construir a fraternidade, mas em paz, harmonia e paz.

Um dos mais belos momentos que vivi aconteceu na quinta-feira que passou. Alguns amigos em volta do seu corpo, de repente o chão se abrindo para que a matéria fosse levada para sempre.

Antes, durante breves instantes, confraternizamo-nos. Estivemos mais próximos do que nunca, entre nós e a ele. Uns foram capazes de dizer algumas palavras. Faltaram-me forças para mencionar o quanto meu velho camarada me ensinou, para ao menos sussurrar a palavra amizade.

Alguém trouxera, para ser reproduzida, a gravação de uma canção que, naquele verso --- nesta luta final ---, ressoa em nossos corações.

Lá se foi o corpo de Armênio. A esperança refletida no fundo de seus olhos serenos resta entre nós. Iluminando os caminhos a serem experimentados pelos amigos que ainda cá estão. Um dia por certo nos reencontraremos na cidade de férias, férias boas que não acabam mais.

 

[1]  Posteriormente Ana Maria Martins afirmou-me que se trata do pintor Carlos Prado.


Eros Roberto Grau: A Lei da Anistia

Há episódios que não podem ser esquecidos, mas os juízes não fazem justiça, são servos da lei

São Paulo, 31 de janeiro de 2010. No dia seguinte voltaríamos a Brasília, eu ao Supremo Tribunal Federal (STF). Almoçávamos num restaurante ao lado de nosso apartamento em São Paulo, minha mulher e eu, nossa conversa girando em torno da decisão que eu planejava tomar assim que lá chegasse, a decisão de me aposentar. Então, de repente, eu lhe disse que, se então me aposentasse, anos depois diria a mim mesmo que isso fizera para fugir do encargo de relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153.

Uma entrevista minha publicada aqui, no Estadão, em 28 de agosto (A14), levou-me agora a relembrar o passado. Ir de volta a ele, 2010, relembrando-o - o passado -, foi fundamental para que eu decidisse deixar o tribunal somente após o julgamento desse processo.

Antes de tudo, talvez, um episódio que suportei em 1970 - quando estive preso no DOI/Codi, de lá saindo pelas mãos de Dilson Funaro e Abreu Sodré -, episódio que há de ter levado advogados autores dessa ADPF a um desastrado equívoco. À suposição de que por conta desse episódio eu me comportaria não como magistrado fiel cumpridor do Direito Positivo, mas pretendendo a ele retornar e vingar o passado.

Tentei durante todo o tempo em que exerci a magistratura ser conduzido pela phronesis aristotélica. Reafirmando que juízes e tribunais são vinculados pelo dever de aplicar as leis. Dever de praticar prudência, produzir jurisprudência, e não arte ou ciência. Como reafirmei aqui mesmo, em artigo publicado na edição de 12 de maio de 2018, fazer e aplicar as leis (lex) e fazer justiça (jus) não se confundem.

Assim procedi como relator da ADPF 153. Como um autêntico juiz, não como ator diante de câmeras de televisão. Convicto de que os juízes não fazem justiça, são servos da lei.

Lendo O Ser e o Nada dou-me conta de que a eles se aplica o quanto Sartre diz da conduta do garçom de um café, que executa uma série de gestos solícitos para atender o cliente, traz o pedido até a mesa equilibrando a bandeja, etc. Exatamente assim são os juízes ao cumprirem o papel que a Constituição lhes atribui. Podem ser tudo, no sentido de que não são perpetuamente juízes. Mas enquanto juízes hão de exercer, representar seu papel nos termos da Constituição e da legalidade. Não o que são quando cumprem outros papéis - de professor, artesão ou jardineiro, por exemplo - e se relacionam com os outros ou consigo mesmo. Enquanto não estiverem a judicar, poderão prevalecer os seus valores. Como juízes, contudo, hão de submeter-se à Constituição e às leis, unicamente nos seus quadros tomando decisões.

Tenho agora em minhas mãos o voto que proferi na inesquecível sessão do STF, em abril de 2010, de onde recolho trechos que me permito a esta altura relembrar.

O artigo 1.º da Lei 6.683/79 concedeu anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, seu parágrafo 1.º definindo como conexos “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.

No Estado Democrático de Direito o Poder Judiciário não está autorizado a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a qualquer texto normativo. Cabe bem lembrarmos, neste passo, trecho do voto do ministro Orozimbo Nonato no Recurso Extraordinário Criminal 10.177, julgado em 11 de maio de 1948: “Ao Poder Judiciário cabe apenas o encargo de interpretar a lei que traduz a anistia, sua extensão e alcance quanto aos fatos e às pessoas. No que tange ao mais, nada lhe cumpre fazer”.

A anistia da Lei de 1979 foi reafirmada no texto da Emenda Constitucional (EC) 26/85 e pelo poder constituinte da Constituição de 1988. Todos, estão todos como que (re)anistiados pela emenda, que abrange inclusive os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Por isso não tem sentido questionar se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988. Pois a nova Constituição a (re)instaurou em seu ato originário. A norma prevalece, mas o texto - o mesmo texto - foi sobreposto por outro. O texto da lei ordinária de 1979 resultou substituído pelo texto da emenda constitucional, que a constitucionalizou.

A EC 26/85 consubstancia a ruptura da ordem constitucional que decaiu no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988. Daí que a reafirmação da anistia da lei de 1979 já não pertence à ordem decaída. Está integrada na nova ordem.

De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1.º do artigo 4.º da EC 26/85, existirá a par dele (dicção do § 2.º do artigo 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil).

Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade - totalidade que do novo sistema normativo - tem-se que “(é) concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos” praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

Ao fim destas linhas, lembrando o que afirmei ao final do voto que proferi no julgamento da ADPF 153, é necessário dizermos, vigorosa e reiteradamente, que a decisão pela sua improcedência não exclui o repúdio a todas as modalidades de tortura, de ontem e de hoje, civis e militares, policiais ou de delinquentes. Há episódios na nossa vida que não podem ser esquecidos, mas os juízes - repito - não fazem justiça, são servos da lei.

*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do STF


Eros Roberto Grau: Marx e Armênio, três séculos em maio!

Se me perguntarem o que me une aos dois, direi que é a Amizade

Eis de repente, aqui, o mês de maio e suas rosas. A uma delas - qual na canção de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy - ofereço meu coração. Ouço essa canção, agora, numa velha vitrola de discos de 78 rotações, lembrando-me de dois amigos.

Ao me aproximar dos 80 anos - chegarei lá? -, dúvidas tomam conta de mim e o esquecimento, uma coisa terrível, me comove. Não que não me lembre disto ou daquilo, não. O esquecimento dos outros e pelos outros é que me entristece.

No dia 27 de fevereiro passado participei de um debate organizado pelo Estadão cujo tema era “Modernizar a Constituição”. Ali pelas tantas, citei um trecho escrito por alguém no século 19: “Em um determinado estado do seu desenvolvimento, as forças materiais produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou - o que não constitui senão uma expressão jurídica delas - com as relações de propriedade no seio das quais vinham se movendo até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, essas relações se tornam entraves delas. Inicia-se então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera mais ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura”.

O auditório estava completo, cheio de gente atenta a escutar-nos, mas apenas duas pessoas se deram conta de que eu acabara de ler algumas linhas escritas por um velho alemão, o camarada Karl Marx, no prólogo da Contribuição à Crítica da Economia Política!

A vida é maravilhosa, porém de repente tudo se vai. Como diz o Álvaro de Campos, vulgo Fernando Pessoa, depois que nos formos só seremos lembrados em duas datas, aniversariamente: quando fizer anos que nascemos e quando fizer anos que morremos; mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.

Um nasceu cem anos depois do outro. Os dois completariam, lado a lado, 300 anos neste mês em que estamos. Marx e meu amigo que se foi em março de 2015, o camarada Armênio Guedes. Tenho agora em minhas mãos os textos de um livro a ser publicado em homenagem ao centenário do Armênio, 33, escritos por amigos seus de verdade.

Armênio nasceu no dia 30 de maio de 1918, em Mucugê, na Bahia. O velho Marx, no dia 5 de maio de 1818, em Tréveris, na Alemanha. Estive seguidamente com os dois.

Ao alemão fui apresentado por meu pai - que também nasceu em maio, no dia 9, em 1916 - quando tinha 15 anos. Entregou-me um livro de Marx - não me recordo se o Manifesto ou outro -, recomendando-me que o lesse com atenção. Em 1955 a televisão e a internet ainda não existiam como instrumentos do modo de produção social que está por aí. Os jovens liam, alguns também escreviam.

Do Armênio aproximei-me nos anos 1980. Quando ele se foi, escrevi um pequeno texto no qual afirmei que lá se fora o Júlio, o Tio, como o chamavam seus companheiros de exílio - Cecília, sua mulher, minha amiga, passou a vida toda chamando-o de Júlio!

Afirmei então que naquele momento era como se eu corresse os olhos, dominando o tempo, por inúmeros instantes do passado. Em Paris, em minha casa em Tiradentes (MG), em São Paulo. Armênio ensinando o futuro a minha filha. A mim recomendando prudência, mais de uma vez.

Lá se fora o amigo mais sereno. Seu olhar desdobrava esperança, paz. Revolucionar o mundo, construir a fraternidade, mas em paz, harmonia e paz. Alguns amigos em volta do seu corpo, de repente o chão se abrindo para que a matéria fosse levada para sempre. Antes, durante breves instantes, confraternizamos. Estivemos mais próximos do que nunca, entre nós e a ele. Uns foram capazes de dizer algumas palavras. Faltaram-me forças para mencionar o quanto o meu velho camarada me ensinara, para ao menos sussurrar a palavra amizade. Alguém trouxera, para ser reproduzida, a gravação de uma canção que, naquele verso - nesta luta final -, ressoa em nossos corações.

Lá se fora o corpo de Armênio. A esperança refletida no fundo de seus olhos serenos restava, no entanto, entre nós. Iluminando os caminhos a serem experimentados pelos que ainda lá estavam. Um dia por certo nos reencontraremos na cidade de férias, férias boas que não acabam mais.

Tenho estórias e histórias a contar de nossas conversas, do Tio corrigindo e emendando artiguinhos que escrevi para serem publicados na Gazeta Mercantil e de minhas confidências de irmão. Durante o tempo todo em que exerci a magistratura, seu olhar, iluminado pela phrónesis de Aristóteles, me inspirou. Nada de ciência, prudência. Armênio iluminou o voto que proferi, como relator, no processo em que se discutia amplitude da anistia. Conversamos muito, longamente, foi ele que me conduziu em direção ao correto. Curiosamente, sempre o tive como um irmão, embora ele e meu pai tivessem nascido em 1916 e em 1918, nos meses de maio de então.

Com Marx estive também, em tudo quanto li do que escreveu. Guardo ao lado dos meus livros, cá em Tiradentes - onde estou agora a escrever - fotos desses meus dois amigos de verdade.

Como o espaço que aqui me resta é pequeno, basta-me repetir uma lição do então jovem Marx - quando a escreveu - a respeito do Direito e das leis: “A lei é universal; o caso que deve ser decidido através da lei é individual; para submeter o individual ao universal é necessário um julgamento; o julgamento é problemático; o juiz também faz parte da lei; se as leis fossem aplicadas por si mesmas, os tribunais seriam supérfluos”.

Se me perguntarem o que me une aos dois, direi que é a Amizade. Nós a cultivaremos em algum lugar do Espaço, para sempre.

* Eros Roberto Grau - advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)