Eliane Cantanhêde

Eliane Cantanhêde: Um ri, os outros choram

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez uma espetacular jogada de marketing ao aderir à tese de quebra de patentes das vacinas em meio à pandemia de covid-19, o que não só consolida a imagem de Biden como marca a volta dos EUA à liderança mundial das grandes causas, como meio ambiente e combate ao vírus.

O mundo desenvolvido e civilizado aplaude e se move na mesma direção, chacoalhando a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e, com elas, o multilateralismo, tão achincalhado na era Donald Trump. Tudo muito bom, tudo muito bem, mas, do marketing a resultados, da intenção à ação, é que são elas.

Não é simples, nem rápido, uma guinada dessa magnitude, muito menos com o mundo em frangalhos pelo efeito do coronavírus nas pessoas, nos sistemas de saúde, nos países, nas empresas, nos empregos. É uma emergência, mas a teia de interesses é imensa – e poderosa. Quebra de patentes pode demorar anos, e a pandemia exige resultados já.

As questões humanitárias, financeiras e políticas dividem o mundo entre os poucos países que detêm as patentes e a grande maioria que demanda desesperadamente as vacinas. E essas questões unem – contra – os grandes laboratórios, que despendem recursos e recrutam os melhores cérebros do planeta para obter sucesso – no caso da covid, em tempo recorde.

A reação da União Europeia foi de apoio a Biden, mas, nos bastidores, a posição de boa parte dos países está mais próxima da manifestada pela Alemanha, já seguida pela França, contra a quebra de patentes. Não será surpresa se, um a um, outros forem na mesma linha, lembrando que os EUA nunca exportaram uma mísera dose e doam as estocadas a conta-gotas.

Assim, segundo diplomatas e experts em negociação, do Brasil e do exterior, a quebra de patentes a jato é improvável e o razoável são soluções alternativas, ou uma “terceira via”: cessão de excedentes de vacina dos países ricos para médios e pobres, transferência de tecnologia e redução de medidas protecionistas para os insumos de vacinas.

No mundo real, para além da geopolítica, só a quebra de patentes não vai multiplicar as doses e proteger as bilhões de vidas do planeta, porque não basta querer, é preciso poder fabricar as vacinas. Isso vale para o Brasil, que tem Butantan, Fiocruz e capacidade de produção de vacinas, mas não o suficiente para a demanda nacional, com ou sem quebra de patentes.

O efeito da fala de Biden por estas bandas também é político e diplomático, depois de o governo jogar para o alto o troféu do Brasil de capitão da quebra de patentes no combate à Aids, uma vitória que marca a biografia do ex-ministro José Serra (PSDB-SP). Para se alinhar a Trump, Bolsonaro virou as costas para Índia e África do Sul, parceiros dos BRICS, e ficou contra a quebra de patentes na era da Covid.

Sem Trump e com Biden, sem Ernesto Araújo e com Carlos França, a questão das patentes vem bem a calhar para a correção de uma política externa até aqui desastrosa. Mas, enquanto quatro ministros dizem em nota que o governo recebeu “com satisfação” as propostas dos EUA, três deles são obrigados a implorar, de novo, o perdão da China. Por quê? Porque Bolsonaro continua atrapalhando.

Ao insinuar que a China criou o vírus em laboratório para gerar uma “guerra química”, ele, aliás, deixa uma suspeita: a de que quer, deliberadamente, prejudicar a entrega de insumos para a “vacina chinesa do Doria” – que, na prática, é a que garante a imunização no Brasil. Para piorar, a OMS aprovou a vacina da Sinopharm, também chinesa, antes da Coronavac. Isso aumenta a ansiedade e, como efeito colateral, brasileiros nem poderão ir à Europa. Bolsonaro ri, o Brasil chora.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,um-ri-os-outros-choram,70003708766


Eliane Cantanhêde: Bolsonaro tenta fazer, do limão, da CPI e das mortes, uma limonada

Presidente finge que não tem nada a ver com pandemia e faz chantagens contra ministros do Supremo, governadores e prefeitos

O ambiente está como o diabo e o presidente Jair Bolsonaro gostam: uma verdadeira bagunça, com a pandemia fora de controle, as mortes disparando e as vacinas e leitos acabando, mas todas as atenções de Executivo, Legislativo e Judiciário estão na CPI da Covid no Senado. Em vez de discutir e agir contra a pandemia, Brasília faz o que Bolsonaro quer: esquece a covid para privilegiar a guerra política.

Em conversa gravada com o curioso senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO), Bolsonaro resumiu sua estratégia: fazer do limão uma limonada. Finge que não tem nada a ver com pandemia – nem com o próprio governo e os erros do governo – e faz chantagens contra ministros do Supremo, governadores e prefeitos, enquanto compra apoios no Senado.

A sensação, porém, é de que a CPI vai pegar fogo contra Bolsonaro e o Ministério da Saúde, porque há uma consciência generalizada, dentro e fora do Congresso, de que os fatos, as falas e os resultados não admitem tergiversação nem jogar a poeira – e os mortos – para debaixo do tapete.

No meio, entre os pró e os contra a CPI, o plenário do Supremo poderá dar uma mãozinha para Bolsonaro amanhã, ratificando a liminar do ministro Luís Roberto Barroso que mandou instalar a CPI, mas ressalvando que o funcionamento depende de condições práticas e reuniões presenciais. Em resumo: o STF mantém a instalação da CPI, mas liberando os trabalhos depois da pandemia. Esquisito? Muito. Mas o que não é esquisito no Brasil hoje em dia?

Desde que Barroso determinou a instalação da CPI, ninguém mais fala nos erros criminosos de Bolsonaro na pandemia e que faço questão de frisar aqui: troca de ministros na pior hora, desdém ao tratar da crise e das mortes, péssimos exemplos para a cidadania, gastança com remédios inúteis e perigosos e desleixo ao contratar vacinas.

Assim, Bolsonaro vai fazendo a limonada. Dá o grito de guerra à arquibancada bolsonarista e não se fala de seus erros, só contra ministros do STF e de estender as investigações para governadores e prefeitos. Exemplo: em vez de cuidar de Queiroz, rachadinhas, funcionários fantasmas e mansões de R$ 6 milhões, o senador Flávio Bolsonaro está a mil por hora para enlamear os outros.

Então, a CPI é boa para Bolsonaro e ruim para seus adversários e todos os demais? Não! Hoje será a leitura da CPI, e é hora de organizar os times para anunciar os 11 titulares e seus reservas amanhã. Apesar das chantagens de Bolsonaro e de eventuais saídas heterodoxas do Supremo, é isso, a composição da comissão, que vai definir o principal: até onde a CPI irá.

Pode até resvalar para Estados e municípios, mas seu alvo principal é, evidentemente, Jair Bolsonaro. É ele, sem sombra de dúvida, o grande responsável pela tragédia, pela carnificina. A pandemia, como o nome já diz, atingiu o mundo todo, mas cada país cuidou de um jeito. Bolsonaro foi quem cuidou pior e o resultado está aí.

Uma CPI paralela ou a inclusão de governadores e prefeitos no escopo da própria CPI da Covid enfrentam obstáculos, porque, segundo seu regimento interno, o Senado não pode investigar Estados e municípios. Mas há um atalho para chegar lá naturalmente, pela própria dinâmica das investigações. Basta seguir o dinheiro federal e apurar se houve desvios.

Quanto ao impeachment e à CPI contra ministros do STF, é para fazer barulho e dar carne aos leões bolsonaristas contra as instituições e a democracia. A oposição grita “genocida” para Bolsonaro e os bolsonaristas gritam contra ministros do STF e Congresso. Mas o passado, o presente e os fatos condenam Bolsonaro. Ele personaliza os ataques contra Barroso, mas, sem defesa, não tem interesse nenhum numa guerra desse tamanho contra o Judiciário e Legislativo. 


Eliane Cantanhêde: Liberar cultos, missas e aglomerações equivale a mandar o gado para o matadouro

Em meio ao caos, o bolsonarista do Supremo, Kassio Nunes Marques, passa por cima de decisões do plenário

O Brasil vive duas tragédias simultâneas, em meio a um negacionismo criminoso que tenta garantir até aglomerações em igrejas e cultos: o número de infectados e mortos pela covid-19 só dispara, enquanto as previsões de doses de vacinas só caem. A boca do jacaré aumenta e vai devorando vidas, a economia, os empregos, a comida na mesa. E não está se falando de jacaré que tomou vacina...

Como advertiam desesperadamente os epidemiologistas, março de 2021 foi o mês mais macabro da pandemia, com o dobro das mortes registradas em julho de 2020, até então o pior mês em mortes e infecções. E a nova má notícia é que a escalada da carnificina deve continuar em abril.

Quanto mais brasileiros morrem, mais a previsão de vacinas cai, em sentido inverso. No dia 17 de fevereiro, quando o Brasil atingiu 242.178 mortos, o então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, anunciou 46 milhões de novas doses em março. O número de mortes disparou desde então, mas o de doses minguou. Março fechou com menos de 10% dos brasileiros vacinados.

Em 28 de fevereiro, os mortos haviam subido para 255.018 e a previsão de vacinas caía para 39,1 milhões. Em 3 de março, 259.042 mortos contra 38 milhões. Em 6 de março, 264.446 e 30 milhões. Em 8 de março, 266.614 e de 25 milhões a 28 milhões de doses. Em 10 de março, 270.917 e de 22 milhões a 25 milhões. O gato comeu milhões de doses. Gato guloso, Ministério da Saúde pouco confiável.

Para abril, as previsões de mortes são aterrorizantes e, num estalar de dedos, a expectativa de novas doses já caiu de 40 milhões para 25 milhões. O nosso Estadão revelou a realidade: a vacinação dos grupos prioritários – atenção, não da população toda, apenas dos prioritários – só deve ser concluída em setembro. Deus nos livre!

A situação é caótica, com o sistema de saúde super pressionado, os profissionais do setor esgotados, risco de falta de oxigênio e medicamentos, milhões de pessoas passando fome e vans escolares já sendo usadas para transportar corpos em São Paulo, o Estado mais rico do País.

O presidente Jair Bolsonaro, porém, só pensa no seu marketing pessoal. Os filhos jogam na internet o slogan “nossa arma é a vacina”, o Planalto sedia reuniões inúteis da frente contra a covid e todo o governo corre para dar ao presidente o discurso mentiroso, a propaganda enganosa, de que ele, imaginem, lidera o esforço por vacinas. Nenhuma fake news poderia ser mais absurda, depois de tudo o que Bolsonaro disse e não disse, fez e não fez na pandemia.

Não atuou a favor e guerreou contra as vacinas, não atuou a favor e guerreou contra o isolamento social, não atuou a favor e guerreou contra as máscaras e, em vez de guerrear contra, atuou a favor da cloroquina – os efeitos já começam a aparecer... E seus seguidores vão atrás. Que tal a comparação das vacinas com a talidomida nas redes, quando Bolsonaro dizia que a Coronavac “matava e mutilava”?

Em meio ao caos, o bolsonarista do Supremo, Kassio Nunes Marques, passa por cima de decisões do plenário e libera cultos e missas durante a pandemia. Equivale a mandar o gado para o matadouro. Com a suspeita de que o ministro segue as máximas do presidente: “aos aliados tudo” e “um manda, outro obedece”. Mesmo não devendo obediência nenhuma.

O ex-juiz Sérgio Moro foi expelido por resistir à ingerência política na Polícia Federal. O general Fernando Azevedo e Silva foi demitido por evitar a ingerência política no Exército. Como impedir a ingerência negacionista no Supremo? Em 5 de julho, Marco Aurélio Mello se aposenta, Bolsonaro nomeia o “seu” segundo ministro e os dois, juntos, mudam o equilíbrio do plenário. Para melhor, não será. E a pandemia estará correndo solta.


Eliane Cantanhêde: Quanto mais mortes, mais a Nação se une e o bolsonarismo se isola, tosco e incendiário

Ao falar em ‘caos’, ‘ação dura’, ‘esticar a corda’, Bolsonaro demonstra desespero e tenta radicalizar ainda mais os seus radicais

Montanhas de fake news desvirtuam a internet, vídeos de sujeitos com boinas militares e caras de milicianos ameaçam guerra à bala, o ministro da Justiça usa a Lei de Segurança Nacional contra críticos do presidente Jair Bolsonaro... Essas investidas, que não são inocentes nem isoladas, fazem parte da alma autoritária do bolsonarismo e enfrentam crescente resistência de todos os lados.

Centenas de banqueiros, empresários e economistas criticam o governo e rechaçam o “falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável”. O presidente do SenadoRodrigo Pacheco, pediu aos EUA para negociarem vacinas excedentes com o Brasil. E 62 dos 81 senadores assinaram uma moção liderada por Kátia Abreu (TO) implorando ajuda à comunidade internacional.

Todos se mexem para cobrir o vácuo do presidente e não dá para acusar de “comunistas”, “esquerdistas” e “petistas” gente como Pacheco e Kátia, Roberto SetúbalPedro Moreira SallesPedro Malan... Será que são esses os alvos do bolsonarista ignorante, valentão, com pose de militar, mas linguajar de miliciano? Que provoca “esse pessoal da canhota, que quer derrubar o nosso presidente”: “Deixa eu dizer um negocinho pra vocês. Ele não tá sozinho, não, tá? Junta o que vocês tiver de melhor e tenta” (sic sic sic). 

Ao falar em “caos”, “ação dura”, “esticar a corda”, Bolsonaro demonstra desespero e tenta radicalizar ainda mais os seus radicais. Isso, porém, equivale a demonstrar fragilidade e a afastar a direita consciente, cada vez mais indignada com ele e seu governo na pandemia. Se o desespero de Bolsonaro é porque a realidade ameaça seu pescoço e sua reeleição, o do Brasil é por um motivo nada personalista: o pânico por leitos faltando, oxigênio e remédios escasseando, vacinas devagar, quase parando.

O negacionismo de Bolsonaro e da sua turma não resiste às cenas tétricas de famílias destroçadas pela dor e pelo luto, aos doentes sem leitos e assistência, ao número cada vez maior de jovens mortos, aos cadáveres no chão de hospitais, seja no Piauí, seja no DF, a poucos quilômetros dos palácios de Bolsonaro.

A estratégia dele, porém, continua sendo a de falar absurdos e empurrar a culpa para os outros, insistindo em mentiras: não fez nada (e não fez mesmo...) porque Supremo impediu; só atrapalhou tudo (e atrapalhou muitíssimo...) para tentar salvar a economia; gastou dinheiro público com cloroquina (e gastou bastante, sim...) porque só o “tratamento precoce” salva. O céu está cheio de “salvos” pela cloroquina...

A essa estratégia Bolsonaro adicionou uma aposta: fingir que apoia as vacinas desde criancinha e atrair os louros pelas doses que estão vindo. Como se fosse possível esconder que o Brasil só está realmente vacinando por causa da Coronavac (“a vacina chinesa do Doria”) e que seu governo se pendurou num único imunizante – a Oxford-AstraZeneca, que tem atrasado – e desdenhou de Pfizer, Moderna, Janssen, Sputnik V... 

Assim como o governo fez comemoração patética para receber 2 milhões de doses da Oxford, quer fazer oba-oba político por acertar com a Pfizer nove meses depois – e passando ridículo no mundo: não bastasse ter o quarto ministro na pandemia, Bolsonaro agora tem dois ao mesmo tempo. Quem tem dois não tem nenhum. E o que dizer do capitão criando um ministério para premiar o general pelos péssimos serviços prestados?

A divisão do País não é entre Bolsonaro e Lula, direita e esquerda, mas sim entre um bolsonarismo tosco e incendiário e todo o resto que, independentemente de ideologia, usa outro tipo de armas: inteligência, competência, defesa da economia e da vida. Cada um escolhe o seu lado. E que depois preste satisfações à história e ao Brasil.


Eliane Cantanhêde: Bolsonaro, agora 'Capitão Gotinha', muda a retórica, assume as vacinas e vai abrir as torneiras

O Brasil vai assistir a uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com Lula ressentido e disposto a tudo e Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos

À deriva, à mercê do coronavírus e exportando novas cepas para o mundo, o Brasil vai assistir – e sofrer – uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com o camarada Lula ressentido e disposto a tudo e o capitão Jair Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos. Acaba de surgir o "Capitão Gotinha", o maior defensor da vacina no planeta. Acredita quem quer. E o pior é que tantos acreditam em qualquer coisa.

Os dois lados estão armados até os dentes e só nos resta torcer para que a imagem de retórica não vire realidade na era de um presidente com delírios autoritários e fetiche por armas. Depois de papai Jair combater incansavelmente as vacinas, a família presidencial assume um slogan oposto: "Nossa arma agora é vacina". Mas deixaram rastro, fantasiando o doce Zé Gotinha de miliciano, com um fuzil em forma de seringa. Argh!

E a deputada Carla Zambelli (PSL-SP)? Ao assumir a emblemática Comissão de Meio Ambiente da Câmara, a bolsonarista posou para o Estadão com cara de brava e... uma pistola 380. Não, não é contra desmatadores, traficantes, invasores de terras indígenas e criminosos em geral. Seus alvos são as ONGs!

Tudo isso num ambiente contaminado pelos recados velados e ameaças explícitas de Bolsonaro após a entrada de Lula no campo de batalha. Nervoso, o presidente deu um salto triplo carpado a favor das vacinas e atacou, além de Lula, governadores inimigos, como João Doria (SP), e amigos, com Ibaneis Rocha (DF). E acenou com insurreição, saques em supermercados... Eu, hein?! É convocação? Guerra civil?

Lula calibrou milimetricamente o confronto com Bolsonaro e a bandeira branca para o resto, enquanto Bolsonaro perdeu as estribeiras. Mas, afora táticas e estratégias, a polarização vai mostrar o quanto os extremos se aproximam, se parecem e se alimentam mutuamente, inclusive com métodos semelhantes de destruição de adversários, tratados como inimigos, e causas surpreendentemente comuns, camufladas pela ideologia.

PT e Bolsonaro, unha e carne no cerco a Sérgio Moro e à Lava Jato, trabalharam pelo mesmo candidato à presidência do Senado e estavam muito mais próximos na disputa na Câmara do que parecia à luz do dia. Agora, esquartejam a Lei das Improbidades – não para proteger os probos. Na campanha, sítio, triplex, rachadinhas e mansões milionárias farão a festa em palanques e na internet. Pior para Lula, que carrega os fardos do mensalão e do petrolão.

Na economia, PT e bolsonarismo caminham de mãos dadas no "nacionalismo" anacrônico, estatizante e corporativista. As corporações petistas estão na educação, cultura, ambientalismo, sindicatos. As bolsonaristas são mais "hard": militares, policiais, reinos universais, quartéis e cultos. (Lula, lembre-se, jamais teve arroubos contra a democracia, ao contrário de seu oponente, com esse exército.)

Os dois lados douram a pílula para atrair o capital, mas gostam mesmo da boa e velha mão pesada em Petrobrás, BNDES, BB, Caixa, Eletrobrás e Correios. Nada como manipular preços politicamente, alardear a "função social" das estatais e ter o Centrão a bordo. Mas, quando entra o "social", a balança pesa a favor de Lula. Além de correr desesperado atrás de vacinas, Bolsonaro será obrigado a mudar a retórica, acampar no Nordeste e abrir as torneiras.

Se o centro é uma incógnita, o Centrão (ou direitão) é fácil. Quem está com Bolsonaro e já esteve com Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer irá para onde os ventos soprarem. Como define um expert em Centrão, eles são garçons diligentes e cuidam bem da louça suja, não estão nem aí se o menu é comida chinesa ou pizza napolitana. Querem boa remuneração e nacos de poder, que Lula, Bolsonaro e centro dão de bandeja. Quem dá mais?


Eliane Cantanhêde: Maricas, covardes, picaretas

Bolsonaro faz escola e até desembargador e enfermeira aderem ao baile funk na pandemia

O presidente Jair Bolsonaro cai nas pesquisas pelo negacionismo diante da pandemia e do desdém pelas vacinas. A Procuradoria-Geral da República pede e o Supremo autoriza a investigação do general da ativa Eduardo Pazuello pela falta de oxigênio e as mortes em Manaus. O deputado Rodrigo Maia aproveita sua última semana na presidência da Câmara para dizer que não há dúvida de que Pazuello cometeu crime e defender a criação da CPI da Saúde.

Falta, porém, responsabilizar autoridades e cidadãos que negam a pandemia, fazem campanha contra o isolamento social e a própria vacina, que são as únicas armas para salvar vidas, conter o vírus, aliviar a pressão sobre o sistema de saúde e, assim, normalizar a economia e o próprio País. Eles também têm culpa.

São magistrados, parlamentares, empresários e irresponsáveis em geral, até da área de saúde, movidos pelo negacionismo, a ideologia irracional, a falta de respeito e empatia com os quase 220 mil brasileiros mortos. Esse mau exemplo, que começa com o presidente da República e decanta pelos seguidores da sua seita, induz jovens, idosos, homens e mulheres a relaxar os cuidados na pior hora. Tome baile funk nas periferias! E barzinho cheio dos bairros chiques!

Ao assumir ontem a presidência do Tribunal de Justiça (TJ) de Mato Grosso do Sul, o desembargador Carlos Eduardo Contar pediu “o fim da esquizofrenia e palhaçada midiática fúnebre” e propôs que “desprezemos o irresponsável, o covarde e picareta da ocasião que afirma “fiquem em casa’”. Para Bolsonaro, o cidadão que se cuida e cuida do outro na pandemia é “maricas”. Para Contar, é “irresponsável, covarde e picareta”.

O desembargador não pronunciou uma palavra sobre os escândalos do Judiciário, onde pululam “penduricalhos”, enquanto milhões de brasileiros estão sem emprego, renda, até comida. Reportagem de Patrik Camporez, do Estadão, informa que ali do lado, em Mato Grosso, os 29 magistrados do TJ receberam, em média, R$ 262,8 mil em dezembro. Contar preferiu reclamar das “restrições orçamentárias” e o “exaurimento da capacidade humana” da corporação.

Pôs-se a criticar aqueles que creem na ciência, nas entidades de saúde, nas recomendações médicas como “rebanho indo para o matadouro”. E a atacar “a histeria coletiva, a mentira global, a exploração política, o louvor ao morticínio, a inadmissível violação dos direitos e garantias individuais, o combate leviano e indiscriminado a medicamentos”. A pandemia é uma “mentira global”?! Quem ele está papagaiando?

Isso lembra a comemoração de parlamentares bolsonaristas quando o governador do Amazonas, Wilson Lima, cedeu à pressão e recuou do lockdown. Mas, depois, não escreveram uma só linha sobre o resultado macabro: falta de UTI e oxigênio, pacientes morrendo asfixiados e transportados para outros estados às pressas. Nem o sistema funerário resistiu ao caos, que está sendo exportado para o Pará e Rondônia.Se o isolamento social tivesse sido levado a sério pelo presidente e todos os governadores, o Brasil não precisaria ter afundado tão dramaticamente em mortes e contaminações. E a dúvida, agora, é quanto às vacinas. A quantidade, a logística, a seriedade e o exemplo de cima – particularmente de Bolsonaro –, vão definir a luz no fim do túnel.

Por isso, dói na alma a enfermeira Nathanna Ceschim, do Espírito Santo, divulgar vídeos sem máscara no hospital e desdenhando: “Não acredito na vacina (...). Tomei foi água”. E por que tomou? Para se cuidar, preservar seus pacientes, pais, avós e amigos e em respeito aos colegas do Brasil inteiro que se arriscam para salvar vidas? Não. “A intenção era só viajar...” Com presidente, desembargador, parlamentares e gente assim, é difícil ser otimista.


Eliane Cantanhêde: Sorte e juízo!

Prefeitos assumem com pandemia, pobreza, discurso de ódio e Bolsonaro na praia

Os prefeitos que assumiram no primeiro dia do ano precisam de liderança, força política, experiência, capacidade administrativa e bom senso, além da indispensável ética com a coisa pública. O foco estará em todos e cada um, principalmente em Eduardo Paes (DEM), que reencontra a Cidade Maravilhosa com o amor próprio ferido, arrasada administrativa e financeiramente. Ele não assumiu uma prefeitura, entrou numa guerra.

São tempos difíceis e desafiadores para Paes, os reeleitos Bruno Covas (PSDB) e Alexandre Kalil (PSD), em São Paulo e Belo Horizonte, e para todos os demais: Bolsonaro na praia, vírus a mil, idas e vindas das vacinas, lojas fechando, empresas quebrando, desemprego grassando. E a ajuda emergencial acabou junto com 2020.

O equilíbrio é complicado: responsabilidade com as contas públicas, mas como não gastar com leitos, remédios, profissionais extras, pessoas e famílias? Sem esquecer que estamos em janeiro, é época de chuvas, temporais, desabamentos. O que dá um frio na barriga. Onde há planejamento e diligência, tudo bem. E onde não há?

Além das duríssimas questões administrativas, que incluem educação, a volta às aulas, transportes e saneamento, os prefeitos, novos ou reeleitos, têm a obrigação de quebrar o discurso de ódio, negacionismo, polarização. Girar o leme para o futuro: inclusão, generosidade, combate sério ao vírus, civilidade com os opositores.

Nas posses, aqui e acolá, os prefeitos registraram também preocupação com desigualdade, racismo, homofobia e feminicídio, patologias incompatíveis com um País multirracial, plural e tão acolhedor, mas que estão na moda, em alta. Com estímulos indiretos e até diretos que vêm de “cima”. Não exatamente dos céus.

Tudo isso, aliás, foi firmado nos votos de 2020, que jogaram fora os devaneios da “nova política” e optaram pelo conhecido, testado. Paes, no Rio, é reconhecido pela capacidade de trabalho e de gestão, essenciais para a reconstrução de uma cidade tão atacada, num Estado em que quase todos os ex-governadores passaram pela prisão, o atual foi afastado sem volta, o ex-prefeito está imobilizado com tornozeleira.

Em São Paulo, onde o tucano Bruno Covas travou o bom combate com Guilherme Boulos (PSOL), nova cara da esquerda, as forças políticas se movem com responsabilidade num ambiente de pandemia e de incerteza econômica, que exige mais racionalidade, menos disputa ideológica. E as contas ajudam, depois da renegociação de dívidas camarada feita da capital com o governo Dilma Rousseff. Faz toda a diferença.

Em BH, Kalil não foi apenas reeleito, mas vice-campeão de votos do primeiro turno, só atrás de Bruno Reis (DEM), de Salvador. Sem tititi, sem fazer questão de ser simpático e engraçadinho, Kalil surpreendeu por fazer a coisa certa, não se submeter ao Palácio da Liberdade nem ao Planalto e tratar a pandemia como ela é: perigosa, que adoece, mata, deixa sequelas inclusive na economia.

Esse flash do “Triângulo das Bermudas” projeta o cenário político. PSDB mantém estado e capital em São Paulo. DEM tem Paes no Rio, ACM Neto se desvencilhando da Prefeitura de Salvador e Rodrigo Maia, da presidência da Câmara, ambos livres para articulações nacionais. PSD, que ora vai para um lado, ora para o outro, ganha novo status para 2022, ao herdar uma Minas Gerais órfã do PSDB e do PT.

Dos prefeitos, esperam-se competência, bons resultados e capacidade política para vencer arroubos autoritários, priorizando a responsabilidade com o País, a visão de conjunto e o respeito aos adversários, pondo os interesses das cidades, dos Estados, do País e, sobretudo, dos cidadãos, acima das próprias conveniências. Juízo e boa sorte a todos! O sucesso de vocês será de todos nós.


Eliane Cantanhêde: Saúde, vacina, agulha e amor!

O ano de 2020 já vai tarde. Que venha um 2021 muito, muito, muito melhor

A primeira coluna de um novo ano é sempre otimista, cheia de esperança e bons votos, mas como fingir que 2020 não foi o que foi, nada está acontecendo e reproduzir a animação de sempre neste início de 2021? Desculpem, mas está difícil. Assim, desejo saúde, vacina, seringa, agulha, emprego e capacidade de ver a realidade e entender o perigo do negacionismo regado a um populismo desbragado que tanto mal já causou à Humanidade.

Que o novo ano seja muito, muito, muito melhor do que 2020, que já vai tarde, com muito choro e muita vela, deixando para trás quase 200 mil vidas engolidas pelo coronavírus, enquanto o presidente fazia campanha eleitoral e trabalhava contra o isolamento social, as máscaras. Sem empatia com as famílias das vítimas, virou garoto propaganda de um remédio inútil para a pandemia e agora guerreia contra a própria vacina.

Que as pessoas se cuidem, confiem na ciência e nas várias vacinas descobertas e testadas por grandes cientistas e laboratórios do planeta. Vacinas que salvam a sua vida e interrompem o ciclo macabro da contaminação que adoece, deixa sequelas e mata. Não ouçam negacionistas que se movem por ideologia. Ouçam e ajam de acordo com cientistas, médicos, entidades nacionais e internacionais de saúde.

Que, antes de ser demitido e virar bode expiatório dos tremendos erros “de quem manda”, o general ministro da Saúde tente recuperar a fama de bom em logística para ampliar o raio de fornecedores de vacinas, encomendar mais do que míseros 2,7% das seringas necessárias, deixar alguma providência pronta para quando vacinas, sabe-se lá quando, forem autorizadas pela Anvisa.

Que Natal e Ano Novo, aglomerações em praias, jogos de futebol e abraços sem máscara, como estimula o presidente, baladas de jovens de todas as classes sociais e badalações de ídolos como Neymar ou de famosos como Elba Ramalho não deixem de presente para 2021 uma explosão de mortos. No apagar de 2020, passaram de mil as famílias enlutadas pela Covid-19...

Que o fim da ajuda emergencial para os 48 milhões de brasileiros que não têm outra fonte de renda seja compensado de alguma forma pelo Estado, que, por pressão do Congresso e ação do Ministério da Economia, corretamente deixou de lado a prioridade fiscal para focar nas pessoas em 2020. Até o dia 31 de dezembro, silêncio. A partir de hoje, somos todos ouvidos.

Que, em 2021, as promessas de campanha de 2018 sejam levadas a sério e venham as reformas administrativa e tributária e as privatizações necessárias para modernizar a economia, melhorar a gestão, os serviços e os empregos. Até agora, a queda de braço entre Planalto e Economia imobilizou os avanços. Em 2021, o ministro Paulo Guedes não tem alternativa: ou perde ou ganha; ou fica e faz ou vai para casa.

Que também as promessas de campanha dos prefeitos que tomam posse nesta sexta-feira, 1º, sejam cumpridas e eles tenham responsabilidade, prudência, cuidado com a coisa pública, respeito ao cidadão e um olhar generoso e estratégico para suas cidades. É nelas, afinal, que tudo acontece. Onde tudo desaba.

E que a Amazônia, o cerrado e os nossos biomas sobrevivam, a Educação ande para a frente, não para trás, a cultura não seja demolida, a política externa entre no eixo do pragmatismo e do interesse nacional, na onda benfazeja que a vitória de Joe Biden trouxe ao mundo. Não é pedir muito, mas é difícil acreditar que vá prevalecer...

Enfim, um “muito obrigada” e um voto especial para os nossos valorosos profissionais da saúde e para você, que nos lê, ora concorda, ora discorda, mas está atento e forte para proteger o nosso Brasil, os nossos brasileiros, os nossos avanços civilizatórios. Saúde, vacina, emprego, paz, felicidade e democracia, o nosso bem maior!


Eliane Cantanhêde: Quem ama não mata

As vidas da mulheres importam e isso é cultura, é educação, depende do Estado e de cada um de nós

O Brasil está doente, não apenas por causa da pandemia, da economia, do desemprego, da corrupção e do desgoverno, mas porque a desigualdade social é a oitava do mundo, o trânsito é assassino e o feminicídio, endêmico, está em toda a parte, em todas as classes sociais. Um horror, uma vergonha, uma sensação de impotência num País tão especial, tão lindo, com uma natureza tão privilegiada.

Fiquemos no feminicídio, depois de dois fatos chacoalharem o Judiciário na reta final de um ano tão dramático no mundo inteiro: o assassinato no Rio de uma juíza, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, 45, e as declarações insanas de um juiz (e um juiz de Vara de Família!), Rodrigo Azevedo Costa, reveladas pelo programa Papo de Mãe, das jornalistas Mariana Kotscho e Roberta Manreza.

 Na véspera do Natal, data da esperança e da generosidade, o engenheiro Paulo José Arronenzi assassinou a juíza Viviane a facadas, na frente das três filhas de ambos, uma de 9 anos e as gêmeas de 7. Viviane tentava reagir à insanidade com racionalidade, tinha dispensado a escolta e estava levando as crianças para passar o Natal com o pai, que nem sequer se deu ao trabalho de fugir. Ficou ali, olhando a mulher morrer, até a polícia chegar.

É chocante, desesperador, e gerou reações do presidente do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)Luiz Fux, do também ministro do STF Gilmar Mendes, da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Defensoria Pública. Mas está dentro da "normalidade". Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 88% dos feminicídios são cometidos por atuais ou ex-companheiros e 43% deles – pasmem! – na frente dos filhos.

É, evidentemente, uma patologia. Comprova o quanto os doentes se recusam a se assumir doentes, as famílias não reconhecem o tamanho do problema, as vítimas viram reféns do pavor e da pena. Mas, muito mais do que um problema individual e familiar, trata-se de uma patologia social, em que pesam uma cultura machista e dominadora, uma educação nas escolas e nos lares que gera e reforça a sensação de posse, de proprietário e propriedade.

O resultado, macabramente caricato, é um juiz de Vara de Família capaz de bater no peito e gritar ao mundo – ou às mulheres? – que "ninguém apanha de graça", "não está nem aí para a Lei Maria da Penha" e se orgulha de ter tirado a guarda dos filhos de mães agredidas para dar aos pais agressores. Equivale a dizer: a mulher maltratada, abusada e ameaçada pede socorro ao Estado e é maltratada, abusada e ameaçada pelo agente do Estado. Estarrecedor.

A mídia está repleta de casos de mulheres espancadas e mortas, de diferentes idades e classes sociais, em todos os Estados. Na capa do Correio Braziliense de 22 de dezembro, as fotos de três moças do DF: Luciene, morta a socos no meio da rua, Maria e Cleide, vítimas de tiros. Todas três eram mães. E se tivessem recorrido ao juiz Azevedo Costa? Ou a alguém do mesmo feitio? Morreriam do mesmo jeito, mas ainda mais humilhadas e sem os filhos.

Os dois novos fatos, o assassinato de uma juíza e a exposição de um juiz injusto, jogam o foco no Judiciário, mas produzem mais discursos do que mudanças. Até porque, como adverte a juíza e escritora Andréa Pachá, não adianta endurecer ainda mais as leis, é preciso intervir em comportamentos sociais que geram e, de certa forma, estimulam a violência contra as mulheres.

Ela ensina: os criminosos não vão parar de matar a companheira por temer dois, cinco ou dez anos a mais na prisão, eles só vão parar quando a sociedade mudar, quando homens, mulheres, inclusive juízes e policiais, mudarem. Isso é cultura, é educação, depende do Estado, dos líderes, dos pais, de cada um de nós. As vidas das mulheres importam.


Eliane Cantanhêde: 'Finalzinho da pandemia'

São absurdos demais, provocações demais… Alguma Bolsonaro está aprontando

Lá atrás, no início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro tinha um ministro da Saúde competente, informações privilegiadas e todas as condições do mundo para fazer a coisa certa, combater a contaminação do coronavírus e evitar milhões de doentes e milhares de mortes. Bolsonaro, porém, optou por entrar para a história como o presidente que, entre a vida e a morte, ficou com a morte. E, em nenhum momento, reviu, tentou acertar. Começou errado e vai errado até o fim. À custa de vidas.

Entre hoje e amanhã, a realidade confirma a previsão desesperada do então ministro Luiz Henrique Mandetta de 180 mil mortes. E vai aumentar. O número volta ao patamar de 800 a 900 em 24 horas, 21 Estados e DF registram aumento de vítimas e os leitos vão se esgotando na rede pública e privada por toda a parte. Se você for contaminado, o risco é não ter onde cair morto – nem vivo. E vem aí Natal, Ano Novo, festas e viagens.

O erro de Mandetta foi ser realista, transparente, formar uma bela equipe e manter a população bem informada e alerta o tempo todo. Bolsonaro não suportou o sucesso e a popularidade (maior que a dele) do subordinado. Em vez de premiá-lo, demitiu-o. O ciúme e a inveja foram maiores do que a responsabilidade com a população brasileira.

Em vez de Mandetta, Bolsonaro preferiu ouvir ignorantes, negacionistas, terraplanistas, lunáticos que previam no máximo 2.500 mortes, empinavam o nariz para dizer que a covid mataria menos do que a gripe e condenavam isolamento social, máscaras, qualquer cuidado reconhecido pelo mundo inteiro. Mesmo com a confirmação da tragédia, o presidente continuou sempre dobrando a aposta. “E daí?”

Tal qual um tenente abilolado capaz de fazer planos e croquis para explodir quartéis, Jair Bolsonaro não sossegou até nomear um general da ativa sem qualquer brio para fazer tudo o que seu mestre mandar. É para explodir quartel? Exploda-se. Impor cloroquina? Imponha-se. Politizar a vacina? Politize-se. Permitir a morte de milhares? Permita-se. Afinal, “um manda, o outro obedece”.

O Brasil chega ao final de 2020 doente, irritado, estupefato e sem perspectiva, chocando o mundo, enquanto o general-ministro Eduardo Pazuello fala em vacina para março, ou janeiro, ou fevereiro, ou dezembro… E ninguém acredita numa palavra do que ele diz. E que tal ouvir o presidente falar em “finalzinho da pandemia”? Um soco no estômago.

Era uma “gripezinha”, “histeria da mídia”, “e daí?”, “eu não sou coveiro”. Virou aglomeração, manifestação golpista e cloroquina. Enfim, a guerra pessoal contra a “vacina do Dória”, ou “da China”, e agora o delírio de que a pandemia está no “finalzinho” quando o vírus explode por toda a parte e os brasileiros assistem, aterrorizados, à vacinação na Inglaterra e nos países que têm presidente, ministro da Saúde e juízo.

O presidente vive de testar limites, irritar, chocar e o que ainda surpreende é seis ministros fazerem claque para a exposição de trajes do “rei” e da “rainha” e que, enquanto a sociedade só pensa em vacina, o presidente passe sua “boiada” e derrube as alíquotas de importação de armas para comprar a fidelidade de sua base eleitoral e da “bancada da bala”, que só pensam em tiro. A população quer vida, o presidente promove a morte.

Bolsonaro não percebe que ameaça tanto a vida dos brasileiros quanto o próprio mandato. Ou acha que pagar “um preço nunca visto antes na história” (segundo o então ministro do Turismo) basta para evitar o impeachment. Ou… pensa em convocar milicianos e armamentistas para guerrear a favor dele e contra a democracia. O fato é que ele só pode estar aprontando alguma. É erro demais, absurdos demais, provocações demais para ser normal. E ainda faltam dois anos, uma eternidade.


Eliane Cantanhêde: Eleitor dá uma grande vitória ao País

Depois de se aventurar sem racionalidade em 2018, eleitorado desta vez preferiu caminhar em terra firme e a grande vitória destas eleições é da política tradicional

As eleições de 2018 foram um hiato e as de 2020 repõem as coisas nos devidos lugares. Assim como nesses dois anos evaporaram todas as bandeiras de campanha do presidente Jair Bolsonaro, também sumiram de Norte a Sul os partidos, candidatos e compromissos inventados sob o rótulo de “nova política”. Eles não tiveram vez.

Depois de se aventurar sem racionalidade em 2018, o eleitorado desta vez preferiu caminhar em terra firme e a grande vitória destas eleições é da política tradicional, do conhecido, de quem tem serviço prestado. A direita belicosa de Bolsonaro ficou pelo caminho, junto com o PSL, militares, policiais, bombeiros e juízes que se meteram onde não deviam.

A “nova-velha” centro direita, que se contrapõe à extrema direita bolsonarista, é mais moderna e confiável, não surpreende a vantagem de DEM e PSDB, que concorreram separados, mas devem se encontrar em 2022. O DEM ganhou em primeiro turno Salvador, Curitiba e Florianópolis e, no Rio, o ex-prefeito Eduardo Paes enfrenta no segundo turno o atual prefeito, Marcelo Crivella, que tem índices recordes de rejeição.

O PSDB chega em primeiro em São Paulo, reelegeu Cinthia Ribeiro em Palmas e disputa bem em Natal, Campo Grande e Porto Velho. Se Bruno Covas for reeleito, como tudo indica, deverá gerar um outro troféu: o MDB deverá ter o maior número de prefeituras, mas os tucanos poderão governar o maior número de eleitores no País.

Na outra ponta, a esquerda surpreende bem na reta final, mas não o PT. Guilherme Boulos (PSOL) terá dificuldades contra Covas no segundo turno, porque a resistência será forte em São Paulo, mas ele já teve uma conquista: a liderança das esquerdas, que estão bem em Belém, com PSOL, Porto Alegre, com PCdoB, e numa disputa em Recife entre PSB e PT, aliás, entre bisneto e neta do velho Miguel Arraes, grande referência política no Estado.

É assim que, apesar dos problemas do TSE, já se pode concluir que o eleitorado parou de brincar de novidades perigosas e voltou a olhar quem é quem, quem fez o que e o que são e representam os reais partidos. Só isso já é uma grande vitória.


Eliane Cantanhêde: Caindo na real

Se Trump perder, arrasta junto a política externa e os delírios internacionais de Bolsonaro

O Brasil é o Brasil, o presidente Jair Bolsonaro é o presidente Jair Bolsonaro. O que é bom para o Brasil não é necessariamente bom para Bolsonaro e a recíproca é verdadeira. Aliás, muitas vezes é o oposto. O risco de derrota de Donald Trump é também de Bolsonaro, com sua política externa e seus delírios ideológicos, mas não para o Brasil, que lucra com um mundo melhor.

Com Trump e os Estados Unidos era uma coisa, sem ambos é outra. O projeto de um mundo de extrema direita vira um sonho (ou pesadelo) de uma noite de verão. É hora de acordar e cair na realidade – que, aliás, não está fácil, com pandemia, economia quebrada, dívida pública descontrolada e milhões de desempregados. O caos não é ideológico, é real.

Em 2018, após a vitória do pai, o deputado Eduardo Bolsonaro patrocinou a Cúpula Conservadora das Américas, em Foz do Iguaçu, como contraponto ao Foro de São Paulo, das esquerdas, mas a sociedade não deu bola para um nem para o outro. Em 2019, no primeiro ano de governo, ele voltou à carga, anunciando “o maior evento conservador do mundo” em São Paulo, mas só se ficou sabendo que o filho 03 foi recebido aos gritos de “mitinho” e que o seu guru só apareceu no telão, direto da Virgínia.

O 03 orna a parede da sala de jantar com um rifle (ou sei lá o que é aquilo), fritou muito hambúrguer nos EUA, desfilou com o boné da reeleição de Trump e passou vergonha ao ser indicado pelo papai para ser embaixador em Washington. Por sorte (dele e do Brasil), os senadores avisaram que era um pouco demais.

A ideia morreu, mas o delírio conservador – e autoritário – sobreviveu. Em fevereiro deste ano, o chanceler Ernesto Araújo – que definiu Trump como o único Deus capaz de salvar o Ocidente – foi a Washington para a criação, com EUA, Hungria e Polônia, de uma “Aliança Internacional pela Liberdade Religiosa”. O carimbo de “religiosa” escamoteava algo muito mais ambicioso.

O passo seguinte seria a ida do próprio presidente Bolsonaro à Hungria e à Polônia, ainda neste segundo semestre, para consolidar a aliança da extrema direita. Por ironia, a pandemia de Covid 19, tratada com igual ignorância por Trump e sua réplica brasileira, impediu a empreitada. Sem a reeleição de Trump, o que Bolsonaro poderia fazer agora em Budapeste e Varsóvia? Só chorar as mágoas.

O democrata Joe Biden não tem nada de socialista, diferentemente do que disse Trump e os cubanos e venezuelanos da Flórida engoliram. Biden é um liberal na economia, antirracista, defensor de minorias, direitos humanos, meio ambiente Acordo Climático de Paris, ONU, OMC e OMS. Eleito, interromperá as investidas de Trump e dos Bolsonaro, calcadas em ódios e armas, sob inspiração do mentor da extrema direita internacional, Steve Bannon, que nem Trump aguentou e anda às voltas com a polícia.

Sem Trump e EUA, evaporam o projeto ultra conservador e política externa de Bolsonaro. Bolsonaro chutou China e Europa porque tinha Washington na retaguarda, mas, agora sozinho, repete o muxoxo de que as potências querem nos tomar a Amazônia e empurrar a América do Sul para a esquerda. Não tem pé nem cabeça tanto que, sob a perspectiva de vitória de Biden, as Bolsas subiram, o dólar caiu no Brasil. Esse mercado está cada vez mais socialista…

Com a cabeça no lugar, o vice-presidente Hamilton Mourão trata a China com pragmatismo e lembra que a relação entre Brasil e EUA é entre Estados, não entre pessoas. É um claro contraponto a Bolsonaro, tão candidato a perdedor quanto Trump. O Brasil, porém, não perde nada com o equilíbrio político e pessoal de Joe Biden e a obrigação de voltar fazer política externa. Bolsonaro e Ernesto Araújo são capazes de fazer?