época

Monica de Bolle: Estado mínimo para quem?

Esse Brasil que Paulo Guedes carrega na cabeça e tenta concretizar por atos e palavras está sendo rejeitado por todos aqueles que, da quarentena da indignação, batem panelas e gritam de suas janelas

Nesta quarentena da indignação não há um dia sequer em que não soframos alguma afronta do governo Bolsonaro, de seus ministros e de suas respectivas equipes. Mais uma vez, meteu os pés pelas mãos recentemente o ministro Paulo Guedes, cujos feitos dessa natureza são realmente espantosos. Perguntado sobre a prorrogação do auxílio emergencial, aquele cujo objetivo era impedir que as pessoas vulneráveis tivessem de escolher entre passar fome ou se contaminar, Guedes disse que pensa em reduzir o valor do benefício de R$ 600 mensais para R$ 200 mensais, o valor inicialmente defendido pelo governo federal. Antes dele, o secretário do Tesouro havia dito que não há dinheiro para pagar a renda básica, qualquer renda básica de natureza permanente. Quais contas ele apresentou? Em que dados fundamentou sua fala? Ora, em nenhum, evidentemente.

Neste exato momento, há pesquisadores pelo país trabalhando em diferentes propostas de renda mínima: fazem contas, buscam os fatos. Em artigo publicado no jornal britânico Financial Times, apresentei alguns cálculos para o Brasil e mostrei que daria, sim, para adotar um programa de renda básica permanente. Há vários projetos de lei para a criação da renda básica tramitando no Congresso. Destaco dois: o de autoria do senador Randolfe Rodrigues, que ajudei a elaborar, e o de autoria do senador José Serra. Em meio a todo esse trabalho, o secretário do Tesouro de Guedes teve o desplante de vir a público, mão na frente outra atrás, para dizer que não é possível fazer o que é preciso fazer sem apresentar qualquer sustentação para seu argumento. Será difícil esquecer essa fala.

Ao mesmo tempo, seu chefe tenta voltar à ladainha dos R$ 200, sumariamente atropelada em abril pela sociedade civil e pelo Congresso Nacional, que enxergaram as necessidades da população brasileira. Para piorar, Guedes tenta retomar a discussão de seu infame “coronavoucher” enquanto acena para as empresas aéreas. Sim, as empresas aéreas estão sofrendo nessa pandemia. Sim, vários países fizeram pacotes de socorro para empresas do setor, e alguns tentam fazer até mais do que já fizeram. Mas reparem: socorrer as empresas aéreas significa destinar recursos públicos para elas, uma espécie de estatização parcial. Quem está defendendo a estatização parcial é ninguém menos do que o ministro Estado Mínimo, aquele que na semana passada queria privatizar tudo. Como é isso então? Estatizamos parcialmente empresas aéreas gastando dezenas de bilhões de reais em recursos públicos, mas nada fazemos pela população que precisa do auxílio emergencial? Se o cobertor é curto, como vem nos dizendo o secretário do Tesouro, qual é a escolha moral? Essa não é uma pergunta retórica. Trata-se de uma crise humanitária.

“As escolhas de política pública, ou seja, a decisão sobre como gastar em um cenário que envolve recursos escassos e consequências mortais é uma escolha moral”

A depender de como forem feitas as opções e de quais forem os parâmetros que as determinarem, os responsáveis no mínimo terão de responder moralmente junto à sociedade. Afinal de contas, trata-se de escolher entre salvar vidas diretamente ou de preferir ignorar o único dilema que importa.

Em artigo para o jornal O Estado de S. Paulo desta semana, escrevi sobre nossa falência moral como sociedade, nossa decadência. Ela está aí, para ser vista a olhos nus. Nossos companheiros de números espantosos da epidemia são Donald Trump, Vladimir Putin e Boris Johnson — a tríade que forma a quadra nacionalista-populista-negacionista com Jair Bolsonaro. Jair Bolsonaro, aquele cuja popularidade cai a cada dia de desgraça. Mas, sim, divago.

Volto ao ministro e a sua equipe. A quem diz respeito o Estado Mínimo de Paulo Guedes? Aos pobres? Aos vulneráveis? Àqueles que nada podem fazer para penalizar a infinita incompetência desvelada a cada dia? Esse Brasil do Estado Mínimo para os pobres é velho, tosco, injusto, desgraçado. Esse Brasil que o ministro carrega na cabeça e tenta concretizar por atos e palavras está sendo rejeitado por todos aqueles que, da quarentena da indignação, batem panelas e gritam de suas janelas. Paulo Guedes entrou no governo como superministro, posto Ipiranga. Se tiver sorte, sairá do governo — porque um dia tudo passa, sobretudo ministros — tão microscópico quanto seu abjeto Estado Mínimo.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica De Bolle: A agenda da cidadania

Sem o cuidado das pessoas, não há economia que resista ao choque inédito que testemunhamos

A pandemia e a crise econômica nos oferecem dor, ansiedade, tristeza. Mas a pandemia e a crise econômica também nos oferecem liberdade, justiça e avanços em direitos. Como já argumentava Thomas Paine no século 18, não há liberdade plena sem direitos fundamentais e, para alcançar tais direitos fundamentais, um humanista não pode deixar de defender que o Estado cumpra seus papéis fundamentais. Paine é uma espécie de guru dos libertários norte-americanos, muitos deles defensores das ideias de alguns intelectuais da Universidade de Chicago nos anos 1960 e 70, como o Estado mínimo. O que esses libertários talvez tenham preferido esquecer é que Paine, junto com outros grandes pensadores, lançou as bases do Estado de Bem-Estar social, cujo pilar era a renda básica, sobretudo para os mais jovens e os idosos.

No Brasil, a renda básica, ou a renda básica da cidadania, foi a luta de quase uma vida inteira do ex-senador Eduardo Suplicy. Não à toa, o ex-senador cita Thomas Paine em suas obras. Afinal, vem dali a ideia de cidadania, de que a renda básica transcende o assistencialismo para alcançar outro patamar de justiça social. Esse patamar diz respeito ao humano e a como nos percebemos uns aos outros. Antes da pandemia, era comum considerar esses temas como sendo utópicos, fantasias de intelectuais e políticos que jamais teriam chance de realização. Mas eis que, em plena pandemia, começamos a observar a formação de uma coalizão para construir uma nova realidade, mais justa, mais igualitária, mais humanista, aparecendo a renda básica como o eixo de uma economia com olhar humanista: uma economia do cuidado. Sem o cuidado das pessoas não há economia que tenha qualquer capacidade de resistência ao choque inédito que testemunhamos.

Já tratei da renda básica nesse espaço diversas vezes ao longo dos últimos dois meses. Aos trancos e barrancos, o Brasil conseguiu formar um consenso em torno da renda básica emergencial, programa que ainda haverá de ganhar as páginas dos jornais internacionais, hoje chocadas com a boçalidade presidencial. Tornar esse benefício permanente significa dar alguma chance a dezenas de milhões de brasileiros que hoje estão visíveis, posto que diretamente atingidos pela calamidade. Tornar permanente esse benefício representa uma chance ao Brasil de se mostrar novamente pioneiro pragmático de ideias antigas.

Há, nesse momento, muitos estudiosos debruçados sobre o tema da renda básica permanente, tentando desenhar propostas viáveis. São muitos os obstáculos. Eles vão desde a falsa ideia de que pessoas mais pobres, se receberem um benefício como a renda básica, deixarão de trabalhar – tese amplamente derrubada pelos vários estudos empíricos existentes – até as preocupações com o financiamento desse programa. A renda básica permanente, em tese, é mais onerosa do que o Bolsa Família. Contudo, se unificarmos todos os programas sociais do Brasil para financiá-la, há especialistas mostrando que parte significativa do custo seria coberta. Além disso, é sempre bom lembrar que aqueles que menos recebem são aqueles que mais consomem. Afinal, não é dada aos mais pobres a condição de poupar. Sendo assim, a renda básica fomenta consumo e consumo fomenta arrecadação, o que significa que o programa é, por definição, parcialmente autofinanciável.

Mas há outra questão de justiça social que caminha lado a lado com a renda básica: a justiça tributária. O País não pode mais ter uma estrutura que depende de tributação sobre o consumo e produção por serem esses impostos regressivos e empecilhos ao dinamismo e à produtividade de nossas empresas. É hora, sim, de começar a pensar na inversão da pirâmide tributária brasileira, desonerando o consumo e a produção, e onerando a renda e o patrimônio. Há quem diga que onerar patrimônio é contraproducente, pois levará à saída de recursos do País. Trata-se de um equívoco. Patrimônio não é apenas dinheiro no banco, mas imóveis e outros recursos que não são facilmente removíveis. Ninguém vai pôr um edifício debaixo do braço e sair com ele pelo mundo. Ainda que pudesse fazê-lo, para onde o levaria? Para a Europa? Para os Estados Unidos? Nesses países existe tributação de patrimônio e de renda. E neles se discute, hoje, a elevação desses tributos. Para quê? Para que se possa ter uma agenda de cidadania para enfrentar a crise humanitária.

O Brasil não é diferente, não há qualquer particularidade que o impeça de pensar essa agenda. Ao contrário, no Brasil há uma avenida de oportunidade para reduzir as desigualdades profundas e diversas. O Brasil só será diferente se resolver desperdiçar o momento valioso para uma frutífera e esperançosa discussão. A discussão sobre a agenda da cidadania é a única que realmente importa.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Guilherme Amado: O fisiologismo à Bolsonaro

O abraço escancarado no centrão não chega a surpreender: a exemplo da guerra à corrupção, o fim do fisiologismo sempre foi só discurso

O Palácio do Planalto fez uma caçada no domingo 19 ao telefone dos ex-deputados Roberto Jefferson e Cristiane Brasil, pai e filha, expoentes do centrão, mesmo que hoje sem cargo. Jair Bolsonaro queria falar diretamente com Jefferson, curioso para saber o que o pivô do mensalão revelaria mais tarde numa live sobre um suposto plano de Rodrigo Maia para derrubar o presidente da República. Bolsonaro logo soube o que pretendia o ex-companheiro de Câmara e partido. Jefferson está disposto a fazer com Bolsonaro o mesmo que fez com Fernando Collor e com Michel Temer: ao perceber a decadência de um governo e a fragilidade política de um presidente, estender a mão. Atacaria Rodrigo Maia, sem apresentar fato que sustentasse o tal golpe por vir, em troca disso.

Claro que se trata de uma aproximação despretensiosa, baseada nos mais elevados princípios da República. De cristão para cristão. Mas quis o destino que o namoro, para usar a terminologia presidencial, se desse na mesma semana do divórcio litigioso com Sergio Moro. A saída do símbolo da Lava Jato — para o bem e para o mal — e a entrada de Jefferson para a base do governo foram simbólicos de uma ruptura na prática com algo que Bolsonaro só fez no discurso, ao longo da vida parlamentar e também como presidente: o tal do combate à corrupção. Embora sua eleição tenha ocorrido em parte no embalo do papo de enfrentar o crime de colarinho-branco, nunca houve de fato um esforço do presidente para tanto. O abraço escancarado no centrão de Jefferson, Valdemar Costa Neto, Arthur Lira e Gilberto Kassab tem ocorrido sem constrangimento. O que não chega a surpreender: a exemplo da guerra à corrupção, o fim do fisiologismo sempre foi só discurso.

O bolsonarismo só havia tirado da cartola um novo tipo de fisiologismo, desde a formação inicial do governo. Ou não é fisiologismo nomear militares porque são militares e não necessariamente pela qualificação técnica? Evangélicos por serem evangélicos? Um veterinário sanfoneiro para a presidência da Embratur? Uma blogueira para coordenar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional? Um deputado investigado por criar candidaturas laranjas como ministro? Tentar emplacar o filho — o filho — como embaixador nos Estados Unidos? Bater o recorde de emendas parlamentares liberadas para aprovar a reforma da Previdência? Nada disso difere de aceitar um indicado do centrão.

Mesmo o centrão tem cargos desde o começo. Basta perguntar a qualquer líder dos novos partidos com relação direta com Bolsonaro — PP, PTB, Republicanos, PSD — sobre o que o DEM, esse também do centrão, vale lembrar, tem ou já teve no governo. Foi o único a ter três ministérios, Agricultura, Cidadania e Saúde, até a saída de Luiz Henrique Mandetta. Embora a legenda diga que os ministérios não são indicações da cúpula partidária, é inevitável lembrar que só a sigla com as presidências do Senado e da Câmara teve tantas pastas. O partido nomeou ainda para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). No Ministério da Saúde, o ex-deputado José Carlos Aleluia (DEM-BA) ganhou uma assessoria e o também ex-deputado Abelardo Lupion (DEM-PR) uma diretoria.

Roberto Jefferson foi um dos poucos réus políticos do mensalão que admitiu ter pego dinheiro: R$ 4 milhões pagos pelo PT. Ficou um ano em regime fechado e depois cumpriu a pena em casa. Hoje, é réu na Justiça Federal do Distrito Federal, acusado de integrar uma organização criminosa no governo Temer, para a concessão de registros sindicais em troca de propina — acusação que ele refuta. Seu plano, agora, é levar Bolsonaro de volta ao PTB.

Bolsonaro foi do PTB de Jefferson, bem como foi também do PDC, PPR, PP, PFL (hoje DEM), PSC e, ufa, do PSL. O delator do mensalão acha que o partido deve voltar a ser o lar do presidente. “Estou do lado do capitão. Faço a defesa dele de coração, com minha alma, brandindo a espada sagrada que tenho em defesa do legado que recebi de meus antepassados”, disse à coluna, afiado em jeffersonês castiço. Perguntado se quer cargos, é rápido no gatilho: “Sabe qual cargo eu quero do governo Bolsonaro? Quero trazer para o PTB o cargo de presidente da República. Eu quero que Bolsonaro venha para o PTB. Ele já foi do partido e tem tapete vermelho para voltar com o grupo dele. Bolsonaro vai conhecer um partido de verdade, de homens de verdade, que não correm da luta”.

Até outro dia, pouco antes de Bolsonaro bater recorde no número de pedidos de impeachment em tão pouco tempo — já foram 31, em 15 meses de governo — a relação entre centrão e bolsonaristas não era, ao menos publicamente, boa. “Deus nos livre e guarde do centrão”, escreveu a bolsonarista Bia Kicis. “Eu sou contra qualquer acordo com o centrão”, defendeu Alê Silva, também defensora do governo. “Nos foi colocado na mesa pelo centrão duas opções. Uma verdadeira chantagem. Não vamos ceder”, bradou Luiz Lima, outro do PSL pró-Bolsonaro. Mas os três deputados federais foram às redes sociais nesse tom antes da agonia de Bolsonaro fazê-lo rifar Moro para controlar a Polícia Federal e insistir numa conexão com os partidos de centro.

Agora, o que está se tentando formar é uma só base, que vai congregar bolsonaristas e centrão. Sem rubor de nenhuma parte e com o beneplácito de generais com assento no Planalto, a exemplo dos ministros Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto.

A militância digital parou da noite para o dia de atacar o centrão nas redes sociais. “Virei rei nas redes sociais de meu estado. Não apanho mais”, contou, pedindo sigilo, um dos líderes partidários que se sentou com Bolsonaro e que está pleiteando um dos cargos que era do DEM.

Agora longe dessa turma, Moro perdeu quase todas as batalhas que travou em seus 15 meses de governo. Saiu menor do que entrou e maculou sua biografia, podendo impactar até o destino jurídico de Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda se espera, afinal, do voto de Celso de Mello, que pode desempatar o 2 a 2 do pedido de anulação da sentença de Lula, que tramita na Segunda Turma do STF sob o argumento de que Moro se mostrou publicamente parcial ao integrar o governo do opositor do homem que prendera. Ao deixar o cargo, disse estar à disposição do país, no que alguns políticos viram um sinal de que entrará para a política — o que ele segue negando.

Enquanto Moro estuda seu futuro, as peças do xadrez bolsonarista se movem rápido. Uns sempre mais rápidos do que outros. Disse Roberto Jefferson à coluna, referindo-se à mais poderosa deputada bolsonarista hoje e até outro dia afilhada de Moro: “A Carla Zambelli, por exemplo, é uma moça honrada. Tenho a maior admiração por ela”.


Monica de Bolle: Como uma onda no mar?

Quem prefere encarnar o surfista alienado cuja imagem ficou associada à música que intitula este artigo está, neste momento, agindo de forma imoral

“Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia.” Sem dúvida alguma. E, sim: “tudo passa, tudo sempre passará”. Mas a epidemia não vem em ondas mais ou menos simétricas, como o mar. A epidemia vem em onda forte seguida de outras ainda fortes, em onda moderada seguida de ondas fortes, em onda que tudo varre e ainda pode ser seguida do mais profundo descalabro.

A evolução depende de como os governos se comportam. Também depende de como os governos se comportam dentro da realidade de cada país. Não adianta imitar a Suécia, apostar na imunidade de rebanho e deixar a onda passar. Primeiramente porque não sabemos o que haverá de ser das escolhas da Suécia. Depois, porque o Brasil não é a Suécia. Por fim, porque os suecos estão respeitando o distanciamento social sem quarentena, por conta própria. Trata-se de questão de comportamento.

Muito me preocupam os cenários econômicos. Não por sua extrema gravidade. Eles me preocupam porque muitas vezes se baseiam em premissas equivocadas, como a de que haverá uma primeira onda — essa que estamos atravessando — seguida de onda mais mansa, ou de uma sequência de ondinhas. É este tipo de premissa que escora as projeções do FMI: a onda forte é agora, no segundo semestre haverá outra, mais fraca, e, depois, vida que segue.

Muitos economistas estão seguindo essa linha de raciocínio para justificar suas posições. Alguns resolveram inclusive ignorar já a primeira onda, voltando a apoiar uma agenda de reformas que, francamente, diz respeito a um mundo que não existe mais. Entre esses consta o ministro da Economia brasileiro, que resolveu mudar o tom no momento em que o país entra na fase mais crítica da crise humanitária. Com ele foram os economistas de mercado e todos aqueles que preferem ignorar a realidade. A realidade é que a capacidade hospitalar da cidade de São Paulo está se esgotando.

A realidade é que a taxa de mortalidade no Rio de Janeiro entre os mais pobres já é muito mais elevada do que entre os mais ricos. Quem prefere encarnar o surfista alienado cuja imagem ficou associada à música que intitula este artigo — nada contra a música, gosto muito — está, neste momento, agindo de forma imoral. Queiram os economistas ou não, há uma dimensão moral nesta crise que não será esquecida.

Se alguém parasse para olhar os dados brasileiros — que estão subnotificados —, observaria que o número de casos no país está subindo rapidamente a cada dia. O número de mortos já é maior do que o da China. Quando vocês estiverem lendo esta coluna, já teremos superado a China no número total de casos. Não estamos na crista da onda, prestes a nela deslizar com a destreza daqueles que o fazem de forma incansável nas praias do Rio. Estamos no pé de uma montanha cujo pico nos ilude. E do pé dessa montanha resolvemos, de uma hora para outra, ignorar nossos mortos, nossos doentes, os do presente e os do futuro, voltando à ladainha das reformas.

Porque soberano é o vírus, não o presidente da República ou o ministro da Economia.

Cadê a renda básica emergencial, que não chega nas mãos das pessoas? E as filas criminosas em frente à Caixa Econômica Federal para sacar o benefício? O que dizer da ausência de repasses fundamentais para os estados e municípios? O que falar do desembolso de apenas R$ 5 bilhões para o SUS até agora? Como se pode pensar em defender a redução de tributação sobre os bancos neste momento? E por que cargas d’água vamos querer avançar com medidas de austeridade contidas nas reformas se o que precisamos é de mais endividamento público para ao menos atenuar a depressão econômica?

O Brasil nunca viu uma deflação. O modo-padrão é logo morrer de medo de inflação, é dizer que não podemos nos endividar porque cairemos na espiral inflacionária de eras passadas. Mas não. Essa não é mais a realidade. A realidade é uma espiral de queda de preços extremamente danosa para a economia, para as pessoas. Nos vídeos que tenho feito para o YouTube tenho explicado o que é uma espiral deflacionária. Para os leitores interessados, recomendo assisti-los, pois, para nós, brasileiros, é algo inédito. Mas não é algo que, nós, economistas, desconheçamos, ainda que alguns não a tenham visto de perto.

Como uma onda no mar? Não. Como um tsunami a chegar no oceano de ignorância deste desgoverno.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica de Bolle: Bens públicos

Eis o dilema: a oferta de conhecimento como bem público o degrada aos olhos de alguns

A saúde é um bem público, a proteção social também. Bens públicos, na definição dos economistas, são aqueles que são não excludentes e não rivais. O que isso significa? Primeiramente que indivíduos não podem ser excluídos de seu uso e deles podem se beneficiar sem pagar. Em segundo lugar, são bens em que o uso individual não reduz sua disponibilidade para que outras pessoas deles desfrutem. Por fim, bens públicos podem ser desfrutados por mais de uma pessoa simultaneamente. Muitos temas podem ser enquadrados como bens públicos: a conscientização coletiva sobre saúde, questões sociais e ambientais, a manutenção da biodiversidade, o saneamento básico. Além disso, bens públicos estão sempre sujeitos ao problema que economistas chamam de free rider — como bens públicos são gratuitos ou são oferecidos a um preço abaixo do preço “de mercado”, sua utilização pode se tornar excessiva, levando a uma redução prejudicial da oferta, ou mesmo à degradação do próprio bem ou serviço oferecido.

Como saúde e proteção social, o conhecimento é um bem público. Aqueles que se dispõem a dividir o conhecimento que têm sobre determinados assuntos estão sujeitos ao mau uso, ou até à degradação do que compartilham. Trata-se de uma experiência curiosa essa de dividir conhecimento sem pagamento. Como professora universitária, compartilho meu conhecimento com alunos que por ele pagam uma mensalidade à universidade. Como participante do debate público por meio de colunas como esta que tenho em ÉPOCA, também recebo honorário. Contudo, desde que a pandemia eclodiu, eu me senti compelida a partilhar meu conhecimento de forma gratuita, no canal que criei no YouTube. A pesquisa que desenvolvo desde o Ph.D. na London School of Economics trata de crises. Quando trabalhei no FMI, tive a oportunidade de conhecer crises na prática, pensando em soluções para aliviar países. Hoje, leciono sobre crises na Universidade Johns Hopkins. Tenho usado essa experiência para fazer o que jamais imaginaria que faria: transmissões diárias ao vivo sobre temas relativos à crise que atravessamos e sobre o funcionamento da economia de modo mais geral.

A experiência tem sido muito enriquecedora, mas também desafiadora. Enriquecedora pois percebo claramente a ânsia que muitos têm em entender esse momento e em procurar essa compreensão em linguagem que lhes seja acessível. O jargão econômico, afinal, guarda um grande segredo: apesar dos termos técnicos e de assuntos que parecem áridos em primeira mão, a economia trata da vida das pessoas. Todas a experimentam em seu cotidiano, e talvez por isso tantas tenham opinião formada, ainda que não tenham tido qualquer tipo de treinamento “formal”. Considero justa essa posição. Não é preciso ser economista para saber o que é inflação e como ela afeta a vida de cada um. Não é preciso ser economista para entender que, numa crise, como a que vivemos, empregos e salários estão em risco. Contudo, há muitos temas que, quando tratados por economistas, podem se tornar excessivamente herméticos e inacessíveis a muita gente. Remover esse véu tem sido muito gratificante.

No entanto, percebo ao mesmo tempo o desafio de oferecer um bem público. Há quem o menospreze achando que, se está sendo oferecido de graça, a pessoa que o oferece não deve ter formação suficiente. Ou, aqueles que veem no ato de oferecer uma espécie de busca por autopromoção. Ou, ainda, muitos que julgam o conhecimento que você divulga livremente como algo facilmente adquirido por qualquer um, algo do senso comum, algo pretensamente “razoável”.

Não há pagamento, não há financiamento, não há patrocinadores. Portanto, não deve valer muita coisa, não é mesmo?

A crise que atravessamos está desafiando esse tipo de visão e comportamento. Ao desvelar o valor intrínseco e não monetizável de bens públicos, a crise expõe sua importância para a sociedade. Há muito que lamentar, há muito sofrimento. Haverá ainda mais nas próximas semanas e nos próximos meses. Mas façamos uma pausa para vibrar com a valorização dos bens públicos. São eles que tornarão essa terrível travessia mais palatável. E, sobretudo, mais humana.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica de Bolle: A economia requer mais imaginação

Desconectados desse corpo de pesquisas científicas, muitos economistas ainda pensam que a retomada será linear e monotônica

Tem demorado para que a realidade seja absorvida: a pandemia alterou completamente os rumos da economia, e essa mudança não é temporária. Melhor dizendo, o tempo da pandemia e de seus efeitos na economia não é o tempo que muitos fantasiam que seja. Falo em fantasia porque, a cada novo estudo científico sobre a Covid-19 que é publicado, aparecem críticas apressadas e interpretações equivocadas deles, em lugar de revisões e reflexões. A vítima mais recente da pressa de criticar foi o artigo publicado na revista Science por cientistas da Universidade Harvard. O estudo, além de trazer modelos epidemiológicos, traça cenários a partir do que se sabe até o momento — e reconhece que há muito que ainda não se sabe. Apesar disso, ele rapidamente se tornou alvo de repúdio por ter exposto com clareza uma realidade: a de que o vírus ficará conosco por muito tempo — no melhor dos cenários, até 2022.

Até lá, entre o que se sabe e o que ainda não se sabe — o tempo da pesquisa científica não é o tempo nem da vontade nem dos afetos —, o mais provável é que se tenha de conviver com períodos de quarentena intermitente. É dizer, para não sobrecarregar os sistemas de saúde na ausência de vacinas e tratamentos eficazes, além de dúvidas sobre a imunidade adquirida, prevalecerá um quadro de vaivém para as medidas sanitárias. Tal quadro terá implicações diretas na retomada da economia, quando conseguirmos sair da fase mais aguda da crise.

Contudo, o que a quarentena intermitente implica é que a retomada só poderá ocorrer em zigue-zague: quando as medidas sanitárias puderem ser relaxadas, a economia respirará mais livremente; quando a epidemia recrudescer, a quarentena será adotada novamente para a administração de seu impacto nos sistemas de saúde. Nessas circunstâncias, a retomada econômica será volátil, fugindo da ideia de monotonicidade que se costuma presumir.

O comportamento da economia que se pode prever com base no conhecimento científico sobre a epidemia de sars-CoV-2, o vírus causador da Covid-19, deveria ter diversos desdobramentos de política econômica. Primeiramente, ele justifica adotar uma renda básica permanente, como tenho insistido há várias semanas, inclusive neste espaço. A renda básica será de suma importância para dar cobertura às pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, sobretudo em um cenário de quarentenas intermitentes. Como também tenho discutido, há vários outros motivos para defender a adoção da renda básica, os quais transcendem essas necessidades. A quarentena intermitente é apenas uma razão adicional.

Para além da renda básica permanente, há o tema da reconversão industrial. O estudo da Science que mencionei no início da coluna mostra que, se conseguirmos aumentar a capacidade de resposta dos sistemas de saúde, será possível espaçar as quarentenas intermitentes. Quanto mais espaçadas elas ficarem, menos volátil será a retomada da economia. Como se aumenta a capacidade dos sistemas de saúde? Uma resposta é com a reconversão de fábricas para a produção de equipamentos médicos como respiradores, aventais, máscaras e todo tipo de proteção para os profissionais de saúde. É bom lembrar que, além dos profissionais de saúde, enquanto o vírus estiver conosco, precisaremos de máscaras e luvas para a população em geral. Portanto, é difícil enfatizar suficientemente a importância da reconversão industrial não apenas neste momento de crise, como também na fase de retomada.

Por fim, para auxiliar o esforço de reconstrução econômica, precisaremos investir em infraestrutura. Um elemento fundamental para a luta contra doenças infecciosas e para o meio ambiente é o saneamento básico, cujo acesso é extremamente limitado no Brasil. Precisamos desenhar desde já a agenda de investimentos públicos para atender às necessidades do Brasil que surgirá desta crise.

O esforço é grande, mas não é impossível. Parece impossível apenas para aqueles que resistem a usar a imaginação e insistem em se escorar em corrimões, para se segurar a um passado que já deixou de existir.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Guilherme Amado: A democracia em quarentena

Há justificativa neste momento para vetar aglomerações, fechar igrejas e limitar o direito de ir e vir. Mas a vigilância é fundamental

Direito de livre assembleia proibido, ir e vir restrito, liberdade de culto com limitações. O coronavírus parece também ter obrigado a democracia a entrar em quarentena, com o mundo afundado em um misto de medidas necessárias para vencer a pandemia, mas também tentativas de líderes autoritários de se aproveitarem dela para ganhar mais poder e populistas que, usando a recorrente tática de vender soluções fáceis para problemas complexos, mais atrapalham do que ajudam seus países no combate à doença.

Scholars especializados no tema têm acompanhado com preocupação o impacto que o enfrentamento ao vírus pode ter na democracia de diversos países, muitos já convivendo com retrocessos nos últimos anos. Desde 2006, mais países veem suas democracias erodindo do que outros as têm fortalecido. De acordo com a Freedom House, organização sem fins lucrativos baseada nos Estados Unidos e que monitora os avanços e recuos das democracias de todo o mundo, 64 países se tornaram menos democráticos e somente 37 se fortaleceram em 2019. A perspectiva para este ano é que esse número seja ainda maior, por causa da pandemia.

Mas, onde muitos só veem janelas para o autoritarismo ganhar espaço, há quem aposte também na oportunidade que a Covid-19 está dando para as populações perceberem quão perigoso é entregar o comando do país a um populista.

Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán agora pode governar por decretos. Em Israel, o Parlamento e tribunais foram fechados, e Benjamin Netanyahu conseguiu adiar seu julgamento por corrupção por dois meses. Na Sérvia e na Turquia, veículos pró-regime deram voz a falsos especialistas que defenderam que suas populações são geneticamente protegidas do vírus. No México, López Obrador abriu mão da máscara e do álcool em gel e se apegou a imagens religiosas, sugerindo que os governados fizessem o mesmo, e demorou a admitir a gravidade do problema. No vizinho Estados Unidos, enquanto a governista Fox News culpava o Partido Democrata por espalhar medo, Donald Trump também passou por diversas fases, da banalização da doença à tentativa de criar o rótulo de “vírus chinês”, desaguando agora numa guerra à Organização Mundial da Saúde (OMS).

Por aqui, Jair Bolsonaro embarcou forte na onda negacionista. Perdeu três semanas batendo na tecla da “gripezinha”, pregando contra o isolamento, enquanto um de seus filhos e sua tropa digital escolhiam a China como bode expiatório. Não deu certo. O Datafolha apontou que 76% da população concorda com a quarentena como está sendo feita hoje, e houve um esforço diplomático de diferentes instituições para apaziguar as relações com a China. Diante do fracasso das duas tentativas iniciais, Bolsonaro apostou em badalar a cloroquina e a hidroxicloroquina como as soluções para a Covid-19, novamente à revelia da comunidade científica mundial e de seu próprio ministro da Saúde. E, ao menos para sua popularidade, deu certo.

Depois de dias enfraquecido nas redes sociais, começou uma reação. Segundo medição da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas, antes de o presidente e seus apoiadores concentrarem esforços na promoção da cloroquina e na associação da imagem de Bolsonaro a ela, a base bolsonarista representava apenas 12,3% das interações em torno do coronavírus no Twitter. A oposição tinha 59,6%. Ainda que possa ser uma vantagem momentânea, colou o discurso do “remédio de Bolsonaro”, maneira pela qual a militância passou a chamar os dois medicamentos. De acordo com medição da consultoria Bites, também na análise do sentimento dos internautas nas redes sociais, até às 21 horas da quarta-feira 8, eram 249 mil menções associando a cloroquina a Bolsonaro, pouco menos da metade de todos os tuítes de brasileiros sobre o coronavírus naquele dia. Os bolsonaristas saíram-se bem na ação para criar a percepção de que o presidente estava certo desde o começo, quando defendeu a cloroquina no combate à Covid-19 — o que, ressalte-se, ainda não é comprovado pela ciência.

Medidas severas para combater a pandemia, ainda que infrinjam temporariamente liberdades e direitos, não são por si só antidemocráticas.

Na Áustria, o ministro da Saúde tentou editar um decreto de Páscoa que autorizaria a polícia a entrar nas casas para checar se as famílias estavam se reunindo em almoços do feriado religioso. Uma medida como essa, um recurso extremo, não faria sentido sem o consentimento do Parlamento. Não à toa, o Ministério da Saúde austríaco desistiu após protestos da oposição e da sociedade civil.

No Brasil, algo desse tipo foi a tentativa de Bolsonaro de mudar a Lei de Acesso à Informação, praticamente suspendendo-a durante a pandemia, o que não só dificultaria a capacidade da sociedade de fiscalizar o poder público, como restringiria o direito à informação, fundamental para que a população esteja preparada para se prevenir e enfrentar a doença. O contrapeso dos outros Poderes se fez necessário. O Supremo Tribunal Federal suspendeu o efeito imediato da Medida Provisória que mudara a lei e o Congresso provavelmente alterará seu teor nas próximas semanas.

Autor de O povo contra a democracia, uma das bíblias para entender a ascensão do populismo autocrata, o alemão Yascha Mounk, professor em Harvard, é o âncora semanal de um dos mais interessantes podcasts para quem gosta de debates aprofundados sobre política. Em The good fight, disponível gratuitamente no site de Mounk, ele conversa com professores, jornalistas, diplomatas e outros profissionais envolvidos no debate sobre os rumos da democracia mundo afora. No último episódio, Mounk recebeu Daniel Ziblatt, também professor de Harvard, coautor de outro livro essencial para entender o populismo de direita atual, Como as democracias morrem. Os dois avaliam na conversa que a pandemia poderá atrapalhar os autocratas populistas que já estão no poder, quando táticas de usar bodes expiatórios falharem e os cidadãos perceberem a falta que fazem instituições fortes e sérias funcionando.

“Essa situação (a pandemia) favorecerá a oposição aos governos. Vai prejudicar os populistas que já estão no cargo. Acho que na verdade reduz as chances de reeleição. Pode enfraquecer alguém como Jair Bolsonaro, no Brasil”, analisa Mounk.

Blatt lembra que a crise econômica poderá enfraquecer quem já está no poder. “Essa crise de saúde torna-se uma crise econômica. Isso é bem provável. Isso vai enfraquecer dramaticamente tanto Bolsonaro quanto Trump”, afirma, lembrando que os populistas que estão na oposição, a exemplo da França, podem sair fortalecidos, se forem enxergados como alternativa.

As próximas semanas mostrarão quanto tempo vai durar o sucesso do discurso salvacionista da cloroquina. E se saberá se o Brasil está no grupo de países em que a pandemia fortaleceu o populismo ou naquele em que mais pessoas perceberam que não existem remédios milagrosos para problemas complexos.


Monica de Bolle: Precisamos falar sobre a renda básica permanente

A crise humanitária exposta pela Covid-19 deixa em evidência a extrema vulnerabilidade em que vive uma parte muito expressiva da população brasileira

Há poucos dias, foi sancionada a lei que institui a renda básica emergencial (RBE) de R$ 600 por mês, a serem pagos durante 3 meses prorrogáveis. Como eu já havia escrito neste espaço, a RBE tem por objetivo atender pessoas que não poderiam permanecer em casa para se proteger da epidemia caso não houvesse um programa de governo que as sustentasse durante o período de necessário distanciamento social. Embora a RBE em forma atual seja um benefício temporário, há muitos motivos para torná-la permanente.

O Brasil é um país espantoso. Segundo dados do IBGE, cerca de 50% dos trabalhadores com carteira assinada recebem entre um e dois salários mínimos, enquanto 80% recebem menos de dois salários mínimos. Apenas 10% dos trabalhadores formais ganham mais de R$ 3 mil por mês. De acordo com cálculos feitos por Marcelo Medeiros, metade da população brasileira vive com menos de R$ 1.000 por mês. Estamos falando de cerca de 100 milhões de pessoas que recebem tão somente cerca de um salário mínimo mensal per capita.

Agora, considerem: de acordo com o IBGE, 70% dos redimentos das famíllias de baixíssima renda são destinados a alimentação, transporte e moradia. Ou seja, a maior parte do fluxo mensal dessas pessoas é usada para a subsistência mais básica. Não estão incluídos gastos com vestuário, medicamentos ou itens de necessidade básica para cuidados pessoais. Essas pessoas vivem sem qualquer colchão de segurança, o que significa que, se o chefe de família adoece ou se há algum gasto extraordinário no mês, não há espaço no orçamento mensal para absorver o ocorrido.

Reflitam por um momento sobre isso. Em nosso país há cerca de 100 milhões de indivíduos que vivem na mais precária condição econômica, algo que muitos de nós não têm a capacidade de contemplar. Imaginem a diferença que faria na vida dessas pessoas receber uma transferência de renda sem qualquer condicionante todo mês. A renda básica permanente, pensada desse modo, é mais do que uma ajuda econômica, um assistencialismo. Ela confere dignidade.

Há quem se oponha à renda básica permanente argumentando que ela seria um desestímulo ao trabalho. Entendo o argumento se estamos tratando de pessoas com renda mais elevada do que o montante módico que mencionei anteriormente. Contudo, nem mesmo esse argumento encontra respaldo na literatura acadêmica existente. De acordo com vários estudos, o efeito de programas de transferência de renda sobre os incentivos ao trabalho são, na melhor das hipóteses, ambíguos. No caso brasileiro, quem em sã consciência realmente acredita que alguém que já vive com tão pouco vai deixar de trabalhar porque passou a receber um complemento do governo? A ideia é quase estapafúrdia.

Portanto, vamos ao outro lado da questão: quanto custaria esse benefício incondicional para os cofres públicos? Se 100 milhões de pessoas recebessem uma renda básica de R$ 600 mensais, o montante total no ano alcançaria cerca de 10 pontos percentuais do PIB, valor bastante alto. Com R$ 500 mensais, ou metade do salário mínimo, o custo cai para 8 pontos percentuais do PIB. Com R$ 350 mensais, ou um terço do salário mínimo, o custo seria de pouco mais de 5,5 pontos percentuais do PIB. Evidentemente, parte do gasto com a renda básica é revertido para os cofres públicos na forma de receitas mais altas provenientes de um impulso ao consumo. Afinal, são as pessoas de renda mais baixa que consomem mais como proporção da renda — o que os economistas chamam de propensão marginal a consumir.

Essa população não apenas sofrerá os efeitos mais diretos da epidemia e da crise econômica, mas tais efeitos serão prolongados dadas as curvas epidemiológicas e o curso da doença cujos dados estamos a observar. Mas a defesa da renda básica permanente transcende a crise humanitária que atravessamos.

De uma ótica mais pragmática, a renda básica permanente contribui para a estabilidade da economia e a cidadania na democracia. Já da perspectiva dos valores que compartilhamos, é uma questão de justiça, inclusão e liberdade nesse país tão profundamente desigual que é o Brasil. Chegou o momento de tratar desse tema com a importância e o senso de urgência que ele sempre mereceu.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica de Bolle: A renda básica emergencial

Voucher, ou um “vale”, não é renda. A RBE é uma transferência incondicional de renda do governo para uma parcela da população

Na última segunda-feira foi aprovada por unanimidade no Congresso Nacional a Renda Básica Emergencial (RBE), um benefício de R$ 600 mensais a ser destinado a uma parte da população brasileira mais vulnerável, como os trabalhadores informais. Embora haja muito o que aprimorar, a RBE foi uma enorme conquista para o Brasil. Foi, também, um momento de protagonismo do Congresso, que tem tomado as rédeas da crise enquanto o governo, quando muito, dorme no ponto. Mas não vou tratar das andanças do presidente da República por Brasília, tampouco de suas conclamações ao vírus e à epidemia.

Apesar de a RBE ter sido uma conquista da sociedade junto ao Congresso, movendo o Estado a despeito da inércia do Executivo federal, não tardou para que o governo quisesse dela se apoderar. Ou melhor, quisesse se apoderar da medida para propaganda, porque o pagamento do benefício para quem já está passando fome o governo tratou mesmo foi de embromar. Nos lábios do ministro da Economia, Paulo Guedes, a RBE ganhou logo um nome inapropriado, insensível, de mau gosto, que beira o obsceno: “coronavoucher”. Parte da imprensa pôs-se a repeti-lo sem se dar conta de que um imenso equívoco havia sido cometido pelo ministro. Voucher, ou um “vale”, não é renda. O “vale” é um papel que dá ao detentor o direito de obter um desconto numa compra ou de trocá-lo por um bem ou serviço: vale-transporte, vale-alimentação. Renda é um fluxo de dinheiro para o recipiente, seja na forma de salários, de dividendos ou de transferências do governo. A RBE é uma transferência incondicional de renda do governo para uma parcela da população. A RBE é como o Bolsa Família, com a diferença de que o Bolsa Família exige contrapartidas dos beneficiários. Portanto, o ministro embrulhou conceitos econômicos, na melhor das hipóteses, para se fingir de pai da filha que não havia gerado.

Mas não ficou só nisso. Depois de ter tentado dar nome à filha que não era dele, o ministro disse ser muito difícil começar a pagar a RBE imediatamente. Inventou a necessidade de uma Emenda Constitucional para fazê-lo, o que, além de ser desnecessário, atrasaria o pagamento do benefício, colocando vidas em risco. Sim, vidas. Afinal, os beneficiários são pessoas que só comem aquilo que conseguem arrecadar de renda a cada dia. Pensem nos ambulantes, que, com a quarentena, não têm para quem vender. Pensem em todas as pessoas que têm de escolher entre comer ou arriscar ser contaminadas pela doença e, de quebra, transmiti-la a seus entes queridos. São essas pessoas que Guedes não quer abraçar.

Como fazer para pagar a RBE? O ministro deveria saber, pois não é difícil. Há duas maneiras. A primeira, mais fácil, seria o governo editar uma Medida Provisória (MP) para o pagamento do benefício, indicando como fonte de recursos o superávit financeiro da União — o superávit financeiro, proveniente de operações de câmbio e outras mais, é de dezenas de bilhões de reais, ou seja, muito mais do que o necessário para cobrir a RBE. Outra forma seria o governo emitir dívida.

Para isso, teria de abrir uma exceção ao cumprimento da regra de ouro, dispositivo constitucional que proíbe a emissão de dívida pública em determinadas circunstâncias. Abrir exceção para o cumprimento da regra de ouro não requer Emenda Constitucional alguma. Basta que o governo prepare uma MP indicando ao Congresso por que é necessário descumpri-la para determinada finalidade e que o Congresso aprove o projeto de lei autorizando o governo a fazê-lo. Dada a disposição do Congresso de ver a implementação da RBE, nada disso seria difícil e provavelmente poderia ser feito em menos de 24 horas. Contudo, ao invés de buscar soluções, Guedes busca empecilhos.

No calor desse momento de tamanha aflição, hashtags subiram imediatamente nas redes sociais pedindo o pagamento ou a saída do ministro. Até ministros do Supremo Tribunal Federal se pronunciaram sobre o descalabro.

A RBE será paga, de um jeito ou de outro. A RBE será aprimorada e ampliada, de um jeito ou de outro. A RBE haverá de tornar-se permanente, de um jeito ou de outro. Ela é a esperança para que, na saída dessa crise, tenhamos ao menos uma sociedade menos injusta. Da pandemia ainda nascerá um dos pilares da cidadania.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica de Bolle: Imagine

Assim como a imaginação nos serve para construir cenários e pensar sobre a crise, ela também pode nos orientar para o que virá depois. E haverá um depois

Imagine there's no heaven/It's easy if you try/
No hell below us/Above us only sky/
Imagine all the people living for today
JOHN LENNON

Serão meses muito difíceis. Poderemos perder pessoas queridas — próximas ou não. Ficaremos em isolamento, nossas vidas de pernas para o ar. Talvez tenhamos a doença, talvez não. Como muitos, sou de uma geração para a qual as grandes guerras são de interesse histórico, mas não estão no plano da vivência, da travessia. Sou de uma geração para a qual a gripe espanhola, que matou dezenas de milhões de pessoas, pertence aos livros e aos artigos científicos. Não pretendo minimizar a gripe espanhola e o sofrimento que ela causou. Mas ela foi uma gripe. O Covid-19, como tenho dito, não é.

Será duro, insisto. E todo mundo precisa de um alívio, de uma exalada forte, de um pouco de alento nesses tempos de incerteza brutal e de muita dor.

“É nosso dever darmo-nos algum alívio, construído pelo exercício da imaginação”

Assim como a imaginação nos serve para construir cenários e pensar sobre a crise, como ela haverá de se manifestar e que medidas o governo deve tomar — escrevi sobre o assunto recentemente neste espaço — a imaginação também pode nos orientar para o que virá depois. E haverá um depois, isso é certo. Países não vão desaparecer, o mundo não vai desaparecer. A China não desapareceu. A Itália — quanta dor pela Itália — tampouco desaparecerá. Então, o que pode vir depois? Pode ser que o mundo se desarranje por completo, pode ser que tudo permaneça desarticulado por muito tempo. Mas prefiro imaginar saídas pela capacidade de superação das pessoas. E prefiro imaginá-las a partir de alguns sinais dados pelas respostas de política econômica mundo afora.

Logo antes de a crise estourar, um dos grandes problemas para a economia mundial era a desigualdade e suas ramificações políticas. Vimos muitos eleitores ao redor do planeta irem às urnas com raiva e desilusão, não sem razão. Em muitos casos, da raiva e da desilusão vieram os populistas, os extremistas, os nacionalistas. Parecia que um ciclo se fechava, abrindo outro sombrio. Mas, de súbito, tudo parou. Governos eleitos pelo calor visceral que havia tomado a sociedade foram forçados a mudar de rumo. E falo de líderes autoritários, refratários à ciência, veiculadores de notícias falsas, misóginos, racistas e merecedores de tantos outros adjetivos que não cabe citá-los, porque o espaço acaba. Viram a húbris e a valentia imaginária sucumbir a uma fitinha de RNA. O vírus, em seu estado natural — fora do corpo humano —, não passa de algo que derrete ao toque de um sabonete. Entretanto, ele leva vidas como derruba mitos.

Há dez dias, ninguém imaginava que o governo de Donald Trump ofereceria cheques para sustentar a população americana. Há dez dias, ninguém imaginava que Paulo Guedes e sua turma do Estado minimalista viriam a mudar radicalmente o discurso, agora voltado para os mais pobres e para os mais vulneráveis. Considero as medidas anunciadas ainda insuficientes, mas isso já não importa mais. O Rubicão foi cruzado. Repito: o Rubicão. Os olhos do governo foram forçosamente voltados para aqueles que muita gente resiste a enxergar. Pensei em Victor Hugo.

A crise será longa, o que significa que as medidas e a visibilidade dos vulneráveis não desaparecerão. O mundo que renascerá disso, imagino, será marcado por uma construção mais atenta à solidariedade. Um mundo em que o momento presente, este agora em que talvez você esteja lendo este artigo preso dentro de sua residência, espero que cercado de pessoas queridas, passe a ser o mais importante de todos. Neste mundo, em que o presente se impõe, é muito difícil ignorar nossa própria humanidade e os gestos que dela nascem para acolher os menos afortunados.

Para enfrentar o que vem pela frente, deixo a imaginação. Deixo os versos de John Lennon:

No need for greed or hunger/A brotherhood of man/Imagine all the people sharing all the world.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Guilherme Amado: A democracia engasga

Na semana anterior ao Carnaval, que em outros tempos sempre foi uma contagem regressiva para a folia, o país voltou algumas casas no jogo democrático

Quando escrevi, na coluna passada, sobre a pesquisa que a socióloga Esther Solano vem fazendo sobre o bolsonarismo, a democracia brasileira estava um pouco mais forte. Analisei como Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Complutense de Madri, havia identificado, a partir de entrevistas com bolsonaristas moderados de classes C e D, os atributos antissistêmico, antipartidário/antipetista, anti-intelectual, religioso e militar que motivaram o voto desse segmento em 2018. Decidi voltar ao tema na coluna desta semana por três razões.

Primeiro, percebi que, por falha minha, houve incompreensão de alguns leitores sobre o que é esse tipo de pesquisa, usada não só nas ciências sociais, mas também no marketing, na produção cultural e em diversos outros campos.

Voltei a ele também porque, ao ler os comentários de leitores da coluna no Instagram sobre um vídeo que mostra livros da biblioteca do Planalto empilhados no chão, percebi que ali estavam outros testemunhos ainda mais reveladores do bolsonarista como ele é. Mas, sobretudo, voltei ao tema porque concordo com o que meu colega Helio Gurovitz escreveu algumas edições atrás em ÉPOCA: a imprensa tem o desafio de buscar entender por que, apesar de tudo, cerca de um terço do país segue apoiando Bolsonaro. E o “tudo” só fez aumentar nos últimos dias.

Nesta quinta-feira 20, dia do fechamento desta edição de ÉPOCA, torço para que chegue logo a hora do desbunde, e que samba, frevo e pagode engulam a radicalização política que ganhou ainda mais ritmo desde a terça-feira 18.

Naquele dia, Jair Bolsonaro acordou ofendendo a jornalista Patrícia Campos Mello de maneira misógina e covarde, em mais um stand-up comedy de agressividade na porta do Palácio da Alvorada. Horas mais tarde, graças a um descuido numa transmissão ao vivo via Facebook da cerimônia de hasteamento da bandeira no Planalto, o ministro Augusto Heleno, um ex-fardado que tem trabalhado para escalar o ódio no país, foi flagrado aconselhando Bolsonaro a convocar o “povo” contra o Congresso, a que acusou de chantagear o governo.

Na quarta-feira 19 as bordoadas continuaram. Soube-se que, imiscuindo-se no jogo político, Sergio Moro tirou da gaveta a autoritária e anacrônica Lei de Segurança Nacional, criada na ditadura para perseguir opositores, e a empregou em “plena democracia” contra um de seus mais ferrenhos... opositores. No mesmo dia, como em Macondo, o senador Cid Gomes (PDT) peitou policiais amotinados em Sobral, Ceará, subiu numa retroescavadeira e, ao tentar invadir o batalhão local da Polícia Militar, foi baleado com dois tiros. Ciro Gomes dirigiu-se a Eduardo Bolsonaro no Twitter para afirmar que a ação de seu irmão Cid era contra a tentativa de milícias controlarem o Ceará, como, segundo Ciro, “os canalhas” da família Bolsonaro teriam feito com o Rio de Janeiro.

O barata-voa da esquerda merece uma análise mais detida, que ficará mais para a frente. Voltemos aos bolsonaristas e ao porquê de, apesar de tudo, apesar de uma semana como esta, o apoio ainda subsistir. Para isso, selecionei alguns comentários feitos por leitores claramente defensores do presidente sobre o vídeo, publicado no domingo 16 no site de ÉPOCA, que mostra livros da Biblioteca da Presidência da República empilhados sem nenhum cuidado num corredor, para dar lugar à obra que abrigará a sala da primeira-dama Michelle Bolsonaro. Como a colunista Bela Megale, de O Globo, mostrara dias antes, o Planalto decidira diminuir a centenária biblioteca, criada no governo de Wenceslau Braz (1914-1918) e especializada em ciências sociais, Direito, economia e administração. Provavelmente, muitos dos livros mostrados no vídeo eram, portanto, edições de décadas ou séculos.

Cerca de 700 comentários pipocaram no Instagram da coluna ao publicarmos as imagens. Além do contumaz repositório de ira, eles formaram um retrato fidedigno do bolsonarismo em sua essência. Curiosamente, apareceram ali o anti-intelectualismo, o antipartidarismo/antipetismo, a negação do sistema, a influência religiosa e a militar.

O anti-intelectualismo saltou aos olhos. “Parabéns! A primeira-dama Michelle merece, tem feito nos dias de hoje muito mais para o Brasil do que esses livros”, defendeu um leitor. “Esses livros já estão empoeirados há muito tempo. Primeiro, no governo petista ninguém lia, (...) porque não sabem ler”, disse outro. Um terceiro foi mais duro: “Tem é de botar fogo nisso. Livros velhos só servem para juntar pó”.

Solano defende em sua pesquisa que professores e intelectuais são intermediadores da transmissão do conhecimento e, como todo intermediador, colocado em xeque pelo bolsonarismo. Também é assim com o político profissional e com o jornalista. “Por que devo aceitar uma política conduzida por políticos profissionais? Por que devo aceitar verdades científicas e acadêmicas validadas por intelectuais? É a negação daqueles que tradicionalmente atuaram como mediadores entre os indivíduos, o conhecimento e a participação política”, escreveu a socióloga em “Elementos do bolsonarismo”, artigo ainda não publicado e que resume uma parte da pesquisa, feita em fevereiro e março de 2019.

Naqueles dois meses, Solano fez 24 entrevistas em profundidade — uma técnica de pesquisa qualitativa que busca, a partir de uma interação presencial de horas com o entrevistado, entender aspectos de um assunto que os números são incapazes de mostrar. Foram escolhidos brasileiros C e D com um mesmo perfil. “Escolhemos o que chamamos de bolsonaristas moderados, que votaram em Bolsonaro, mas não são os mais radicalizados. É aquela pessoa que não tem uma adesão total e já demonstra certo arrependimento”, explicou Solano.

A rotulação da academia e do intelectualismo como de esquerda ou petista também aparece nos comentários, como mostra essa sequência, de três leitores diferentes: “Já que o pessoal que vota em Lula é intelectual, esses livros devem ensinar somente uma coisa, a roubar”; “Os livros de valor o Lula já roubou todos”; “Livros que o Lula fingia ler”.

Outros comentários nas redes da coluna trazem também exemplos da influência religiosa e militar na concepção de mundo do bolsonarista, o que também é abordado na pesquisa de Solano. Estaria em curso uma cruzada moral, com os valores familiares cristãos em xeque. A sociedade viveria uma crise de valores causada por não ter a religião como bússola. “Mil vezes um evangélico batendo em minha porta do que um bandido protegido pelo PSOL pulando meu muro”, escreveu um leitor, desta vez no Facebook, ao comentar uma notícia sobre parlamentares evangélicos. “Antes uma bancada da Bíblia que uma bancada comunista”, afirmou outro na mesma seção de comentários. Já os fardados, com autoridade e disciplina, seriam capazes de impor respeito. “Com a graça de Deus. Coloca o Exército nas ruas, vai ficar bom demais”, defendeu uma leitora, numa nota sobre o crescimento do número de militares na Esplanada. “Verde-oliva na área. Qualquer reclamação, falar com os generais”, comemorou outro.

Comentários assim e pesquisas como a de Solano mostram quais são algumas das razões, portanto, que motivam quem segue apoiando Bolsonaro. Gestos como o do presidente, atacando uma jornalista; de Moro, usando uma lei da ditadura para intimidar um opositor; ou de Heleno, incitando o presidente contra o Congresso de políticos profissionais que “chantageiam”, atendem a anseios de parte da população. É o que o cientista político alemão Yascha Mounk aborda no ótimo O povo contra a democracia.

Ainda que outras entrevistas em profundidade feitas por Solano, em setembro do ano passado, tenham apontado decepção desses bolsonaristas moderados, pesquisas quantitativas seguem mostrando o apoio de um terço dos eleitores, sem variações expressivas, para cima ou para baixo. Enquanto isso, Bolsonaro continua dobrando a aposta, cada vez mais ministros vão se radicalizando e nossa democracia vai aos poucos engasgando. Que os dias de Momo nos ajudem a recobrar o fôlego.


Monica de Bolle: A empregada de Schrödinger

Quanto mais pessoas acreditarem que a empregada deveria se esforçar mais para não receber o Bolsa Família, mais as políticas de redução de pobreza e redistribuição de renda serão rechaçadas

Lembram-se do gato de Schrödinger? Trata-se de uma alegoria sobre o aparente paradoxo da superposição quântica, em que um gato hipotético pode estar morto e vivo ao mesmo tempo. Portanto, duas realidades contraditórias existem simultaneamente até que um observador determine em qual delas está — na realidade do gato morto, ao observar o cadáver, ou na realidade do gato vivo. Antes de o observador determinar qual realidade haverá de se impor para ele, as duas realidades são igualmente prováveis para aquele indivíduo particular ainda que sua experiência real seja única.

Tenho pensado sobre os paralelos entre o estranho mundo da física quântica e o igualmente estranho mundo da política e da economia. Por exemplo: no Brasil, hoje, há muita gente que rejeita o programa Bolsa Família por considerá-lo — colocando de forma crua — uma medida que alimenta a preguiça dos que recebem o benefício, eliminando o incentivo de encontrar formas de sustento que não dependam do Estado.

O governo parece compartilhar dessa visão diante das notícias de que milhões de pessoas deixaram de receber o benefício recentemente, ou padecem em longas filas para recebê-lo. O problema reside no fato de que há pessoas que, ao mesmo tempo, compartilham da visão do ministro da Economia de que “há muita empregada doméstica indo para a Disney”. Qual o paradoxo? Ora, se tantas empregadas viajam para o exterior, dificilmente o fazem com o exíguo benefício do Bolsa Família — mas muitas são beneficiárias do programa. Eliminando, portanto, a hipótese anacrônica de que recebam o Bolsa Família por necessidade e viajem para a Disney, eis a empregada de Schrödinger: aquela que viaja para a Disney e não viaja para a Disney ao mesmo tempo.

A empregada de Schrödinger veio para mim não só como inspiração devido à fala do ministro, mas pela leitura de um paper recente de Alberto Alesina, Armando Miano e Stefanie Stantcheva intitulado The polarization of reality e publicado em janeiro desse ano pelo NBER (Bureau Nacional de Pesquisa Econômica, na sigla em inglês). Nesse estudo, os autores discorrem sobre a polarização da realidade, isto é, a situação em que as pessoas têm diferentes percepções de uma realidade que pode ser constatada ou observada a partir de fatos verificáveis.

Para ilustrar o fenômeno que investigam, os autores descrevem o “imigrante de Schrödinger”, aquele que é um estorvo por estar desempregado, mas que rouba seu emprego. Porém, uma vez observado, ou ele está desempregado ou ele desfruta de seus afazeres profissionais após sua demissão. A revelação de que as duas realidades podem continuar a existir na cabeça de algumas pessoas é espantosa. Não só isso, ela tem claras implicações para a política migratória: quanto mais pessoas abrigarem duas realidades contraditórias em sua cabeça, maiores as chances de que a política migratória reflita escolhas que inibam a imigração — mesmo quando ela é inequivocamente benéfica.

Volto à empregada. Quanto mais pessoas acreditarem que a empregada deveria se esforçar mais para não receber o Bolsa Família, sobretudo porque estão viajando para a Disney aos montes, mais as políticas de redução de pobreza e redistribuição de renda serão rechaçadas. O repúdio respaldará a decisão do governo brasileiro de ignorar os imensos problemas de mobilidade social e acesso aos serviços básicos de boa parte da população brasileira.

Os autores do estudo mencionado conduziram um experimento para testar a maneira como as pessoas processam a realidade. Sem distinguir o posicionamento ideológico, indivíduos foram postos em dois grupos. O primeiro grupo teve acesso a diversos dados sobre desigualdade e a redução do grau de mobilidade social nos EUA, enquanto o outro grupo não teve acesso a essas informações. Em seguida, todos foram perguntados sobre a capacidade de uma pessoa pobre alcançar níveis de renda mais elevados por meio de seu próprio esforço. Os membros do primeiro grupo mostraram-se inequivocamente mais pessimistas do que os do segundo. Contudo, no segundo grupo, pessoas mais à esquerda do espectro político revelaram-se substancialmente mais pessimistas do que pessoas à direita.

A empregada de Schrödinger apresenta paradoxos à política econômica que talvez só possam ser resolvidos pelo velho cara ou coroa. Talvez baste o lançamento de uma moeda de R$ 1, no lugar do salário de R$ 31 mil de um ministro.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins