Se me perguntarem o que me une aos dois, direi que é a Amizade
Eis de repente, aqui, o mês de maio e suas rosas. A uma delas – qual na canção de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy – ofereço meu coração. Ouço essa canção, agora, numa velha vitrola de discos de 78 rotações, lembrando-me de dois amigos.
Ao me aproximar dos 80 anos – chegarei lá? -, dúvidas tomam conta de mim e o esquecimento, uma coisa terrível, me comove. Não que não me lembre disto ou daquilo, não. O esquecimento dos outros e pelos outros é que me entristece.
No dia 27 de fevereiro passado participei de um debate organizado pelo Estadão cujo tema era “Modernizar a Constituição”. Ali pelas tantas, citei um trecho escrito por alguém no século 19: “Em um determinado estado do seu desenvolvimento, as forças materiais produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou – o que não constitui senão uma expressão jurídica delas – com as relações de propriedade no seio das quais vinham se movendo até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, essas relações se tornam entraves delas. Inicia-se então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera mais ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura”.
O auditório estava completo, cheio de gente atenta a escutar-nos, mas apenas duas pessoas se deram conta de que eu acabara de ler algumas linhas escritas por um velho alemão, o camarada Karl Marx, no prólogo da Contribuição à Crítica da Economia Política!
A vida é maravilhosa, porém de repente tudo se vai. Como diz o Álvaro de Campos, vulgo Fernando Pessoa, depois que nos formos só seremos lembrados em duas datas, aniversariamente: quando fizer anos que nascemos e quando fizer anos que morremos; mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Um nasceu cem anos depois do outro. Os dois completariam, lado a lado, 300 anos neste mês em que estamos. Marx e meu amigo que se foi em março de 2015, o camarada Armênio Guedes. Tenho agora em minhas mãos os textos de um livro a ser publicado em homenagem ao centenário do Armênio, 33, escritos por amigos seus de verdade.
Armênio nasceu no dia 30 de maio de 1918, em Mucugê, na Bahia. O velho Marx, no dia 5 de maio de 1818, em Tréveris, na Alemanha. Estive seguidamente com os dois.
Ao alemão fui apresentado por meu pai – que também nasceu em maio, no dia 9, em 1916 – quando tinha 15 anos. Entregou-me um livro de Marx – não me recordo se o Manifesto ou outro -, recomendando-me que o lesse com atenção. Em 1955 a televisão e a internet ainda não existiam como instrumentos do modo de produção social que está por aí. Os jovens liam, alguns também escreviam.
Do Armênio aproximei-me nos anos 1980. Quando ele se foi, escrevi um pequeno texto no qual afirmei que lá se fora o Júlio, o Tio, como o chamavam seus companheiros de exílio – Cecília, sua mulher, minha amiga, passou a vida toda chamando-o de Júlio!
Afirmei então que naquele momento era como se eu corresse os olhos, dominando o tempo, por inúmeros instantes do passado. Em Paris, em minha casa em Tiradentes (MG), em São Paulo. Armênio ensinando o futuro a minha filha. A mim recomendando prudência, mais de uma vez.
Lá se fora o amigo mais sereno. Seu olhar desdobrava esperança, paz. Revolucionar o mundo, construir a fraternidade, mas em paz, harmonia e paz. Alguns amigos em volta do seu corpo, de repente o chão se abrindo para que a matéria fosse levada para sempre. Antes, durante breves instantes, confraternizamos. Estivemos mais próximos do que nunca, entre nós e a ele. Uns foram capazes de dizer algumas palavras. Faltaram-me forças para mencionar o quanto o meu velho camarada me ensinara, para ao menos sussurrar a palavra amizade. Alguém trouxera, para ser reproduzida, a gravação de uma canção que, naquele verso – nesta luta final -, ressoa em nossos corações.
Lá se fora o corpo de Armênio. A esperança refletida no fundo de seus olhos serenos restava, no entanto, entre nós. Iluminando os caminhos a serem experimentados pelos que ainda lá estavam. Um dia por certo nos reencontraremos na cidade de férias, férias boas que não acabam mais.
Tenho estórias e histórias a contar de nossas conversas, do Tio corrigindo e emendando artiguinhos que escrevi para serem publicados na Gazeta Mercantil e de minhas confidências de irmão. Durante o tempo todo em que exerci a magistratura, seu olhar, iluminado pela phrónesis de Aristóteles, me inspirou. Nada de ciência, prudência. Armênio iluminou o voto que proferi, como relator, no processo em que se discutia amplitude da anistia. Conversamos muito, longamente, foi ele que me conduziu em direção ao correto. Curiosamente, sempre o tive como um irmão, embora ele e meu pai tivessem nascido em 1916 e em 1918, nos meses de maio de então.
Com Marx estive também, em tudo quanto li do que escreveu. Guardo ao lado dos meus livros, cá em Tiradentes – onde estou agora a escrever – fotos desses meus dois amigos de verdade.
Como o espaço que aqui me resta é pequeno, basta-me repetir uma lição do então jovem Marx – quando a escreveu – a respeito do Direito e das leis: “A lei é universal; o caso que deve ser decidido através da lei é individual; para submeter o individual ao universal é necessário um julgamento; o julgamento é problemático; o juiz também faz parte da lei; se as leis fossem aplicadas por si mesmas, os tribunais seriam supérfluos”.
Se me perguntarem o que me une aos dois, direi que é a Amizade. Nós a cultivaremos em algum lugar do Espaço, para sempre.
* Eros Roberto Grau – advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)