eleições municipais

Alon Feuerwerker: Algumas dúvidas nesta eleição municipal

São elas: 1) Qual o efeito da polêmica das vacinas de Covid-19 no desempenho dos candidatos que mais se identificam com Jair Bolsonaro? 2) Qual o peso real dos padrinhos? 3) Haverá na reta final do primeiro turno alguma onda, e qual seria? 4) Qual será o anti da vez, que rejeição vai prevalecer?

Sobre o primeiro ponto, é razoável projetar que vai ganhar fichas quem for identificado como preocupado em tornar a vacina disponível em massa para a população. Aqui, o governador de São Paulo, João Doria, conseguiu uma pegada no quimono melhor que seu adversário de tatame, o presidente Jair Bolsonaro.

Um segredo da política é nunca desvelar que os interesses mesquinhos estão sempre em primeiro lugar. A sabedoria reside em embalá-los no papel de presente do “interesse público”. Bolsonaro tentou fazer isso com o argumento de que o povo não será cobaia, mas depende de o medo da vacina tornar-se maior que o medo do vírus. Improvável.

Outro problema do governo: a ira do presidente contra o governador de São Paulo terá o efeito colateral de vir a despertar desconfianças sobre uma eventual morosidade da Anvisa na liberação da vacina objeto da polêmica. E isso legitimará ainda mais a provável intervenção do Judiciário, uma instituição já atraída pelos holofotes do ativismo.

Sobre os padrinhos, até agora o peso deles tem se mostrado apenas relativo. Uma hipótese é funcionarem melhor quando há correspondência de cargo. Por exemplo, um prefeito seria mais efetivo como padrinho na própria sucessão do que políticos de outras esferas. Pois a força do apadrinhamento refletiria em algum grau a avaliação da gestão.

O próprio conceito de “padrinho” é duvidoso. Parte da premissa de o eleitor pertencer ao político. Melhor considerar a relação inversa de pertinência. O eleitor na verdade vê o político como um funcionário, e escolhe o que lhe for mais conveniente. Isso vale em toda a escala social. Não pensam assim só os ricos e a classe média. Os pobres também.

E qual será, se houver, a onda no primeiro turno? A “nova política” dá sinais de fadiga, mas nunca é bom subestimar. E a quarta pergunta? O antipetismo anda meio esquecido, até porque o desempenho do PT, como era de esperar, não tem sido até agora dos mais brilhantes. Se esta onda vier, deve vir como antiesquerda, que anda bem pulverizada.

Uma possibilidade é um certo antibolsonarismo, que por enquanto anda de breque de mão puxado. Pois é difícil fazer o casamento do jacaré com a cobra d’água, a junção da esquerda com o pedaço da direita que desgarra do presidente em busca de projetos próprios. Mas é bom ficar de olho.

Quem tem escapado de virar alvo do anti são exatamente a direita que descolou de Bolsonaro e a autonomeada centro-esquerda que descolou do PT para se vacinar contra o antipetismo. São candidatos a boas colheitas.

E uma lembrança: é bom ficar atento a sua excelência, o imprevisível. No nosso modelo eleitoral, raios em céu azul costumam provocar incêndios inesperados. E o imprevisível, não custa repetir, é das coisas mais difíceis de se prever.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Nelson Motta: Bye bye, Crivella

A degradação econômica, urbana e cultural da cidade foi acompanhada pela deterioração do que se chamava ‘espírito carioca’

Irmãos, trago boas novas. Tudo indica que vamos nos livrar do satânico bispo Crivella nas eleições de novembro. É o líder absoluto entre os mais rejeitados. Graças a Deus! Aleluia! Epá Babá Oxalá! Mas e o day after? O novo prefeito vai encontrar uma cidade devastada e degradada por uma administração marcada por escândalos e ineficiência, destruindo ou abandonando legados da administração anterior, como o Porto Maravilha e o VLT.

No “Retrato de Dorian Gray”, Oscar Wilde diz que só pessoas superficiais não julgam pelas aparências. Crivella, por exemplo, com sua conversa mole e sua brancura de cera, parece um clássico personagem de histórias de terror, o antigo mordomo do casarão, que fala macio, é humilde e prestativo com o casalzinho que herdou a mansão, mas à noite se transforma num vampiro e lhes suga o sangue. Coitado, não tem culpa de ter nascido com esse physique du rôle, mas combina com seu populismo canhestro e seu obscurantismo provinciano.

A degradação econômica, urbana e cultural da cidade foi acompanhada pela deterioração do que se chamava “espírito carioca”, que nos orgulhava e diferenciava do resto do Brasil. Até os paulistas admiravam nosso estilo de vida mais relaxado e informal, nosso humor e cordialidade, nossa simpatia e a nossa fala cheia de gírias e chiados.

O humor e a cordialidade viraram rispidez e antagonismo, o relaxamento virou desleixo com as leis, a educação e a ordem, a leveza ficou pesada, a irreverência virou grosseria. Motivos não faltaram, o fato é que vivemos uma mudança de comportamento profunda. E a administração Crivella ajudou a piorar.

Empacado em 12%, o homem está desesperado e implorando o apoio de Bolsonaro, até agora em vão, porque o Bozo não é bobo e não quer queimar o seu filme já chamuscado com o eleitorado do Rio de Janeiro. O vídeo dos dois dançando abraçados é uma mistura de terror com humor que tira mais votos de Bolsonaro do que dá para Crivella. Devia ser exibido todo dia pelos adversários dos dois.


Fernando Abrucio: Aspectos centrais das eleições 2020

A lógica da polarização parece não ser a tônica da eleição de 2020, e se isso se confirmar, as estratégias políticas para daqui a dois anos podem ser fortemente afetadas

Toda eleição tem uma história própria, determinada por sua dinâmica territorial, pelo regramento institucional vigente e pelos elementos conjunturais que a influenciam. A disputa municipal de 2020 pode, até o momento, ser compreendida por cinco aspectos que delimitam sua peculiaridade: a redução do debate eleitoral, o choque entre as inovações e a força da política tradicional, os imensos desafios que aguardam os prefeitos eleitos, a percepção cada vez maior do mosaico que caracteriza os pleitos locais e, por fim, um cenário político nos grandes centros que não é o mais favorável às duas grandes forças eleitorais do país - o bolsonarismo e o petismo.

O primeiro aspecto a ressaltar não é alvissareiro à democracia: nunca houve tão pouco debate numa eleição brasileira desde o fim da ditadura militar. Na disputa municipal de 2020, os políticos falam menos ao povo, discutem menos entre si e disputam com dancinhas no TikTok a atenção de gente que está mais preocupada com memes. Esse fenômeno é resultado de uma tendência mais recente de mudanças no regramento eleitoral, da dificuldade de se montar discussões entre candidatos na mídia eletrônica e dos efeitos da pandemia.

Já faz quase uma década que o país tem optado, paulatinamente, pela redução do tempo de campanha e pela diminuição da duração do horário eleitoral gratuito. Para defender essa proposta, argumentava-se que o processo eleitoral tinha um custo excessivo, algo que gerou, em décadas, vários escândalos de corrupção. Essa proposição não deixa de ser em parte verdadeira, mas para uma eleição local, em que não há tanta exposição na mídia das principais disputas (a não ser na reta final), essa lógica pode beneficiar os que já têm cargos eletivos e os candidatos mais conhecidos, gerando uma barreira de entrada aos que venham de fora e que apresentem ideias novas, embora não necessariamente boas.

Junta-se a esse fato a ausência de debates na mídia eletrônica nos principais centros urbanos do país. De fato, por conta da legislação eleitoral e da grande quantidade de postulantes às prefeituras, não é fácil organizar algo minimamente adequado ao formato da TV e do rádio. Mas esse problema deveria ser mais bem discutido pela imprensa e por todos aqueles que reclamam cotidianamente de nossa democracia nos meios de comunicação de massa, especialmente porque concessões públicas deveriam servir mais como canais de informação à população, o que numa eleição exige o confronto de ideias.

Obviamente que a pandemia piorou esse cenário de falta de debates e de redução do diálogo dos políticos locais com a população. Não se pode esperar, por razões de saúde pública, que a campanha seja como antes. Mas quando isso se soma aos dois elementos anteriores, temos uma eleição municipal que beneficia mais os incumbentes, atrapalha a entrada de novas ideias e dificulta a comparação das propostas.

E aqui entra o segundo aspecto definidor dessa eleição municipal: há um choque entre propostas inovadoras de campanha eleitoral, em termos de forma e conteúdo, e um modelo político mais tradicional, que vai além do conservadorismo das ideias e se baseia, principalmente, na força dos partidos e políticos já estabelecidos há mais tempo no jogo eleitoral.

Deve-se destacar as várias tentativas de inovação na atual campanha. Cresceram as candidaturas coletivas, os temas novos e vinculados a várias injustiças sociais do país, os concorrentes ligados a movimentos de renovação política, a ascensão de pessoas vindas de movimentos da periferia, em suma, surgiram propostas e nomes que vão dos liberais à esquerda. Não se trata de dizer que esses grupos tenham as melhores ideias, mas choques exógenos ao sistema político têm a qualidade de obrigá-lo a buscar o aperfeiçoamento.

O mais provável, entretanto, é que tais inovações tenham menor impacto do que o peso da política tradicional nesta eleição municipal. É bem surpreendente esse cenário depois de um pleito nacional, o de 2018, onde o discurso da antipolítica e da renovação tenha sido hegemônicos. Além da falta de debates e da pandemia, mais dois pontos podem ser acrescentados para explicar a força da política tradicional no pleito local. O primeiro é a capilaridade dos partidos do centro para a direita em boa parte dos municípios brasileiros, especialmente nos menores. É como se fosse uma alma profunda de peemedebismo (ou arenismo) que povoa grande parte do país.

Derivado de uma reforma institucional recente, outro elemento pode favorecer esse status quo: o fim das coligações em eleições proporcionais, cujo primeiro teste está sendo feito agora. A grande maioria da opinião pública defendia essa mudança, como uma forma tanto de distribuir mais fielmente as cadeiras segundo os votos dados, quanto de reduzir um multipartidarismo de certa maneira artificial, que aumentava o custo para a formação dos governos sem necessariamente aumentar a representatividade dos diversos setores sociais. É inegável que esses efeitos são positivos e poderão ficar mais claros no pleito nacional de 2022.

Mas também está acontecendo o que o cientista político Guilherme Russo, pesquisador do FGV/Cepesp, apontou com precisão em recente artigo na “Folha de S. Paulo”: a redução do número de partidos que lançam candidatos. Esse resultado favorece as agremiações partidárias mais tradicionais e sua organização mais fechada a novos atores e ideias. Claro que não se pode dizer que quem vem de fora do sistema seja, por definição, sempre melhor do que os mais experientes. O discurso da novidade já foi muito usado para gerar enormes retrocessos em vários momentos históricos. Não obstante, o atual cenário produz algo diferente: há uma enorme desigualdade competitiva e pouquíssimo espaço genuíno de debate entre os incumbentes ou os que têm longa vida no jogo político em contraposição aos que concorrem pela primeira vez e/ou defendem projetos diferentes dos vigentes. Tal disparidade não é boa para a democracia.

A tendência à maior continuidade dos atores políticos no plano local ocorre num momento de grandes desafios aos futuros prefeitos. O quadriênio que começará em 2021 será um dos mais difíceis, senão o mais difícil, desde que os municípios ganharam um novo status político, de maior autonomia, na Constituição de 1988. Este é um terceiro aspecto essencial dessa eleição. O que está em jogo é eleger um governante capaz de reconstruir as principais políticas públicas locais diante dos efeitos da pandemia. Essa tarefa será muito complicada em questões como a educação, a assistência direta aos grupos sociais mais vulneráveis e o apoio à economia local. Ora, se o quadro eleitoral aponta para pouco debate, como os eleitores poderão se informar adequadamente para escolher a proposta mais correta para enfrentar quatro anos difíceis?

Embora haja uma situação comum de grande adversidade, os municípios partem de patamares bem diferentes. No plano eleitoral, também existe uma diversidade federativa muito grande, de modo que é sempre mais correto falar no plural das eleições municipais, pois há variados jogos políticos em questão. De um lado, existem 2.069 cidades que só terão dois candidatos a prefeito e, por incrível que pareça, 117 municipalidades terão apenas um concorrente à prefeitura. Esse cenário pouco ou nada competitivo abarca cerca de 40% dos municípios do país. Mas, de outro lado, as cidades com mais de 50 mil habitantes e, sobretudo, as principais capitais devem gerar um cenário multipartidário de possíveis eleitos.

Os resultados das urnas tendem a consagrar um mosaico pluripartidário de vencedores nesta eleição municipal. Claro que as forças mais tradicionais do centro para a direita tendem a eleger mais prefeitos nas cidades até cinquenta mil habitantes, e nas capitais haverá uma variação maior. De toda maneira, o que importa destacar aqui como quarto retrato da disputa de 2020 é que provavelmente não haverá nenhum grande vencedor, seja partidário ou de discurso uniformizador (como o do antipetismo de 2016).

Mesmo sem ter um vencedor indiscutível, o cenário da maioria das capitais aponta para um último aspecto, esse sim com possíveis consequências para as próximas eleições presidenciais. Onde há segundo turno, geralmente há pouquíssimas chances para um candidato bolsonarista ou petista vencer o pleito. Na verdade, o PT já está mal em suas posições no primeiro turno, enquanto o antibolsonarismo é, no mais das vezes, maior do que o bolsonarismo nos principais colégios eleitorais municipais, tornando o segundo turno um túmulo para o jogo da polarização.

Todos os candidatos que disputam o favoritismo no segundo turno têm em comum o fato que estão se inclinando mais para o centro. Isso não define o que ocorrerá em 2022, porém traz duas consequências para o jogo futuro. A primeira é que, a despeito de Lula ser uma grande liderança nacional, o enfraquecimento do petismo no pleito municipal reduz sua hegemonia sobre as demais forças de esquerda e centro-esquerda. Além disso, o bolsonarismo parece ser incapaz de vencer segundos turnos em que há algum arranjo político mais centrista. A lógica da polarização parece não ser a tônica da eleição de 2020, e se isso se confirmar, as estratégias políticas para daqui a dois anos podem ser fortemente afetadas.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.


Marcus André Melo: A pandemia beneficiou os atuais prefeitos e vereadores?

Ao contrário de 2018, a eleição atual não produzirá surpresas

Há nas nossas eleições municipais uma característica singular —que não é exclusividade do nosso país— já investigada a fundo por pesquisadores, conhecida como “desvantagem do incumbente”.

O efeito é contraintuitivo pois o ocupante de um cargo pode utilizar os recursos diversos que dispõe —desde assessores à própria máquina pública— na disputa eleitoral. Isto explicaria as “taxas soviéticas” de reeleição para muitos cargos eletivos: em 2018, na Câmara dos Deputados nos EUA, a taxa de reeleição alcançou 96,7% (e ainda mais alta no nível local).

São múltiplos os fatores que explicariam as desvantagens para os incumbentes: nas democracias novas os que alcançaram o cargo sob o antigo regime gradativamente perdem poder; há muitas necessidades insatisfeitas; os partidos fracos são pouco informativos, convertendo a performance individual dos políticos na principal pista para o voto etc.

Nas eleições municipais deste ano, 3.082 prefeitos tentam a reeleição (55,3% do total), e só podem fazê-lo uma vez. Em 2016, 2.708 tentaram e pouco menos da metade —1.270, ou 46,8%— tiveram sucesso. Para os vereadores o quadro é mais vantajoso: 2/3 lograram reeleger-se.

Neste ano o quadro pode mudar: podemos esperar excepcional vantagem pró ocupantes do cargo. Sim, este é mais um dos efeitos da pandemia.

São várias as razões: o efeito “união de todos contra a emergência” beneficia quem já está no poder; os atuais incumbentes desfrutam de enorme exposição na mídia; lockdowns são obstáculos para os desafiantes; a campanha será mais curta.

Há também fatores negativos: situações de calamidade funcionam como lente de aumento sobre os ocupantes do poder executivo (não vereadores).

A maior vigilância se traduz em maior punição ao mau desempenho e mais premiação ao bom: os resultados dependerão do contexto.

O resultado líquido dessas forças contraditórias será que provavelmente os incumbentes terão mais vantagens que desvantagens, revertendo a tendência contrária.

Há no entanto uma variável nova na atual eleição cujo efeito é difícil de estabelecer: a proibição das coligações proporcionais. Ele já pode ser observado na redução de partidos na disputa eleitoral. O número médio de partidos passou de 14 para 7, como mostrou Guilherme Russo (FGV).

Por outro lado, o número de candidatos aumentou em 10% na média, e muito mais que isso nos municípios grandes, porque agora os partidos têm que alcançar o quociente eleitoral sozinhos, sem coligar-se.

A mudança já produziu também expressiva migração dos pequenos para os grandes partidos. Ao contrário de 2018, trata-se de reacomodação profunda, mas sem rupturas.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).


Política Democrática Online mostra falta de transparência no combate à corrupção

Destruição do Pantanal e estratégias de discurso de Bolsonaro também são analisadas na edição de outubro da publicação da FAP

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Brasil menos transparente no combate à corrupção, Pantanal destruído em meio ao desmonte de políticas ambientais no governo Bolsonaro, a retórica do ódio nas pregações do guru do Bolsonarismo e politização do combate à pandemia frente a perspectivas filosóficas dos governantes brasileiros. Esses são os principais destaques da revista Política Democrática Online de outubro, lançada nesta sexta-feira (16).

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de outubro!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza acessos gratuito a todos os conteúdos da revista em seu site. No editorial, a revista Política Democrática Online chama atenção para a urgente necessidade de “retomar o processo de convergência em torno de objetivos comuns: a defesa da democracia e a construção de uma plataforma mínima de reconstrução nacional”.

“Está em curso a consolidação da aliança entre o presidente da República e o bloco de deputados e senadores que responde pelo nome de ‘centrão’”, observa o texto. “Repudiada, no primeiro momento, pelos núcleos duros do bolsonarismo como capitulação frente à velha política, a aliança já rende frutos significativos ao governo e promete colheita ainda maior de resultados no futuro”, critica.

Em entrevista exclusiva para a nova edição da revista, o economista Gil Castello Branco, fundador e atual diretor executivo da Associação Contas Abertas, diz que o Brasil está menos transparente. A entidade fomenta a transparência, o acesso à informação e o controle social no país. Ele alerta que o país pode perder cerca de R$ 18 bilhões de recursos federais usados no combate à pandemia por conta da corrupção.

A reportagem especial, por sua vez, analisa como a destruição do Pantanal confirma retrocessos da política ambiental no governo Bolsonaro, o que, de acordo com o texto, é refletido também na declaração do próprio presidente e de seus ministros em defesa do “boi-bombeiro”. “A versão do governo não sinaliza, positivamente, para qualquer medida eficaz de preservação do meio ambiente no país”, afirma um trecho.

'Ética do diálogo'

Ao analisar a retórica do ódio e bolsonarismo, o professor titular de Literatura Comparada da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e ensaísta João Cezar de Castro Rocha aponta para a necessidade de se abraçar “a ética do diálogo, na qual o outro é sempre um outro eu, cuja diferença enriquece minha perspectiva porque amplia meus horizontes”. Segundo ele, esse é o primeiro passo para a superação da problemática.

A política nacional na pandemia é analisada pelo professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio. Segundo ele, Bolsonaro notabilizou-se, dentro e fora do país, porque politizou a pandemia da forma mais equivocada possível. “Desdenhou de suas consequências e principalmente dos mortos; recusou-se a colaborar com governadores e prefeitos no combate à pandemia, alegando falsamente suposta obstrução do STF [Supremo Tribunal Federal]”, exemplificou.

Aggio também avalia que Bolsonaro impediu a comunicação e a transparência a respeito do avanço e do combate à pandemia. “E, por fim, buscou, a todo custo, ‘abater’ politicamente seus supostos concorrentes às futuríssimas eleições presidências de 2022. Assim se comportou com dirigentes democraticamente eleitos e com ministros que ele próprio convocou como seus auxiliares”, lamenta.

Além desses assuntos, a revista Política Democrática Online também tem conteúdos sobre economia e cultura. A publicação é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado e tem o conselho editorial formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

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Zeina Latif: A insegurança jurídica grita a ouvidos moucos

É necessário liderança e vontade política para enfrentar a insegurança jurídica

Segurança jurídica significa estabilidade das relações judiciais, não havendo mudanças arbitrárias de leis e regulamentos, e nem de sua interpretação. Trata-se de um alicerce do bom funcionamento da economia. Quando as regras do jogo mudam sem critério e inesperadamente, a economia não floresce.

O Brasil sofre do mal da insegurança jurídica. Exemplo recente é a disputa judicial entre a prefeitura do Rio de Janeiro e a concessionária da Linha Amarela. No ano passado, o prefeito Marcelo Crivella mandou destruir cabines de pedágio após cancelar unilateralmente o contrato de concessão, por julgar o pedágio abusivo. O TJ do Rio concedeu liminares em favor da empresa. No mês passado, o STJ, em decisão monocrática, as derrubou.

Esse é um exemplo de populismo que penaliza a todos ao final. Reduz o interesse por investimento em infraestrutura e pressiona as tarifas, que tendem a ser mais elevadas para remunerar riscos regulatórios.

A insegurança jurídica tem raízes históricas: um Estado que nasceu autoritário, estabelecendo regras de funcionamento da economia de forma arbitrária e beneficiando grupos específicos, mas ferindo o bem comum. O resultado é a desconfiança em relação a governo, instituições e outros cidadãos. A sociedade desconfiada reage de duas formas. Por um lado, aumenta a demanda por regulação estatal para conter perdas. Um exemplo é a legislação trabalhista engessada – agora menos por conta da reforma de 2017 –, que embora bem intencionada, prejudica a produtividade do trabalho e a geração de empregos, com ônus elevado para o empregador e indiretamente para o empregado. Por outro lado, desrespeita as leis e regulações estatais, como na sonegação de impostos.

Essa é uma característica de países emergentes com democracia tardia. As pesquisas indicam, no entanto, que o Brasil está no extremo de disfuncionalidade nesse balanço de menor confiança da sociedade e maior regulação estatal. Destoamos pela maior insegurança jurídica.

Para acomodar tantos interesses em um país complexo, com muitas demandas dos diferentes segmentos da economia e da sociedade, a regulação estatal acaba sendo não apenas excessiva, como também ambígua e complexa, o que alimenta a judicialização. Ao final, a desconfiança é generalizada, incluindo a dos órgãos públicos em relação a empresas e indivíduos. Na dúvida, autua-se.

Os problemas se retroalimentam. O País parece preso em uma armadilha. Um Estado instado a agir, mas que se torna onipresente pelas minúcias da regulação e arbitrariedades. Uma sociedade que clama por ação estatal, mas ressente dos seus efeitos colaterais. Há também desvios éticos da sociedade quando há oportunismo de litigantes e da advocacia fomentando a judicialização. Fazemos parte da confusão, sem nos darmos conta.

O Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico aponta que o Brasil responde por 98% das ações cíveis contra companhias aéreas no mundo. Há até startups que ajudam os passageiros a processarem as empresas. Pena a criatividade mal direcionada. Decisões questionáveis criam jurisprudência, como a indenização de passageiros mesmo em caso de condições meteorológicas adversas e sem devida comprovação de dano moral.

O tamanho do contencioso tributário nas três esferas de governo estava em 73% do PIB em 2018, segundo Lorreine Messias, Larissa Longo e Breno Vasconcelos, sendo 16,4% do PIB o contencioso administrativo da União, contrastando com a média de 0,19% de Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica e México. Além de elevado, o contencioso tributário é crescente e a conclusão de um processo demora quase 19 anos em média, segundo o ETCO.

Além da ineficiência econômica, há riscos fiscais envolvidos. As demandas judiciais contra a União classificadas como perda possível estavam em 113% das despesas primárias em 2018 ante 48,5% em 2015.

É possível enfrentar a insegurança jurídica, mas é necessário liderança e vontade política. Não parece uma preocupação deste governo.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Vinicius Torres Freire: A teoria do esgoto de Bolsonaro e Russomanno

Problemas graves borbulham, podem ferver e país parece ainda mais anestesiado

Celso Russomano (Republicanos) é o candidato de Jair Bolsonaro e da Igreja Universal à prefeitura de São Paulo. Disse a empresários da Associação Comercial desta cidade que os moradores de rua podem ser “mais resistentes do que a gente” ao coronavírus. Como não pegaram Covid em massa, diz o candidato, talvez tenham a imunidade das ruas, onde “convivem o tempo todo” e não têm como tomar banho todos os dias.

Para dizer a coisa de modo sarcástico, é uma teoria higienista ao contrário. Existe “a gente” e existem “eles”, os sem-banho, talvez imunizados pela aglomeração em uma espécie de espurcícia salubre. É uma variante da teoria do esgoto, de Bolsonaro.

Em 26 de março, quando ainda estavam para morrer 150 mil pessoas de Covid, o presidente desta República esgotada dizia o seguinte: “… o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele. Eu acho até que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou meses, e ele já tem anticorpos que ajuda a não proliferar isso daí”.

Bolsonaro e Russomano devem se banhar em alguma fonte de sabedoria estranha para “a gente” que esperava alguma revolta ou pelo menos comiseração por causa do morticínio. A indiferença, quando não troça, não causa danos relevantes ao prestígio “deles”. Não há organização ou interesse políticos suficientes para cobrar consequências dessas barbaridades.

Os poucos sinais de ira manifesta e coletiva contra o governo se esvaneceram desde julho. Não houve tumulto social algum, menos ainda saques, o que é fácil de entender. Os auxílios emergenciais mais do que cobriram a perda de renda dos mais pobres, na média, embora pesquisas registrem o aumento do número de pessoas que padecem de fome e o emprego para o povo miúdo não venha reaparecendo.

Mesmo as tretas, sururus e indignações entre as elites se dissipam rapidamente, embora alguns de seus motivos continuem a queimar ou ferver nos subterrâneos. Assim que chegaram algumas chuvas, foram passando os protestos mais ruidosos contra as queimadas e outras destruições da natureza. Parece que faz tempo, mas foi no final de setembro que o governo e seu centrão anunciou com estrondo e cara de pau que financiaria um Bolsa Família encorpado com uma pedalada, com o calote dos precatórios.

Como não há oposição política organizada ou partidos políticos com alguma articulação social mais relevante e extensa, tais reações em parte se dissolvem na espuma das mídias sociais, onde a cada minuto há nova maré alta de sujeira e bobagem.

É ilusão de que tudo passa, porém. Parte da finança e da grande empresa se organizou para evitar danos maiores da política do mau ambiente de Bolsonaro, por exemplo. Por falar em finança, as taxas de juros estão quase no mesmo nível para onde pularam no anúncio da pedalada dos precatórios. A degradação financeira e a desconfiança no país estão borbulhando e podem ferver.

Decisões sobre assuntos centrais e urgentes da política econômica foram adiados “sine die”: se haverá burla do teto, se o talho de mais de meio trilhão no gasto federal pode provocar recaída econômica, se haverá “reformas”, se haverá auxílios para os famintos de 2021, sem emprego, se o Brasil será rebaixado à última categoria dos párias ambientais e diplomáticos etc.

O país está anestesiado, imune à indignação geral, talvez por ter se acostumado à aglomeração de sujeira juntada por governantes e candidatos bárbaros.


Alon Feuerwerker: Duas eleições. E as dúvidas entre o "se" e o "quando"

Não haverá debates, ou haverá poucos. A propaganda compulsória no rádio e na TV, dizem, atrairá bem menos interesse. O eleitor está tomado de preocupações relacionadas à pandemia da Covid-19 e à situação da (própria) economia. Há candidatos demais a prefeito, uma grande dispersão, o que provoca certo cansaço antecipado. E a campanha de rua e o corpo a corpo estão bastante limitados.

Bem, se tudo isso for mesmo verdade estas serão as eleições da inércia. E a inércia beneficia os mais conhecidos, quem está na frente nas pesquisas. E a grande dúvida: o que pode romper a inércia?

Um forte propulsor da tendência inercial são a homogeneização e pasteurização das candidaturas. O desfile dos nomes e suas propostas transmite certa sensação de "fim da história". Todo mundo propõe alguma modalidade de renda básica, mais dinheiro para as escolas, mais atenção para a saúde, subsídio ou gratuidade para o transporte, e por aí vai.

Eleições locais têm mesmo a tendência de serem essencialmente paroquiais, mas o grau previsto de paroquialidade destas apresenta uma contradição flagrante com o ambiente de polarização em que a sociedade brasileira já vem mergulhada há anos. Outra dúvida: a chegada da polarização nestas eleições municipais é uma questão de "se" ou de "quando"?

Bem, aqui cada um tem seu palpite, então lá vai mais um. Talvez estejamos diante do cenário não de uma eleição, mas de duas. Uma nos primeiros turnos repletos de candidatos, na maioria inexpressivos, com o eleitor desatento e desinteressado. Outra nos segundos turnos, quando o mano a mano irá, quem sabe?, impor automaticamente alguma polarização.

Joga contra a polarização, mesmo na eventual segunda rodada, o fato de a esquerda exibir muita fraqueza, numa escala inédita pelo menos nos últimos trinta e poucos anos. Até agora, a presença de candidatos competitivos da esquerda tem sido exceção. A praxe é a disputa mais provável estar entre as diversas correntes que se autonomeiam do centro para a direita que se declara como tal.

Claro que sempre é possível uma reviravolta, mas talvez seja sinal de que a vitória de Jair Bolsonaro em 2018 tenha sido mais estratégica que circunstancial. A dispersão das candidaturas de esquerda explica apenas parte do quadro. Tirando as exceções, mesmo a soma das intenções de voto do chamado campo progressista está abaixo de desempenhos anteriores.

Outra variável a checar será a influência dos padrinhos nacionais. Outro palpite: ela tende a ser bem menor na eleição municipal que na presidencial.

Vamos então olhar o desenrolar dos acontecimentos. E vamos olhar também para o pós-eleição. Quando o eleitor finalmente se deparar com o provável cenário combinando 1) o fim do auxílio emergencial (mesmo os programas cogitados para substituir não parecem tão apetitosos assim), 2) o possível aumento de impostos, 3) a inelasticidade do desemprego.

Aguardam-se as consequências. Também aí a dúvida está entre o "se" e o "quando".

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Bruno Boghossian: Efeito do apoio de padrinhos é incógnita na eleição da pandemia

Transferência de votos de políticos populares para afilhados ainda é duvidosa

Na largada da campanha na TV em 2012, Fernando Haddad aparecia no segundo pelotão de candidatos em São Paulo, com apenas 8% nas pesquisas. O petista precisou de 45 dias nas telas para colar sua candidatura à imagem do ex-presidente Lula e chegar aos 29% que obteve nas urnas no primeiro turno.

A transferência de votos de um padrinho popular para um afilhado relativamente desconhecido é uma aposta antiga da política. O fenômeno já elegeu prefeitos e presidentes, mas é tratado como incógnita na disputa municipal deste ano.

Em São Paulo, Celso Russomanno (Republicanos) quer mostrar na TV a imagem de Jair Bolsonaro a seu lado nos primeiros dias do horário eleitoral. Embora o presidente seja rejeitado por quase metade dos paulistanos, o candidato decidiu jogar suas fichas nessa relação para tentar reverter seu histórico de fracassos em disputas majoritárias.

O potencial eleitoral de Bolsonaro neste ano pode até não ser desprezível, mas o resultado de seu apoio ainda é duvidoso –principalmente numa campanha curta e no caso de candidatos que já são conhecidos das populações locais. Esta é a situação de Marcelo Crivella (Republicanos), que precisaria de um milagre para desfazer os 59% de rejeição captados pelo Datafolha no Rio.

Mesmo no Recife, onde o líder das pesquisas carrega o sobrenome do ainda popular ex-governador Eduardo Campos, os efeitos do apadrinhamento direto são relativos. João Campos (PSB) ainda não conseguiu atrair a maioria dos eleitores que aprovam as gestões do prefeito Geraldo Julio e do governador Paulo Câmara, ambos de seu partido.

Já o PT, que tem em seu portfólio as eleições de Haddad e Dilma Rousseff, parece enfrentar dificuldades. Na disputa paulistana, Jilmar Tatto depende do apoio de Lula para sair do patamar de 1% das intenções de voto. Além de ter apenas 35 dias na TV e no rádio para se vincular ao padrinho, ele vê Guilherme Boulos (PSOL) ocupar o espaço da esquerda na estreia da campanha oficial.


Ricardo Noblat: Candidatos a prefeito de capitais que apoiam Bolsonaro começam mal

Cresce em São Paulo a rejeição a Russomanno, e no Rio a Crivella

A segunda rodada de pesquisas Datafolha sobre intenção de voto para prefeito em quatro das 10 capitais mais populosas do país só trouxe más notícias para o presidente Jair Bolsonaro. Candidatos apoiados por ele, ou que poderão vir a ser, ou que simplesmente invocam seu apoio inspiram preocupação.

O deputado federal Celso Russomanno, em São Paulo, não só caiu dois pontos percentuais como sua rejeição aumentou oito pontos. Ainda lidera, com 27% das intenções de voto, contra 21% de Bruno Covas (PSDB), o atual prefeito. Mas o grupo de eleitores que disse não votar nele de jeito nenhum saltou de 21% para 29%.

Essa parece ser a sina de Russomano sempre que disputa uma eleição majoritária. Costuma sair na frente, mas começa a cair, a cair até ser ultrapassado e ficar fora do segundo turno. A história poderá repetir-se. Covas manteve-se estável. Guilherme Boulos, do PSOL, demarcou-se de Márcio França (PSB). É o terceiro colocado.

O eleitorado de esquerda na capital paulista dá sinais de que prefere Boulos (12%) a Jilmar Tatto, do PT, um dos lanterninhas da pesquisa com 1%. Boulos é o candidato que tem atraído mais novos seguidores nas redes sociais. Ali, ele tem procurado compensar seu pouco tempo de propaganda na televisão.


Rosângela Bittar: Arranjos de mão dupla

Um arranjo de mão dupla demonstrará o efeito do apoio de Bolsonaro a Russomanno

Que Jair Bolsonaro tem rara capacidade de transferir votos, não há dúvida. Elegeu três filhos em colégios eleitorais distintos e um sem-número de desconhecidos coronéis, capitães e majores, País afora. O outro líder nacional com essa capacidade é Lula, provisoriamente contido pelas circunstâncias.

A disputa pela Prefeitura de São Paulo tornou-se campo ideal para efeito demonstração deste bolsonarismo por patrocínio. Será um verdadeiro recenseamento, com precisão estatística. Não importa a falta de homogeneidade, cada bolsonarista sabe precisamente o seu tipo.

Alguns são remanescentes do encantamento pelo já superado discurso de combate à corrupção; outros por serem apaixonados pelo porte e potência das armas; uns da direita sectária; outros, terrivelmente militantes religiosos. Todos pela adesão irrestrita ao seu profeta.

Celso Russomanno (Republicanos), cansado de insistir em derrotas sucessivas, precedidas por triunfais pole positions em pesquisas eleitorais, viu no apoio do presidente a chance de dar uma identidade à sua candidatura. O esquema agradou a Bolsonaro, que havia liquidado seus grupos organizados em São Paulo de quem se afastou com desdém ao chegar à Presidência.

Um arranjo de mão dupla demonstrará o efeito deste apoio. No primeiro, Russomanno é o beneficiário. Tenta empurrar Bolsonaro, em seu lugar, no ataque ao seu adversário direto, Bruno Covas (PSDB), ao mesmo tempo em que força a transformação do presidente em alvo. Nas últimas 48 horas, Russomanno insistiu mil vezes que a coligação de Covas é a frente paulista anti-Bolsonaro. O presidente, popular e fortão, segue na frente, e o candidato a prefeito fica um passo atrás, livre das escaramuças.

Outro efeito em teste é a inversão da roda da ciranda. Neste, o beneficiário é Bolsonaro. Russomanno torna-se o símbolo do eleitorado cujo voto foi a ele transferido e porta-estandarte do bolsonarismo em São Paulo. O eleitorado o acompanha, mas exige que proteja Bolsonaro e use a máquina a seu serviço. Russomanno, de patrocinado, passa a patrocinador.

Kassio com K. Sem ilusões: todos os passos amistosos do presidente Jair Bolsonaro em direção ao Supremo Tribunal Federal têm um único e fisiológico objetivo. O de proteger o primogênito Flávio Bolsonaro.

A preocupação com este filho é obsessão e determina a relação do presidente com os tribunais superiores. A indicação de Kassio Marques, negociação conduzida por 01 para a vaga do decano Celso de Mello, integra este conjunto de providências objetivas.

Desagradou a três alas de apoiadores do presidente e satisfez a outras três. Os que esperneiam são originários do lavajatismo convertidos ao bolsonarismo; são os líderes evangélicos que já saboreavam a vaga; e os radicais ligados ao inacreditável Olavo de Carvalho, que ainda teima em influenciar o governo com gritos e palavrões.

Já os três grupos que aprovaram a escolha têm outras motivações. O apoio da Ordem dos Advogados foi corporativista, sem peso político ou ideológico; o Centrão vislumbrou também proteção aos interesses amplamente conhecidos; e um terceiro grupo gostou porque se sentiu aliviado. Temia que o escolhido tivesse um perfil de lobisomem, alguém incompatível com os ritos, linguagem e notável saber jurídico.

Na história recente do Supremo cita-se muito o caso de Luiz Fux, o novo presidente. À maneira carioca, o então surfista juiz minimizou, numa conversa com o então ministro José Dirceu, os riscos judiciais a que o mensalão expunha o governo Lula. “Deixa que eu mato no peito.” Um aceno não cumprido que, por isso mesmo, pertence aos registros da memória.

Caboclo nordestino, o mínimo que os aliados do governo esperam do piauiense Kassio Marques é que, se prometeu alguma coisa, cumpra.


Bernardo Mello Franco: Soldados de Bolsonaro

Jair Bolsonaro jurou que não se envolveria nas eleições municipais. Bastaram três dias de campanha para ver que essa promessa também ficará pelo caminho.

Embora não tenha conseguido criar seu próprio partido, o presidente já mergulhou nas duas disputas mais importantes do país. No Rio e em São Paulo, vai apoiar candidatos do Republicanos (ex-PRB), sigla do centrão ligada à Igreja Universal.

Na capital paulista, Celso Russomanno iniciou a campanha com uma visita a Bolsonaro no hospital. Ontem usou a primeira agenda de rua para prestar continência ao capitão. Disse que ele foi o único político a “estender a mão” aos pobres na pandemia.

Ao oficializar a chapa, o deputado já havia exaltado o trinômio “Deus, Pátria e Família”. O lema pertenceu ao integralismo e foi ressuscitado pelo bolsonarismo, neto bastardo do movimento de ultradireita dos anos 1930.

No Rio, Crivella já deixou claro que fará de tudo para colar na imagem de Bolsonaro. No fim de semana, ele divulgou uma fotomontagem ao lado do presidente. Ontem sua campanha lançou o slogan “Bolsocriva”.

O truque é uma imitação canhestra do “Bolsodoria”, usado por João Doria na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes. Em 2018, a fusão de sobrenomes funcionou. Agora ninguém atreve a convidar governador e presidente para o mesmo palanque.

Derrotar o PSDB de Doria é a obsessão de Bolsonaro em São Paulo. Por isso o presidente montou na sela de Russomanno, que ganhou fama de cavalo paraguaio em eleições paulistanas. Em 2012 e 2016, ele largou na frente e acabou fora do segundo turno. Agora conta com a ajuda do Planalto para se manter no páreo até o fim.

No comitê de Crivella, a aliança é vista como tábua de salvação. Mal avaliado pelos cariocas, o prefeito tentará nacionalizar a disputa e deslocar o debate para temas de comportamento.

Russomanno e Crivella estão longe de serem bolsonaristas de raiz. Os dois apoiaram Dilma Rousseff, e o bispo chegou a ser ministro da ex-presidente petista. O capitão sabe disso, mas precisa de soldados dispostos a defendê-lo.