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Guilherme Amado: Eduardo Bolsonaro anuncia que será herdeiro 'do brasil do pai' - 'vou rodar o país'

Em conversa com a coluna, o zero três revela que vai percorrer o Brasil na defesa do governo do pai, ‘fazendo trabalho de formiguinha e pregando o conservadorismo’

Nenhum Bolsonaro terá tantos motivos para comemorar o fim de ano como Eduardo. O mais jovem dos três filhos políticos do capitão e último a entrar na política encerra 2019 em êxtase.
Enquanto fantasmas pairam sobre seus irmãos, Eduardo é só festa. Flávio é investigado, sob a suspeita de ter ficado com parte dos salários de seus assessores durante anos, e Carlos é acusado por diferentes ex-aliados da família de comandar uma milícia digital, destruidora de reputações.

Eduardo não conseguiu os votos no Senado para ser embaixador, ok, mas a campanha para chegar lá o fez ser paparicado pela direita populista mundial ao longo do ano — posou com o americano Donald Trump, o italiano Matteo Salvini e o húngaro Viktor Orbán. Lidera o PSL e, tão logo decole o Aliança pelo Brasil, será o único dono em São Paulo do partido que sua família está montando. No Rio de Janeiro, há uma antiga rivalidade entre Carlos e Flávio. Mas, mais importante que tudo isso, Eduardo deu início neste ano à trajetória para ser o principal herdeiro do bolsonarismo. Agora, sabe, é hora de arregaçar as mangas.

Na quarta-feira 27, revelou à coluna quais são os próximos passos: em 2020, o zero três coloca o pé na estrada e, no melhor estilo candidato presidencial, “vai rodar o Brasil”. Visitará estado a estado, “fazendo um trabalho de formiguinha, pregando o conservadorismo e defendendo” o governo da família. Com 35 anos, Eduardo mira lá na frente: “Não sou candidato a nada, eu só poderia me candidatar a presidente em 2030. Aqui não é terra de Evo Morales. Não vou herdar o governo. Vou herdar o Brasil de meu pai”, disse, com ar decidido.

A pauta internacional não será mais prioritária. Eduardo quer se voltar para dentro. Embora vá continuar no PSL até a legalização do Aliança pelo Brasil, ele anunciou que deixará espontaneamente a liderança da sigla e não tentará presidir nenhuma comissão na Câmara. “A estratégia para me expulsar (do PSL ) é conseguir voltar a compor a maioria dessa ala, que está sendo chamada de bivarista, e assim retomar a liderança. Estou tranquilo. O que me preocupa é se eu andar na rua e for vaiado por meus eleitores. Mas quem está perdendo seguidores é a Joice ( Hasselmann ). #DeixeDeSeguirAPepa bombou”, cutucou, em referência à hashtag de mau gosto que compara Joice Hasselmann à porquinha Peppa Pig. “Para mim, é indiferente (se me expulsarem ). Virando o ano, não vou mais ser presidente da Comissão de Relações Exteriores”, disse, confirmando que não tentará se impor no PSL para presidir outra comissão.

Os planos para 2020 serão um avanço natural ao papel que vem desempenhando desde que o caldo com o PSL entornou de vez. Quando falou à coluna, Eduardo cumpria mais uma missão de primeiro soldado: havia ido à Comissão de Cultura para defender Ernesto Araújo, convocado para explicar o que o Itamaraty vem fazendo para divulgar o Brasil no exterior. Empenhou-se no microfone nos elogios a Araújo. “O melhor em décadas”, ainda tuitou, ao comentar mais tarde a performance do ministro, o mais próximo dele na Esplanada e o único que, a diferentes interlocutores, ele chama de amigo.

Eduardo está bem mais relaxado do que semanas atrás, quando teve de lidar com a tensa crise do PSL e ainda se desdobrar para criar uma narrativa positiva capaz de amenizar o fracasso da empreitada da embaixada — as projeções eram de que não conseguiria mais que 15 votos no Senado.

Bem-humorado, fazia piadas enquanto caminhava para a liderança do PSL, sala que ainda ocupa apesar do status transitório no partido, mas pela qual disse não ter apego: “Nem eu nem o presidente queríamos que eu fosse líder, mas ( fui líder porque ) meu nome angariou a maior parte do apoio dos deputados”, defendeu, ignorando a existência de um áudio, revelado pela coluna, em que o próprio Bolsonaro, gravado às escondidas, é flagrado articulando a derrubada do antigo líder, Delegado Waldir.

Atualmente, Eduardo lidera de verdade apenas os deputados que já confirmaram que vão para o Aliança — cerca de 26 dos 53 da bancada do partido. “Quem está perdendo são aqueles que mais me atacam. Eles que têm de explicar o motivo de estarem me atacando, indo contra a ordem do presidente da República. Gostaria muito que outro deputado assumisse a liderança do partido”, afirmou, apontando em seguida quem é sua tropa de confiança para sucedê-lo: “Bia Kicis, Carlos Jordy, Filipe Barros, Caroline De Toni podem assumir naturalmente”. Todos da ala comandada por Bolsonaro.

“Falar em conservadorismo, resgaste histórico, aproximar as pautas do governo da sociedade. O que foi reforma da Previdência? Como vai ser o pacote anticrime? Por que o governo fez assim e não assado? O presidente tem uma agenda muito complicada, muito corrida. Sou demandado em todo o Brasil, todo o Brasil bate na porta do gabinete. Só vou aproveitar os convites que me são feitos.”

Indagado sobre se quer suceder ao pai, Eduardo lembrou o impedimento. Ele esbarra numa questão legal. A legislação atual proíbe filhos de presidentes da República de se candidatarem a qualquer cargo. Só é permitido tentar a reeleição na posição que já ocupavam no momento em que um dos pais foi eleito à Presidência. Portanto, enquanto Jair estiver no Planalto, Carlos só poderia se candidatar à reeleição de vereador do Rio de Janeiro, Flávio só poderia tentar voltar ao Senado também pelo Rio, e a Eduardo só restaria a Câmara dos Deputados por São Paulo. Fora isso, antes de o pai deixar a Presidência, só síndico do prédio.

Como Bolsonaro já anunciou que tentará a reeleição, e a avaliação da família é de que será uma vitória mais fácil do que a de 2018, os filhos só poderão galgar novos cargos a partir de 2027 — quando, num cenário hipotético, um Bolsonaro reeleito desceria a rampa.

Eduardo disse não se preocupar com os processos que correm contra ele no Conselho de Ética — um deles sem chances de prosperar, por atacar Joice Hasselmann nas redes, e outro, mais forte, em virtude de seu flerte com o golpismo, ao defender um “novo AI-5” em caso de a esquerda se “radicalizar”.

“Me inspiro muito em meu pai. Ele já respondeu uns 30 processos no Conselho de Ética, nenhum por roubar, todos só por falar”, emendando numa nova tentativa de explicar o que disse: “Nosso sentimento (dele e de Paulo Guedes) não é retornar ao AI-5, não queremos fechar o Congresso. Longe disso. O que queremos dizer é que, se (acontecer o que defende) esse pessoal, por exemplo o Lula, que fica torcendo para vir para o Brasil isso que chamam de protesto, mas, na verdade, é quebra-quebra de dezenas de estações de metrô, fogo em ônibus, coquetel molotov em policial feminina. Esse tipo de coisa não é protesto, é esfera criminal. Precisa ter energia para poder responder. Não vai ser através de poemas ou rosas”, disse.

Confrontado com o fato de que nada disso é o que se vê nas ruas brasileiras em novembro de 2019, rendeu-se à realidade: “Todas são conjecturas. Estamos falando de Chile, mas já vemos isso acontecer na Colômbia, e o pessoal está doido para trazer para cá”, afirmou, para logo depois, como se reconectando-se com a realidade, se contradizer novamente: “Se bem que acho que vai ser difícil, porque a esquerda não tem tanta moral assim, porque foram muito desgastados com a corrupção que cometeram. Fica difícil para eles conseguirem angariar apoio, a não ser que paguem”.

O fantasma de Lula também seria, em sua visão, o fator que fez o dólar disparar. “Quando se solta o Lula, você traz uma insegurança jurídica para o Brasil. Estão tentando atribuir ao Bolsonaro algo (a alta do dólar ) que não foi ele quem fez. O presidente deu uma declaração para que o dólar subisse? Não”, disse, talvez esquecendo que foi a declaração de Paulo Guedes sobre o AI-5 o fermento da mais recente disparada.

Polido, Eduardo pediu para encerrar a conversa. Estava atrasado para uma reunião na liderança do PSL. “Dê tempo para o homem (o presidente ) trabalhar. É muita gente especulando. Se ele fosse um ditador, o dólar estaria nas alturas”.


Monica de Bolle: Ressuscitando Prebisch?

Custo a acreditar que algum economista hoje aposte todas as fichas no quadro internacional para explicar a instabilidade econômica e política da América Latina

No último domingo, a Folha de S.Paulo publicou um longo ensaio de dois cientistas políticos sobre as relações entre a instabilidade política na América Latina e o que apontam como as causas fundamentais da instabilidade econômica — o título do artigo é “Frustração com economia alimenta revoltas na América do Sul”. Para sustentar a tese de que a instabilidade política da região provém da instabilidade econômica causada pelo tipo de inserção internacional das economias da região, os autores constroem um índice que se vale apenas das condições externas, a saber: a taxa de juros nos Estados Unidos e os preços das matérias-primas nos mercados internacionais.

A partir da construção do que denominam “Índice de Bons Tempos Econômicos” desde os anos 1960 até o presente, os cientistas políticos identificam momentos de instabilidade política justamente quando o indicador cai, isto é, quando o “bom tempo econômico” se torna um “mau tempo econômico”.

A ideia de que a instabilidade política e econômica da América Latina está intimamente relacionada com o quadro internacional — sobre o qual países da região não têm controle — não é nova. No fim dos anos 1940 e ao longo dos anos 1950 vários economistas latino-americanos de tradição cepalina desenvolveram a tese da dependência, ou teoria da dependência: a América Latina estaria fadada a conviver com ciclos de extrema volatilidade econômica por ser uma região tradicionalmente exportadora de matérias-primas, portanto, excessivamente dependente dos mercados internacionais. Economistas como Raúl Prebisch, um dos principais formuladores da teoria da dependência, abstiveram-se de relacionar diretamente volatilidade econômica com instabilidade política, embora elas estivessem muitas vezes intrinsecamente associadas em seus escritos.

Como bem sabem os economistas, correlação não é causalidade, e observar associações não equivale a dizer que a instabilidade política é causada por isso ou aquilo. Os autores do artigo da Folha do último domingo parecem tentados, pela elaboração de seu índice, a afirmar que a instabilidade política é causada pela inserção econômica internacional da América Latina, o que evidentemente ignoraria as características individuais de cada país como fator relevante. Mas o que mais me assombrou na tese foi o paralelo com o pensamento de Prebisch.

Muitos haverão de se lembrar de que a teoria da dependência desenvolvida nos anos 1940 e 1950 resultou nos desastrosos experimentos de vários países com as políticas de substituição de importações na América Latina nos anos 1960 e além. Industrializar por meio da substituição de importações seria o antídoto para neutralizar a volatilidade proveniente da dependência extrema dos humores do mercado internacional.

Como sabemos, não foi bem assim que a coisa se deu. Os setores protegidos tornaram-se cada vez menos competitivos ao longo do tempo, criando em vários países — sobretudo no Brasil — indústrias de baixo grau de competitividade e produtividade. As medidas usadas para implantar a substituição de importações — tarifas, cotas comerciais, regimes de câmbio múltiplo — transformaram-se em fontes adicionais de instabilidade econômica. Ou seja, a resposta ao diagnóstico de que toda a culpa pela alta instabilidade da região era do quadro externo levou a respostas de políticas públicas que exacerbaram essa instabilidade, em muitos casos desembocando em hiperinflações, crises cambiais e fiscais, moratórias e planos fracassados de estabilização macroeconômica.

Ao contrário, muitos atribuem a instabilidade às características políticas, sociais e econômicas de cada país, para além do quadro internacional. Ao mesmo tempo, muitos economistas passaram a incorporar a psicologia social e comportamental, além da pesquisa empírica, na área de ciências políticas, em suas análises. Há um reconhecimento claro da importância dos fatores apontados em 2010 pela Political Instability Task Force para explicar o risco de instabilidade política, a saber: se o país está inserido numa vizinhança politicamente instável, se as instituições democráticas são relativamente frágeis e se o grau de polarização política é alto. A América Latina atende aos três critérios.

Que os cientistas políticos e os economistas estejam cada vez mais preocupados com as interconexões de suas disciplinas para entender os fenômenos que estudam e observam é algo a ser comemorado. Que se aposte em explicações reducionistas sobre como a economia e a política interagem não é. Antes de ressuscitar Raúl Prebisch, deveríamos ressuscitar Albert O. Hirschman.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica de Bolle: Uma aliança desorientada pelo Brasil

O partido de Bolsonaro já nasce desorientado não apenas por não ter qualquer articulação clara de ideias ou agendas, como também pelo logotipo que escolheu

Confesso que tive certa dificuldade para intitular este artigo, pois não sei quem está mais desorientado: a aliança que Bolsonaro pretende criar ou o país que ele tenta liderar. A ideia, de todo modo, nasceu do logotipo do novo partido, Aliança pelo Brasil. Embora ele tente retratar uma aliança em verde e amarelo — aliança no sentido de anel de dedo —, creio que, inadvertidamente, os responsáveis pela criação do logotipo tenham esbarrado em um objeto matemático curioso. O logotipo da Aliança pelo Brasil, para quem não viu, é um círculo retorcido que causa espécie de ilusão de ótica — como se passa do lado verde para o lado amarelo? Eis aí o primeiro problema: o símbolo escolhido pelos artistas gráficos é um objeto matemático que tem duas dimensões, mas apenas um lado.

Como pode? Peço aos leitores a paciência de fazer deste um artigo interativo. Peguem, por favor, uma folha de papel. Pode ser de qualquer cor, mas sugiro uma folha branca. Cortem uma tira de mais ou menos dois centímetros de largura. Com a tira em mãos, façam uma meia torção — reparem, só uma meia torção, isso é muito importante. Feita a meia torção, colem os dois extremos da tira um no outro. Se as instruções foram seguidas corretamente, vocês agora terão em mãos objeto conhecido como a fita de Möbius — Möbius é August Ferdinand Möbius, o matemático e astrônomo que a inventou em 1858. Reparem: embora o pedaço de papel que utilizaram para fazer a fita tivesse dois lados, o objeto fabricado tem apenas um. Não acreditam? Então tentem desenhar uma linha dos dois lados da fita sem retirar o lápis ou a caneta do papel. Impossível, certo?

Caso tenham tido alguma dificuldade com a tarefa proposta ou simplesmente lhes tenha faltado a paciência, há outra forma de constatar que a fita de Möbius tem apenas um lado sendo um objeto bidimensional. Deem uma olhada na gravura de M.C. Escher, aquela das formigas vermelhas caminhado sobre algo que parece uma grade no formato do infinito — a gravura sobre a qual me refiro chama-se Möbius Strip II . As formigas andam, andam, mas não saem do mesmo lado jamais. É irresistível pensar nos membros do novo partido de Bolsonaro como essas formigas: todos haverão de ter um lado só. Como é o Brasil hoje, país de um lado só, pois, se você pertence a um deles, o outro não existe, tamanho o desprezo que você sente por ele.

Há outra curiosidade sobre a fita de Möbius que inevitavelmente nos leva ao partido de Bolsonaro: ela é “não orientável”. Na matemática, ser “não orientável” significa que o objeto carece de direção vetorial — vejam as formigas: independentemente da “direção” que elas tomem sobre a fita, estarão sempre de um lado só e sempre cruzarão o ponto de partida. Na política, ser “não orientável” significa não ter capacidade para se orientar, ou seja, é ser desorientado. Portanto, ao que parece, o partido de Bolsonaro já nasce desorientado não apenas por não ter qualquer articulação clara de ideias ou agendas, tal qual o próprio presidente, como também pelo logotipo que escolheu. Pelo visto, inconscientemente.

Claramente, o multipartidarismo e a fragmentação têm frustrado as expectativas da sociedade brasileira, levando a uma perigosa descrença em relação à política. Que tal descrença hoje esteja generalizada mundo afora não é motivo para que não tratemos dela refletindo sobre os motivos que levam as pessoas a se ater mais à personalidade de determinados políticos do que aos partidos e às propostas que eles deveriam representar. Sem essas reflexões e alguma ideia para uma solução, permanecerão os brasileiros também como as formigas de Escher: caminhando unilateralmente sobre uma fita de Möbius sem chegar a lugar algum.

Creio que a disposição para tanto esteja próxima do esgotamento, a julgar pelo que está acontecendo no resto da América Latina. Afinal, se o Chile está em convulsão mesmo com uma economia que cresce em ritmo razoável, o que dizer do absurdo desempenho da economia brasileira, que todos teimam em chamar de recuperação? Recuperação com 11,8% de desempregados e um monte de subempregados? Recuperação com um governo que inventa medidas em nome da criação de empregos sugerindo tributar os benefícios daqueles que estão justamente desempregados?

Ao que parece, Paulo Guedes nem precisava conhecer o logotipo do partido de Bolsonaro. Já encontrara a fita de Möbius sem precisar recorrer a qualquer artista gráfico. Só há um lado em sua agenda, só há uma borda em suas propostas. Pouco importa o tamanho das dimensões, tampouco as dimensões do tamanho.

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Guilherme Amado: O decano a mil por hora

Desde 2018, Celso de Mello se tornou a mais altiva voz do Supremo ante investidas contra a democracia e os direitos fundamentais

Os 30 anos de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal (STF), recém-completados em julho, poderiam fazer com que os últimos meses do decano na Corte fossem de inabalável calmaria. Aos 74 anos — celebrados na sexta-feira 1º —, Mello não precisa mais provar nada a ninguém. Exatamente a um ano de deixar o tribunal, em 31 de outubro de 2020, nenhum colega ou analista do STF criticaria se Mello preferisse nestes últimos meses uma atuação discreta, sem protagonismo, mais preocupada em arrumar gavetas e planejar o que fará em seguida. Mas o Celso de Mello dos últimos dois anos tem sido o oposto.

Desde 2018, ele se tornou, menos pelo tom barítono e mais pelo acúmulo de experiência e pela previsibilidade de decisões, a mais altiva voz do tribunal ante investidas de militares ou do próprio presidente da República e de sua família contra a democracia e os direitos fundamentais. Agora, está nas mãos dele um dos votos mais esperados do tribunal: dizer se Sergio Moro foi ou não parcial ao julgar Lula. Tudo isso a 365 dias de se aposentar.

Promotor de Justiça em São Paulo e assessor jurídico do gabinete de José Sarney, Celso de Mello chegou ao STF indicado pelo próprio, em 1989, num tempo em que ministros da Corte não tinham um décimo dos holofotes que têm hoje. Durante três décadas, acostumou-se a viver sem eles. Nunca teve outro emprego ou fonte de renda de lá para cá. Não frequenta as rodas de poder de Brasília nem teve proximidade com qualquer presidente da República após Sarney. Evita encontrar advogados fora do gabinete e são raras suas entrevistas. Seu passeio nos fins de semana em São Paulo ou em Brasília é em livrarias. Entre goles generosos de café e uma dieta recheada de alguns Big Macs, é notívago e gosta de citar em seus votos as próprias decisões, ora textualmente, ora adaptando e melhorando trechos.

A repetição de suas teses e seus entendimentos, aliás, faz com que seus votos sejam, na maioria das vezes, previstos por quem tenta decifrar a matemática em torno dos 11 togados. Como anotaram os repórteres Felipe Recondo e Luiz Weber em Os onze , livro em que perfilam o tribunal e seus atuais ocupantes, os votos de Mello costumam dar uma sensação de déjà-vu. O respeito às regras e aos costumes do tribunal foi o que o fez, por exemplo, recusar a sondagem da então presidente do STF Cármen Lúcia para designá-lo relator da Lava Jato, o que atropelaria o algoritmo que distribui aleatoriamente os casos entre os ministros.

Mello viveu a ditadura e carrega a lembrança do preço pago pelo país com o arbítrio. Enquanto promotor, denunciou torturas e outras ilegalidades cometidas pelo regime. Talvez aí tenha se forjado a preocupação que o leva a ser o único a usar palavras duras para se referir ao que considera ameaças de fardados e de Bolsonaro ao tribunal.

Uma das manifestações mais fortes foi contra o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, que, na véspera do julgamento do habeas corpus de Lula, mandou um recado velado ao STF em uma mensagem publicada em sua conta do Twitter. Na ocasião, o decano se impressionou com o silêncio de seus colegas, especialmente os que costumam comentar publicamente fatos sem a mesma importância. A resposta veio na sessão: “Em situações tão graves assim, costumam insinuar se pronunciamentos ou registrar se movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir, qualquer que seja a modalidade”. Não foi o último embate com a turma verde-oliva.

No período eleitoral, com um crescente ataque ao STF e à Justiça eleitoral e diante do líder das pesquisas, Jair Bolsonaro, estimulando a desconfiança na lisura do processo, um coronel reformado ofendeu Rosa Weber, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mello saiu em defesa da colega, afirmando que o ataque era “imundo, sórdido e repugnante” e que usava linguagem “insultuosa, desqualificada por palavras superlativamente grosseiras e boçais, próprias de quem possui reduzidíssimo e tosco universo vocabular, indignas de quem diz ser oficial das Forças Armadas”.

Ninguém pode rotular Mello de petista. Pelo contrário: condenou petistas no mensalão e na maioria de seus votos nos anos do PT foi contra as teses defendidas por Lula ou Dilma. Passado o julgamento no plenário sobre a condenação em segunda instância, deverá ser marcado o julgamento na Segunda Turma da Corte em que cinco ministros decidirão se Moro não teve isenção para julgar Lula. A decisão terá forte impacto político, a depender da modulação a ser feita pelos ministros. É possível até que todos os casos de Lula que tiveram o dedo de Moro retroajam para antes da aceitação da denúncia e algumas provas sejam para sempre invalidadas. Lula pode se tornar não só um cidadão livre, como retomar de imediato seus direitos políticos.

Mesmo antes da Vaza Jato, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski já haviam acenado que votarão contra Moro. Cármen Lúcia e Edson Fachin, a favor do ex-juiz. E Celso de Mello?

Embora o decano não tenha afirmado nada nesse sentido, a aposta entre os ministros é que ele vote com Mendes e Lewandowski. Se o plenário tiver decidido que prisão é só após a condenação definitiva, Lula já estará livre, e a pressão sob Mello será menor.

Há pressões, entretanto, que têm inspirado Mello mais que intimidado. Em fevereiro deste ano, ele liderou a votação pela criminalização da homofobia, um tema cujo avanço a bancada evangélica freava no Congresso. Seu voto, que citou explicitamente a necessidade de ir contra a lógica do “menino veste azul e menina veste rosa”, dobrou ministros que tendiam a votar contra. O STF mostrava, logo no começo do ano, certa altivez diante de um governo que desde a campanha enviava mensagens estranhas à cúpula do Judiciário. Não seria assim ao longo dos dez meses de Bolsonaro.

Antes disso, ainda na campanha, o então candidato falou em aumentar o número de ministros da Corte, a exemplo do que a ditadura fez com o Ato Institucional nº 2. Quando veio à tona o vídeo de Eduardo Bolsonaro, numa aula preparatória para concursos, dizendo que bastaria um “soldado e um cabo” para fechar o STF, o decano decidiu falar e respondeu à Folha de S.Paulo , chamando a declaração de “inconsequente e golpista”.

Nesta terça-feira 29, Mello voltou novamente suas baterias a Bolsonaro, diante da postagem no perfil do presidente no Twitter do vídeo de um leão cercado por hienas — uma delas rotulada como o STF. Em sua mais dura nota, falou em “atrevimento presidencial”, que “parece não encontrar limites na compostura que um chefe de Estado deve demonstrar no exercício de suas altas funções”. Foi aí que Bolsonaro recuou.

Ainda há um ano de Celso de Mello no tribunal. Após sua saída, o decano será Marco Aurélio Mello, de comportamento excêntrico e votos imprevisíveis. Marco Aurélio Mello ficará na posição até 11 de julho de 2021. Depois, a função que até aqui teve o papel de apaziguar ânimos e muitas vezes serenar relações acaloradas estará nas mãos de... Gilmar Mendes.


Monica de Bolle: ‘Sabe com quem está falando?’

Em tempos de hienas e fricotes nas redes sociais, a carteirada voltou a ser um meio de vida para o governo brasileiro

Quem já não esteve na situação de receber essa carteirada de algum interlocutor com ares de autoridade? Houve tempo em que essa relíquia do passado autoritário e, por que não dizer, paternalista do Brasil tornara-se mais rara, apesar de jamais ter desaparecido por completo. Eis que, em tempos de hienas e fricotes nas redes sociais, a carteirada voltou a ser um meio de vida para o governo brasileiro. Afogado em estultices e falta de competência, sobrou apenas o bom e velho método de intimidação tropical-lusófona. E aí, “sabe com quem está falando”?

Dia desses e outros também tenho visto muita gente reclamar das carteiradas constantes. Muitas são inevitavelmente dirigidas a jornalistas, cujo trabalho é apurar fatos, mas muita gente no Brasil de hoje — no mundo de hoje — não gosta de fatos. Fatos muitas vezes são inconvenientes. Por exemplo: imagine que você tenha ficado preocupada e tenha decidido pesquisar sobre a Amazônia. Se você fez seu trabalho de forma cuidadosa, leu vários artigos científicos, aprendeu sobre as minúcias dos pontos de não retorno — os tipping points a partir dos quais a floresta vira savana —, conversou com cientistas, ambientalistas e ministros e ministras do Meio Ambiente de governos anteriores. Se você é economista tem a vantagem de ter passado por um rigoroso treinamento matemático.

Quem sabe você aprendeu a gostar especialmente de modelos dinâmicos não lineares, aqueles que retratam a instabilidade do mundo como ele realmente é. Sendo esse o caso, há uma boa possibilidade de que você tenha decidido fazer umas contas para traçar cenários sobre a morte da floresta. Cenários não são certezas, mas ajudam a dar uma boa noção da urgência de certos problemas. E, bem, se dia sim e outro também você está acompanhando a cobertura jornalística dos desastres ambientais brasileiros, a Amazônia tem moradia certa em sua cabeça. Você faz a conta e traça o cenário. Eis que você descobre que o cenário catastrófico que tantos temem pode estar mais próximo do que muitos imaginam.

Inevitavelmente, você escreve e publica um artigo sobre a Amazônia. Evidentemente, alguns cientistas concordarão com seus achados e outros discordarão deles. Concordar e discordar fazem parte do método científico, da dialética da descoberta, por assim dizer. Sistemas dinâmicos não lineares, comumente chamados de sistemas dinâmicos complexos, são fascinantes pelo alto grau de instabilidade e imprevisibilidade. São, por essa razão, um prato cheio para o debate científico. Mas,

Vejam, o pensamento linear, quando bem embasado por vetores, matrizes e álgebra linear, pode ser bastante sofisticado. Mas o pensamento linear unidimensional baseado em crendices, teorias conspiratórias e pitadas de magia pueril nada tem de interessante. Tem, sim, o poder destruidor. E, é claro, não consegue resistir à carteirada. Como assim você produziu um cenário de que não gostamos? Como ousa dizer que nosso governo pode vir a ser o responsável pela maior catástrofe ambiental do planeta, acentuada pelas mudanças climáticas em curso — nas quais não acreditamos — e com capacidade de acelerar as próprias mudanças climáticas em curso — e já dissemos que nelas não acreditamos? Em bom inglês: how dare you?

O presidente aparece na TV. Aparece na TV na Arábia Saudita. Ao aparecer na TV na Arábia Saudita para falar a um grupo de investidores, ele afirma ter potencializado as queimadas e o desmatamento na Amazônia porque ele não se “identificou com políticas anteriores no tocante à Amazônia”. Arremata: “A Amazônia é nossa! A Amazônia é do Brasil!”. Dias antes, membros do governo dele haviam tentado dar a carteirada em você porque seus números, poxa, seus números. A carteirada vem com um palavrório sobre os compromissos do governo com a Amazônia. A Amazônia acima de tudo, a Amazônia acima de todos. Trata-se da melhor política ambiental do planeta. Ela é fantástica, ela é memorável, ela é estupenda. How dare you?

O problema. O problema é que logo em seguida você e toda a torcida do Flamengo — sim, do Flamengo, viva o Flamengo — viram o presidente na TV. Na Arábia Saudita. Coitada da carteirada. Ela já não tem mais o fôlego de outrora. “Sabe com quem está falando?” Sei muito bem. Portanto, sente-se aí porque ainda não acabei de dizer tudo que tenho a escrever sobre a Amazônia.

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica de Bolle: Por uma macroeconomia verde

Remover subsídios aos combustíveis e taxar carbono são medidas com potencial político explosivo

Em artigo recente, o economista e professor da London School of Economics Nicholas Stern advertiu que os economistas não estão dando a devida atenção ao maior desafio para o desenho das políticas públicas hoje: o meio ambiente e o impacto econômico das mudanças climáticas. Stern destacou que entre as principais revistas acadêmicas de economia há pouquíssimos artigos que abordam o tema, apesar de sua importância crescente no debate internacional e na mídia. Os desafios, entretanto, são reais e visíveis. Basta acompanhar o que está acontecendo no Equador após a decisão do governo de remover os subsídios aos combustíveis. Basta ver quão empenhada está a União Europeia (UE) em reduzir as emissões de carbono a zero até 2050. Basta ler o projeto de lei do Congresso americano a respeito da criação de um imposto sobre o carbono (House Resolution 763, de janeiro de 2019).

Remover subsídios aos combustíveis e taxar carbono são medidas com potencial político explosivo. Exemplos não faltam: a greve dos caminhoneiros no Brasil em 2018, os protestos dos coletes amarelos que sacudiram a França, a turbulência social que forçou o governo do Equador a se deslocar de Quito para Guayaquil.

Contudo, isso não quer dizer que essas medidas, cujos benefícios na forma de redução de emissões dos gases responsáveis pelo efeito estufa são evidentes, não devam ser adotadas. É certo que a remoção de um subsídio sobre combustíveis fósseis ou a introdução de um imposto sobre o carbono têm efeito imediato maior sobre as faixas de renda mais baixas da população. Essa regressividade está na raiz dos protestos e da turbulência política associados a essas medidas.

Contudo, há formas de evitar ou conter tais efeitos, desde que se tenha a compreensão adequada dos desafios políticos e econômicos. Entre os economistas falta essa discussão, como bem ilustra o caso do Equador. Os subsídios foram removidos para ajustar as contas públicas do país, hoje em dificuldades financeiras e com um programa recém-negociado com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Entretanto, dado o impacto redistributivo dessa medida, ela não pode ser usada simplesmente para melhorar as contas públicas. Para evitar o efeito negativo sobre a desigualdade, a remoção do subsídio teria de vir acompanhada de um mecanismo compensatório que elevaria o gasto público.

A discussão se assemelha às questões relativas à introdução de um imposto sobre as emissões de carbono. O projeto de lei do Congresso americano prevê a criação de um fundo constituído das receitas obtidas do tributo para compensar os mais afetados por ele, isto é, um mecanismo para devolver à população o ônus do imposto mediante dividendos de carbono. Na UE, onde vários países já adotaram o imposto, mecanismos semelhantes já estão em uso. Ou seja, a introdução de um imposto sobre o carbono não pode ter por objetivo aumentar as receitas do governo — tem de ser neutra do ponto de vista orçamentário, dada a necessidade de compensar os mais pobres pela regressividade do tributo.

Poucos são os macroeconomistas que discutem esses temas. Assim como poucos são os macroeconomistas que discutem o papel da política fiscal, isto é, do gasto e do investimento público, na redução das emissões de carbono. É igualmente raro encontrar artigos escritos por economistas sobre como desenhar políticas para o investimento em infraestrutura que sejam compatíveis com a redução das emissões de carbono.

Muito surpreende essa ausência dos macroeconomistas em debate demasiado importante. Afinal, as causas das mudanças climáticas estão diretamente associadas à atividade econômica, como apontam os estudos científicos há décadas. Redesenhar as políticas públicas para reduzir emissões traz não apenas o benefício de atenuar os danos ao meio ambiente, mas também a oportunidade de reestruturar economias. O Brasil goza de posição privilegiada para ser pioneiro nesse debate. Infelizmente, temos um governo profundamente desinteressado pelos temas levantados — para não falar do desprezo descarado.

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Carol Pires: A divisão entre democratas e as lições para a esquerda brasileira

Quem defende um país mais plural e igualitário deve começar fazendo o dever de casa

Na quarta-feira passada, durante a reunião semanal da bancada democrata, a presidente da Câmara norte-americana, Nancy Pelosi, disse aos correligionários: “alguns de vocês estão aqui para fazer um lindo patê, mas estão produzindo salsicha na maior parte do tempo”. Dando voltas, a presidente da Câmara quis dizer, essencialmente, que os representantes mais ideológicos do partido estavam dificultando a vida de democratas mais moderados. Para Pelosi, além de forçá-los a se posicionar a cada nova polêmica, o que poderia prejudicá-los na eleição de 2020, o partido estava perdendo o foco, que era tentar aprovar a melhor versão possível de projetos num governo republicano.

O recado era para quatro novatas: Alexandria Ocasio-Cortez (Nova York), Ilhan Omar (Minnesota), Rashida Tlaib (Michigan) e Ayanna Pressley (Massachusetts). Elas representam a ponta esquerda dos democratas e tem sido chamadas de "the squad" , o esquadrão.

Pelosi e Alexandia Ocasio-Cortez, a cara mais visível do esquadrão, tinham entrado em conflito aberto depois da votação que aprovou ajuda emergencial de 4,6 bilhões de dólares para resolver o problema de superlotação — e até falta de comida e água — nos centros de detenção de imigrantes na fronteira com o México. Os democratas se dividiram. Temiam que Trump usasse o dinheiro em suas aventuras de construir um muro na fronteira. Enquanto Ocasio-Cortez viu na votação a oportunidade de criticar toda a política imigratória de Donald Trump, Pelosi acreditava ser importante não deixar de aprovar a ajuda humanitária.

O projeto voltou do Senado com emendas que desagradaram ainda mais o esquadrão, priorizando militarização sobre o social. Foi quando dedos começaram a ser apontados. Pelosi disse publicamente que a jovem democrata podia fazer barulho nas redes sociais, mas não tinha apoio no parlamento. Já Ocasio-Cortez chegou a comparar os democratas moderados a segregacionistas. Foi quando Pelosi reuniu a bancada e pediu que deixassem de “produzir salsicha”.

Mas a essa altura a divisão da bancada democrata já tinha chamado a atenção de Donald Trump. No Twitter, ele mandou as parlamentares do esquadrão voltarem para seus países: "É tão interessante ver mulheres democratas progressistas no Congresso, que vieram originalmente de países cujos governos são uma catástrofe total e completa, os piores, mais corruptos e ineptos em qualquer lugar do mundo (se é que já tiveram um governo em funcionamento), dizendo agora alto e cruelmente ao povo dos EUA, a maior e mais poderosa nação da Terra, como nosso governo deve ser administrado". “Por que eles não voltam e ajudam a consertar os lugares totalmente quebrados e infestados de crime de onde vieram?”, completou. Trump ainda sugeriu que Nancy Pelosi ficaria muito feliz em organizar as viagens de graça.

Entre as quatro, apenas Omar nasceu fora dos Estados Unidos, na Somália, mas é naturalizada norte-americana há duas décadas. Ocasio-Cortez é filha de porto-riquenhos. Pressley é a primeira negra eleita por Massachusetts. Tlaib é da palestina. Ela e Omar são as primeiras muçulmanas eleitas para o Congresso.

O comentário, violento e preconceituoso, ressoa entre as bases fiéis de Trump. Ontem, num comício na Carolina do Norte, o público lhe fez coro gritando "send her back".

Além de comunicar com seus devotos, Trump também joga luz sobre a divisão no partido adversário para que eleitores – sejam republicanos ou democratas moderados – pensem no esquadrão ao pensar no partido Democrata. Com a eleição de 2020 virando a esquina, Trump espera que a onda conservadora que o elegeu consiga mudar o voto de eleitores moderados que se assustam com propostas muito progressistas do esquadrão.

A estratégia não é nova. Aqui, ela tem sido usada de forma ainda mais extrema por bolsonaristas, que divulgaram mensagens de pessoas nuas e urinando na ruas como se tivessem sido a norma nos protestos do #Elenão ou quando o próprio presidente postou em seu Twitter um vídeo pornográfico dizendo que o Carnaval havia se transformado em manifestações como aquela.

Nos Estados Unidos, depois que o esquadrão respondeu Trump chamando-o de racista, ele voltou a atirar nas redes sociais dizendo que “se você não ama os Estados Unidos você pode ir embora”. “Eles não fazem nada além de nos criticar todo o tempo – você vê essas pessoas menosprezando, criticando os Estados Unidos”. Lá como cá, o presidente tenta confundir crítica e fiscalização com “torcer contra o país”.

Mas, neste caso, os ataques de Trump reuniram o partido Democrata. A líder Pelosi disse que Trump reafirmava que seu plano de fazer a América grande outra vez (‘Make America Great Again’) sempre foi sobre fazer "a América branca outra vez". Nesta terça, a Câmara aprovou uma moção de repúdio ao presidente por seus comentários.

O reagrupamento dos democratas fica de lição para o campo de centro-esquerda e esquerda no Brasil. Aqui, com muito mais que dois partidos (são 26 agremiações representadas no nosso Congresso), o jogo tem sido tocado entre o centro e a direita e o fundamentalismo de alguns à esquerda os deixa fora do tabuleiro. Mantém-se a ideologia mas perde-se a partida.

Exemplar e absurdo é o caso da deputada Tabata Amaral, do PDT, escrachada por ter votado a favor da reforma da previdência. Aqui, a história corre com os sinais trocados. Tabata seria a “moderada” - entendeu que a atual previdência “aumenta a desigualdade do Brasil em um quinto e é impasse para o desenvolvimento do País” – enquanto os mais ideológicos à esquerda muitas vezes negam completamente a necessidade de uma reforma. “Ser de esquerda não pode significar ser contra um projeto que, de fato, pode tornar o Brasil mais desenvolvido e mais inclusivo”, disse a deputada.

Ambas mulheres jovens, Tabata Amaral (25 anos) e Alexandria Ocasio-Cortez (29 anos) têm trajetórias muito diferentes. A americana era garçonete antes de se eleger em sua primeira campanha, e se politizou depois de trabalhar na campanha de Bernie Sanders em 2016. Já Amaral é formada em Harvard, ex-aluna de Steven Levitsky, autor de "Como as Democracias Morrem" – aliás, livro-bússola para navegar nos tempos atuais. Mas ambas representam um sopro de frescor na esquerda de seus países. Ocasio-Cortez, por fazer parte de um grupo que levou a cara das minorias para dentro do Congresso. No de Tabata, por tentar romper a polarização que tem ditado o tom da política nos últimos anos.

Em comum, Tábata Amaral e Ocasio-Cortez, as novas caras da oposição, apresentam um desafio dentro de seus campos. Estão certos os que querem manter a coesão ideológica, mas também é preciso entregar resultados práticos. Quem defende um país mais plural e igualitário deve começar fazendo o dever de casa.


Monica De Bolle: Não foi só o Trump

Depois da crise, o nacionalismo se tornou cada vez mais escancarado

Não foi só o Trump nem a combinação do Brexit com sua vitória eleitoral em 2016. Ao contrário do que muitos ainda pensam, o populismo nacionalista ressurgente começou a despontar nos países avançados — e em seguida em um punhado de países emergentes — logo após a crise financeira de 2008. É isso que mostra pesquisa recente concluída por mim e coautores, prestes a ser publicada pelo Peterson Institute for International Economics, após o processo habitual de peer review.

Nós examinamos 55 plataformas políticas de todos os países do G20 antes e depois da crise de 2008. Criamos metodologia para codificar e atribuir notas de 1 a 5 para diferentes aspectos do nacionalismo econômico que desponta como pilar do populismo nacionalista que hoje enfrentamos pelo mundo. Dividimos o nacionalismo econômico em sete dimensões de política econômica: a política industrial, a política comercial, a política em relação ao investimento externo, a política migratória, a política macroeconômica, a política em relação às instituições multilaterais e a política em relação à concorrência. Cada uma dessas dimensões recebeu nota no documento do partido político analisado: a nota 1 refletia a inclinação liberal no sentido clássico do termo; já a nota 5 refletia o grau máximo de nacionalismo justificado por casos históricos, como o nazismo dos anos 30 ou o fascismo nacionalista na Itália e na Espanha. Analisamos todos os partidos que haviam recebido mais de 10% dos votos nas eleições gerais mais próximas anteriores à crise de 2008 e nas eleições mais recentes.

A primeira constatação interessante é que, tanto nos países avançados quanto nos emergentes, os partidos que não tinham relevância ou que não existiam antes da crise, são, de um modo geral, mais extremistas — muitos são mais nacionalistas, outros têm claro viés estatizante. Portanto, as plataformas políticas desses “novos” atores no quadro político de cada país refletem nitidamente a aglutinação nos extremos que caracteriza esta era de polarização. Como disse anteriormente, essa revelação é generalizada, não se restringe à reinvenção do Partido Republicano nos Estados Unidos, tampouco ao Ukip defensor do Brexit na Grã-Bretanha. Há novos nacionalistas no México, na Índia, na Coreia do Sul, por exemplo.

O PSL de Jair Bolsonaro é difícil de codificar, pois a plataforma de 2018 não contém informações suficientes, mostrando o que já sabíamos: o partido que venceu as eleições não tinha propostas claras ou bem delineadas para nada. Não à toa vemos o protagonismo do Congresso preenchendo esse vácuo. Tal protagonismo é bem-vindo. A segunda constatação é que a crise financeira de 2008 pode, de fato, ter servido como um divisor de águas importante. Quando consideramos as plataformas políticas antes da crise, havia claramente posicionamentos mais à esquerda ou mais à direita, mas o nacionalismo não era tão evidente. Quando constatávamos nacionalismo, ele aparecia de forma meio encabulada, quase pedindo perdão por ali estar.

As plataformas mais recentes demonstram orgulho em ser nacionalistas, escancaram essa postura sem qualquer pudor. Nossa metodologia foi capaz de captar isso com clareza, além de demonstrar quão abrangente é a tendência. E, igualmente importante, embora muito do nacionalismo de hoje esteja identificado com partidos de extrema-direita, há partidos de esquerda que também o abraçaram.

A terceira constatação é que o nacionalismo é contagiante. Ele se espalha de um país para o outro como uma epidemia — ou como uma crise financeira. Países não são nacionalistas individualmente. O discurso de que o estrangeiro deve ser visto com desconfiança — seja o estrangeiro as empresas, os imigrantes, as instituições — tem fortíssimo apelo emocional e, por conseguinte, político. Os partidos são o fio que conduz esses sentimentos mais descarados do eleitor. Será muito interessante ver como isso haverá de se refletir nas próximas eleições, sobretudo nas eleições para presidente aqui nos EUA. Já se veem dos dois lados do espectro ideológico os sinais do nacionalismo destemido. Ele aparece tanto em Trump quanto nas propostas da senadora democrata Elizabeth Warren, uma das primeiras colocadas nas pesquisas.

O Brasil que tanto já sofreu com os desmandos nacionalistas escapará dessas tendências? O Brasil do Congresso na liderança e de Rodrigo Maia como capitão das reformas conseguirá resistir ao apelo? De um lado, nossos problemas são grandes demais, urgentes demais, para que possamos nos permitir tirar os olhos do que é preciso fazer. De outro, é justamente da frustração que nasce o populismo nacionalista mais estridente. Os perigos estão aí. Basta prestar atenção no presidente e em seu entorno, filhos incluídos.

*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica de Bolle: Dilema moral

Como se separa a reforma da Previdência das gravíssimas investidas deste governo contra a imprensa, contra o Congresso, contra as instituições de nossa democracia?

O que fazer quando um governo parece estar conduzindo bem a economia ou tratando de fazer algumas reformas importantes ou mantendo o crescimento econômico em ritmo saudável enquanto ataca instituições democráticas, ou direitos humanos fundamentais, ou ambos? Tenta-se separar a política econômica do resto, implicitamente indicando que o resto é menos importante do que a economia? Tenta-se manter o silêncio sobre a política econômica enquanto se apontam os perigos de atacar a democracia, os direitos humanos? Tenta-se reconhecer os esforços na área econômica e apontar os demais perigos ao mesmo tempo, correndo-se o risco de colocar economia e defesa de valores fundamentais no mesmo patamar? Não sei ao certo responder a nenhuma dessas perguntas. Ou melhor, sei que separar a economia do resto é não apenas impossível, mas intelectualmente desonesto, já que a economia opera dentro das fronteiras políticas e geográficas do país cujo governo pode estar violando valores fundamentais.

Na Hungria, o governo autoritário de Viktor Orbán tem tido estrondoso sucesso econômico. Desde sua ascensão ao poder, ficaram para trás os problemas fiscais que ameaçavam o país, retomaram-se os investimentos e o crescimento econômico. A Hungria foi, por muito tempo, uma das maiores decepções entre os países que transitaram dos regimes centralizados para as economias de mercado ao longo dos anos 90. Desde a chegada de Orbán, o quadro se inverteu e o país passou a ter um dos melhores desempenhos da região. Enquanto colocava a economia para funcionar, Orbán censurava a imprensa, perseguia inimigos políticos e transformava a democracia de seu país em caricatura.

Aqui nos Estados Unidos, a economia continua a crescer com desemprego em baixa a despeito das guerras comerciais de Trump e de suas investidas contra o Fed, o Banco Central americano. É bastante provável que a economia forte seja um de seus grandes trunfos nas eleições do ano que vem. Contudo, sua política migratória está há tempos enjaulando crianças na fronteira com o México, em condições absolutamente desumanas. Há bebês presos sem receber os cuidados de adultos, mas sim de crianças um pouco mais velhas, elas próprias desnutridas e sem qualquer acesso a higiene básica. Segundo relatos de membros do Congresso, de pediatras e de jornalistas que visitaram centros de detenção de Trump, há crianças doentes sem tratamento, crianças com problemas psicológicos devido ao encarceramento e à separação de seus pais, crianças amontoadas em celas em que não há leitos suficientes, em que as luzes ficam acesas a noite toda. Como se separa a economia disso?

“Por falar em crianças, como se separa a reforma da previdência da defesa do trabalho infantil recém-tuitada por Bolsonaro?”

Como se separa a reforma da Previdência das gravíssimas investidas deste governo contra a imprensa, contra o Congresso, contra as instituições de nossa democracia? Como se separa a reforma da Previdência do retrocesso na área ambiental quando as mudanças climáticas são hoje a tendência global de maior relevância para os cenários de médio e longo prazo, a maior ameaça à sobrevivência das parcelas mais destituídas da população brasileira? Em outras circunstâncias, talvez fosse fácil apontar os acertos e os erros da principal reforma desse governo, talvez fosse fácil dizer que ela contém mais acertos do que erros, ainda que cristalize muitos dos privilégios que se pretendia eliminar. Em outras circunstâncias, talvez não fosse difícil afirmar que as economias previstas pela reforma darão ao país o alívio de que tanto necessita nas contas públicas, ainda que os estados e municípios tenham sido excluídos — francamente, parecia ingênua a crença de que esses entes federativos fossem realmente incluídos ante seu peso político. Contudo, diante da perda de valores fundamentais que o governo Jair Bolsonaro representa, diante da caricatura que fazem seus seguidores de temas tão graves quanto o trabalho infantil, é muito complicado discutir friamente a reforma da Previdência e respaldá-la sem ressalvas, sem o pé atrás de que talvez isso acabe dando ao governo a licença para pôr mais retrocessos em marcha.

O dilema moral, com o qual poucos parecem se preocupar, não é brasileiro. Ele é global. Isso não o torna mais palatável, mas sim profundamente desorientador.

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica De Bolle: 4 de julho

Todos se apoderaram de símbolos de seus países para traçar a linha que divide os lados.

Por acaso, este artigo vai para o site de ÉPOCA no dia 4 de julho. Não por acaso, este 4 de julho em especial não é um 4 de julho qualquer. Trata-se, sim, do Dia da Independência dos Estados Unidos, mas no Brasil não costumamos dar muita atenção a isso — ou não costumávamos. Sabe-se lá o que o clã Bolsonaro, em sua veneração deslavada por Donald Trump, resolverá tuitar amanhã. Pouco importa.

O que importa é que neste 4 de julho o atual presidente americano resolveu encampar a data historicamente apolítica para fazer um quase inédito discurso nos monumentos de Washington DC, bem como pôr à mostra tanques, aviões de caça e outras parafernálias militares. Desde que foi convidado por um recém-eleito Emmanuel Macron para participar das comemorações do Dia da Bastilha em Paris, a ideia de imitar os franceses não lhe sai da cabeça.

A diferença é que o Dia da Bastilha sempre teve essa tradição. Já aqui, com um discurso que inevitavelmente tocará em temas da campanha presidencial de 2020, a iniciativa de Trump é obviamente divisiva.

Age o presidente americano como outros líderes nacionalistas contemporâneos e passados.

Do lado de cá, os que defendem Trump, os patrióticos, a gente “do bem”. Do lado de lá, os críticos do presidente, logo os que rechaçam os símbolos nacionais. Soa familiar? Alguém aí com uma certa aflição de vestir a camisa da Seleção Brasileira e ser rotulado de defensor do “mito”? Alguém aí desconcertado com o que hoje significa a amarelinha, a canarinho? Em caso de resposta positiva, saibam que não estão sós.

A posse dos símbolos do país por líderes nacionalistas tem a intenção de causar precisamente esse grau de desconforto. Por óbvio, a posse dos símbolos do país divide e isola, marca com letra escarlate — no caso do Brasil a letra escarlate não é a letra A, mas a letra E de Esquerdista — os que pertencem a essa construção inventada, o lado de lá.

A eleição de Trump em 2016, mais do que o Brexit no mesmo ano, inaugurou a era do populismo-nacionalista. mbolle@edglobo.com.br Nessa “nova” era de passado marcado, o lado de cá, o “nós”, é composto por todos aqueles que compartilham a identidade do líder escolhido — sua raça, sua nacionalidade, seus valores. O lado de lá, o “eles”, é composto por todos os que podem até compartilhar raça e nacionalidade. Mas se não compartilham valores, estão definitivamente do outro lado.

O estrangeiro, que não compartilha a nacionalidade e muitas vezes tampouco a raça, está sem dúvida alguma do lado de lá. Por isso, o estrangeiro deve ser detido, contido, quiçá preso e maltratado como os pobres imigrantes da América Central aprisionados em condições desumanas nos centros de detenção de Trump. Se o estrangeiro é o lado de lá, o lado de cá precisa ser autossuficiente para não ter de lidar com ele.

Por isso o protecionismo como arma econômica. Por isso, também, alguma prudência macroeconômica, já que depender do investimento estrangeiro significa entregar-se a “eles”. Por isso o nacionalismo econômico que acompanha os movimentos populistas ultraconservadores da atualidade. Há “adversários” dentro das fronteiras, mas a maioria está fora delas.

A direita tosca brasileira até tentou encampar algumas dessas ideias. Se diz “antiglobalista” e já estampou a letra escarlate em todos aqueles que não aceitam a torpeza do marxismo cultural, da ideologia de gênero, do retrocesso ambiental. Mas as fragilidades da economia brasileira impõem limites a essa visão ignorante, ávida por rechaçar dados, fatos, especialistas, acadêmicos e a força das ideias.

O recém-anunciado acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul está aí para provar que até os mais fanáticos antiglobalistas sempre se dobrarão ante a realidade crua, ainda que para isso tenham de contorcer a própria falta de lógica para justificar as contradições, como fez nosso ministro das Relações Exteriores.

A resposta da UE ao populismo-nacionalista de Donald Trump tem sido contundente. Ainda que o bloco esteja repleto de problemas, ainda que a direita ultraconservadora tenha também se erguido por lá, desde 2017 a UE negociou acordos comerciais com boa parte do planeta e dos parceiros comerciais dos EUA, entre eles Canadá, Japão, México, Vietnã e agora o Mercosul.

Quatro de julho. Pretendo passá-lo escutando a “Ode à alegria”, de Beethoven, hino da UE.

*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Kopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica de Bolle: Quando a natureza se revolta

Talvez a lentidão com que os impactos negativos se acumularam tenha permitido sensação de normalidade

Em 2005, o geógrafo e historiador Jared Diamond escreveu Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso . Há muitos anos, tive a oportunidade de conhecê-lo em Port Moresby, capital da Papua-Nova Guiné. Na época, ele passava ao menos metade do ano no arquipélago que sempre o fascinou tanto. A obra de 2005 é um estudo sobre como as sociedades entram em colapso político e econômico, transformando-se quase repentinamente de grandes civilizações em pequenas aldeias esparsas — às vezes nem isso. Do estado americano de Montana à civilização maia, de Ruanda à China, da Austrália ao Camboja e o esplendor de Angkor, que visitei em duas ocasiões, Diamond tece enredo eloquente e avassalador sobre como o desprezo em relação à natureza pode levar à ruína. O ponto de partida é a Ilha de Páscoa, caso que o autor afirma ser “o exemplo mais claro de uma sociedade que se autodestruiu ao explorar à exaustão seus recursos naturais”. Ao contrário de outros casos estudados, não houve na Ilha de Páscoa interferência de conflitos ou mudanças climáticas repentinas que pudessem explicar o colapso. Como indagara um dos alunos de Diamond, “o que deveria estar passando pela cabeça do nativo que cortou a última árvore da ilha?”.

O autor tenta dar uma resposta a essa pergunta no fim do livro, quando levanta algumas teses. Talvez muitas civilizações tenham falhado em antever o impacto das consequências futuras de seus atos. Talvez a lentidão com que os impactos negativos se acumularam ao longo de muitos anos tenha permitido sensação de normalidade, de que, apesar de tudo, haveria adaptação política, econômica e institucional às mudanças provenientes das ações adversas sobre o meio ambiente. Talvez o poder político desproporcional daqueles que não estavam sendo diretamente afetados pelas mudanças tenha servido como respaldo para promover espécie de mau comportamento racionalmente justificado por aqueles que usavam ou tinham o poder de administrar os recursos ambientais.

“TALVEZ EXISTA ELEMENTO IRRACIONAL NA DESTRUIÇÃO DO MEIO AMBIENTE, REFLEXO DA BUSCA IMEDIATA POR GRATIFICAÇÃO EM DETRIMENTO DE QUALQUER CONHECIMENTO A RESPEITO DOS ESTRAGOS FUTUROS”

Dado o avanço da pesquisa sobre mudanças climáticas e destruição ambiental hoje — ao contrário do passado de várias civilizações estudadas por Diamond —, os motivos irracionais são mais convincentes do que os potencialmente racionais.

Escrevo tudo isso para dizer algo sobre os retrocessos do governo atual. Trata-se de governo muito esquisito, mesmo sem entrar no (de)mérito de suas idiossincrasias. De um lado, tenta promover mudanças econômicas ambiciosas e urgentes, ainda que ajustes nas propostas de reformas sejam necessários. Confesso que aguento o debate sobre o que deve ser alterado na proposta de reforma da Previdência, mas já não suporto a repetição do óbvio: o Brasil tem de fazê-la de alguma forma, e, não, ela não haverá de fazer “chover investimentos” no país. O ministro da Economia está cumprindo seu papel ao tentar destilar otimismo, mas ele bem sabe que a situação está complicada e que os investidores externos têm muito com o que se preocupar no momento atual antes de pensar em deslocar recursos abundantes para o Brasil. A esquisitice do governo está em, de um lado, ter gente competente trabalhando nos temas econômicos e, de outro, ter gente absolutamente desqualificada para tratar de outros temas — educação e meio ambiente, por exemplo.

Leio que em maio deste ano o desmatamento da Amazônia alcançou o maior nível desde que o atual sistema de monitoramento foi instituído. Leio as preocupações de que o governo Bolsonaro tenha dado passe livre para que atividades ilegais levassem à perda de 739 quilômetros quadrados de floresta durante o último mês. Esse número é quase 100% maior do que o observado em maio de 2016. Durante a campanha de 2018, Bolsonaro prometera acabar com o sistema de multas ambientais do Ibama, que, dizia, atrapalhava empresários e produtores brasileiros. Em abril, Bolsonaro assinou decreto que desautoriza a atuação independente dos fiscais responsáveis pelas multas ambientais, essencialmente tornando o trabalho do Ibama irrelevante. E, é claro, há a cereja enrugada do bolo: a ação de improbidade administrativa devido à alegação de manipulação de mapas de manejo ambiental do Rio Tietê pelo atual ministro do meio ambiente quando era secretário dessa pasta no governo de São Paulo durante a gestão de Geraldo Alckmin.

A natureza haverá de se revoltar ante tamanhos maus- tratos e descaso. O que estará passando pela cabeça daquele que vier a derrubar as últimas árvores da Amazônia?

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica de Bolle: Loucura como método

Sem isso, o Brasil provavelmente ainda padeceria de hiperinflação ou teria se tornado uma economia com alto grau de dolarização

Nem todas as respostas para as perguntas desta vida se resumem à urgência da reforma da Previdência, assim como nem todas as respostas às perguntas sobre os problemas do Brasil deveriam gerar repetecos pelo temor de acusações e de tentativas de constranger quem faz as perguntas. Se algum dia não tivéssemos posto em prática a loucura com método, a vontade de testar limites dentro das restrições existentes, o Brasil provavelmente ainda padeceria de hiperinflação e outros males. Ou teria se tornado uma economia com alto grau de dolarização, com os inúmeros problemas que isso nos traria, como se pode testemunhar com o drama da Argentina. O Plano Real, que em breve completará 25 anos, nasceu dessa loucura metódica. Perdemos a capacidade de pensar dessa maneira depois que Dilma Rousseff e Guido Mantega nos trouxeram a loucura sem método, ainda que tenham sido motivados por dar impulso à economia num momento externo turbulento. Loucura sem método, como a nova matriz econômica, não funciona.

Portanto, a vocês, leitores, ofereço esta semana uma lista no lugar de um artigo. Trata-se de lista de perguntas que tenho me feito todos os dias, algumas das quais têm me levado à loucura, sempre com método. Tratei um pouco disso no artigo publicado no site de ÉPOCA em 24 de maio. Aqui estão:

1. O Brasil quase não cresce há três anos, após a Grande Recessão de 2015-2016. Será que o país atravessa uma espécie de estagnação secular, em que a produtividade não deslancha, as tendências demográficas são adversas e a demanda permanece deprimida sem alguma força que a empurre? A taxa de fertilidade no Brasil é menor do que a dos Estados Unidos, país onde o debate sobre estagnação está a todo vapor. Essa pergunta interessa para que possamos pensar em políticas que destravem o crescimento de longo prazo. E, não, a resposta única não é o mantra. A resposta passa por vários temas que temos de desenvolver, o principal deles sendo a qualidade da educação.

2. Por que um país que cresce tão pouco continua a ter inflação anômala para as taxas de expansão observadas? A inflação hoje está em 4,9%. O Focus, a pesquisa do Banco Central junto ao mercado, projeta-a em cerca de 4% para este ano. Contudo, 4% é muito para um país que não cresce quase nada. Poderia a inflação ser, em parte, o resultado do nó górdio causado por juros altos que pressionam o déficit nominal, embutindo riscos na formação de preços que impedem a inflação de ceder? Recentemente, o economista André Lara Resende, um dos principais formuladores do Plano Real, fez pergunta semelhante, com a finalidade de instigar o debate, apenas para ser duramente rechaçado. Há tipos de perguntas que a intelligentsia nacional não se permite fazer. Mas é curioso que essa pergunta, na realidade, seja mais ou menos o corolário de outra:

3. Por que as taxas de juros no Brasil, considerado o nível de atividade, ainda são tão altas? Verdade que no momento estão um pouco mais baixas, mas para o tomador de crédito segue a anomalia. Essa pergunta já foi feita por diversos economistas, sem que ninguém tenha chegado a uma conclusão satisfatória. Será que a falta de uma resposta reflete premissas equivocadas que já não funcionam para entender o Brasil? Apenas pergunto, na esperança de que alguém tenha a coragem de tomá-la como tema de pesquisa com rigor e método. Quiçá eu mesma.

4. Para que estamos guardando tantas reservas internacionais se já não temos riscos externos relevantes? Há quem ainda não entendeu que, embora as reservas sejam um seguro, isso não significa que o seguro deveria nos proteger de todas as contingências imagináveis, inclusive as que dificilmente ocorrerão, como uma crise de balanço de pagamentos sem dívida externa significativa, com déficit em conta-corrente de cerca de 1% do PIB e com dívida soberana em moeda local. A atitude refratária à venda de parte das reservas equivale a pagar sinistros absurdos para assegurar-se de que seu carro jamais sofrerá um arranhão. Não parece razoável.

5. Por que não podemos usar uma parte das reservas para abater parte da dívida soberana? Ou para dar respaldo a linhas de crédito para investimentos públicos e privados compatíveis com a sustentabilidade ambiental, injetando força na demanda enquanto criamos nosso próprio plano de desenvolvimento verde? Pretendo elaborar essa última ideia em breve.

Enquanto isso, divirtam-se com o quebra-cabeça. Mas lembrem-se: loucura com método, sempre.

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics