época

Monica de Bolle: Decadência

Sociedades que não mais reconhecem no conhecimento e na sabedoria as qualidades para seus líderes podem, sim, estar decadentes

E aí, o título evocou os sete pecados capitais? Não é desse tipo de decadência que se trata. A decadência sobre a qual escrevo é a definida pelo historiador e crítico cultural Jacques Barzun, falecido em 2012. Sua obra magna — Da alvorada à decadência: a história da cultura ocidental de 1500 aos nossos dias — foi publicada em 2000, quando o autor tinha 93 anos. Lembrei-me dela ao ler, no domingo passado, o ensaio de Ross Douthat no New York Times sobre seu novo livro, intitulado The decadent society (A sociedade decadente). Tanto Barzun quanto Douthat apresentam contraposições bem elaboradas à obra de Steven Pinker, O novo Iluminismo, publicada em 2018. Nesse livro, o argumento central de Pinker é que os intelectuais tendem ao pessimismo como uma espécie de atrator cognitivo — prefiro atrator ao termo mais comum, viés —, o que os leva a ignorar os progressos conquistados em diversas áreas nas últimas décadas. Tenho inúmeras críticas a essa obra específica de Pinker, mas as deixarei para outro artigo.

Voltando a Barzun. Sua definição de decadência não é moral ou estética. Sobre o termo, ele explica: “As artes como expressão da vida parecem ter sido exauridas, os estágios de desenvolvimento já foram ultrapassados. Instituições funcionam dolorosamente. A repetição e a frustração são o resultado intolerável dessa situação (...) Quando as pessoas aceitam a futilidade e o absurdo como estados normais, a cultura está decadente”. Douthat elabora: sociedades lideradas por gente mesquinha e arrogante não estão necessariamente em decadência, mas sociedades que não mais reconhecem no conhecimento e na sabedoria as qualidades para seus líderes podem, sim, estar decadentes.

A decadência nem sempre leva à catástrofe, pois sociedades decadentes definidas no sentido que Barzun empresta ao termo podem perdurar por anos a fio, como revelam diversos casos históricos. Nesse sentido, a decadência é perfeitamente compatível com alguma noção de “progresso” — a tecnologia que permite maior conforto e uma sensação de ganho de eficiência é a mesma tecnologia por meio da qual nos engalfinhamos em moção perpétua nas redes sociais. Ou seja, a decadência é mais entropia do que ruptura, mais o café que esfria na mesa do que o leite derramado.

Na ciência social, campo em que incluo a economia em todas as suas vertentes, inclusive a tecnicista, há sinais de decadência. Quem são os grandes pensadores da atualidade que nos apresentam maneiras novas de refletir sobre nossos problemas? Não digo que eles não existam, mas, quando procuro referências para compreender o ressurgimento do nacionalismo, a normalização do polo mais extremado da extrema-direita, a aceitação de injustiças sociais sem a turbulência que marcou o século XX, esbarro nas mesmas pessoas extraordinárias.

Hannah Arendt, Albert Hirschman, o próprio Barzun, além de tantos outros que viveram profundamente o século passado, não o atual. O caso das injustiças sociais é especialmente interessante: nos anos 1960, os movimentos pelos direitos civis se espalharam, tomando as ruas mundo afora. Hoje o que se vê é uma mobilização virtual, descontente, sim, mas, ao mesmo tempo, agressiva e desalentada, espantosamente conivente com as estruturas sociais que reproduzem a desigualdade e que não haverão de mudar sem que se desgrude da incandescência da telinha.

“Os ataques contra a imprensa e contra jornalistas mulheres não vão cessar por manifestos e repercussões no twitter”

Entendo que se deva lançar mão deles, também. Como escrevi em um artigo para este espaço na semana passada, linhas foram cruzadas, a porteira foi aberta e a boiada já passou. A presunção de que as coisas cedo ou tarde voltarão a seu lugar e a ordem se restabelecerá é, em si, uma atitude decadente.

A decadência, como definida por Barzun, é confortável para uns e bastante penosa para outros. Para os que dependem dos minguantes programas sociais, para os que estão parados no túnel de Hirschman esperando por uma mobilidade social que desapareceu, para os jovens que precisam de mais do que a proficiência mínima em áreas fundamentais da educação, para os que vivem nas comunidades onde reinam as milícias e os crimes cometidos pela polícia, para todos os diretamente afetados por ciclos climáticos alterados pelo descaso ela certamente é penosa. Esses grupos influenciam e são influenciados pelo que chamamos de economia. Ignorar essa realidade é irresponsável e de uma profunda decadência intelectual, decadência que apenas haverá de prolongar a convergência para a entropia que hoje ocorre no Brasil e no mundo. Café em temperatura ambiente, afinal, é absolutamente insuportável.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica de Bolle: A rasgada

Escrevo este artigo influenciada pelo que tenho visto acontecer com mulheres que têm voz no Brasil

A foto já é icônica. Na frente, um Trump sisudo, tendo acabado de proferir no Congresso o último discurso sobre o estado da União do atual mandato — quiçá o último como presidente, caso não se reeleja. Atrás, o vice aprumado com ares de bom moço, sorridente e sem graça em igual medida. Ao lado dele, a líder da Câmara.

Trajando o branco das sufragistas, batom vermelho na expressão marota ou quase blasé, flagrada pela câmera em pleno ato de rasgar. Rasgar ao meio, rasgar cada papel e colocá-lo de lado numa pilha de farrapos. Nos farrapos, as palavras do presidente. Na rasgada, um ato repleto de símbolos. Na rasgada, a política em sua plenitude. Tão plena que suscitou, como todo ato político de envergadura e força, rechaços e elogios viscerais. O ódio se espalhou nas redes. A admiração, também.

A rasgada imortal de Nancy Pelosi é quebra de decoro. “Mas que absurdo!”, bradaram os defensores do decoro, e sobretudo os opositores de sua quebra por uma mulher. Mulher poderosa no sentido mais puro da palavra, mulher com voz no sentido mais literal — Pelosi é a “Speaker of the House”, aquela que fala por uma das instituições do Legislativo. No Twitter, subiram a hashtag #pettypelosi, mulher mesquinha essa Pelosi. Como ousa? Fiquei imaginando como seria chamada uma Pelosi no Brasil, com pegada de rasgada. Uma menina querendo agradar à mamãe na interpretação psicanalítica? Penso que não — Pelosi é avó. Uma idosa que mia e choraminga o tempo todo? Tampouco. Pelosi não abriu a boca.

Ela rasgou sem dó, sem dar importância ao que diriam homens e mulheres, mas principalmente os homens. Ela rasgou com a mais escancarada indiferença ao bom moço postado a seu lado e ao estridente astro de reality show, cabelo engomado, a sua frente. Tenham ou não gostado do filme, levou o Oscar. A noite se resumiu à rasgada e de tudo que foi dito o que sobrou foi tão simplesmente e tão completamente a rasgada.

De Petra Costa a Regina Duarte, de jornalistas a quem mais se atreva a entrar em terreno supostamente reservado a outras vozes.

Os ataques a essas mulheres, sejam de esquerda ou de direita, não são por causa de sua obra ou de seus atos — o filme, o cargo no governo, o ofício de todos os dias ou o luxo de ter uma coluna em jornal da qual não se depende para viver. Os ataques tantas vezes indizíveis pela carga de obscenidades são contra elas por serem elas, por ocuparem o lugar que ocupam, por atraírem a atenção cobiçada por outros, pelo mérito implícito em tudo isso que a elas não deveria pertencer por determinação. Determinação de quem? Do moço no Twitter que se sentiu diminuído? De gente famosa com megafone? E que com megafone é idolatrada pelos “machos” do planeta verde e amarelo talvez até sem querer?

Ficou difícil escrever “só” sobre economia. Ficou difícil porque a economia não é uma disciplina separada do resto como uma espécie de caixinha especial. A economia é influenciada e influencia muitas esferas da vida e, por ser na essência uma construção social, é afetada por costumes e normas culturais. A vontade cada vez mais explícita de querer determinar o papel da mulher na sociedade, o que ela pode e não pode falar, o que ela pode e não pode fazer, a tentativa de desqualificá-la, tudo isso tem um impacto econômico mensurável.

Não faltam estudos acadêmicos mostrando que atos discriminatórios prejudicam a economia de diversas maneiras. Também não faltam experiências revelando que a inclusão — no mercado de trabalho, na academia, na política — beneficia o desenvolvimento dos países. Falo sobre mulheres, mas os mesmos argumentos e estudos valem para questões de raça, orientação sexual ou religiosa, nacionalidade, e seja lá o que for que torne o indivíduo diferente da “maioria que determina”.

Não sei quais serão as consequências da rasgada de Pelosi, assim como não sei se o documentário de Petra Costa vencerá o Oscar. Também não sei se Regina Duarte será uma boa secretária da Cultura ou se os principais furos jornalísticos do ano serão dados por mulheres, como o das eleições de 2018. O que sei é que os ataques abjetos haverão de continuar, pois os freios se foram.

Cada um fala o que quer quando quer, cruza linhas antes impensáveis sem pensar, diz-se defensor da igualdade de gênero, mas não resiste a um ataque muito bem definido em latim como ad hominem. Não há non sequiturs aqui, pois causa e efeito já não importam. O que importa é que o comportamento bestial está relativizado e aprovado. Cabe a quem quiser enfrentar e chamar a atenção para o que não é aceitável. Dar sua própria rasgada. Eis a minha.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Guilherme Amado: Duas agendas incompatíveis

O crescente afastamento de Jair Bolsonaro da agenda de combate à corrupção pode lhe criar um grande problema para 2022

A divulgação na quinta-feira 23 de que o Brasil chegou a sua mais baixa colocação na série histórica do Índice de Percepção da Corrupção, medido pela Transparência Internacional (TI), confirmou o que especialistas no combate ao crime de colarinho branco comentaram sobre o que foi 2019. No diagnóstico traçado pela organização, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário colaboraram para o resultado — agora, o Brasil está na 106ª posição do ranking —, mas nenhum dos Três Poderes contribuiu tanto quanto Jair Bolsonaro.

Eleito com um forte discurso anticorrupção, o presidente atuou contra pilares do sistema de combate à corrupção, alguns que, de 2014 para cá, permitiram a inédita prisão de ases do poder político e econômico. Ao ver a polícia e o Ministério Público baterem à porta de Flávio Bolsonaro, o presidente mudou sua convicção — talvez porque não fosse tão consolidada como ele dizia ser — e deu uma guinada de 180 graus. Atropelou algumas instituições, interferiu em outras, falou abertamente em usar a lei de abuso de autoridade contra quem investigava seu filho, e, ao fim do ano, sancionou a figura do juiz de garantias, um trecho do pacote anticrime que, embora assegure a independência do juízo de um caso, inevitavelmente aumentará a morosidade da Justiça.

O crescente afastamento da agenda bolsonarista da agenda de combate à corrupção, entretanto, pode lhe criar um grande problema para 2022. Se o eleitor de Bolsonaro não o identificar mais com essa pauta, em quem votará o sujeito que foi no 17 em 2018 mas pouco se importa com o fantasma da ameaça comunista, a ditadura gayzista ou a esfericidade da Terra?

Para muita gente, a resposta a essa pergunta atende pelo nome de Sergio Moro.

Moro ainda diz que não vai ser candidato a nenhum cargo em 2022. Mas as movimentações por ele não param. O Aliança pelo Brasil, tão logo seja constituído, espera filiá-lo, com o objetivo de que ele seja candidato a vice de Bolsonaro em 2022. Um lance bem mais ousado seria o que o Podemos, do senador Alvaro Dias, paranaense como Moro, vem tentando. O partido está de portas abertas para o ministro da Justiça disputar a Presidência da República contra Bolsonaro em 2022. Dias já tratou do assunto mais de uma vez com Moro, na tentativa de mostrar ao ministro da Justiça que ele tem mais estatura política que Bolsonaro. Até agora, o ministro tem feito a egípcia. Não diz se toparia uma filiação, seja no Aliança, seja no Podemos, mas também não fecha nenhuma porta.

O entorno de Moro, entretanto, comunga cada vez mais da percepção de que as agendas do ministro e de Bolsonaro são incompatíveis.

Os prejuízos causados pela atuação do Palácio do Planalto ocupam três páginas do documento. As suspeitas de corrupção envolvendo Flávio Bolsonaro, o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, e o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra, são citadas como exemplos que constrangeram o primeiro ano de Bolsonaro, mas uma radiografia mostrou todas as investidas. “Os primeiros dez meses de seu governo não mostraram nenhum progresso na implementação de uma agenda anticorrupção. Pelo contrário, uma série de decisões do Executivo mostrou sinais de interferência política em órgãos-chaves da luta contra a corrupção, como a Polícia Federal, a Receita Federal e a Procuradoria-Geral da República”, escreveu a Transparência.

“A interferência política na Polícia Federal cresceu. Os superintendentes ameaçaram fazer uma renúncia em massa, na sequência da substituição de Ricardo Saadi, o chefe da Superintendência Regional do Rio de Janeiro”, criticaram os especialistas da organização, referindo-se ao levante na PF contra a tentativa de Bolsonaro de domar a corporação. Não foi a única. Até a cabeça do diretor-geral da polícia esteve a prêmio. E Moro precisou ameaçar se demitir para salvá-lo.

As investidas contra a Receita Federal também constam da análise da TI. As demissões de Marcos Cintra e de João Paulo Martins da Silva, o secretário da Receita e seu vice, além de Ricardo Pereira Feitosa, chefe da Inteligência Fiscal da Receita, foram registradas: “Bolsonaro expressou publicamente seu descontentamento, acusando a Receita de mirar negócios de sua família com escrutínio excessivo. Até uma multa imposta a uma pequena irregularidade fiscal cometida por seu irmão foi colocada como justificativa para as mudanças”.

A demissão de Roberto Leonel do comando do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e, depois, a abertura da possibilidade de nomear comissionados na nova Unidade de Inteligência Financeira (UIF) também foram citadas pela Transparência — lembrando a contribuição de Dias Toffoli, cuja liminar paralisou durante meses o Coaf e centenas de casos de combate ao crime organizado.

O quarto ponto registrado pela TI foi o esvaziamento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). “A interferência política ficou evidente quando Bolsonaro retirou indicações de dois novos conselheiros selecionados tecnicamente pelos ministros da Justiça e da Economia e indicou outros candidatos, nomes negociados com senadores como barganha por votos para que seu filho Eduardo Bolsonaro tivesse apoio para se tornar embaixador nos Estados Unidos”, analisou a Transparência.

Em praticamente todos esses momentos, Moro e Bolsonaro se chocaram. Quase nunca em público — exceto uma vez, em agosto, quando Bolsonaro disse que, em seu governo, mandava ele.

O ano de 2020 vai testar os limites do ex-juiz. Um bom termômetro disso será novembro, quando Bolsonaro terá de indicar alguém para o Supremo Tribunal Federal, para a vaga que será aberta com a aposentadoria de Celso de Mello. Se o presidente não indicar Moro, ele deveria ao menos conversar com seu ministro, explicar por que não o escolheu, ou consultá-lo sobre os nomes, como geralmente o presidente faz com o titular da Justiça. Indicar outro e ignorá-lo completamente poderá consolidar em Moro a impressão de que, para Bolsonaro, ele é só um boneco de posto de gasolina. Daqueles que o gerente só tira do armário quando precisa atrair clientes.


Monica de Bolle: Os despreparados

“Despreparados” era como parte da população, em especial os industrialistas, se referia aos nazistas em 1933 quando Hitler foi nomeado chanceler. Como não tinha o partido qualquer proposta econômica que articulasse uma agenda de medidas para resolver os problemas da Alemanha em meio aos diversos entraves internos e à Grande Depressão, a “visão convencional” era a de que os nazistas não seriam capazes de se manter no poder. As críticas de Hitler ao capitalismo, centradas em seus excessos e no suposto domínio do sistema por forças estrangeiras, não formavam uma base coesa a partir da qual se pudesse elaborar políticas econômicas para a Alemanha no período entreguerras.

Foi assim que muitos sucumbiram facilmente à ideia de que mais cedo ou mais tarde os nazistas perderiam o apoio daqueles que haviam sido responsáveis por sua ascensão. A economia, entretanto, haveria de crescer 10,5% entre 1933 e 1935, o que acabou por consolidar as bases políticas do nazismo, formadas por camadas diversas da população, notavelmente os industrialistas e detentores do poder econômico, antes árduos críticos de Hitler.

Por que escrevo sobre o nazismo? Porque a Alemanha nazista foi o exemplo mais extremo do nacionalismo econômico posto em prática. Como já comentei, estou escrevendo um livro sobre esse tema. Parte do livro trata de uma metodologia para “medir” o grau, ou a intensidade, de motivações nacionalistas nas diversas esferas da política econômica — da política macroeconômica à política comercial, da política industrial ao tratamento conferido aos investidores estrangeiros. Para medir a intensidade do nacionalismo pontuações de 1 a 5 foram estabelecidas, em que 5 é o grau mais extremo possível — as referências históricas para elaborar a pontuação mais alta da escala são a Itália de Mussolini e a Alemanha nazista.

A recuperação econômica entre 1933 e 1935 conferiu a Hitler a legitimidade e o poder de que necessitava para levar a cabo seus planos. Planos que resultaram em crimes hediondos contra a humanidade, para não falar da completa destruição das instituições democráticas da Alemanha.

Diante dos horrores inomináveis do nazismo, é espantoso o sucesso econômico do regime antes da guerra. Após a consolidação do poder de Hitler, a Alemanha cresceu quase 13% entre 1936 e 1939, a fase áurea do Terceiro Reich. A inflação foi de apenas 1,8%, e o desemprego caiu de 44% no início dos anos 1930 para 1% às vésperas da Segunda Guerra Mundial. O triunfo do nazismo na economia se deu pelo nacionalismo mais extremista e escancarado. Não é exagero dizer que todas as esferas econômicas eram de alguma forma controladas pelo Estado, ainda que os industrialistas e os “mercados” de então fossem agentes privados. Agentes privados cooptados pelo Estado, dado o sucesso incomparável das medidas de cunho nacionalista.

O nazismo se escorou na expansão fiscal, nos controles cambiais, na eliminação das práticas de livre-comércio e na cartelização da economia para promover o crescimento. A cartelização foi muito bem recebida pelas grandes empresas industriais ao lhes conferir vultosas margens de lucro. Tais margens de lucro foram ainda beneficiadas pela total eliminação dos movimentos trabalhistas e dos sindicatos.

A marca do nazismo na economia — assim como do nacionalismo totalitário de Mussolini — foi a capacidade de reprimir salários e de instituir reduções dos rendimentos nominais. Por essas razões, pôde a economia crescer a taxas exorbitantes com inflação ineditamente baixa, a despeito dos excessos fiscais — entre 1932 e 1938, o déficit público aumentou de 1,1% do PIB para 7,9%. O resultado da compressão salarial foi uma forte redução do consumo como proporção do PIB e uma alta expressiva do investimento, tanto público quanto privado — as empresas, afinal, estavam esbanjando recursos com a opressão dos trabalhadores e a tolerância do regime com a concentração do mercado.

Para quem ainda confunde nazismo com socialismo, ou com comunismo, ou com políticas ditas “de esquerda”, é importante sublinhar que a compressão salarial na Alemanha nazista foi única. Até hoje, nenhum país foi capaz de replicá-la.

Quando deslanchou, olhos se fecharam e relativizações do totalitarismo em curso viraram regra. O nazismo não é o único exemplo de erro histórico cometido por aqueles que optaram por separar a economia do restante do governo devido à contradição em termos de uma moral privada dos mercados. É, entretanto, o exemplo mais assustador de como o despreparo se transforma em absoluto horror com a conivência daqueles que detêm o poder econômico.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Guilherme Amado: Brasil, país do passado

O currículo de contribuições para que o país do futuro passasse a ser visto como um palco do retrocesso é longo. Tudo isso não passa despercebido de quem observa o país

Daqui a algumas décadas, quando os livros (com muito texto, de preferência) tiverem a missão de discorrer sobre os anos Bolsonaro e os prejuízos por eles causados à imagem do Brasil no exterior, poucas cenas vão resumir tanto o período quanto a da quarta-feira 8, quando Bolsonaro ligou a câmera, postou-se de costas para ela e se deixou filmar para seus milhões de seguidores nas redes sociais. Em silêncio, assistiu por 8 minutos e 50 segundos ao pronunciamento de Donald Trump sobre os ataques do Irã, na véspera, a bases americanas no Iraque. Nada simbolizou mais até agora a vassalagem brasileira em relação aos Estados Unidos, uma postura que tem chocado gerações de diplomatas, de diferentes matizes ideológicos, não só por ir contra tudo que pregam as diretrizes da diplomacia mundial, mas também por trazer dividendos que o país conseguiria da mesma maneira. A mansidão para o lado de Trump seria só mais um traço da caricatura de um homem que se regozija de falar grosso para baixo e fino para o alto, se não viesse acompanhada por decisões e episódios que têm manchado uma reputação conquistada pelo Brasil — de alegria, esperança e boas perspectivas para o futuro —, fosse quem fosse o ocupante do terceiro andar do Planalto.

O currículo de contribuições para que o país do futuro passasse a ser visto como um palco do retrocesso é longo: a leniência diante do aumento das queimadas na Amazônia, a verborragia contra os direitos humanos de qualquer humano que não o apoie, a ideologização das relações bilaterais com países historicamente amigos, como a Argentina e a França, a mudança de posições antigas do Brasil de respeito à identidade de gênero, a ameaça de mudar a embaixada de Israel, gerando uma crise com países árabes, a obsessão olavista de que o Brasil esteve à beira de um regime comunista, a crise com o Irã por apoiar o assassinato americano ao general Qassem Soleimani. Tudo isso, ora gerando irritação, ora só deboches, não passa despercebido de quem observa o país.

Em outubro, o britânico Financial Times, principal jornal de economia do mundo, lido pelos grandes investidores internacionais, afirmou em uma reportagem que o vídeo gravado de madrugada pelo presidente, diretamente do Qatar, após o depoimento do porteiro do Vivendas da Barra ser noticiado pela TV Globo, “levanta questões sobre o estado mental de Bolsonaro”. “O Brasil tem se esforçado para aprovar a agenda de reformas, mas as frequentes explosões de Bolsonaro — que lhe deram o apelido de Trump Tropical — estão afastando apoios necessários para aprová-las”, afirmava o texto. O jornalão, de linha editorial conservadora, não está sozinho.

A coluna teve acesso a dezenas de telegramas diplomáticos enviados por postos na Europa ao longo de 2019, em que são feitas para Brasília análises do que está sendo publicado na mídia estrangeira sobre o Brasil. A deterioração da imagem nacional no exterior ganhou velocidade depois da crise na Amazônia. Um dos despachos, por exemplo, enviado da embaixada de Berlim, aponta um balanço trágico na imprensa alemã sobre o país.

Essa proporção seguiu, com algumas variações, ao longo do segundo semestre. No exterior, os avanços da política econômica são apagados por todo o resto, e nem o que sempre fez o Brasil brilhar tem surtido efeito. Em outubro, quando Sebastião Salgado recebeu o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão, o prestígio do fotógrafo gerou algumas notícias positivas. Mas, dias depois, a bonança se mostrou passageira quando Salgado disparou críticas contra Bolsonaro. “Criticou que o presidente Jair Bolsonaro se referisse ao potencial econômico da Amazônia supostamente sem respeito pelas terras indígenas e sugeriu que os europeus estipulassem condições para a instituição do Acordo Mercosul-UE”, escreveu um diplomata lotado em Berlim.

A chegada de Ernesto Araújo ao comando do Itamaraty fez com que alguns dos mais experientes da carreira se afastassem ou fossem afastados de funções estratégicas. Os três ex-chanceleres brasileiros ainda no Itamaraty estão totalmente alijados. Antonio Patriota é o titular no Qatar. Luiz Alberto Figueiredo é o embaixador em Doha. O tratamento mais controverso tem sido dispensado a Mauro Vieira, que foi ministro no governo Dilma Rousseff e embaixador nos Estados Unidos, na Argentina e na ONU, assumirá nos próximos dias a inexpressiva embaixada de Zagreb, na Croácia. No Itamaraty, o comportamento de Araújo com Vieira tem sido considerado uma demonstração de ingratidão. Foi Vieira quem levou o atual chanceler para, em 2010, ser seu número dois em Washington, o maior posto da carreira de Araújo até ser alçado a número um do Itamaraty, menos pelo currículo e mais por seus predicados olavistas. O atual ministro também foi subchefe de gabinete de Mauro Vieira, quando foi ministro de Dilma.

Essa geração tem assistido ao desmonte de pilares que sempre distinguiram o Brasil, desde o Barão do Rio Branco, a exemplo do princípio de não intervenção em outras nações. Está na Constituição — Artigo 4º — que o Brasil “rege-se em suas relações internacionais” pela “não intervenção” na política interna de outros países. Não que se espere de Bolsonaro que ele conheça a Constituição — o jurista Conrado Hübner Mendes já conta pelo menos 17 episódios em que, em sua visão, Bolsonaro já cometeu crimes de responsabilidade (atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal). O comportamento do presidente nas relações internacionais pode configurar mais um. Bolsonaro vai contra a Constituição e assume sem constrangimento posições sobre política interna de outros países, a exemplo do que fez na eleição argentina, defendendo o voto em Mauricio Macri, e não em Alberto Fernández, ou ainda sobre a eleição americana deste ano, quando já afirmou até haver apoio divino a Trump. “Trump vai ser reeleito, alguém tem dúvida disso? Vai ser reeleito. Está o país indo muito bem, muito bem. Desemprego lá embaixo, a economia bombando, (ele) exercendo seu poder de persuasão no mundo todo, graças a Deus tem os Estados Unidos, que está fazendo tudo isso. Deus está no controle”, afirmou Bolsonaro, para quem talvez Deus e Trump sejam um só corpo.

Ernesto Araújo não está nem aí para os danos à imagem brasileira. A exemplo da Secretaria de Comunicação do Planalto, que até cancelou o contrato de clipping internacional, que era responsável por coletar e analisar tudo que sai sobre o Brasil na imprensa estrangeira, o Itamaraty também não tem nenhuma estratégia para conter o pessimismo que se tem hoje com o país. Esse papel, atualmente, tem cabido exclusivamente a Tereza Cristina. A ministra da Agricultura embarca neste mês para a Semana Verde, na Alemanha, com o objetivo de tentar mostrar que a sustentabilidade é de interesse do agronegócio. Ricardo Salles, a quem caberia o papel de defender o meio ambiente, não é ouvido. Na cúpula do Ministério da Agricultura, sabe-se que, hoje, ou ela faz isso, ou ninguém de peso no governo defenderá lá fora que, além de ser tech e pop, o Agro não mata a floresta.

“Bolsonaro tem de pensar no Brasil, nos interesses do Brasil, e não na visão pessoal dele sobre os fatos. Pouco importa se o presidente pensa A ou B, o importante são os interesses nacionais. E esses estão sendo sacrificados pela postura do presidente. Cada vez menos o Brasil é ouvido”, lamentou um ex-chanceler que deixou recentemente o posto. Ele está preocupado com os próximos anos: “Tudo isso foi no primeiro ano. E ainda faltam três. Não consigo imaginar quantos prejuízos mais teremos até 2022”.


Monica de Bolle: Quando os gigantes encolhem

Quando encolhem, os motivos para comemoração de anúncios como o acordo China-EUA devem ser vistos com um olhar crítico e bastante cético

Escrevo este artigo no dia em que, a algumas quadras de onde trabalho, Trump comemora a primeira fase do acordo selado com a China. A primeira fase do acordo pouco altera aquilo que já está em vigência. Os Estados Unidos concordaram em suspender a imposição de tarifas de importação adicionais aos produtos chineses, reduzir algumas das hoje existentes e manter muitas das que foram instituídas ao longo da guerra comercial iniciada há dois anos. Em troca, a China prometeu comprar mais produtos agrícolas dos EUA, além de outros bens e serviços.

O governo Trump haverá de monitorar o cumprimento do acordo, mas sem estabelecer critérios claros sobre que tipo de ação poderia provocar o recrudescimento da guerra comercial com a China, deixando no ar incertezas consideráveis para o restante do mundo. Nas declarações antes da assinatura dos documentos, Trump exaltou seu feito dizendo que se abria uma nova era de comércio livre, justo e recíproco. Há uma falsa qualificação entre os três adjetivos: livre o comércio com a China não é mais, já que as tarifas médias passaram de 3% a quase 20% desde o início do governo Trump.

Os dois outros adjetivos, “justo” e “recíproco”, são interessantes por sua longa história na retórica política e econômica sobre o comércio internacional. Essa história tem início no fim do século XIX, quando a grande potência global era o Reino Unido. Embora ainda dono da hegemonia econômica e política da época, entre 1870 e 1913 o Reino Unido testemunhou sua perda gradual de importância nos fluxos de comércio com a ascensão de duas futuras potências industriais: os EUA e a Alemanha.

Ainda que o poder hegemônico dos EUA só viesse a se consolidar em meados do século XX, suas indústrias ameaçavam o status britânico, entre outros motivos, porque trabalhavam com tecnologias mais avançadas e desfrutavam de tarifas protecionistas e da capacidade de formar grandes conglomerados e cartéis. Ao contrário, o Reino Unido, como guardião do laissez-faire, não permitia a cartelização e se opunha ferrenhamente ao protecionismo. E assim foi até o dia em que se deram conta de que o encolhimento de seu papel global era inevitável. Então surgiram os clamores por “um comércio justo”, por medidas punitivas ou retaliatórias para os parceiros que burlavam as regras do livre-comércio.

Os defensores britânicos da justiça comercial e da reciprocidade queriam uma reforma tarifária que impusesse o protecionismo a fim de “defender a indústria britânica e os empregos”. Tais clamores não prosperaram por duas razões: em primeiro lugar, porque, apesar das adesões de peso a essa visão, muitos ainda se opunham ao protecionismo — políticos, industrialistas e latifundiários —; em segundo lugar, porque pouco tempo depois eclodiu a Primeira Guerra Mundial. O ímpeto protecionista ganharia novo fôlego anos mais tarde, sobretudo depois da Crise de 1929 e da Grande Depressão.

Agora apertem o botão para avançar rapidamente para 2016, o ano da campanha de Trump. O então candidato atacou o México, denunciou a China e ergueu o dedo em riste para a União Europeia. Todos esses parceiros, dizia, não competiam de forma justa com os EUA. Todos, acusava, adotavam tarifas excessivas, que prejudicavam as empresas e os empregos na “América”. A China, em particular, provocara enormes danos, bradava. Suas práticas desleais haviam acabado com a indústria manufatureira tradicional dos EUA, eliminando milhões de empregos sem que os governos anteriores tivessem feito qualquer coisa para estancar a sangria. A imagem de um país hemorrágico seria usada novamente no discurso de posse, em 20 de janeiro de 2017.

É verdade que Trump não foi o único presidente americano a falar em protecionismo e reciprocidade. Antes dele, Ronald Reagan atacara o Japão por razões semelhantes às acusações hoje dirigidas à China, pois a hegemonia dos EUA já estava ameaçada pelos “insurgentes”. Entretanto, pouco depois, nos anos 1990, o Japão passou por uma longa e profunda crise, da qual jamais se recuperou por completo. Como o século XIX fora do Reino Unido, e o século XX dos EUA, o século XXI é o da ascensão chinesa. A perda de status dos EUA não passará incólume, assim como não passou despercebida a do Reino Unido.

Mesmo gigantes inflam e encolhem. Quando encolhem, o protecionismo aflora com consequências nefastas. Quando gigantes encolhem, os motivos para comemoração de anúncios como o acordo China-EUA devem ser vistos da forma que merecem: com um olhar crítico e bastante cético.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Guilherme Amado: A aliança com os Cartórios

A futura sigla do presidente fez uma parceria com o Colégio Notarial do Brasil, que representa 9 mil notários em 24 estados do país, para que eles trabalhem por sua criação

Cem mil fichas de apoio em pouco mais de um mês de trabalho. O número divulgado em dezembro pelo Aliança pelo Brasil sobre o total de assinaturas coletadas para criar a sigla da família Bolsonaro impressiona: é mais de um quinto das 492 mil necessárias para criar uma legenda. Hoje, existem 80 aspirantes a partido na fila do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nenhum capitaneado por uma figura carismática, nenhum tendo à frente um presidente da República e nenhum que tenha a seu dispor uma estrutura formada pela capilaridade de igrejas evangélicas, associações militares e, agora, também dos cartórios de notas.

O Aliança fez uma parceria com uma entidade privada, o Colégio Notarial do Brasil (CNB), que representa 9 mil notários em 24 estados do país, cerca de 90% da classe, para que eles trabalhem pela criação do partido. Não há nenhum documento formal que estabeleça as diretrizes da coisa, e o CNB tem colocado sua estrutura para trabalhar pelo capitão. Em troca, os cartórios ganham mais do que só uma graninha — a taxa cartorial de reconhecimento de firma é uma mixaria, geralmente menos de R$ 20. Conquistam a proximidade com o partido do presidente e, claro, com o Planalto. Mas a empreitada, inédita na história da criação de partidos no Brasil, pode ter problemas no TSE. O Código Eleitoral não a prevê, e portanto o tribunal nunca disse se usar uma estrutura privada para criar um partido é legal ou não.

Aos olhos de procuradores eleitorais, pode ser até abuso de poder econômico. A todo-poderosa Karina Kufa, advogada de Bolsonaro e representante jurídica do Aliança, não vê ilegalidade. “O que não está na lei não é proibido, não é?”, justificou.

Essa não é a primeira jabuticaba da formação do Aliança. A primeira tentativa do partido foi tentar se viabilizar por meio da certificação digital, o que agilizaria o burocrático processo de reconhecimento presencial de firmas. Aventava-se até usar o sensor biométrico dos smartphones para que os apoiadores autenticassem seus apoios. O TSE deu OK, afirmando que era juridicamente aceitável a autenticação por meio eletrônico, mas não detalhou como seria feito ou quanto custaria. Esperar essa regulamentação emperraria os planos de Bolsonaro, que precisa de um partido robusto em 2022 e, no melhor dos mundos, gostaria de ter logo uma sigla para hospedar seus candidatos a prefeito em outubro.

A sede do CNB fica num amplo escritório na cobertura de um prédio comercial em Brasília, a quatro quilômetros do Congresso. Funciona como uma espécie de sede do Aliança: lá é possível receber em mãos uma ficha de apoio, com timbre do partido. No documento há instruções didáticas para o preenchimento dos dados eleitorais e o comando para ir a um cartório de notas.

Em seu site oficial, a entidade oferece com destaque para download três documentos específicos sobre o Aliança: a ficha de apoio, uma procuração, assinada pela própria Karina Kufa, autorizando nominalmente representantes da futura sigla a recolherem essas fichas autenticadas em cartório, e outro, também subscrito pela advogada, que traz nome e número do documento de cerca de 130 representantes do Aliança por cidades mineiras, estado onde a coleta está mais organizada. Há nomes desde Vila Bicas, com 13 mil habitantes, até, claro, Belo Horizonte.

Cabe ao CNB organizar sua rede de notários no país para que estejam preparados para atender aos interessados em apoiar o Aliança, organizar as fichas nos cartórios para serem retiradas pelos representantes indicados do partido e organizar eventos para o reconhecimento de assinaturas, como em hotéis, praças e igrejas. O serviço inclui ainda usar a rede interna de comunicação do Colégio para comunicar os pormenores das necessidades do Aliança. Segundo Kufa, o partido não pagará nada à entidade pelo trabalho.

Quem está à frente da “parceria” — as aspas aqui cabem porque, segundo as duas partes, o que há é um contrato de boca, um acordo de cavalheiros — é Andrey Guimarães Duarte, tesoureiro do Colégio e ex-presidente da organização em São Paulo. Ele contou que, no começo de dezembro, foi procurado pessoalmente por advogados do Aliança, interessados desde o começo em algo informal, sem a necessidade de qualquer documento.

A coluna ouviu dois procuradores do Ministério Público Federal com vasta atuação em eleições sobre a regularidade da dobradinha. De fato, não há nada dizendo que é ilegal. Por nunca ter sido feito, ainda deve ser alvo do escrutínio dos ministros. “Pode configurar em último caso até abuso de poder econômico, ainda que não exista a previsão dessa infração na constituição de partidos. O Código Eleitoral a prevê apenas nas eleições”, explicou um deles, sob a condição de anonimato.

O outro procurador viu, além do aspecto eleitoral, também problemas de natureza civil para a associação. “Há um possível desvio da finalidade da associação, e aí cabe ao Ministério Público de onde fica a sede da entidade avaliar isso. Me parece que há violação do estatuto”, explicou, também sob sigilo. O estatuto do Colégio Notarial afirma que “é vedado ao CNB participar, apoiar ou difundir, ativa ou passivamente, quaisquer manifestações de caráter político”. É exatamente o que vem sendo feito.

“Nunca havíamos feito isso para a criação de partido. Mas é uma atividade completamente apartidária. Nesse tempo de polarização, temos muito receio de ter um viés”, alegou Guimarães Duarte, o representante do CNB.

Quatro meses antes de o Aliança bater à porta do Colégio, o então presidente da entidade, Paulo Gaiger, foi escolhido por Bolsonaro para um mandato de dois anos no Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas, órgão subordinado diretamente à Presidência da República e a quem cabe definir as políticas de certificação digital — a mesma tecnologia que o Aliança queria usar para se viabilizar. Guimarães negou que o cargo dado por Bolsonaro tenha levado a entidade a vestir a camisa do partido.

Quando fez o trato, Andrey Guimarães disse ter vislumbrado apenas, além de um fluxo maior de clientes aos cartórios, um ganho na imagem do serviço. “Foi gratificante, porque queremos também demonstrar uma utilidade em nosso serviço, que às vezes é muito criticado. A gente brinca que tem pessoas felizes vindo reconhecer firma. Talvez seja a primeira vez que isso acontece.”

Perguntada por que apenas o partido que o presidente da República quer fundar ganha essa ajuda, Kufa foi lógica: “Só porque o Aliança os procurou, não é?”.

A dúvida é se o CNB teria o mesmo brilho nos olhos para trabalhar, por exemplo, pelo Unidade Popular, o mais recente partido autorizado pelo tribunal, no mês passado, e que prega em seu manifesto “apoiar a luta pelo socialismo no Brasil e promover a unidade das forças populares para intervir no processo político do país”. Sem uma estrutura dessa a sua disposição, demorou dois anos para coletar suas assinaturas.


Monica de Bolle: Os anos 20

Nesses anos 20 que se iniciam talvez o melhor que se possa fazer é olhar para os outros anos 20, os do século XX

É tentador começar o ano, para não dizer a década, fazendo prognósticos e traçando cenários. Contudo, prognósticos e cenários são perigosos, sobretudo em tempos de tamanha incerteza. Se antes já era difícil olhar para a frente e enxergar com alguma nitidez, hoje essa tarefa está ainda mais complicada devido à rapidez com que grandes acontecimentos se dão, além da falta de referências para os temas que dominam a formulação de qualquer visão de longo prazo. Penso, por exemplo, na crise climática, no agravamento das tensões geopolíticas globais, na falta de margem de manobra para as políticas de estabilização nos países avançados em caso de desaceleração econômica, no deslocamento da força de trabalho proveniente da automação, na ascensão do populismo-nacionalista. Um tema que tem, contudo, algum tipo de referência histórica para balizar nosso juízo é a ascensão do nacionalismo.

Tenho lido sobre aqueles anos 20 por várias razões, mas a principal delas é traçar possíveis paralelos entre a ascensão das políticas econômicas de cunho nacionalista de então e o ressurgimento do nacionalismo que temos testemunhado mundo afora. Evidentemente, as origens são um pouco distintas. No século passado, o nacionalismo começou a renascer no período entre guerras e ganhou força total depois da crise de 1929.

Nos países avançados, ao menos, a motivação nacionalista teve origem na necessidade de buscar a autossuficiência econômica, sobretudo durante a Grande Depressão. No nacionalismo atual, não há tendência à autossuficiência como outrora. O que há é uma reação aos deslocamentos provocados pela automação, pela ascensão da China, pela perda de poder econômico e político das classes médias tradicionais dos países avançados. É claro que há guerras culturais de todo tipo no meio do caminho, além de uma tendência nefasta de se agarrar a ideias e pensamentos mal formulados ou francamente equivocados, falsos. Mas, apesar das origens diferentes marcadas por épocas muito distintas, o instinto nacionalista é, na essência, o mesmo: tratar de que seu país não só não perca status, mas, sobretudo, avance, ainda que isso possa prejudicar os demais. Esse modo de pensar — em si equivocado, pois o avanço em detrimento dos demais não é sustentável — esteve presente nos anos 1920 e está de volta entre nós em 2020.

Não é uma tendência fácil de reverter, pois a retórica política é poderosa: quem não quer se sobrepor aos demais? Quem não aceita com facilidade a noção de que, se há problemas em determinado país, as causas só podem ser externas? Afinal, culpar os outros por suas deficiências e problemas é algo profundamente humano.

Na área econômica não é necessário ser estatizante para ser nacionalista. Mussolini elegeu-se democraticamente em 1922, com a plataforma: “Nosso sonho é uma Itália romana!”. O saudosismo e a busca pelo renascimento de um passado de glórias é a característica mais forte do nacionalismo. No entanto, entre 1922 e 1925, Mussolini adotou políticas econômicas para liberal nenhum botar defeito. Ajustou as contas públicas, permaneceu comprometido com o livre-comércio, implantou reformas para reduzir o tamanho do Estado e o grau de intervencionismo econômico.

Durante esses três anos, quem quisesse dizer que a Itália era um sucesso apesar do fascismo poderia fazê-lo sem susto. A economia cresceu, o comércio se expandiu, durante algum tempo a inflação ficou sob controle. Mas, nacionalista que é nacionalista não apenas quer se manter no poder — Mussolini largou as pretensões democráticas em 1925 —, como também não resiste à tentação de controlar a economia para seus próprios fins, a Itália romana. A partir de 1926, o regime fascista começou a flertar com o dirigismo estatal, o que se acentuou profundamente após a crise de 1929. Em 1935, todas as esferas da vida econômica eram controladas pelo Estado, inclusive os salários. Para conter a escalada inflacionária, o regime implantou não uma, mas três compressões salariais. Em cada uma delas reduziu os salários nominais entre 10% e 30%.

Não estou dizendo que a Itália dos anos 1920 seja o Brasil dos anos 2020, até porque esse não é um artigo sobre o Brasil. O que quero ressaltar é que, em um mundo em reviravoltas, o impensável pode acontecer. Em um mundo em reviravoltas, até um liberal exemplar é capaz de cortar todas as suas liberdades, a começar pela de ter um salário que garanta sua sobrevivência. Bem-vindos aos anos 20.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Guilherme Amado: O ano de Rodrigo Maia

“O Brasil havia eleito um presidente que abdicara de ao menos tentar ter relação com o Congresso. Foi aí que nasceu o Maia parlamentarista”

Boa parte das investidas com tintas autoritárias de Jair Bolsonaro em seu primeiro ano foi esvaziada pelo sistema de freios e contrapesos que o Brasil construiu em seus 34 anos de democracia. Ora com mais, ora com menos sucesso, o Judiciário, a imprensa, a sociedade civil, o Ministério Público e até o Tribunal de Contas atuaram como saudáveis amortecedores para quem, em muitos momentos, atuou “no limite” — palavras do próprio Bolsonaro ao publicar a primeira leva de decretos pró-armas. Mas este foi um ano em que o Congresso, sobretudo, teve papel medular para amenizar o desmonte institucional que Bolsonaro tentou levar a cabo. Embora o presidente do Senado seja constitucionalmente o chefe do Legislativo, na prática esse papel foi desempenhado por Rodrigo Maia. O presidente da Câmara voou em 2019.

Foi quase sempre o primeiro a se pronunciar — quando não o único — diante de despautérios da base bolsonarista, como os flertes golpistas de um filho e um par de ministros. Conduziu a aprovação da necessária reforma da Previdência. Articulou a derrubada de atropelos legais de Bolsonaro e teve de fazer até a vez de chanceler. Com a roupa de primeiro-ministro, porém, também vieram as responsabilidades. E não houve só acertos no ano Maia.

Desde janeiro, foi ganhando forma o que seria o governo do capitão, com sua notável inabilidade para a articulação com o parlamento, o que gerou um vácuo sem precedentes na história recente da República.

Ele tomou para si a articulação das reformas e boa parte da agenda econômica de Paulo Guedes, lidando com o temperamento difícil do ministro da Economia e muitas vezes se dirigindo diretamente a outros integrantes da equipe econômica. Garantiu a aprovação do pacote anticrime, ainda que no fim do ano, e buscou preencher buracos deixados pelo Executivo, como a falta de uma agenda de políticas públicas num país assolado também por uma crise social.

Enquanto Jair Bolsonaro dispara contra outros países e mira até a ONU, Maia tem tentado limpar a barra. Em tom oposto ao beligerante capitão, visitou da Suíça ao Azerbaijão, passando por Estados Unidos, Líbano e Inglaterra, entre outros. Uma ação desastrosa do presidente levava a uma reação diplomática de Maia. Bolsonaro criticou o presidente argentino e ameaçou ignorar sua posse? Maia foi até Fernández para sentar e conversar. Bolsonaro fez pouco caso das queimadas na Amazônia e acusou os países europeus de interesses escusos? Maia foi à Europa para remendar o estrago. Bolsonaro atacou a ONU? Maia voou à Suíça para tratar com os organismos da entidade, inclusive de direitos humanos.

A última viagem mostrou sua importância nesse papel. Na sexta-feira 13, reuniu-se em Genebra com Michelle Bachelet, a alta comissária de Direitos Humanos da ONU, atacada pelo sempre diplomático Bolsonaro em diferentes situações. Nascido no Chile durante o exílio de seu pai, Cesar Maia, o presidente da Câmara tem muito em comum com Bachelet, cujo pai foi torturado e morto pela ditadura de Augusto Pinochet. Mais uma vez ocupando o vácuo deixado pelo governo, ele propôs à alta comissária a criação de um observatório parlamentar junto à ONU para acompanhar violações no Brasil.

Na mesma viagem, ouviu do presidente irlandês, Michael Daniel Higgins, um desabafo: ele, aos 78 anos, depois de inúmeras assembleias-gerais da ONU, surpreendera-se com o discurso de Bolsonaro nos Debates Gerais, em setembro. “Nunca pensei que fosse a uma assembleia da ONU para ser ofendido daquela maneira”, disse a Maia.

Essas posturas fazem parecer que Maia cumpre uma agenda de oposição a Bolsonaro. Afinal, por que o interesse em se contrapor ao presidente em tantos temas? Maia, ainda por cima, topou instalar duas CPIs que podem trazer problemas para o governo: a das Fake News, mista com o Senado, e a do Óleo, para investigar o vazamento no Nordeste e a lenta ação do governo para reagir à crise. Mas acreditar que ele é um opositor é um erro.

Maia tem um agenda própria e tem usado a cadeira para tocá-la. Deixa andar aquilo com que concorda — a agenda ultraliberal de Paulo Guedes, por exemplo — e freia os temas de que discorda, a exemplo das mudanças irresponsáveis na legislação sobre armas e os excessos do pacote anticrime.

O comportamento faz seus críticos o acusarem de estar confundindo o papel de presidente da Câmara com o de líder político. “Ele tem um discurso de que a direita e a esquerda são extremos e que o centro é o melhor, por ser capaz de aproveitar o melhor de cada lado. Mas o parlamento tem de dar espaço a todas as formas de pensar, e o presidente da Câmara não deve deixar andar apenas as matérias com que concorda. A pauta que ele está colocando para o parlamento é a pauta que ele acha boa. Isso não é democrático”, reclamou uma das principais lideranças da Casa.

Maia também é criticado por, em quatro anos na presidência da Câmara, ainda não ter conseguido fazer reformas administrativas na Casa. O inchaço contrasta com o discurso de austeridade pregado. Até dezembro, a Câmara já tinha custado mais de R$ 5 bilhões aos cofres públicos — em grande parte por causa de salários incompatíveis com a realidade do país.

Maia conseguiu um raro consenso entre esquerda e direita. O comunista Orlando Silva, seu amigo há anos, se derrete de maneira superlativa: “É um dos maiores políticos da história, o estabilizador da República”. Começa a trocar mensagens com os deputados em geral às 6 horas e vai quase todos os dias até depois das 23 horas. Mas é o centrão que está sempre na residência oficial, nos cafés da manhã de fim de semana ou nos jantares em dias úteis. A proximidade excessiva também gera críticas. “O centrão tem de ser como um judô. Você não pode ficar muito colado. Você tem de usá-lo”, ensinou um aliado.

Falar com os dois lados foi uma capacidade que Maia afiou já na primeira campanha pela presidência da Câmara, quando foi eleito a um mandato-tampão para suceder a Eduardo Cunha. No discurso de posse, fez uma menção elogiosa a José Genoíno. “Rodrigo tem caráter e cumpre palavra, o que, não querendo desmerecer meus pares, é algo raro”, disse um dos deputados mais próximos a Maia.

Além de cumprir sua palavra, Maia carrega também o traço da passionalidade. Chora com facilidade. Num levantamento recente, ÉPOCA contou pelo menos 11 vezes em que foi às lágrimas publicamente nos últimos três anos. Chorou até elogiando Eduardo Cunha na votação do impeachment de Dilma Rousseff. Reações mais quentes também são comuns, embora raramente públicas. Em 2019, boa parte dessa irritação foi causada por Carlos Bolsonaro e pelos ataques de sua tropa digital, que, se houver um terremoto no Japão, encontrará uma maneira de culpar Maia. Do gordofóbico Nhonho, como fazem com Joice Hasselmann, a Botafogo, alusão a seu suposto apelido na planilha da Odebrecht, Maia é achincalhado todo dia. Boa parte desses ataques foi iniciada e incentivada por Carlos.

O momento mais difícil na relação com Bolsonaro em 2019 foi em março, no dia em que o ex-ministro Moreira Franco, casado com a sogra de Maia, foi preso. O incendiário Carlos Bolsonaro correu para o Twitter e insinuou que o presidente da Câmara freava, com segundas intenções, a tramitação do pacote anticrime de Sergio Moro. Maia ameaçou abandonar as articulações da reforma da Previdência, que naquele momento já era deixada de lado pelo governo, e conseguiu um cessar-fogo temporário dos bolsonaristas. “Não uso as redes sociais para atacar ninguém”, disse. Todo mundo entendeu. Naquela semana, ficou irado e chegou a pensar em romper com a gestão Bolsonaro.

Maia tem uma visão mais negativa do governo do que a maioria do DEM e do centrão. Não gosta da família Bolsonaro, com exceção de Flávio, e, quando assume o Planalto no lugar do presidente e de Hamilton Mourão, não despacha do palácio, como sempre fez no período Temer. Diz que a energia atual do Planalto, com Bolsonaro, é “muito negativa”.

Por falar em energia, a coluna deseja um 2020 só de boas notícias. Assunto não vai faltar e, por isso, embora na versão impressa só estejamos de volta em janeiro, o site continuará a todo vapor, sem parar nenhum dia.
Postado por Gilvan Cavalcanti de Melo às 08:18:00


Monica de Bolle: Freiheit!

Já neste fim de década, “liberdade” é palavra perigosa, tempos de intolerância, de conservadorismo extremado, de nacionalismo escancarado, de injustiça

No dia 25 de dezembro de 1989, há quase 30 anos, Berlim recebeu Schiller, Beethoven e Leonard Bernstein. O “Concerto pela Liberdade” marcou não apenas a queda do Muro de Berlim, mas a inauguração de uma nova era. Para a Alemanha, tinha início a união, com a demolição do muro que dividira o país após a Segunda Guerra Mundial. Para o mundo, a sinfonia sublime de Beethoven seria o hino da União Europeia. O novo tempo tinha início, assim, com Beethoven, o compositor que soube como ninguém revelar a beleza que a humanidade é capaz de produzir, e a contribuição do magnífico Bernstein ao introduzir no poema de Schiller uma singela e brilhante mudança: a substituição da palavra “alegria” pela palavra “liberdade”. Já neste fim de década, “liberdade” é palavra perigosa, tempos de intolerância, de conservadorismo extremado, de nacionalismo escancarado, de injustiça.

Em 1989 Bernstein ofereceu a liberdade ao mundo no poema de Schiller, unindo todos os povos com a celebração de sua inescapável humanidade. Quem não quer liberdade? Liberdade para criar, para se expressar, mas, sobretudo, para garantir a justiça. Não há liberdade onde uma parte da população é oprimida ou impedida de ter as mesmas oportunidades, os mesmos direitos e o mesmo respeito que têm os demais. Não há liberdade onde há injustiça.

Sociedades muito desiguais não são justas, portanto, não são livres. O Brasil é profundamente desigual e inequivocamente iliberal — e isso só é novidade para quem nunca pôs o país diante do espelho, olhou e fez as perguntas difíceis. Como defender um fiscalismo qualquer em nome do “liberalismo” sem tratar das consequências que essas medidas podem ter no aprofundamento da desigualdade? Como ter a ousadia de falar em “volta da confiança com as reformas para retomar o crescimento” quando há dezenas de milhões de desempregados e subempregados no país? Sem contar, é claro, que só fizemos uma reforma nestes quase 12 meses de governo.

Como dar tanta atenção ao mercado quando estamos perdendo mais uma geração para o analfabetismo funcional em matemática, ciências e, claro, leitura? Como deixar escorrer pelas costas de uma sociedade multiétnica as persistentes discriminações de gênero, de raça, de classe social? Se há algo que o Brasil deveria ter aprendido com seus fracassos é que dogmas não respondem a essas perguntas. O modelo formal e rigoroso — modelinho bacana — aprendido na faculdade de economia não responde a essas perguntas. Os arroubos em mídias sociais tampouco. As respostas prontas não respondem a essas perguntas.

O mundo está de pernas para o ar. Perdemos referências que pareciam bem estabelecidas e que foram celebradas no Portão de Brandemburgo naquele Natal de 1989. É certo que àquela altura o entusiasmo com o liberalismo também era cego, mas tal perda de referências não é licença para fazer o que bem se entende — isso a liberdade não permite, já que está entrelaçada com a justiça, a igualdade de todos na aspiração a uma vida livre e o dever de respeitar espaços e modos de vida alheios.

A perda de referências também não é razão para o desespero ou para o niilismo. Não é a primeira vez que a humanidade vê ruir suas referências. A perda de referências é, antes, uma oportunidade. Oportunidade para pensar e debater como entendemos a desigualdade, em que medida os governos são capazes de atenuá-la e se basta pensarmos apenas nessa dimensão daquilo que é um imenso problema nacional e global.

Desigualdade é a disparidade de acesso às oportunidades no ponto de partida. Reduzindo-a a alguns itens do Índice de Desenvolvimento Humano, a desigualdade passa pelo acesso à educação de qualidade, à saúde, ao saneamento, a um emprego que garanta um salário digno. Mas, ainda que resolvidos os problemas do ponto de partida, há muros. Há muros que impedem a mobilidade social por preconceitos, por exemplo. Entre os maiores problemas que o mundo e o Brasil enfrentam nesta virada de década não figura apenas a simples existência desses muros, mas a vontade política, a vontade popular, de torná-los mais sólidos e resistentes. Ou de erguê-los onde haviam deixado de existir — no Canal da Mancha, por exemplo.

Neste mundo em que sobem as barreiras, neste Brasil em que as cabeças se fecham e o campo visual se estreita, há muita necessidade de resgatar a liberdade concebida por Schiller, Beethoven e Bernstein naquele dezembro simplesmente formidável e inesquecível.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica de Bolle: Nem nacionalismo nem ultraliberalismo

Ressuscito a era Dilma e a época áurea da substituição de importações por uma razão: há muitos motivos que podem levar a mudanças políticas traumáticas

O Brasil e, de modo mais geral, a América Latina são profundos conhecedores das mudanças traumáticas de regimes políticos. Para que fique claro, não considero a mudança de Mauricio Macri para Alberto Fernández recém-ocorrida na Argentina “traumática”, ainda que o país vizinho esteja novamente engalfinhado numa crise econômica. As mudanças traumáticas a que me refiro são os golpes militares dos anos 1960 e 1970 e, na história recente brasileira, o impeachment de Dilma Rousseff.

Como tenho abordado neste espaço, estou estudando a volta do nacionalismo econômico e tenho me aprofundado em estudos de caso selecionados desde o início do século XX. Recentemente, andei relendo a literatura sobre a industrialização por meio da substituição de importações (ISI), com um olhar especial para os casos do Brasil e da Argentina nos anos 1940 e 1950. O estudo de medidas de cunho nacionalista no âmbito da ISI me levou às leituras sobre a extensão dos problemas econômicos causados por esse modelo de desenvolvimento — industrializar substituindo produtos importados — e às relações entre esses problemas e a primeira fase de mudanças traumáticas na região durante o pós-guerra. Há muitas formas de analisar a ISI. Mas o pensador que melhor definiu os problemas desse modelo de desenvolvimento, tão disseminado na região, foi o economista e cientista social Albert O. Hirschman. O alcance de sua análise se deve, primeiro, a sua nítida abertura de pensamento e aversão ao reducionismo. O modelo da ISI, ao contrário do que muitos afirmaram nos anos 1960 e 1970, não sofreu um “esgotamento”, conforme analisou Hirschman. Fosse assim, as políticas que Dilma ressuscitou — os campeões nacionais com dinheiro do BNDES e a preocupação extrema com a desindustrialização, suscitando ações que muito remetiam ao passado — não teriam tido o apoio temporário do empresariado industrial brasileiro.

Para viabilizar a ISI foi preciso manter, durante muito tempo, uma taxa de câmbio real sobrevalorizada. Isso garantia que os bens de capital importados necessários para a indústria que se queria desenvolver permanecessem relativamente baratos, ao mesmo tempo que transferia recursos das exportações de produtos primários para os novos setores industriais nos anos 1940 e 1950. Contudo, uma moeda sobrevalorizada acaba dificultando o financiamento do déficit externo, o que leva a um ciclo interminável de crescimento seguido de severas crises. Essa situação foi importante para impulsionar a ideia de que era necessário combater “governos populistas que flertavam com o socialismo”. A visão simplista e, portanto, atraente era motivada pelo enorme envolvimento do Estado na economia para sustentar as políticas de promoção industrial, levando ao desenlace traumático da remoção de governos “simpatizantes do Estado”. Em muitos casos, os regimes militares que lhes sucederam também se mostraram, no entanto, simpatizantes do Estado.

Algo semelhante se passou com Dilma. Devido a suas políticas econômicas desordenadas, a moeda brasileira havia sofrido sobrevalorização de quase 20% às vésperas do processo de impeachment. A inflação alcançara quase 12%, e, ainda que o Brasil tivesse a capacidade de evitar as graves crises externas dos anos 1970, 1980 e 1990, os desequilíbrios fiscais impediam que se amenizasse a brutal recessão. O resultado foi que os empresários que até então haviam dado apoio às políticas da equipe econômica o retiraram, ampliando a fragilização política da presidente, já evidente em suas dificuldades de negociar com o Congresso e no avanço da Operação Lava Jato. O resultado de tudo isso está aí, espalhado no Twitter e estampado nas mãos que imitam arminhas.

Às vezes problemas de ordem puramente externa se somam aos de ordem interna, provocando uma espécie de tempestade perfeita para uma reviravolta política. O modelo de desenvolvimento escolhido, com todas as suas ramificações, ajuda, contudo, a explicar tantos traumas e abalos na América Latina. O nacionalismo, seja nas políticas de industrialização tardia, seja nas tentativas de reindustrialização, não ajudou o Brasil ou a América Latina. Sua antítese, na forma do ultraliberalismo guediano paradoxal, aquele que libera geral, mas mantém a economia fechada, tampouco o fará.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Monica de Bolle: Cincuum

Paulo Guedes é um homem antiquado, preso às ideias de uma Escola de Chicago que não existe mais

Não entendo nada de futebol apesar de ser flamenguista. Portanto, este não é um artigo sobre o Flamengo, o Mengão campeão, viva o Flamengo! Mas há algo de novo no Flamengo que toca outros temas, em particular a falta do novo na condução econômica e no debate nacional sobre os rumos do país. O novo no Flamengo é, evidentemente, a abertura para ideias diferentes representada pela escolha do técnico, tão criticado no início da trajetória para os dois títulos conquistados no último fim de semana. Arejar as ideias é fundamental em qualquer área, do futebol à economia.

Na economia, estamos bem mal. Não é exagero, ainda que alguns possam querer insistir em relatar melhorias pontuais, a aprovação da reforma da Previdência e outros feitos. Não os desmereço, que fique claro. O problema é outro. Nesta semana esteve no Peterson Institute for International Economics (PIIE) o ministro Paulo Guedes.

Não, não foi aqui que ele deu a declaração sobre o AI-5, mas nem por isso sua fala foi menos espantosa. O PIIE é um dos mais prestigiados institutos de pesquisa do mundo, vencedor há 4 anos seguidos do prêmio Prospect de Melhor Think Tank de Economia. A plateia que participa dos eventos públicos e privados que organizamos é altamente qualificada: embora ela seja composta majoritariamente por economistas, sempre há cientistas políticos, advogados, além de diversos acadêmicos de outras áreas e gestores de políticas públicas. Esperava-se que o ministro fizesse uma apresentação técnica sobre os avanços conquistados e os riscos do ambiente de turbulência política ao redor do país e dentro dele próprio para a economia brasileira.

Em vez disso, Guedes se ateve ao modo associação livre de falar, que é sua característica. A associação livre, quando bem feita, pode dar boas letras de música, boa prosa ou poesia, um monólogo divertido, até. Contudo, não suscitou interesse na plateia habituada a pensamentos bem estruturados e expostos com clareza.

Guedes foi errático, pulou de um tema para outro, divagou e falou bobagens. Ao descrever a agenda futura de reformas, foi repetitivo. Forneceu uma lista de desejos ordenada item por item, em que a alardeada reforma tributária constou como o item de número “cincuum”. Sem explicitar o termo de comparação, repetiu várias vezes que a democracia brasileira é a mais vibrante e que a segurança está melhorando com a queda na taxa de homicídios, colhendo os frutos de ações estaduais e de administrações anteriores. Claro que não houve menção às mortes associadas às ações policiais nas comunidades pobres.

Quase disse que o Brasil é o país mais preocupado com o meio ambiente no mundo — não disse isso exatamente, mas o tom esfuziante ficou evidente. Falou, falou, falou. Quando viu que a hora passava e que ele deveria dar a palavra para a plateia, falou mais um pouco. Foram poucas as perguntas e ele não respondeu a nenhuma, empenhado que estava em seu fluxo de consciência desconexo. Não restou qualquer dúvida de que o ministro gosta muito de ouvir a própria voz.

De tudo isso, o que ficou claro para a plateia?

Em uma brevíssima menção à pobreza, disse que o ideal era dar alguma condição ao pobre e deixá-lo a serviço do mercado, remontando à velhíssima premissa de que pobre é pobre porque não sabe correr atrás do que precisa para ser bem-sucedido. A pobreza para ele não é estrutural nem resultado de um intricado sistema que impede a mobilidade social pois é gerador de desigualdades de oportunidades no ponto de partida. Guedes não entende que o crescimento econômico não é uma panaceia, que não é condição suficiente para nada e talvez não seja sequer condição necessária.

Tenho escrito, com base em uma releitura de Albert O. Hirschman, que o crescimento pode ser fonte de instabilidade política a depender da maneira como afeta a dinâmica social e a mobilidade de segmentos da população. O pensamento econômico moderno abandonou as teses de Guedes sobre pobreza e crescimento há tempos. Também abandonou a ideia de Estado mínimo por ele apregoada. Guedes é inequivocamente vítima de um problema que assola o Brasil em várias esferas: o enrijecimento intelectual e a incapacidade de interagir com o que é novo e diferente. Como tantas profissões, é adepto do clubismo na troca de ideias. Fala para si e para os que querem ouvi-lo, sem capturar aqueles que operam em frequências distintas. Trata-se de um retrato da poeira que assola o Brasil atual.

Cincuum. Vai Flamengo! Levanta a taça do Brasileirão com toda a mescla de criatividade e de cores das bandeiras do Brasil e de Portugal. Aproveita para assoprar um pouquinho da poeira. O Brasil precisa.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins