elpaís

Incêndio no maior parque do NE abre suspeita sobre especulação imobiliária

Parque do Cocó, maior área verde urbana da região, passou na última semana pelo maior incêndio desde sua criação

Beatriz Jucá / El País

Por volta das 18h da última quarta-feira, labaredas começaram a tomar uma mata baixa e seca nas margens da avenida Raul Barbosa, próxima ao aeroporto de Fortaleza, no Ceará. Eram os primeiros sinais do que se confirmaria horas depois como o mais grave incêndio já registrado no maior parque natural urbano do Nordeste, o Cocó. Cerca de doze focos fizeram o fogo se alastrar ao longo de pouco mais de 46 hectares. O parque, localizado na área nobre da cidade e historicamente disputado em meio à especulação imobiliária, se expande ao longo de 15 bairros. Por conta do incêndio, vários deles amanheceram na quinta-feira encobertos por uma densa fumaça. Avenidas foram fechadas e duas linhas de ônibus tiveram o percurso alterado. Escolas interromperam aulas e enviaram os alunos de volta para casa, e alguns moradores das áreas mais afetadas tiveram de deixar suas casas, por conta da dificuldade para respirar.

Do lado de dentro do parque ―um corredor verde que atravessa praticamente toda a capital nas margens do Rio Cocó e cujo ecossistema é responsável por regular a temperatura e o microclima da cidade―, cerca de 70 bombeiros, brigadistas e voluntários trabalhavam para controlar o fogo. As labaredas haviam atingido uma área de campo aberto, que costuma alagar no primeiro semestre do ano, mas seca no segundo, quando as chuvas praticamente desaparecem na cidade. A combinação de vegetação seca, ventos mais fortes e temperatura elevada típica deste período do ano resulta em combustível para as chamas. Os bombeiros precisaram agir rápido para evitar que o fogo chegasse às áreas residenciais ou avançasse até a área florestal, mais próxima ao mangue e ao rio ― o grande coração de diversidade de fauna e flora do parque.

O parque ―formado por uma extensa mata ciliar, mangues e dunas― abriga uma série de árvores nativas e exóticas, além de centenas de espécies de animais, algumas delas em risco de extinção. “O parque tem mais de 1.500 hectares de área verde em uma cidade que já perdeu entre 80% e 90% da sua área verde natural. O Cocó é o alento ambiental de Fortaleza. É muito heterogêneo, com manguezais, campos abertos naturais e palmeirais”, explica Hugo Fernandes, biólogo e pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Integrante da equipe que fez um levantamento da fauna e da flora do parque em 2018, ele estava entre os brigadistas que atuaram para debelar as chamas. O pesquisador lembra que o parque é abrigo para pelo menos 146 espécies de aves, 12 de mamíferos e mais de 40 tipos de répteis e anfíbios.


Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
previous arrow
next arrow
 
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
Os 46 hectares engolidos pelo fogo no Parque do Cocó, no Ceará. Foto: Davi Pinheiro/El País
previous arrow
next arrow

“É uma fauna rica, com espécies ameaçadas de extinção”, diz, citando como exemplo o leopardus tigrinus, um gato do mato. Recentemente, a foz do rio viu encalhe de peixe-boi, o que não acontecia há décadas. Parte do parque, já no encontro do rio com o mar da praia da Sabiaguaba, é também região de desova da tartaruga-pente. “É sem dúvida o grande patrimônio ambiental de Fortaleza”, resume Fernandes. Foram necessárias 22 horas de trabalho intenso para debelar o fogo, tempo considerado curto para a dimensão do incêndio. Algumas iguanas e outros animais foram carbonizados, perdas que ainda estão sendo contabilizadas pelo Estado. Mais de 50 árvores nativas e exóticas foram consumidas pelas chamas. Além disso, o fogo provavelmente motivou a fuga de mamíferos e animais com potencial maior de mobilidade, que agora deverão tentar sobreviver em outras áreas do parque e causarão desequilíbrio nas relações alimentares. “Todo impacto ambiental ocorre em cadeia”, lembra o biólogo.

Por enquanto, ainda não se sabe exatamente o que provocou o incêndio. “Todo incêndio ali é criminoso, porque a lei ambiental não autoriza uso de fogo na área. O fogo só pode ser usado com licença ambiental, o que não havia”, explica o secretário do Meio Ambiente do Ceará, Artur Bruno. Nos últimos sete anos, foram registrado 45 incêndios no parque, quatro deles apenas em 2021. Geralmente pela queima de lixo por moradores das redondezas do parque ou por queimadas causadas por motivos de especulação imobiliária.

“Começa quase sempre pela mão humana, seja acidental ou intencional. Cabe à perícia dizer o que houve. O que a gente sabe é que não é natural”, pontua Fernandes. O caso está em investigação na Delegacia de Crimes Ambientais, acompanhada por técnicos da Secretaria do Meio Ambiente (Sema). Artur Bruno diz que nenhuma dessas hipóteses está descartada e que, por enquanto, não há maiores informações. Fontes ouvidas pelo jornal O Povo apontam que o incêndio no Cocó pode ter relação com conflito de facções criminosas. Segundo o jornal, uma apuração preliminar indica que um homem ligado a facção teria espalhado o fogo ao longo da avenida Murilo Borges, próxima ao parque, durante um confronto entre áreas dominadas pelo crime na região. O titular da Sema, que acompanha as investigações, não confirma esta hipótese. “Ainda é cedo para apontar qualquer coisa, precisamos aguardar as investigações”, diz.

Algumas iguanas e outros animais foram carbonizados, perdas que ainda estão sendo contabilizadas pelo Estado. Foto: Davi Pinheiro/El País

Um dos mais relevantes patrimônios ecológicos da cidade, o Cocó viu inúmeros prédios serem erguidos nos últimos anos. Algumas das construções têm praticamente entrada privativa para as trilhas do parque. Avenidas e viadutos também foram construídos, abocanhando parte da área verde, apesar dos inúmeros protestos de ambientalistas, que argumentavam sobre impactos no complexo ecossistema de seus mangues. Tantas pressões estenderam por décadas seu processo de regularização, com direito a inúmeras ocupações do parque feitas por ativistas. Somente após 45 anos de luta o parque foi finalmente oficializado, em 2017.

Não se pode dizer, contudo, que esteja a salvo. A especulação imobiliária é forte, especialmente em alguns dos bairros nobres que acompanham a parte com maior diversidade de fauna e flora, com os bairros Cocó, Guararapes e Edson Queiroz. O secretário Artur Bruno diz que rondas semanais são feitas em toda a extensão do Cocó para evitar ocupações irregulares. “Fazemos uma vistoria semanal para evitar apropriação indevida, seja de ricos ou de pobres, porque há também uma grande demanda de moradia na cidade. Conseguimos assim chegar no início das construções para impedi-las”, explica.

O parque também tem 30 quilômetros de cercas feitas com grades para limitar o acesso e começou a implantar câmeras de monitoramento que deverão garantir a segurança da população nas áreas de lazer, além de ajudar no controle de incêndios. O Governo do Estado informa ainda que contratou 19 brigadistas temporários para atuar no segundo semestre, quando os incêndios são mais frequentes. “Todos os anos, a partir deste ano, vamos contar com a brigada florestal. Eles foram contratados em outubro, desde novembro começaram a atuar. Um incêndio deste tamanho só foi debelado em menos de um dia porque todos agiram fortemente. A área é ruim, não tem como um caminhão entrar, por exemplo”, finaliza Bruno.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-11-23/incendio-no-maior-parque-do-nordeste-o-quarto-deste-ano-abre-suspeita-sobre-faccoes-e-disputa-imobiliaria.html


El País: 8 anos e 12 quilos, a criança com malária e desnutrição que simboliza o descaso com os Yanomami

Beatriz Jucá, El País

Uma rede escura acomoda o corpo miúdo de uma criança Yanomami tão magra que é possível ver sua pele moldar as costelas. A fotografia de uma menina de oito anos que pesa apenas 12,5 quilos (o peso mínimo normal para a idade seria de 20 quilos), feita na aldeia Maimasi em Roraima, expõe um problema crônico de desassistência à saúde que os povos indígenas enfrentam no coração da Amazônia ―e que vem crescendo ano após ano. A criança estava acometida por malária, pneumonia, verminose e desnutrição, em uma região sem visitas regulares de equipes sanitárias e que fica a 11 horas a pé do polo de saúde mais próximo. Ela teve sua imagem capturada dias antes de ser transferida de avião a um hospital da capital Boa Vista no dia 23 de abril, onde já se recuperou da malária, mas segue em tratamento para os outros problemas. Virou símbolo do histórico descaso do Brasil com o povo Yanomami, que luta para sobreviver em meio a uma junção de graves crises: a escalada de violência por garimpeiros ilegais, os impactos ambientais que levam fome a algumas regiões e a fragilidade do acesso à atenção sanitária.

MAIS INFORMAÇÕES

“Na cultura Yanomami a gente não pode demonstrar imagem de criança, frágil, doente. Mas é muito importante [fazer isso] pela crise que estamos vivendo”, explica o líder indígena Dario Kopenawa, ao autorizar a publicação da fotografia nesta reportagem. Para esta etnia, a imagem da pessoa é parte importante dela e disseminá-la em uma situação de enfermidade pode enfraquecê-la ainda mais. Até quando se morre, é preciso queimar todas as lembranças de quem partiu para preservar seu espírito no mundo dos mortos. Mas a comunidade decidiu divulgar a fotografia enquanto a criança tenta se recuperar para denunciar aos napëpë ―como chamam os não indígenas― seu sofrimento diante da grave crise de saúde que os ameaça.

“Esta foto é uma resposta da violação de direitos dos povos indígenas”, resume Kopenawa. Enquanto a malária e a covid-19 avançam sobre as aldeias, lideranças narram que equipes de saúde foram reduzidas com profissionais afastados por covid-19 e outras doenças, postos de saúde foram fechados temporariamente e falta helicóptero para transporte de pacientes em áreas de difícil acesso. “A gente sofre há muito tempo sem estrutura boa, sem todos os profissionais completos pra dar assistência. Com a pandemia, piorou”, destaca Konepawa. O problema afeta especialmente as comunidades mais isoladas, que dependem de visitas esporádicas das equipes. “Tem locais que estão ainda sem vacinação contra a covid-19 porque não têm profissionais. São comunidades que ficam longe dos postos, não têm como chegar”, acrescenta Júnior Yanomami, membro do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi), um órgão responsável pelo controle social das ações governamentais. No Brasil, os grupos indígenas são prioritários na fila de vacinação.

“A saúde Yanomami está abandonada. Falta tudo”

“A saúde Yanomami está abandonada. Falta tudo”, continua o líder indígena. Segundo ele, a aldeia Maimasi, que vive um surto de malária e onde várias crianças padecem com desnutrição e verminoses, não recebia visita de equipes de saúde havia seis meses, quando profissionais atenderam a criança da fotografia (divulgada por um missionário católico e publicada pela Folha de S. Paulo), no final de abril. A equipe não dispunha de medicamentos suficientes para todos os que precisavam, conta o indígena. A Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), responsável pela atenção aos povos originários, dá uma versão diferente: diz que o atendimento ocorreu dia19 de março, “mas a família não autorizou a remoção para uma unidade de saúde”. Também garante ter estoque suficiente de medicamentos e ter contratado profissionais de saúde, mas não esclarece qual é a frequência das visitas à aldeia. A Sesai tampouco informa ao EL PAÍS sobre a incidência de malária, desnutrição e mortalidade infantil para dar a dimensão do crescimento das doenças na região.

Esses problemas de saúde não são generalizados em todo o território Yanomami ―tão vasto quanto a área de um país como Portugal―, mas estão presentes em várias comunidades. Um estudo realizado por pesquisadores da Fiocruz em duas áreas do território ―Auaris e Maturaká― e divulgado no ano passado dá pistas sobre o tamanho do problema: 80% das crianças de até 5 anos apresentavam desnutrição crônica e 50% desnutrição aguda nestes locais. A situação está relacionada desde à escassez de água potável até a falta de acompanhamento nutricional e de pré-natal na gestação. Passa ainda pelos quadros de verminoses, malária e diarreia frequentes nas comunidades, sem ações preventivas de saúde fortes. “Desde 2019, relato as necessidades e pedimos socorro ao Governo”, diz Júnior Yanomami. “Agora está pior. Aumentou muito a desnutrição. Onde tem garimpo forte tem o problema da fome. E na pandemia aumentaram as invasões. Como eu vou explicar a fome dos Yanomami? Eles [os garimpeiros] sujam os rios, destroem a floresta, acabam a caça. Nós nos alimentamos da natureza”, explica o indígena.

Os moradores da Maimasi são descendentes de um dos grupos mais afetados pela abertura da estrada Perimetral Norte (BR-210) na década de 1970, durante a ditadura militar. Naquela época, parte significativa do grupo morreu diante de surtos de sarampo e outras doenças levadas pelos trabalhadores das obras. Há anos, eles cobram um posto de saúde, mas por enquanto seguem dependendo de visitas esporádicas da equipe de saúde à comunidade. A situação que já era difícil ficou pior especialmente a partir do ano passado. As visitas diminuíram enquanto cresceram as atividades de garimpeiros ilegais, aumentando a chance de doenças transmissíveis e a violência. E os casos de malária, enfrentados pelos indígenas há décadas e considerados “endêmicos” pela Sesai, seguem crescendo. Segundo Júnior Yanomami, só neste ano já foram identificados cerca de 10.000 casos, o que corresponde a pouco mais de um terço de toda a população yanomami, de cerca de 29.000 pessoas. “A criança na foto provavelmente expressa esse somatório de tragédias”, afirma uma nota da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana.

“Nosso território está vulnerável com tantos problemas ao mesmo tempo”

Os vários problemas sanitários, ambientais e sociais enfrentados não estão dissociados. O desmatamento na Amazônia no último mês de abril foi o maior em seis anos, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O desmatamento tem crescido ano após ano, e o desequilíbrio ambiental interfere na alimentação dos povos da floresta, que se alimentam do que colhem, pescam e caçam nas comunidades mais isoladas. Em várias áreas, a presença de garimpeiros e madeireiros ilegais leva ainda à contaminação de rios com mercúrio, contribuindo para desnutrição, desidratação e diarreia. Com os recursos diminuindo na floresta e a fome à espreita, alguns indígenas acabam trabalhando com não indígenas e aderindo a uma alimentação industrializada e menos nutritiva. “Não dá para generalizar que as crianças estão morrendo desnutridas, com fome. Tem esse problema onde há presença dos garimpeiros. Onde não tem garimpo as crianças estão saudáveis, comendo bem e cuidando de suas atividades. O que falta é assistência de saúde”, defende Kopenawa.“A vida do povo Yanomami está em risco. Nosso território está vulnerável com tantos problemas ao mesmo tempo.”

A escalada da violência com garimpos ilegais

Às crises sanitária e ambiental, soma-se ainda uma escalada de violência em algumas regiões. É o caso da comunidade indígena Palimiu, em Roraima. Há uma semana, a aldeia enfrenta ataques de garimpeiros, com tiros, bombas e gás lacrimogêneo contra os indígenas. Na última terça, garimpeiros ilegais trocaram tiros com a Polícia Federal durante uma visita para averiguar as denúncias de ataques à aldeia. “Eu nunca tinha visto tantos tiros. Só em filme. Eles [garimpeiros] eram muitos e tinham armamento pesado”, conta Júnior Yanomami, que estava na comunidade naquele momento. No ano passado, os indígenas criaram uma barreira sanitária para evitar a passagem de garimpeiros e tentar frear a disseminação do coronavírus. Mas o rio Uraricoera, onde fica a barreira, é uma das principais rotas para a atividade. No dia 24 de abril, os Yanomami impediram a passagem de um grupo. Tentaram negociar para que não voltassem. A resposta, segundo Júnior Yanomami, veio meio hora depois, com tiros em direção à comunidade. Os indígenas revidaram com flechas e tiros de espingarda.

Os vários conflitos na última semana, segundo relatam os indígenas, deixaram três garimpeiros e um Yanomami feridos. Duas crianças teriam morrido afogadas enquanto fugiam dos tiros, segundo lideranças. O último ataque, dizem, foi na noite de domingo. “É uma coisa muita séria. Todos lá estão com muito medo. Eu também fiquei”, emenda Júnior Yanomami. “Tem Yanomami correndo risco. Tenho medo de acontecer um massacre a qualquer momento. O Governo Federal tem que se mexer”, clama.

Entidades indigenistas veem o posicionamento do presidente Bolsonaro, que já fez declarações contra a demarcação da terra indígena Yanomami e costuma defender a regularização do garimpo nos territórios, como um estímulo aos conflitos. Na última quarta-feira, o Exército até deslocou homens para a comunidade, mas os retirou horas depois. A 1ª Brigada em Boa Vista não respondeu à reportagem se reenviará os militares e o que motivou a retirada deles. A Polícia Federal, por sua vez, deve retornar para investigar o caso. Enquanto isso, os indígenas seguem em estado de alerta e medo, contam lideranças. Até que a situação se modifique, devem ficar também sem os serviços de saúde, já que a Sesai retirou os profissionais diante da gravidade da situação. “A unidade de atendimento será reaberta tão logo seja possível atuar em segurança”, afirma a secretaria, acrescentando que atendimentos de urgência serão realizados pontualmente no distrito sanitário indígena que fica fora do território. Já a Fundação Nacional do Índio não retornou os contatos da reportagem. “O clima é de medo. Muito medo. Agora só eles estão lá. Não tem PF, Exército nem Saúde. Estão sozinhos para defender a sua comunidade”, finaliza Júnior Yanomami.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-17/8-anos-e-12-quilos-a-crianca-com-malaria-e-desnutricao-que-simboliza-o-descaso-com-os-yanomami-no-brasil.html


El País: Câmara mantém prisão de bolsonarista Daniel Silveira, que ameaçou STF e defendeu AI-5

Deputados acolhem relatório que entendeu que o parlamentar do PSL cruzou a linha que diferencia a crítica e a liberdade de expressão do ataque às instituições democráticas

Afonso Benites, El País

A Câmara dos Deputados decidiu manter a prisão do deputado federal bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ). Por 364 votos a 130, os parlamentares concordaram com a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal que decretou sua detenção sob acusação de ter cometido os crimes de coação e ofensas à Corte e ao Estado Democrático de Direito. Houve ainda 3 abstenções. Silveira está preso desde a última terça-feira. O relator do processo no STF, ministro Alexandre Moraes, justificou a detenção sob o guarda-chuva da lei de segurança nacional e de que o crime cometido teria ocorrido em flagrante ―única condição para a prisão de um parlamentar―, pois foi feito em vídeo publicado em suas redes sociais, agora deletadas por decisão judicial.

Com a decisão, o Legislativo segue o script de não entrar em confronto com a cúpula do Judiciário em um momento em que os Poderes desfrutavam de uma trégua após passarem um ano de 2020 de extrema tensão, muito por conta das atitudes e ataques do presidente Jair Bolsonaro e de seu séquito. Nesse cenário, a Câmara sinalizou que não quer comprar brigas com os Poderes em nome da radicalização da base bolsonarista, ainda que o presidente esteja adotando uma conduta de cautela após os acordos que o aproximaram dos fisiológicos parlamentares do Centrão. A votação desta sexta-feira foi simbólica. Na ponta do lápis, houve mais votos a favor da prisão de Silveira do que apoios a Lira na eleição de 2 de fevereiro. Naquela ocasião, o parlamentar do Progressistas recebeu 302 votos.

Pesou contra Daniel Silveira seu histórico de extremista e de quem tem poucas relações políticas com o atual establishment. Os parlamentares ignoraram os apelos da defesa do colega bolsonarista que alegava irregularidades na prisão por entender que não havia flagrante no suposto crime e que as falas em que Silveira ameaçava os magistrados deveriam ser analisadas pelo Conselho de Ética da Casa, sem que resultasse em sua prisão. A maioria dos que seguiram em suas fileiras são bolsonaristas do PSL, filiados ao NOVO, membros da bancada da bala e representantes do PTB – partido que ainda busca seduzir Bolsonaro a se filiar na legenda.

Processos no Conselho de Ética

Mesmo preso, Silveira ainda enfrentará dois processos no Conselho de Ética da Câmara que podem resultar na cassação de seu mandato parlamentar. Uma representação nesse colegiado, no entanto, não significa quer necessariamente haverá punições. Outros parlamentares de seu grupo político, como Eduardo Bolsonaro ou o próprio presidente Jair Bolsonaro, quando era deputado, já responderam a processos fazendo discursos semelhantes exaltando o AI-5 ou torturadores da ditadura militar. Nenhum deles foi punido.

No último dia 16, Silveira publicou um vídeo no qual chamou o ministro Edson Fachin, do STF, de filho da puta e disse que imaginava ele e outros magistrados da Corte levando uma surra nas ruas. Também falou a favor do Ato Institucional número 5, principal instrumento de repressão da ditadura militar brasileira (1964-1985).

“O que acontece, Fachin, é que todo mundo tá cansado dessa tua cara de filha da puta, que tu tem, essa cara de vagabundo”, afirmou o deputado Silveira. Na sequência, disse: “Quantas vezes eu imaginei você [Fachin] e todos os integrantes dessa corte aí. Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra. O que você vai falar, que estou fomentando a violência? Não, só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda assim não seria crime, você sabe que não seria crime. Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível. Então, qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada com gato morto até ele miar, de preferência após cada refeição, não é crime”.

Em seu relatório para a votação desta sexta na Câmara, a deputada Magda Mofatto (PL-GO) entendeu que o parlamentar atacou as instituições democráticas e que viu clara intenção de seu colega de intimidar os ministros do STF. “É preciso traçar uma linha e deixar clara a diferença entre a crítica e o verdadeiro ataque às instituições democráticas. Temos entre nós um deputado que vive a atacar a democracia e as instituições e transformou o exercício de seu mandato em uma plataforma para a propagação do discurso do ódio, de ataques a minorias, defesa de golpes de Estado e de incitação à violência contra as autoridades públicas.”

No documento que defendeu a manutenção da prisão, Mofatto ainda disse que fala de Silveira não foi uma suposição qualquer. “O parlamentar não fazia meras conjecturas, mas faz entender que existia um risco concreto aos integrantes do STF”.

Em sua defesa, Daniel Silveira disse que se arrependeu de suas palavras, pediu desculpas ao povo brasileiro que tenha se sentido ofendido e citou que sua detenção era ilegal, pois infringia a imunidade de palavra que todo o parlamentar tem. Diz que pode ter agido por meio da pressão popular. “Às vezes vem aquele diabinho que vem no ouvido e diz: faz isso, e você vai lá e faz.” Ele reclamou que foi perseguido pela imprensa e de ter suas redes sociais suspensas. Seus perfis no Facebook e no Instagram foram apagados por ordem judicial de Alexandre de Moraes. “Todas as minhas redes foram deletadas, sumariamente. E não há nada mais grave que isso”, afirmou.

Apesar de ter elogiado e defendido o Ato Institucional número 5, instrumento de repressão da ditadura militar, Daniel Silveira negou que o tenha feito. “Nunca defendi o Ato Institucional número 5. Tampouco admiro ou quero um regime ditatorial. Acho isso tudo jurássico. A arbitrariedade do Estado é desnecessária”.

Logo na abertura da sessão, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que o caso Silveira servirá como um ponto de inflexão na Câmara e anunciou que criará uma comissão pluripartidária para regular o artigo constitucional que trata da imunidade parlamentar. O artigo 53 aborda a inviolabilidade de congressistas, civil e penalmente, “por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. De acordo com esse dispositivo, os legisladores federais só podem ser presos em flagrante se crime for inafiançável. “A inviolabilidade do mandato foi inscrita de forma cabal no mesmo texto magno, no mesmo, pelos mesmos constituintes que definiram o papel do Poder Judiciário”, disse. “Respeitar a Constituição é respeitá-la por inteiro. E vamos zelar por isso”, afirmou Lira.

Antes mesmo do fim da votação, quando 17 partidos orientaram pela manutenção da prisão (4 contra e 3 liberaram as bancadas), defensores de Silveira reclamaram da derrota iminente. “Não se trata de defesa corporativa. Trata-se de defesa da democracia, do Estado de direito, da defesa de que não nos submetamos como vassalos, humilhados, ao Supremo Tribunal Federal”, declarou Marcel Van Hattem (NOVO-RS). Para ele, a detenção do colega era uma espécie de AI-5 do Judiciário.


El País: Segundo impeachment pode deixar Trump inelegível?

Senado estará dividido em 50 a 50 entre republicanos e democratas, mas o impedimento só é aprovado com dois terços dos votos

Yolanda Monge, El País

Donald Trump entrará na história como o único presidente submetido a dois julgamentos políticos, ou impeachments. Pode até se tornar o primeiro presidente dos Estados Unidos a sofrer esse impeachment já sendo ex-presidente. Porque ao contrário dos julgamentos anteriores no Senado contra Andrew Johnson, Bill Clinton e o próprio Trump, nesta ocasião o tempo é um fator determinante, uma vez que daqui a uma semana o presidente eleito, Joe Biden, prestará juramento nas escadarias do Congresso e Trump deixará o poder ao meio-dia do dia 20.

O ambiente político é muito diferente daquele do impeachment que Trump enfrentou em 2019. Na época os republicanos eram uma força monolítica e sem fissuras ―com a única exceção do senador Mitt Romney. Desta vez, o líder da maioria do Senado, Mitch McConnell, indicou que considera que a melhor maneira de tirar o trumpismo do Partido Republicano seria submeter o presidente a um impeachment. Trump seria julgado por “incitação à insurreição”.

A missão da Câmara dos Representantes nesta quarta-feira era aprovar a norma procedimental que definiria o impeachment, uma questão puramente mecânica, e votar a favor ou contra. A votação resultou na aprovação, porque só era necessária maioria simples e a Câmara está nas mãos dos democratas. A partir daí, tudo é novo em comparação com os julgamentos anteriores da época moderna, seja o de Clinton ou o do próprio Trump. Nancy Pelosi, a presidenta da Câmara dos Representantes, deve então decidir quando enviar a proposta de impeachment ao Senado, uma vez que, segundo o atual calendário, a Câmara Alta está em recesso até o próximo dia 19.

A única maneira de o Senado retomar suas sessões seria se os líderes de ambos os partidos, Mitch McConnell e Chuck Schumer, acordassem voltar mais cedo do que o calendário indica. Nesta questão, alguns democratas tinham pedido a Pelosi que adiasse o início do impeachment para permitir que Joe Biden começasse seu mandato sem que esse fardo pesasse sobre sua cabeça, o que, além disso, tornaria mais lenta a confirmação de seu Gabinete. Outros exigiram que começasse de imediato. Se forem confirmadas as palavras desta quarta-feira do líder da maioria da Câmara dos Representantes, Steny Hoyer, uma vez aprovados, os artigos do impeachment serão enviados imediatamente ao Senado, onde se realizará o segundo julgamento de Trump. Isto acabaria com as dúvidas sobre se os democratas esperariam os primeiros 100 dias de Biden na Casa Branca para realizar o julgamento e assim não interferir em sua agenda. No entanto, McConnell já avisou que não reunirá o Senado durante o recesso, razão pela qual o processo certamente terá lugar depois de Trump ter deixado a Casa Branca.

Numa atmosfera normal, não depois do ataque ao Congresso e com a Guarda Nacional mobilizada dentro do Capitólio, haveria uma investigação que seria enviada ao Comitê de Justiça da Câmara, que realizaria audiências intermináveis nas quais seriam redigidos centenas de artigos para que se aprovassem. Isto aconteceu em 2019, quando Trump foi processado por seu conluio com o presidente da Ucrânia. Esse inquérito demorou três meses. O julgamento de Clinton começou em 19 de dezembro de 1998 e terminou com sua absolvição em 12 de fevereiro do ano seguinte.

No entanto, existe o precedente de um impeachment expresso. Em 1868 a Câmara levou apenas três dias para julgar o presidente Andrew Johnson para evitar que violasse uma lei que o impedia de demitir o secretário de Guerra. A Câmara terminou então os artigos relativos ao impeachment depois que o presidente já tinha sido julgado, e absolvido. Em resumo: a Câmara pode avançar tão rápido quanto os líderes democratas desejarem.

Uma vez que a proposta de impeachment for enviada ao Senado, que é onde se julga o presidente, é de suma importância lembrar que o impeachment acontece num momento de transição tanto presidencial quanto de senadores. Os democratas Raphael Warnock e Jon Ossoff ganharam as eleições especiais da Geórgia no dia 5, mas como os resultados ainda não foram certificados eles não foram empossados, razão pela qual Mitch McConnell continua sendo o líder da maioria na Câmara Alta. O dia 22 é a data limite para a Geórgia legalizar os votos.

Se ambos os senadores tomarem posse enquanto Trump ainda for presidente, o Senado ficaria dividido em 50 a 50 e seria o vice-presidente, Mike Pence, quem romperia um empate em favor dos republicanos. Só depois que a vice-presidenta Kamala Harris e os senadores da Geórgia prestarem juramento é que os democratas assumirão o controle do Senado. De novo o tempo joga contra os democratas, e até ao dia 20, e mesmo alguns dias depois, McConnell e os republicanos é que decidirão o que será feito no Senado, o que significa que decidirão se começam o julgamento e como (por exemplo, quanto tempo será dedicado a ele, se testemunhas serão chamadas ou não).

Entre os obstáculos para que Trump seja condenado por insurreição ―e, a depender de uma segunda votação, incapacitado para voltar a ocupar um cargo público― está o fato de que deve ser aprovado por uma maioria de dois terços no Senado ―a incapacitação política dependeria de maioria simples, por outro lado. Embora várias vozes republicanas defendam a punição a Trump, seriam necessários 17 votos no Senado, o que torna uma condenação muito difícil. A isto se junta a pergunta de saber se o Senado pode proceder a um impeachment contra um presidente que já não está em exercício.

A pergunta que divide os especialistas citados pela imprensa norte-americana é: o Senado pode efetuar um impeachment contra um presidente que já não está em exercício? Há quem argumente que um ex-presidente já é um cidadão comum e que a figura do impeachment não foi redigida para tais casos. Outros dizem que o objetivo é conseguir que se proíba ao acusado poder concorrer à Casa Branca ―ou a outras instâncias do Governo― no futuro. A Constituição não dá respostas claras a esse respeito.

Enquanto isto acontece, Trump pode tentar alguma manobra, como declarar a lei marcial ou ordenar uma nova eleição, como sugeriu seu aliado Michael Flynn? Apesar de que, depois da insurreição, o presidente tenha se comprometido a respeitar a transição de poder, ninguém pode garantir que o fará. É por isso que uma grande maioria de legisladores democratas acredita que não se pode confiar que o presidente jogará limpo, e por isso pedem sua destituição imediata do cargo.


El País: Prefeitos assumem pressionados por bomba-relógio da pandemia e da crise econômica

Rio de Janeiro e Manaus enfrentam, de novo, falta de leitos. Sem caixa, novos governantes pelo país se fiam em recursos da emergência sanitária para atravessar os primeiros meses de 2021

Aiuri Rebello, El País

Uma pandemia em plena ascensão, com pressão crescente por leitos de UTI e sem uma data ou plano claro de vacinação para a população na maioria das cidades brasileiras. Comércio, escolas e serviços parcial ou totalmente fechados por causa da crise sanitária, fim do auxílio emergencial, desemprego crescente e pouco dinheiro em caixa para dar conta de tudo. Esse panorama de tempestade perfeita coloca uma verdadeira bomba-relógio no colo dos prefeitos eleitos que assumem ou dão início ao segundo mandato nos executivos municipais neste dia 1º. Sem tempo ou motivos para comemorar, boa parte deles terá de dar respostas rápidas a todas essas crises sem precedentes na história recente de suas cidades, já a partir de janeiro.

Um exemplo extremo da situação que os prefeitos vão encontrar em seus municípios neste ano é o Rio de Janeiro, onde aos fatores expostos acima ainda soma-se uma enorme crise política. O prefeito eleito, Eduardo Paes (DEM), pega o bastão do ex-prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) em prisão domiciliar, acusado pelo Ministério Público de ter montado uma organização criminosa dentro da prefeitura e desviado pelo menos 50 milhões de reais dos cofres públicos. Ele nega. Paes encontra no seu primeiro dia de trabalho uma cidade em que a ocupação dos leitos de UTI para pacientes com covid-19, doença causada pela pandemia do novo coronavírus, está acima de 90% há mais de dez dias, e deve subir nas duas primeiras semanas de janeiro após as festas de fim de ano.

Para tentar conter a explosão de casos e o colapso do sistema público de saúde na cidade, a prefeitura carioca proibiu até festas particulares de Ano Novo e restringiu o acesso à orla. Para “fechar o quadro”, como diz o jargão médico sobre pacientes em situação muito difícil, a prefeitura em dezembro atrasou o salário referente a novembro dos 16.000 servidores municipais da Saúde, que ainda não receberam o décimo terceiro. Funcionários terceirizados também reclamam de atrasos nos pagamentos, assim como as Organizações Sociais que gerem hospitais e outros aparelhos de saúde.

Os atrasos são reflexo de uma grave crise no caixa da prefeitura do Rio. A equipe de Paes calcula que o município não tem recursos para quitar o 13º nem o salário de dezembro. O déficit para conseguir pagar tudo, incluindo dívidas com fornecedores, seria na casa dos 10 bilhões de reais. Em notas à imprensa, a gestão que sai afirma que trabalha para fazer os pagamentos, sem dar datas. Na terça-feira, três dias antes de assumir, Paes falou a jornalistas e disse que vai reabrir leitos de UTI fechados e ampliar a testagem da população para tentar enfrentar a pandemia. “O Rio tem cerca de 1.800 leitos disponíveis na rede pública, municipal, estadual e federal. A cidade ficou perdendo tempo abrindo hospital de campanha”, afirmou o prefeito eleito. Ele prometeu não ampliar as restrições de circulação e funcionamento da cidade, mas pediu a colaboração da população. “A gente tem que trabalhar com a população no sentido de que as pessoas respeitem as regras mínimas. Não me parece viável propor medidas excessivamente restritivas, mas a população precisa colaborar.” Paes afirmou também que é uma prioridade abrir as escolas no início do ano letivo em 2021, mas não comprometeu-se com alguma data.

Em Manaus, uma das capitais que foi mais castigada pela covid-19 no começo da pandemia no país, vítimas do coronavírus já lotam 89% dos leitos disponíveis na rede pública 100% nos hospitais particulares. Mesmo assim no início a semana, após um protesto de comerciantes no centro da capital amazonense, prefeitura e governo do Estado decidiram manter toda a atividade econômica aberta, sem aglomerações. Representantes do Ministério Público, Defensoria, entidades e sindicatos de saúde entregaram na quarta-feira uma carta ao governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), pedindo mais restrições na capital. O novo prefeito, David Almeida (Avante), já fala em reabrir hospitais de campanha, o que deve anunciar no dia da posse.

Em São Paulo, cidade com maior número de casos e mortes pela pandemia no país, a lotação dos hospitais é menor mas não para de crescer. Desde o início de dezembro, as internações por covid-19 aumentaram 40%. Os hospitais públicos com mais pacientes são o Hospital das Clínicas, da rede estadual, e o Hospital Municipal da Brasilândia, da rede municipal. Segundo os dados do Sistema de Monitoramento Inteligente (Simi) do governo estadual, entre o início do mês e este domingo (27) o Hospital das Clínicas registrou um aumento de 23% no número de pacientes internados na UTI. Na quarta, a taxa de ocupação nos hospitais da cidade de SP era de 61%. O índice estava em 33% em outubro.

A situação é preocupante e 20 profissionais do Centro de Contingência do Coronavírus do Estado de São Paulo divulgaram nessa semana uma “carta pela vida” onde pede que as pessoas evitem festas e aglomerações em geral, além de reforçar a necessidade do uso de máscaras quando sair de casa. “Os números de casos, internações e óbitos por covid-19 no mês de dezembro apontam um crescimento da pandemia no Estado”, diz a missiva pública. “A transmissão da doença retornou com força. O total de novos casos de coronavírus registrado no mês já é seis vezes maior do que em comparação à soma dos três primeiros meses da pandemia. O número de mortes é 60% superior ao total de vítimas fatais entre março e maio”, explicam os profissionais.

Mudanças de última hora na classificação de risco do Estado e da capital aliadas à confusão e adiamentos na divulgação dos resultados de eficácia da Coronavac —aposta e promessa do governador João Doria (PSDB) para vacinar a população de SP a partir de 25 de janeiro — fazem com que o paulistano comece o ano sem saber ao certo se o comércio e as escolas estarão abertos e como. Em nota, a Prefeitura de São Paulo afirma que “o aumento de casos de internação em consequência da Covid-19 se deve principalmente ao relaxamento das medidas de isolamento social, que facilitam a propagação do vírus” e que está ampliando a oferta de leitos de enfermaria e UTI para o enfrentamento da pandemia. “A expectativa é que, com novas medidas de isolamento, esses números crescentes da doença não se mantenham e sejam novamente reduzidos”, diz a nota. De efetivo, a principal ação do prefeito reeleito Bruno Covas (PSDB) foi assinar embaixo de um aumento do próprio salário aprovado na Câmara. O salário do prefeito passara de 24 mil reais para 35,4 mil por mês a partir do ano que vem. “O teto está congelado desde 2013, quando tivemos o último reajuste. Durante esse período de 8 anos, a inflação foi algo em torno de 60 a 100%, dependendo do valor que é considerado. O salário mínimo aumentou nesse período 68%. O valor do salário dos professores na rede municipal aumentou 80%. Então hoje o teto está defasado”, afirmou o prefeito reeleito em entrevista à GloboNews ao defender o aumento e dizer que ele é necessário para poder aumentar o salário de outros funcionários que deixam a prefeitura por salários mais altos.

No plano fiscal, a margem de manobra da capital paulista é maior. Mesmo assim, a maior arrecadação entre os municípios do Brasil tem um orçamento para o ano que vem prevê cerca de 2% menos dinheiro. Ao todo, a prefeitura prevê gastar 67,5 bilhões de reais. Eleito como vice-prefeito de Covas, o vereador Ricardo Nunes afirmou em encontro virtual de eleitos que já foi promovido um ajuste fiscal na prefeitura, com a demissão de 30% dos funcionários comissionados, o que se por um lado gerou mais desemprego na cidade, por outro representa uma economia de caixa.

Cada um por si

Em meio a tudo isso, o Governo federal não consegue apresentar um plano nacional de imunização adequado —a única garantia e retorno à vida normal e retomada consistente da atividade econômica nas cidades. “A vacina é a única forma efetiva de resolver o problema. Só assim você consegue retomar a economia de forma contínua e não fica nesse abre e fecha das atividades, nessa incerteza, como estamos vivendo novamente com o aumento de casos”, explica Joelson Sampaio, coordenador do curso de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo em entrevista ao EL PAÍS. Dados divulgados na terça-feira pelo IBGE mostram que a taxa de desemprego ficou em 14,3% no trimestre encerrado em outubro.

Enquanto a imunização começa nos Estados Unidos e na Europa e outros países da América Latinam como a Argentina, já iniciaram a vacinação de profissionais de saúde e grupos de risco, nesta semana, fracassou um pregão promovido pelo Ministério da Saúde para comprar seringas e agulhas que serão utilizadas na vacinação. O Governo conseguiu comprar menos de 3% do previsto de 331 milhões de unidades e entra 2021 sem o estoque necessário do material para vacinar os brasileiros contra a covid-19.

No início de dezembro, 80 prefeitos eleitos e reeleitos assinaram uma carta da Frente Nacional de Prefeitos (FNP) que cobrava do Governo federal mais clareza em relação ao plano nacional de vacinação contra a covid-19. “Não é razoável que algumas cidades e Estados tenham que lançar mão de estratégias locais de aquisição de vacinas para proteger a população porque o governo federal procrastinou assunto tão importante”, disse na ocasião o prefeito de Campinas e presidente da FNP, Jonas Donizete. O detalhamento do plano do governo federal não veio e diversas prefeituras e governos estaduais organizam planos próprios de vacinação, a exemplo do que acontece em São Paulo.

A FNP assinou um acordo com o Instituto Butantã para facilitar a compra da Coronavac diretamente pelas prefeituras. “Estamos celebrando aqui um acordo em que dizemos sim, sim nós desejamos que o nosso povo brasileiro seja vacinado”, afirmou Donizete na assinatura do acordo. Segundo o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, pelo acordo será oferecido para a FNP dividir em um primeiro momento 4 milhões de doses. Covas voltou a falar em “plano B”, referindo-se à resistência do governo federal em comprar a vacina CoronaVac, desenvolvida em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac. “Queremos que essa vacina seja ofertada a todos os brasileiros, mas depois de alguns problemas, estamos agora com um plano B, para ofertá-la diretamente aos estados e municípios”, disse.

Alívio de caixa?

Com o decreto federal da pandemia em março, o Governo federal editou Medidas Provisórias destinando recursos para que Estados e municípios pudessem enfrentar a crise. No entanto, por definição legal, esse dinheiro deveria ser utilizado até o final de 2020. Foram pelo menos 60 bilhões de reais em repasses diretos a governos estaduais e municipais. No entanto, como a maior parte do dinheiro chegou de fato no início do segundo semestre, o Tribunal de Contas da União (TCU) autorizou sua utilização em 2021. “Boa parte dos recursos foi repassado no segundo semestre e isso dificultou a utilização dos municípios, então temos mais 12 meses para utilizá-los, até porque a pandemia não vai se encerrar na virada do ano”, afirma o secretário-executivo do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Mauro Junqueira.

De acordo com dados do Ministério da Economia, as transferências de recursos da União para Estados e municípios superou a queda da arrecadação dos entes no primeiro semestre na maioria dos lugares. De acordo com a pasta, o valor arrecadado pelos governos regionais nos seis primeiros meses do ano foi 7,1 bilhões menor que no mesmo período do ano passado. A diferença representa uma queda de 3,5%. Por outro lado, entre março e junho, a União repasso 9,2 bilhões para estados e municípios, valor 2,1 bilhões superior a perda da arrecadação acumulada no primeiro semestre. Além do montante repassado, o Governo federal também suspendeu 6,1 bilhões em pagamentos de dívidas dos entes.

Os recursos extras e a pequena folga no caixa devem dar algum fôlego para pelo menos parte dos municípios no começo do ano, afirma a frente de prefeitos, mas não irão perdurar em 2021 e a demanda por serviços sociais e estímulo ao emprego e atividade econômica por parte da população em relação à prefeitura deve aumentar. Dentre os eleitos e reeleitos, destacam-se as propostas do novo prefeito de Belém, Edimilson Rodrigues (PSOL), propôs a criação de um programa de renda mínima na capital paraense. Em coletiva de imprensa após a vitória, ele reafirmou promessa de campanha de criar uma espécie de bolsa para a população de baixa renda de até 450 reais por família. Rodrigues também disse que pretende criar uma brigada de trabalho para limpeza de bueiros e de canais para gerar empregos, e que vai incentivar a criação de startups. Ele também disse que pretende discutir a separação de recursos orçamentários para garantir compra de vacinas contra a covid-19 para o município por conta própria.


El País: A era do ‘vale-tudo’ nas redes sociais está acabando

Decisões importantes do Youtube, Facebook, Reddit e Twitch demonstram que não é mais permitido todo discurso político

Nos últimos dias houve novidades impactantes para o futuro das redes sociais. Nenhuma decisão por si só é brutalmente inovadora. Mas seu fluxo incessante indica o caminho que as redes adotaram: o discurso de ódio não é permitido e a linha vermelha ficará cada vez mais clara. A guerra sobre onde está o limite marcará o futuro da Internet.

Em ordem de importância, as decisões foram estas quatro: primeiro, o Twitch removeu temporariamente o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de sua plataforma. O Twitch é uma rede de transmissões ao vivo dedicadas principalmente a videogames. Mas seu crescimento é contínuo e os streamings são cada vez mais variados. O conteúdo que aparentemente provocou a suspensão temporária de Trump é um streaming de um comício dele em 2015, no qual dizia que o México estava enviando estupradores para os Estados Unidos, além de outros comentários racistas em um recente comício em Tulsa, Oklahoma.

O Twitch parece que passou a levar a sério as repetidas acusações de mulheres de que permite o assédio em sua plataforma. A importância primordial da decisão do Twitch é que cancelou a voz do presidente dos Estados Unidos. Outras redes sempre optam por mantê-lo, com a desculpa do discurso político e de sua importância informativa, na melhor das hipóteses chamando a atenção com avisos ao lado de suas mensagens. O Twitch, de propriedade de Jeff Bezos, com quem Donald Trump tem uma relação complicada, foi um passo além.

A decisão do Twitch se soma à do Snapchat no início de junho, quando decidiu deixar a conta de Trump intacta, mas não a destacar mais em sua página principal, para impedir que seus comentários promovam violência.

O segundo é o Reddit, que removeu mais de 2.000 comunidades de sua plataforma por promoverem discurso de ódio. O motivo foi a atualização de suas políticas: “A regra 1 estabelece explicitamente que as comunidades e os usuários que promoverem o ódio baseado em identidade ou em vulnerabilidade serão suprimidos”. O Reddit é uma rede social estruturada em torno de milhares de comunidades de interesse às quais os usuários se unem ―de questões políticas a peculiaridades como bricolagem, culinária ou arquitetura― e que têm seus próprios moderadores voluntários.

Desde a sua criação, em 2005, o Reddit se caracterizava como um dos fóruns mais transgressivos da Internet. Isso acabou. O Reddit agora baniu canais que violam sua nova norma de ódio, de todas as ideologias, mas um se destaca: r/The_Donald. Chama-se assim por seu apoio ao presidente. O Reddit tentou, durante anos, sem sucesso, fazer com que os moderadores do r/The_Donald restringissem os posts ao que é permitido. As punições e sanções da empresa contra a comunidade fizeram com que os usuários mais ativos migrassem para um fórum próprio: TheDonald(.)win.

Terceiro, o Facebook designou o movimento Boogaloo como uma “organização perigosa”, o que resulta em ações contra seus promotores. A empresa excluiu 220 contas do Facebook, 95 contas do Instagram, 28 páginas do Facebook e 106 grupos, além de outros 400 grupos e 100 páginas vinculadas.

O Boogaloo é uma dessas coisas impossíveis que não existiriam sem a Internet. O nome vem de um filme dos anos 80 e era usado em fóruns remotos como 4chan e 8chan. Seus membros são aparentemente filiados à tradição de milícias armadas nos Estados Unidos e sua suposta intenção é provocar uma segunda guerra civil nos Estados Unidos. No final de maio, um extremista que dizia pertencer ao grupo matou um policial em Oakland, Califórnia. Seu local preferido de coordenação era supostamente o Facebook.

Um emblema aplicado em um colete à prova de balas apreendido na prisão do suposto assassino de um policial em Oakland. A imagem inclui um iglu (a conexão vem da semelhança entre "Boogaloo" e "Big Iglu") e um friso no estilo havaiano.
Um emblema aplicado em um colete à prova de balas apreendido na prisão do suposto assassino de um policial em Oakland. A imagem inclui um iglu (a conexão vem da semelhança entre "Boogaloo" e "Big Iglu") e um friso no estilo havaiano.DOJ / REUTERS

Parece natural para o Facebook perseguir grupos que usam sua plataforma para matar policiais, mas o Boogaloo é um desafio em si mesmo. Seu esquema de organização consiste em usar outros nomes como referência, dissimular suas opiniões e enganar a rede. O esforço que o Facebook deverá dedicar à caça de grupos organizados para combater ferramentas de inteligência artificial que eles adotam será enorme e uma novidade.

Quarto, o YouTube fechou alguns canais que considerava racistas. De novo, não é a primeira vez. Mas seus tentáculos se expandem. Um dos canais é de Stefan Molyneux, que lamentou no Twitter a “censura” imposta pela plataforma. Para gente como ele, o desaparecimento do YouTube pode causar problemas de subsistência. A possibilidade de crescimento que o YouTube lhe dava é difícil de encontrar em outro lugar. Molyneux tentou o Twitch, com pouco sucesso. A personalidade e os usuários de cada rede são únicos.

A Internet não é mais a mesma

Estas medidas são importantes por vários motivos, mas há um mais do que evidente: a Internet não é mais o espaço livre e aberto onde todos nós nos conectamos com todos, sem que ninguém intervenha. Isso pode continuar a ser feito, é claro: na maioria dos países, ninguém impede a abertura de um site nem que se conte a barbaridade que se desejar, desde que isso não seja um crime. O problema será como ficar conhecido, disseminar e propagandear esse conteúdo.

As principais plataformas são aquelas onde as pessoas estão. Um grupo de fanáticos poderá continuar criando seu fórum supremacista na Internet, mas como recrutarão novos usuários? Onde encontrarão milhões de almas cândidas dispostas a rir de seus memes agressivos? O r/The_Donald se beneficiava da página inicial do Reddit ―”a capa da Internet”― que milhões de pessoas acessavam para ver o que estava acontecendo, qual era a tendência. Ali, as piadas poderiam atrair a atenção de usuários que acabariam entrando no r/The Donald para ver o que mais havia. Agora, The_Donald é um site na Internet. Lá podem conversar, rir e se organizar, até crescer, mas devagar. Eles não têm mais um lugar fácil para recrutar adeptos.

O pesquisador Savvas Zannettou, do Instituto Max Planck, de Berlim, analisou a influência na conversa na Internet do antigo canal r/The_Donald no Reddit. Era impactante. Agora ele se empenha em analisar como o fim de sua relação com o Reddit repercutiu no peso desse grupo. A investigação não está terminada, mas ele é cético: "Nossos resultados preliminares mostram que apenas uma fração dos usuários ativos no r/The_Donald migrou para a nova casa, mas esses usuários estão mais ativos agora do que quando estavam no Reddit", explica. Embora o trabalho não esteja concluído, a intuição de Zannettou indica que seu peso caiu. "Suspeito que a influência da nova casa será substancialmente menor em comparação com a anterior, pois agora eles têm plataforma/fórum próprios e não podem facilmente alcançar o grande número de usuários que passavam pelo Reddit", acrescenta.

O nervosismo do ano eleitoral nos EUA, a pressão desencadeada pelo movimento Black Lives Matter e as evidências, com a pandemia, de que as informações que circulam nas redes têm consequências reais facilitaram a absorção dessas decisões. Mas é uma tendência que parece clara há anos. O fundador e CEO do Reddit, Steve Huffman, refletiu no The New York Times sobre sua mudança de opinião: “Quando começamos o Reddit, há 15 anos, não proibíamos coisas. E era fácil, como para muitas outras pessoas, dizer coisas assim porque, primeiro, eu tinha crenças políticas muito mais rígidas, e segundo, me faltava perspectiva e experiência do mundo real”, diz ele. A tradução é simples: os fundadores dessas redes não são mais tão jovens e viram que as consequências de permitir tudo são extraordinárias.

Mas Huffman prossegue: “Aqui estamos agora, acreditando que a liberdade de expressão é muito importante e que é uma das coisas que torna o Reddit especial, mas, ao mesmo tempo, vendo que permitir tudo é trabalhar contra a nossa missão”. Até agora, a linha vermelha do que as redes permitiam era feita de tinta borrada e desgastada, mas, com o tempo, está se tornando um muro sólido para deixar de fora o que acreditam ser ódio, assédio e violência. Parece uma decisão lógica e fácil, mas há tribunais que discutem os limites há décadas.


El País: Hidroxicloroquina vira "muleta" para Bolsonaro e Trump

Medicamento, pesquisado em todo o mundo para tratar Covid-19 e defendido pela Casa Branca, se tornou munição de grupos bolsonaristas contrários ao isolamento social. Mandetta aponta riscos de efeitos colaterais

Cientistas do mundo inteiro correm contra o relógio em busca da cura e de uma vacina para o novo coronavírus. Por enquanto, nada de definitivo no front, a não ser tratamentos experimentais, alguns deles considerados promissores, mas ainda sem estudos em escala suficiente para serem considerados uma recomendação geral. Um deles é uso de cloroquina ou hidroxicloroquina, drogas para o combate da malária, artrite e lupus, em pacientes com Covid-19. No Brasil —e nos EUA— o tema não é apenas científico: virou pólvora para o embate político e arma na “guerra cultural” do países polarizados. Tanto Jair Bolsonaro como Donald Trump resolveram se transformar em defensores de primeira linha das substâncias, mesmo que a parte técnica dos Governos que comandam não endossem as recomendações com a mesma ênfase. A maior preocupação do especialistas, lá como aqui, é que a divulgação precoce do tema leve à automedicação ou ao uso indiscriminado antes que todos os riscos estejam mapeados.

No caso do Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, que é estritamente contrário às medidas de isolamento social contra a disseminação do vírus, tem insistido no tema e já dá como certo o sucesso no uso da droga para tratar a doença. Em pronunciamento em rede nacional nesta quarta-feira, o presidente afirmou que realizou um acordo com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, para que o Brasil continue recebendo matéria-prima para a produção da hidroxicloroquina. “De modo a a podermos tratar pacientes da Covid-19, bem como malária, lúpus e artrite”, afirmou. Do outro lado do debate, há um grupo de cientistas e médicos, incluindo o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que pedem cautela e tentam acelerar as pesquisas para chegar a uma conclusão mais segura sobre o uso dessas drogas nesta pandemia.

Mandetta vem afirmando que é necessário mais tempo de pesquisa sobre o medicamento, embora já tenha liberado a substância para tratamentos de pacientes em estado avançado e médio da doença. Via de regra, médicos no Brasil estão autorizados a prescrever a cloroquina e a hidroxicloroquina para pessoas com coronavírus contanto que haja consentimento formal do paciente. Nesta quarta, o ministro novamente ponderou que a substância pode trazer efeitos colaterais ainda desconhecidos, especialmente em idosos e naqueles que não realizaram teste para a Covid-19 e podem estar com outras doenças. “Será que vai proteger ou será que eles [idosos] podem ter arritmia cardíaca, precisar de CTI [Centro de Terapia Intensiva] e ter enfarte agudo do miocárdio?”, questionou. O ministro informou ter pedido ao Conselho Federal de Medicina que se posicione sobre a eficácia ou não da substância até 20 de abril.

No Brasil, há dois estudos em curso sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina, medicamentos análogos, indicados para o tratamento de malária, reumatismos e lúpus, dentre outras doenças. Um deles é o da Coalização Covid Brasil, coordenado pelo Hospital Albert Einstein, Sírio Libanês HCor e BRICNet, rede que realiza estudos na área de medicina intensiva. O outro é coordenado pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e, embora ainda não tenha sido concluído, resultados preliminares apontam que a taxa de morte de quem usou a cloroquina no tratamento é a mesma daqueles que não usaram. Ambos os estudos estão sendo acompanhados pelo Ministério da Saúde e fazem parte de um conjunto de 9 pesquisas em curso sobre tratamentos para a doença.

Algumas publicações internacionais já apontam, no entanto, que a droga poderia ser capaz de atuar contra o coronavírus, impedindo sua replicação no organismo, de acordo com documento da Anvisa. O mesmo documento pondera, entretanto, que a margem entre a dose terapêutica e a dose tóxica da droga é estreita. Por isso, estudos conclusivos ainda são necessários. “Não sabemos se há um grupo de maior risco [às adversidades do medicamento], por exemplo”, afirma Antônio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica e professor titular da Escola Paulista de Medicina. “Mas eu nunca vi nenhum efeito colateral. Prescrevo há 40 anos esse remédio e nunca registrei nenhuma adversidade”. Mas Denizar Vianna, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde, do Ministério da Saúde, ressaltou durante entrevista coletiva que o principal efeito colateral de ambas as drogas é a possibilidade de causar arritmia cardíaca. “O coração é uma bomba que depende da ativação de um sistema elétrico próprio. Esse medicamento pode produzir um prolongamento de uma dessas fases elétricas do coração e propiciar um ambiente favorável a uma arritmia que pode ser potencialmente fatal”, afirmou nesta semana.

Apesar da ausência de conclusões, o Governo já vem movendo suas peças para aumentar a produção do medicamento, evitar a automedicação e garantir seu abastecimento. No dia 20 de março, a cloroquina e a hidroxicloroquina passaram a necessitar de receita médica em duas vias para serem compradas nas farmácias. A medida valerá especialmente para que os pacientes que já fazem uso da droga não fiquem desassistidos caso haja uma procura em massa nas farmácias. Paralelamente, os laboratórios químicos das Forças Armadas anunciaram que estão ampliando a produção da cloroquina podendo chegar à fabricação de 500.000 compridos por semana. E o Ministério da Saúde já anunciou a distribuição do remédio para os Estados. De acordo com o secretário da Saúde de São Paulo, José Henrique Germann, o Estado recebeu 200.000 comprimidos que já foram distribuídos aos hospitais.

Médicos ligados a opositores no alvo

Apesar do empenho mundial em busca de conclusões científicas sobre a medicação, Bolsonaro segue usando como munição política a possibilidade de haver um tratamento para a doença. “Há 40 dias venho falando do uso da hidroxicloroquina no tratamento do COVID-19. Sempre busquei tratar da vida das pessoas em primeiro lugar, mas também se [sic] preocupando em preservar empregos. Fiz, ao longo desse tempo, contato com dezenas médicos e chefes de Estados de outros países”, escreveu o presidente, nesta quarta-feira, em sua conta no Twitter. “Cada vez mais o uso da cloroquina se apresenta como algo eficaz. Dois renomados médicos no Brasil se recusaram a divulgar o que os curou da COVID-19. Seriam questões políticas, já que um pertence a equipe do Governador de SP?”, disse, em referência à gestão de seu oponente político, João Doria (PSDB).

Os dardos lançados pelo presidente tinham dois alvos bem claros. Trata-se de duas das maiores sumidades médicas do país, Roberto Kalil Filho, cardiologista do Hospital Sírio Libanês, e o infectologista David Uip, coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo. Ambos recém-curados do coronavírus. Kalil Filho recebeu alta nesta quarta-feira depois de passar 10 dias internado. No mesmo dia, ele afirmou à rádio Jovem Pan que usou a hidroxicloroquina, depois que um dos médicos que o tratava propôs seu uso. Ele ponderou, no entanto, que a droga foi apenas uma das que ele usou para se tratar, juntamente com outras, e que, não pretende, com isso, influenciar o tratamento de ninguém.

A declaração de Kalil alavancou ainda mais as provocações contra David Uip, que já vinha sendo pressionado a dizer se havia feito uso do medicamento. Retornando ao trabalho nesta semana após 15 dias afastado, e sabendo que era sobre ele a publicação de Bolsonaro no Twitter, Uip se defendeu. “Presidente, respeite o meu direito de não revelar o meu tratamento”, afirmou, durante entrevista coletiva nesta quarta-feira em São Paulo. “Não há nenhuma importância no que eu tomei ou deixei de tomar. “O que é importante é que eu não me automediquei. O resto é absolutamente pessoal”.

Uip, que chegou a ser tratado por Kalil antes que o cardiologista adoecesse, afirmou que não revelaria seu tratamento, um direito que tem, como paciente. Nas redes sociais chegaram até mesmo a publicar uma suposta receita médica de cloroquina emitida pela clínica de Uip a um paciente. O médico confirmou a veracidade do documento à Rádio Gaúcha, afirmando que a receita teria sido vazada por alguém do seu consultório. Na coletiva, no entanto, ele afirmou que tomará “as providências legais e adequadas a essa invasão da minha privacidade”.

Seja como for, o assunto movimenta torcidas virtuais contra e a favor de Bolsonaro, ou do medicamento, e isso, por si só, não é um efeito colateral desprezível no modus operandi bolsonarista. Nos EUA, analistas políticos argumentam que Trump cumpre seu roteiro de sempre: se agarrar em uma visão “otimista” e “antissistema”, dessa vez em relação à pandemia. No caso de as drogas comprovadamente se mostrarem efetivas, o presidente dos EUA poderá dizer que se antecipou aos especialistas “do sistema”. Caso não dê certo, o ocupante da Casa Branca tem experiência em apenas mudar o foco da conversa e ignorar a campanha anterior. Não seria a primeira vez que Bolsonaro seguiria seu script.


El País: Foco na abstinência sexual para combater gravidez precoce ignora que meninas são as mais estupradas

Damares Alves mescla dados com exageros e exemplos fora do contexto para defender campanha de abstinência sexual entre jovens, mas entra em choque com discurso técnico de Ministério da Saúde

De um lado, uma ministra com ideias radicais, cada vez mais popular e com pouco dinheiro. Do outro, um ministro com muitos recursos e um trabalho discreto, passando batido pela enxurrada de polêmicas diárias do Governo Jair Bolsonaro. A campanha pela abstinência sexual que Damares Alves pretende lançar durante a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, prevista para acontecer na primeira semana de fevereiro em parceria com o Ministério da Saúde, comandado pelo médico ortopedista Luiz Henrique Mandetta, vem colocando os dois ministros em lados opostos. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos dita ―ou tenta ditar― as diretrizes da ação, mas o custo de 3 milhões de reais será bancado pelo Ministério da Saúde. Em nota técnica obtida pelo jornal O Globo no último fim de semana, a pasta comandada pela pastora evangélica afirma que o início precoce da vida sexual leva a “comportamentos antissociais ou delinquentes” e “afastamento dos pais, escola e fé”, entre outros resultados.

Já a pasta de Mandetta afirmou, em outra nota técnica, que a campanha deve reforçar a autonomia e o protagonismo do jovem sobre sua iniciação sexual, colocando à disposição os métodos contraceptivos. Ao jornal Folha de S. Paulo o ministro afirmou que a mensagem do “comportamento responsável é válida”, mas que “o problema é complexo” e “não se pode minimizar a discussão e dar ênfase só para isso". Ele também disse que questões religiosas não devem pautar a discussão e que tem "apostado muito muito em informar as consequências, porque acredito que esse seja um ponto essencial para a conscientização”.

Fora desse embate estão os números alarmantes de estupros cometidos em meninas menores 14 anos, uma das principais causas da gravidez precoce, segundo diversos especialistas e estudos. Os dados mais recentes constam no último relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A entidade mostra que nos de 2017 e 2018 foram registrados um total de 127.585 estupros, dos quais 63,8% ocorreram em menores de 14 anos ―o que se configura como estupro de vulnerável. Além disso, 81,8% dos casos aconteceram em mulheres, 75,9% foram cometidos por alguém conhecido e em de 95% deles os autores pertencem ao sexo masculino. “É de se destacar que os crimes sexuais estão entre aqueles com as menores taxas de notificação à polícia, o que indica que os números aqui analisados são apenas a face mais visível de um enorme problema que vitima milhares de pessoas anualmente”, afirma o texto.

A ministra Damares também vem apontando para o aumento dos casos de doenças sexualmente transmissíveis, como a sífilis. Em julho do ano passado, a ONU apontou que o contágio do vírus da AIDS no Brasil cresceu 21% em oito anos, apesar das campanhas e tratamentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Essa tendência já vinha sendo observada por entidades e especialistas, que apontam para o nível de desconhecimento das novas gerações, que não vivenciaram o pânico gerado pelos primeiros contágios a partir da década de 1980. Seja como for, o Governo Bolsonaro foi criticado por ter transformado o órgão responsável pelo combate à doença em uma coordenadoria dentro do Ministério da Saúde —antes, era um departamento específico. Na prática, isso significou que a política de enfrentamento ao vírus, tida como referência no combate ao HIV em todo o mundo, perdeu relevância.

Um discurso que soa razoável e se contradiz com a realidade

Além da campanha de prevenção da gravidez, o MMFDH pretende lançar uma política pública mais ampla chamada de Plano Nacional de Prevenção ao Risco Sexual Precoce, em que também abordará o “adiamento da iniciação sexual” como método contraceptivo. Especialistas no tema afirmam que a estratégia é ineficaz. Pouco importa: a abstinência sexual é uma agenda defendida por amplos setores da Igreja Evangélica e de grupos ultraconservadores que fazem lobby junto Governo Jair Bolsonaro ―e que vêm conseguindo implementar suas ideias nos Estados Unidos de Donald Trump. Mas as ideias radicais que norteiam a nota técnica do ministério ganham, na voz de Damares, contornos razoáveis e que podem facilmente atingir mães e pais com preocupações na hora de criar filhos pré-adolescentes.

“Que dano eu vou trazer para uma criança ao dizer para ela: ‘espera mais um ano’, ‘espera um pouquinho’?. Não vamos eliminar os outros métodos preventivos. Vamos continuar falando da camisinha; vamos continuar falando da pílula; vamos continuar falando dos outros métodos", afirmou a ministra em entrevista publicada pelo jornal Correio Braziliense no último domingo. “A gente quer mais que uma campanha; a gente quer começar a conversar sobre isso; a gente quer que isso seja uma coisa permanente, de modo que toda vez que uma professora falar de preservativo, ela também fale: ‘Olha, vamos pensar duas vezes antes de transar?’. É só uma frase! É só sentar com esse menino e conversar”, acrescentou a pastora evangélica.

Sua fala contradiz a nota técnica do MMFDH, que defende que ensinar métodos contraceptivos para jovens “normaliza o sexo adolescente”, já que nem todos tiveram iniciação sexual. Contrariando mais uma vez Damares, a nota técnica da Saúde afirmou que educação sexual não estimula relações sexuais. Serve, pelo contrário, para que o jovem conheça o próprio corpo e oferece insumos para que sua escolha seja acordo com suas expectativas.

A ministra também abordou na entrevista alguns problemas reais e apelou para o senso comum: “A gravidez precoce está crescendo de uma forma absurda. E mais do que a gravidez precoce, as doenças sexualmente transmissíveis. Sabiam que estamos em epidemia de sífilis? O Unicef apresenta o relatório da idade média de iniciação do sexo no Brasil: menina está com 13,9 anos, e menino, 12,4 anos. Imaginem comigo: o Código Penal Brasileiro fala que é estupro transar com uma criança com menos de 14 anos”.

Dados sobre gravidez precoce

Os números e estudos mostram uma realidade mais complexa que a divulgada por Damares. Um relatório de 2018 da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Unicef afirma que entre 1995 e 2000 a gravidez entre adolescentes de 15 a 19 anos atingiu seu ápice, de 83,6 nascimentos para cada 1.000 mulheres. Entre 2010 e 2015 essa proporção caiu para 68,4 grávidas. Por outro lado, reportagem da Folha de S. Paulo mostrou que na capital paulista os índices vêm aumentando na periferia. Seja como for, os números são altíssimos se comparados com a média mundial de 46 nascimentos para cada 1.000 adolescentes, enquanto que na América Latina e no Caribe a média é de 66,5 gestações.

De acordo com um estudo do Ministério da Saúde, 3,2 milhões de adolescentes foram mães no Brasil entre 2011 e 2016. Desse total, 95% estavam na faixa etária de 15 a 19 anos. As gestações em meninas de 10 a 14 somaram 162.853 (ou cerca de 25.000 por ano), um número significativamente menor, mas ainda em um patamar bastante elevado.

Essa realidade entre as adolescentes mais novas pode ser explicada, entre várias questões, pelo fato de que as meninas foram também as principais vítimas de estupro entre adolescentes ―a mesma tendência observada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram notificados um total de 49.489 casos de estupro contra jovens do sexo feminino, dos quais 66,3% (32.809) tinham de 10 a 14 anos, enquanto que 33,7% (16.680) tinham de 15 a 19 anos.

A partir daqui as complexidades e dificuldades de análise ficam ainda mais evidentes. As notificações de gestações decorrentes de estupro são baixas se comparados com o total de violações e de nascimentos registrados por adolescentes: segundo o estudo, 10.814 mães jovens que tiveram filho também afirmaram ter sido abusadas, sendo que 3.276 estavam na faixa de 10 a 14 anos e 7.538 tinham 15 a 19 anos. Porém, o relatório destaca que “a análise dos casos das mães adolescentes no período de 2011 a 2016 mostrou que a notificação de estupro podia ocorrer antes ou depois do registro do nascido vivo”.

Além disso, o estudo destaca que os abusos ocorridos repetidas vezes aconteceram em 45,6% dos casos de meninas de 10 a 14 anos e 25,7% das jovens de 15 a 19 anos. Entre as que ficaram grávidas em decorrência de estupro, em 72,8% (10 a 14 anos) e 44,1% (15 a 19 anos) dos casos a violação teve caráter repetitivo. Portanto, continua o estudo, “a gravidez na adolescência e as notificações de estupro podem estar associadas, evidenciada pela alta prevalência de violência de repetição, de ocorrência de estupro e outras vulnerabilidades”.

Em relatório de 2017, a Unicef aponta “entre 40% e 60% dos casos de gravidez na adolescência resultantes de violência sexual”, de acordo com outros estudos. “Mas, apesar de os indicadores quantitativos e qualitativos comprovarem a gravidade do problema, a literatura brasileira carece de mais dados aprofundados sobre essa situação. Mesmo assim, ainda que os dados demográficos não sejam claros, algumas poucas pesquisas qualitativas confirmam a gestação fruto de abuso”, afirma o texto.

A ministra Damares Alves não nega esta realidade e diz que defende a educação sexual em escolas, desde que falada “de forma certa”. Coincidindo com movimentos feministas, afirmou ao Correio que “quem for falar para a criança de 3 anos sobre educação sexual deve fazê-lo inclusive para empoderar essa criança a se proteger”. Ela inclusive aproveitou para lembrar seu histórico pessoal de violação: "Vocês conhecem a história do meu abuso, daquele momento terrível da minha vida. Se eu soubesse o que era aquilo, eu teria gritado. Eu tinha 6 anos”. Mas mais uma vez o discurso não condiz com as diretrizes do Governo: conforme publicou o jornalista Jamil Chade no último dia 28 no EL PAÍS, o Governo Bolsonaro tem vetado a menção à educação sexual em documentos da ONU e da OMS e vem sendo aplaudido por ultraconservadores e até por sauditas.

Outras causas para a gestação entre adolescentes

Damares apela mais uma vez ao senso comum ao argumentar que o Brasil não combateu a “erotização" que vem resultando na iniciação sexual precoce de meninas. “Vocês acham que uma menina de 12 anos, anatomicamente, tem o canal da vagina pronto para ser possuída por oito adultos? Aí você me pergunta: ‘De onde a senhora tira os oito adultos?’. Delas. Pergunte às meninas com quantos parceiros elas já se relacionaram. Gente, nós estamos diante de uma tragédia. As meninas estão ficando por uma certa pressão social", afirmou na entrevista ao Correio.

Mais uma vez a realidade se revela mais complexa. O estudo do Ministério da Saúde também mostra que mais de 70% das mães adolescentes são negras e a maioria mora no Nordeste e no Sudeste. Também são elas as mais expostas à violência sexual. Mas o estupro não pode ser considerado a única causa do alto índice de gravidez na adolescência, conforme o próprio estudo admite: “Uma revisão sistemática da literatura mostrou forte associação entre história de violência sexual e gravidez na adolescência. Outros fatores, como início precoce da vida sexual, não morar com os pais, pobreza e negligência, também apresentaram forte associação com a ocorrência da gravidez na adolescência”, afirma o texto.

relatório da Unicef também aponta quatro “macrofatores” causais para o alto índice de gravidez precoce: além da violência sexual, aponta para o “descompasso entre o desejo sexual e o risco de gravidez, que pode resultar na gravidez não planejada (escapulida)”; a “vontade da maternidade, que resulta na gravidez desejada”; e a “necessidade de mudança de status social, que resulta na gravidez estratégica”.

Nesse contexto cabe também destacar o elevado número de uniões estáveis e casamentos entre adolescentes, uma realidade para 23,2% das meninas com de 10 a 14 anos, e 36,8% entre aquelas de 15 a 19 anos, lembra o Ministério da Saúde. “As dificuldades para resolver os vínculos de dependência do grupo familiar podem levar os jovens a buscar uma pseudoindependência, substituindo os laços com os pais pela dependência afetiva do casal. A adolescente que vive em um meio social desprovido de recursos materiais, financeiros e emocionais satisfatórios pode ver na gravidez uma expectativa de futuro melhor, embora ela possa se tornar mais vulnerável nessa situação”, explica. A Unicef coloca o Brasil como o país com mais casamentos precoces da América Latina e o quarto de todo o mundo.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública segue na linha da entidade da ONU e lembra que as adolescentes muitas vezes “associam o casamento à possibilidade de mudança de status social, de alguma forma de emancipação e de serem mais valorizadas”. Já um estudo qualitativo feito pela ONG Plan International coloca que a gravidez na adolescência é a principal razão para que garotas brasileiras casem antes dos 18 anos.


El País: Regina Duarte finalmente diz sim a Bolsonaro, e negocia divórcio com a Globo

Após 10 dias de “noivado”, com direito a micronovela dia a dia, atriz confirma que assumirá o posto. Emissora diz, em nota, que negocia “fim da relação contratual” com estrela

A atriz Regina Duarte disse “sim” ao convite do presidente, Jair Bolsonaro, e assumirá a Secretaria Especial de Cultura. Duarte viajou esta tarde a Brasília para oficializar o casamento com o Governo e começar a montar sua equipe. Ela foi convidada por Bolsonaro para ser responsável pela pasta depois da exoneração de Roberto Alvim, que plagiou discurso e estética de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista. Ao chegar à capital, a atriz afirmou a jornalistas que o noivado —termo usado por ela mesma para referir-se ao período de reflexão sobre a proposta— com o presidente foi “excelente”. No entanto, perguntada sobre o que pretende fazer à frente da Secretaria, a atriz disse que “é cedo” para essas definições. Estrela da Globo por 50 anos, a atriz negocia seu divórcio com a emissora. “Globo e Regina Duarte estão negociando o fim da relação contratual, em função da decisão da atriz de aceitar o convite para ocupar a Secretaria Especial da Cultura”, leu o apresentador William Bonner no Jornal Nacional, principal telejornal da TV.

O convite a Duarte foi lido por alguns membros do Executivo como uma bandeira branca ao setor cultural, depois de um ano de conflitos narrativos, com referências a uma “guerra cultural” por conta dos cortes de orçamentos e censura a diversos projetos. Na terça-feira (28/01), Bolsonaro disse que Duarte terá liberdade para fazer as mudanças que desejar à frente da pasta e sua equipe afirmou que o presidente não tolerará fogo amigo contra a nova secretária. Esse recado é para a ala ideológica do Governo, que até então vinha comandando a Secretaria Especial de Cultura.

“Para mim seria excepcional, para ela, ela tem a oportunidade de mostrar realmente como é fazer cultura no Brasil. Ela tem experiência em tudo que vai fazer. Precisa de gente com gestão ao seu lado, tem cargo para isso, vai poder trocar quem ela quiser lá sem problema nenhum. Então tem tudo para dar certo a Regina Duarte”, disse o presidente.

Nos bastidores do setor cultural, no entanto, produtores, diretores e diferentes artistas são céticos quanto às mudanças positivas que Duarte possa fazer. “Se ela está alinhada com o Governo, será mais do mesmo”, afirma um cineasta que prefere não se identificar durante a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que acontece até o dia 1º de fevereiro.

“Não acredito que ela vá, pelo menos de entrada, mudar a política de desmonte cultural do Governo. Vai ter alguma política de fomento ao cinema brasileiro? Enquanto não soubermos disso, não dá para não ficar com o pé atrás”, comenta Camila Vieira, uma das curadoras da Mostra.

Ainda na terça-feira, Bolsonaro reconheceu que Duarte virou “vidraça” depois das notícias divulgadas na última semana sobre irregularidades com a Lei de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet. A atriz é dona da empresa A Vida É Sonho Produções Artísticas e captou três financiamentos no total de 1,4 milhão e reais. Em março de 2018, o extinto Ministério da Cultura recusou a prestação de contas de um dos projetos, a peça Coração Bazar, que captou 321 mil reais. Foi cobrado da atriz uma restituição de 319,6 mil reais, de acordo com o Diário Oficial da União, e sua produtora apresentou recurso.

Postura política

Duarte chegou a criticar, em novembro do ano passado, a indicação de Roberto Alvim para a Secretaria Especial de Cultura. “Quem me conhece sabe que, se eu pudesse opinar, teria sugerido outro perfil. Alguém com mais experiência em gestão pública e mais agregadora da classe artística”, publicou a artista em seu perfil pessoal no Instagram, na época. A atriz costuma utilizar seus perfis nas redes sociais para demonstrar apoio ao Governo. Nos últimos meses, durante a publicação das notícias com o vazamento de conversas entre o ex-juiz Sergio Moro e o promotor Deltan Dallagnol, ela utilizou o Instagram para defender ambos —“Somos todos Sergio Moro”, publicou em uma ocasião— e também posta mensagens contra o Supremo Tribunal Federal: “STF. Guardião da Constituição ou da impunidade?”.

No entanto, quando a Ancine (Agência Nacional do Cinema) retirou os cartazes de filmes brasileiros de sua sede e de sua página oficial, a atriz —assim como fizeram outros artistas, principalmente os de esquerda— usou seu perfil no Instagram para publicar cartazes de produções como Deus e o Diabo na terra do sol, Tropa de Elite e Carlota Joaquina.

Duarte teria rebatido, em uma reunião na última semana, as críticas do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, sobre o filme Bruna Surfistinha, de acordo com a colunista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo. Álvaro Antônio teria dito que o filme é um exemplo de projeto que não deveria ser apoiado pelo Governo e Duarte rebateu com o argumento de que a produção tem classificação indicativa e que a prostituição é a profissão mais antiga do mundo, acrescentando que ela é uma artista e que os membros do Executivo não poderiam esquecer-se disso.


El País: Sergio Moro retorna à ‘frigideira’ de Bolsonaro e pode perder comando da Segurança

Presidente estimula debate sobre divisão da pasta de Justiça e Segurança, comandadas por ex-juiz da Lava Jato. Medida que contraria ministro é pleito de policiais e bombeiros, boa parte da base eleitoral do presidente

Em um movimento que enfraquece politicamente o mais popular dos ministros brasileiros e possível presidenciável, Sergio Moro, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) aceitou reativar o debate sobre a recriação do Ministério da Segurança Pública. Hoje, a área é um dos braços da pasta da Justiça, comandada desde o início de 2019 por Moro, o ex-juiz da Operação Lava Jato que arrebatou parte da opinião pública num país divido e polarizado.

Na manhã desta quinta-feira, antes de embarcar para uma viagem oficial para a Índia, Bolsonaro disse a jornalistas que estava estudando o assunto a pedido do Conselho Nacional de Secretários da Segurança Pública (Consep). O colegiado, formado pelos secretários das 27 unidades da federação, se reuniu nesta semana em Brasília. Os secretários foram recebidos pelo presidente na tarde de quarta-feira, em uma audiência que não estava inicialmente prevista na sua agenda.

Alguns sinais políticos foram dados durante esse encontro. Participaram dele dois ministros, o general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e o general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo. Nem Moro nem nenhum de seus subordinados estiveram na reunião. E a audiência foi transmitida ao vivo pela conta do presidente no Facebook. Foi uma maneira de prestar contas a boa parte de sua base eleitoral —policiais, bombeiros e outros agentes de segurança.

Se a pasta for dividida, como fora na gestão Michel Temer (MDB), Moro ficaria com a Justiça e outro político assumiria a Segurança, conforme dito pelo próprio presidente. “Se for criado, aí ele [Moro] fica na Justiça. É o que era inicialmente. Tanto é que, quando ele foi convidado, não existia ainda essa modulação de fundir com o Ministério da Segurança”, disse o presidente em contraposição ao que afirmara em novembro de 2018, quando, recém-eleito, afirmou que o então juiz seria o responsável por comandar as duas áreas. Em caso de separação, Moro perderia poder, já que a Polícia Federal migraria para a nova pasta, e também orçamento. Em 2019, a área de segurança representou 88% dos 17 bilhões de reais do ministério.

Questionado se iria se manifestar sobre o tema, Moro, que começou a semana mostrando lealdade à toda prova ao presidente quando questionado no programa Roda Viva, se calou. Fez circular a versão, porém, de que o fatiamento poderia levar, sim, a que ele deixasse o Governo. Por ora, o ministro parece não querer confrontar o presidente diretamente, como o fez recentemente quando Bolsonaro sancionou o juiz das garantias aprovado pelo Legislativo. O ministro já teve outros momentos de fritura no Governo Bolsonaro —o jargão para quando um político começa a ser desprestigiado entre seus aliados. Seja como for, Moro fez nessa quinta-feira um movimento político valioso, para tempos em que as redes sociais são essenciais para eleições. Abriu uma conta no Instagram, terreno onde Bolsonaro, seu chefe e possível adversário em 2022, tem quase 15 milhões de seguidores. Em três horas Moro atingiu a marca de 125.000 adeptos.

Na pressão contra Moro

Um dos cotados para o potencial ministério que esvaziaria a pasta de Moro é o ex-deputado-federal Alberto Fraga (DEM-DF), um tenente-coronel da reserva da Polícia Militar que já foi condenado pela Justiça a uma pena cinco anos de prisão pelo pagamento de propina. Ele recorre da sentença em liberdade, enquanto é um dos principais conselheiros de Bolsonaro nessa área. Fraga tem acesso VIP ao gabinete presidencial e, ainda na campanha eleitoral de 2018, era apontado como um dos possíveis assessores ou ministros.

A pressão pela recriação do ministério não tem vindo apenas dos secretários, mas também dos governadores, capitaneados por Ibaneis Rocha (MDB-DF), e pelos conselhos Nacionais dos Comandantes Gerais das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares. “Com a junção da Segurança com o MJ, houve um retrocesso. Não é pela pessoa do ministro, mas se o presidente foi eleito com essa bandeira da segurança, foi uma incongruência extinguir esse ministério”, afirmou o presidente do Maurício Teles Barbosa, secretário na Bahia.

No caso dos governadores, a principal queixa foi sobre o contingenciamento de 1,1 bilhão de reais do Fundo Nacional de Segurança Pública, uma verba que deveria ser automaticamente repassada pela União para os Estados. Essa distribuição só ocorreu depois de uma decisão judicial no fim do ano passado.

A separação, entretanto, encontra resistência até entre bolsonaristas. Um deles é o deputado Capitão Augusto (PRB-SP), presidente da Frente Parlamentar da Segurança na Câmara, a chamada “bancada da bala”. Ele foi um dos mentores do ministério na gestão Temer. Agora, diz que a divisão nesse momento seria desfavorável ao próprio governo Bolsonaro. “Ao invés de se mandar a mensagem de apoio àquele que representa o combate à corrupção, o Moro, estaríamos valorizando os corruptos e a oposição”, avaliou.

Para Augusto, o Governo Bolsonaro e o próprio ministro sofreram duras derrotas no Congresso Nacional em 2019. Entre elas estão a desidratação do pacote anticrime de Moro, a aprovação da lei de abuso de autoridade, a transferência do Conselho de Controle das Atividades Financeiras (COAF) do Ministério da Justiça para o Banco Central, além da não votação do projeto de lei que determina a prisão de condenados após condenação em segunda instância.

Entre pesquisadores também há a análise de que o momento para a cisão é inapropriado. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, por exemplo, entende que tecnicamente ter um ministério próprio é o melhor para a área, mas defende que criá-lo agora poderia fortalecer alguns discursos corporativos sem a garantia de que o substituto de Moro terá a força política que ele tem. “De um lado, temos um ministro forte, com capacidade de mobilizar o Judiciário e o Legislativo. De outro temos uma insegurança sobre o que seria feito caso ele deixasse o Governo”, ponderou o diretor-executivo do Fórum, Renato Sérgio de Lima.


El País: Governo contesta Inpe e anuncia licitação para nova medição de desmatamento

O mundo mede a política ambiental do Brasil pela Amazônia, dona da maior floresta tropical do planeta. O sistema de alarme indica um aumento de 40% no último ano

É bem sabido que o que não se mede não existe, nem pode ser combatido. Mas medir uma realidade — seja a desigualdade, a violência machista — é apenas o primeiro passo. Também é imprescindível que os envolvidos aceitem os resultados desse cálculo. O Brasil mede o desmatamento com satélites pelo menos desde 1988, mas o atual Governo lançou uma ofensiva contra o sistema oficial, apoiado pela comunidade científica brasileira e pela comunidade internacional. Os alertas de desmatamento que incomodam tanto o Executivo indicam que nos últimos doze meses (até 31 de julho), a Amazônia perdeu 5.879 quilômetros quadrados, 40% a mais do que um ano antes.

O desmatamento da Amazônia se tornou há anos a escala pela qual o resto do mundo avalia a política ambiental do Brasil. E é por isso que um dado que é divulgado mensalmente irrita tanto o presidente Jair Bolsonaro, ainda que não esteja consolidado nem o oficial, o qual será conhecido posteriormente. Mas indica uma tendência que o cálculo final geralmente confirma, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), órgão público que faz a medição.

O mal-estar no Gabinete é de tal calibre que Bolsonaro deu uma entrevista coletiva, nesta quinta-feira, 24 horas depois do último balanço, criticando como o INPE calcula a destruição da maior floresta tropical do mundo. “Se os dados estivessem corretos, seria preocupante e seria conveniente que não fizéssemos alarde disso e nos ocupássemos do problema internamente”, disse o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o general reformado Augusto Heleno, que insistiu que “são falsos”. Este apelou ao patriotismo antes de deixar claro que é melhor lavar a roupa suja em casa, porque o assunto “prejudica o comércio e nos coloca como um grande destruidor do meio ambiente da humanidade”.

Antes de Bolsonaro, outros presidentes manobraram para neutralizar essa fonte de desgostos. José Sarney divulgou números falsos em 1988, quando a destruição da Amazônia se tornou uma questão de relevância internacional. E Dilma Rousseff atrasou a divulgação antes das eleições em que foi reeleita.

Agora, o discurso de desdém em relação ao meio ambiente com o qual Bolsonaro chegou ao poder, sua decisão de paralisar as políticas de preservação e enfraquecer os órgãos fiscalizadores coincidiram com a crescente relevância que a crise climática adquiriu na Europa, entre outras razões porque neste verão o continente enfrenta ondas de calor inéditas.

Graças à legislação de transparência do Brasil, todos os dados governamentais são públicos (a menos que seja estabelecido o contrário) e é por isso que os aumentos que o sistema de alerta tem detectado se tornaram um martírio mensal para o Governo. De entrada anunciou que fará uma licitação para contratar “uma empresa, porque o Brasil requer um sistema de controle melhor”, segundo o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Os altos funcionários do INPE foram a Brasília na quarta-feira para explicar a metodologia usada a Salles e seu colega da Ciência, o astronauta Marcos Pontes.

Para calcular o desmatamento na Amazônia e no resto das áreas com valor ecológico do Brasil, dois sistemas de medição são sobrepostos. Um dos alertas, que é mensal, leva cinco dias para fotografar um local, serve para enviar inspetores ou policiais a campo e se chama Deter. É esse que está deixando Bolsonaro sobressaltado. O outro é o que oferece o balanço oficial anual a partir de imagens de maior resolução — leva 16 dias para tirar cada foto —, que também serve para que as instituições internacionais façam seus cálculos sobre o aquecimento global; seu nome é Prodes. Porque com menos árvores para converter as emissões de CO2 em ar limpo, a humanidade tem de fazer maiores esforços se quiser limitar o aumento das temperaturas.

O presidente também disse que quer uma investigação interna no INPE para descobrir “se há pessoas dentro que divulgaram as informações de má fé para prejudicar este Governo”. E tudo parece indicar que o diretor do instituto tem os dias no cargo contados. “A confiança foi quebrada, ele será sumariamente demitido”, segundo o presidente.

A Academia Brasileira de Ciências e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência defenderam em uma carta aberta a Bolsonaro o trabalho do INPE e sua política de transparência que “permite o acesso sem restrições a todas as informações geradas pelos sistemas de vigilância, o que permite as avaliações da comunidade usuária e acadêmica”.

No final da coletiva, a imprensa perguntou a Bolsonaro se ele acredita que o desmatamento está aumentando desde que governa e reconheceu que sim antes de acrescentar: “Parece que está aumentando, mas não dessa maneira como foi divulgada”.

O Governo recebeu outra má notícia nesta quinta-feira. O Supremo Tribunal Federal confirmou que a demarcação de terras indígenas continua sendo de responsabilidade da Funai (Fundação Nacional do Índio) e, portanto, sepulta as duas tentativas de Bolsonaro de transferir a prerrogativa para o Ministério da Agricultura, em um aceno ao agronegócio.


El País: O Brasil de Jair Bolsonaro, um novo vilão ambiental para o planeta

Meio ambiente capitaliza as críticas ao novo Governo pela paralisação das políticas de preservação, em um momento em que o assunto se torna prioritário para a UE

Em agosto do ano passado, quando um veterano deputado brasileiro conhecido por seu discurso incendiário e sua nostalgia pela ditadura disparou nas pesquisa eleitorais, do outro lado do mundo uma adolescente com tranças deixava de ir à escola às sextas-feiras para alertar sobre a crise climática plantando-se em uma praça com um cartaz feito à mão. Era impossível prever que seus caminhos se cruzariam. Mas foi o que ocorreu. Não fisicamente, mas sim em termos políticos. Greta Thunberg, transformada em uma espécie de flautista de Hamelin, conseguiu levar para as ruas milhões de estudantes e colocar o meio ambiente bem acima entre as prioridades dos políticos europeus enquanto Jair Bolsonaro, já como presidente, confirmava com nomeações, decisões e declarações seu desinteresse por proteger a Amazônia, uma floresta tropical essencial para frear o aquecimento global. Bolsonaro se tornou o vilão ambiental do mundo.

Neste sábado, o presidente declarou que na região apenas “veganos, que comem só vegetais”, estão preocupados com a questão ambiental, e tornou a contrapô-la à economia, porque em sua opinião são incompatíveis. “Quando acabarem as commodities [matérias-primas] do Brasil, nós vamos viver do quê?”, afirmou. “Vamos virar veganos? Vamos viver do meio ambiente?”.

Em sete meses de Governo, o mandatário brasileiro deixou claro que o papel do Brasil como potência agrícola exportadora lhe interessa muito mais do que o Brasil como guardião do pulmão do planeta. E, embora no início do mandato tenha desistido de juntar os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, transformou-os em um casal de fato: “[O ministro] Ricardo Salles está no lugar certo. Consegue fazer o casamento do Meio Ambiente com a produção. Eu falei para ele: ‘Mete a foice em todo mundo no Ibama. Não quero xiitas”, declarou em junho.

Bolsonaro colocou a líder da bancada parlamentar ruralista, Tereza Cristina Dias, como ministra da Agricultura, não declarou novas áreas de proteção ambiental nem demarcou novas reservas de terras indígenas (e ameaça desmantelar umas e outras), pretende desvirtuar o Fundo Amazônia (um fundo milionário impulsionado e financiado principalmente pela Noruega para frear o desmatamento), pôs em dúvida os dados oficiais sobre a destruição de florestas tropicais, elaborados por órgãos do próprio Governo por meio do Inpe, e acelerou a aprovação de novos pesticidas, incluindo alguns com substâncias proibidas na União Europeia. Uma série de medidas que fez com que os ex-ministros do Meio Ambiente ainda vivos acusassem em uníssono o Governo de desmontar todos os avanços conquistados nos últimos 25 anos.

Uma zona arborizada e uma área de cultivo de Rondonia, na Amazonia.
Uma zona arborizada e uma área de cultivo de Rondonia, na Amazonia.VÍCTOR MORIYAMA

A questão ambiental percorreu um longo caminho no Brasil. Como explica Mica Minami, diretora de campanhas do Greenpeace, “nos anos setenta, com a ditadura, era considerado um obstáculo para o progresso econômico; em 1992, o Brasil acolheu a primeira conferência sobre meio ambiente da ONU e desde então, com altos e baixos, foi desenvolvendo uma política com um potente pacote legal até se transformar em um país líder, principalmente na política climática, e até o próprio setor produtivo se convenceu de que isso era bom [para os negócios]".

Bolsonaro, ultranacionalista e de extrema direita, detesta as ONGs e os ativistas em geral. Considera que são parte de um suposto marxismo cultural. Tampouco oculta seu desprezo pelo diretor de um dos centros científicos mais prestigiosos do país. “Parece que está a serviço de alguma ONG, o que é muito comum”, disse na semana passada em um café da manhã com jornalistas de veículos de comunicação estrangeiros sobre o diretor do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE), que elabora, graças à vigilância por satélite, a estatística mais precisa sobre desmatamento —que reflete um notável aumento ocorrido nos últimos meses. Graças à lei de transparência, os dados são de domínio público. “Se toda essa devastação que vocês nos acusam que estamos fazendo [tivesse ocorrido], a Amazônia já teria sido extinta, seria um grande deserto”, afirmou Bolsonaro. “Entendo a necessidade de preservar, mas a psicose ambiental deixou de existir comigo.” Aos olhos do mundo, o Brasil é aprovado ou reprovado em função do que desmata.

Os alertas mensais, menos precisos do que o balanço anual de áreas desmatadas, apontam um notável aumento na derrubada da floresta nos últimos meses, que as ONG atribuem ao fato de que o discurso presidencial encorajou madeireiros e produtores agrícolas a conquistar novas terras. Paralelamente, o Governo quer aumentar sua influência e removeu os representantes da sociedade civil do Fundo Amazônia, um sistema para recompensar os esforços de preservação da floresta e da biodiversidade.

Se o desmatamento passar de um certo limite, a contribuição europeia a políticas de preservação é suspensa. Em uma década, a Noruega, a Alemanha e a Petrobras destinaram o equivalente a quase 3 bilhões de reais, administrados e fiscalizados por instituições brasileiras, a cerca de cem projetos ambientais. O Governo Bolsonaro não aprovou nenhum desde janeiro.

O presidente do Brasil se irrita com o empenho de Angela Merkel, Emmanuel Macron e outros líderes europeus em lhe pedir que preste contas sobre a floresta, seus habitantes, rios e plantas. Em junho, na reunião do G20, Bolsonaro convidou os dois líderes a sobrevoar com ele a Amazônia. “Se encontrarem um quilômetro quadrado de desmatamento entre Manaus e Boa Vista, concordaria com eles”, insistiu o presidente em um encontro com a bancada ruralista. É comum o capitão reformado se defender acusando os europeus de ter destruído suas próprias florestas —“sobrevoei a Europa, já por duas vezes, e não encontrei um quilômetro quadrado de floresta”— e criticando que agora venham pedir explicações aos brasileiros.

O Brasil assumiu o lugar da China como vilão ambiental. Mergulhada em um acelerado processo de industrialização, as emissões chinesas de CO2 são de 7,5 toneladas per capita, em comparação com as 6,4 da UE e as 2,6 do Brasil, segundo o Banco Mundial. Mas o gigante asiático conseguiu se livrar da imagem de grande poluidor ao abraçar com entusiasmo o Acordo de Paris.

Em um sinal de que a questão ambiental e climática seduz cada vez mais eleitores europeus —tendo à frente a Alemanha, onde os Verdes têm uma sólida trajetória política—, o recente acordo de livre comércio entre o Mercosul e a UE inclui exigências ecológicas, como a de que os produtos sul-americanos importados pela Europa não sejam originários de áreas desmatadas. No caso da soja da Amazônia brasileira, existe um sistema eficaz, definido em comum acordo pela indústria, pelas autoridades e pela sociedade civil, que garante isso. Mas atualmente é impossível oferecer essa garantia para produtos cultivados em áreas com menos proteção legal e ambiental.