eleições 2018

Folha de S. Paulo: Está havendo intolerância grande no Brasil, diz FHC

“Se eu pudesse reviver a história eu tentaria me aproximar não só do Lula, mas de forças políticas que eu achasse progressistas em geral.”

Há quase 10 anos, convidei o Presidente Fernando Henrique Cardoso para fazer um documentário, o “Quebrando o Tabu”. Além de motivações pessoais, como inconformismo perante a situação nas comunidades, uma das fagulhas do filme, foi o relatório da comissão criada pelo ex-presidente que apontava a relação entre drogas e democracia. Do relatório surgiu a ideia para o convite em fazer o filme. Foram alguns anos trabalhando junto com o ex-presidente, entrevistando 168 pessoas em 18 cidades, de presidentes como Bill Clinton, até dependentes, seus pais, traficantes e policiais. A motivação de tudo, sempre foi a busca da liberdade, lucidez e humanismo. A partir do cenário cada vez mais tenebroso que nubla o nosso país, resolvi externalizar minhas preocupações e convidar FHC para uma conversa sobre ameaças à Democracia para o meu Blog na Folha de S. Paulo e canal de youtube, onde a entrevista abaixo pode ser encontrada na integra e em vídeo.
Por Fernando Grostein Andrade, da Folha de S. Paulo
 
Fernando Grostein Andrade – A Comissão Latino-Americana de Drogas e Democracia que o senhor fundou com Zedillo e Gaviria produziu um relatório onde um dos grandes pontos era a guerra às drogas como ameaça para a democracia. Anos depois, no Rio de Janeiro, tropas militares estão assumindo o controle. Muita gente colocando que isso faz parte de uma manobra populista do presidente Temer para buscar os votos do Bolsonaro, que apela para uma atitude mais autoritária. Por outro lado, tem circulado na internet vários manuais de como a população negra e afrodescendente deve se portar em situação de revista. Inclusive notícias circulando também de que caso um militar mate algum civil ele não vai ser julgado por vias normais, mas por tribunais militares. O senhor colocou como uma das suas motivações para ser presidente, o combate à ditadura. Será isso uma ameaça à ordem democrática? Em especial porque o General Braga Neto colocou que o que está acontecendo no Rio de Janeiro é um laboratório para outras experiências em outros estados.
FHC – Olha de fato quando comecei a mexer com essa questão de políticas de drogas, minha preocupação era com a democracia. Porque tenho muita ligação na Colômbia, no México, e assisti, em parte, o que estava acontecendo. Pouco a pouco, os narcotraficantes foram tendo influência política. Pablo Escobar é o maior símbolo disso. Mas não é só ele, e nem é só lá. O Brasil ainda não tinha chegado a este ponto, mas está começando. Você vê no Rio de Janeiro a penetração. Não só no Rio. Se você pegar São Paulo, que é uma coisa bem diferente no aspecto público do Rio, no aspecto prisional, o controle das penitenciárias em largas medidas é também penetrado pelo PCC. E o PCC se transforma para os grupos de narcotraficantes e para as suas famílias, numa associação de ajuda mútua. Você devia estar presente nessa conversa, no Rio de Janeiro, [nas filmagens do Quebrando o Tabu] com uma senhora: “Olha, eu tenho lá em casa dois filhos. Um está no crime, o outro não. Eu não recebo nada do que está no crime. Eu sou contra. Um tem caráter e o outro não tem.” Na visão dela. Pois bem, agora ela me diz: “Quando a polícia chega, a polícia bate no que está no crime, no que não está e em mim.” Então não cria a relação de confiança. O que está acontecendo agora não é a primeira vez. Apelo às forças armadas. A primeira sensação é de alívio, porque você põe as tropas na rua. Subjetivamente as pessoas se sentem mais seguras. É possível que os próprios bandidos recuem em um dado momento. Mas por quanto tempo? Tem um jogo de espera. Sabem que num certo momento as tropas vão embora, e tudo volta a ser como antes. Ou seja, tomam uma decisão de longo prazo em que as pessoas ganhem confiança de que aquilo vai ser para valer? E me disseram que no Rio de Janeiro muitos regimentos recebem mesada do crime.
 
Fernando: Regimentos do exército ou da polícia?
Da polícia. O exército não, o exército tem medo de ficar muito tempo por isso também. Não pensem que os militares querem o que está acontecendo. Não querem, porque eles sabem que é difícil que dê certo e se não der certo vão jogar nas costas deles. No começo é aplauso e depois é pedra. Não querem. Por que que o governo toma decisão? Eu não gosto de atribuir intenções, eu não sei as intenções. Bom, por quê? Porque situações de tal dramaticidade, e a crença na autoridade é tão baixa, que foi a busca de um símbolo. Vai dar certo, não vai dar certo? Difícil, porque, tenho que dizer que aquilo é temporário. E tá marcado. O governo também tem tempo, termina no fim do ano. Então as pessoas ficam na dúvida. Aí, nesse meio tempo, essa outra questão que você mencionou. Dizem que há entre 10 a 15 mil fuzis nas mãos do narcotráfico, isso é uma força militar. O outro lado é militar também, mas se ele matar na briga, vai ser julgado como se fosse assassino. É complicado para o militar, tem que entender a situação, porque o outro tá armado e vai atirar, um lado pode atirar e o outro não vai? Ao tomar essa decisão, é preciso pensar no conjunto das questões. Então é um julgamento complicado. Tem que discutir com a população para entender do que se trata. Porque senão é muito fácil ficar do bom lado. Mas e o que está sofrendo a bala perdida? E o estudante que a escola é interrompida a toda hora? É complicado isso aí. O problema é que os narcotraficantes dominaram certas áreas. E começa a entrar na vida política. Que aconteceu na Colômbia e em menores casos em outros países, mas aconteceu também. Vai acontecer no Brasil, está acontecendo. O tribunal eleitoral proibiu o uso de dinheiro das empresas, quem é quem tem dinheiro? É narcotraficante, as igrejas têm, que é do dízimo. Vão poder usar o dinheiro. Enfim, a democracia tem que prestar atenção a tudo isso.

Fernando Grostein – Mas você acha que foi uma boa medida ou uma má medida? Ela tem o seu apoio como ex-presidente?
FHC – Eu procurei alertar quem eu podia, de que era uma medida complexa que era melhor, antes de tomá-la, pensar bem. A polícia entra em greve. No Ceará houve isso, e pegam as armas. Ou você manda outra arma para dar conta ou não tem jeito. No Rio não foi esse o caso. Não é a polícia se rebelando, é a questão dos Narcotraficantes.
Fernando Grostein – Me preocupa, nas coletivas de imprensa, para fazer perguntas ao exército, os jornalistas tinham que se cadastrar por escrito. Uma reportagem na Folha de S. Paulo foi impedida de acompanhar uma operação do exército porque segundo os militares estavam intimidando o trabalho do exército, a presença da imprensa. E acho que pela primeira vez agora temos um militar como ministro, não é?
FHC – Não é bem assim. Ele é secretário geral e foi nomeado ministro enquanto não nomeiam outro. Então não é bem isso, ele é secretário geral do ministério de defesa, tem que ser um militar. Isso é uma questão mais simbólica.
Fernando Grostein – Pensando na nossa democracia, muita gente vê no impeachment da presidente Dilma uma ruptura da ordem democrática, chamando inclusive de golpe. De um lado, setores que queriam estancar as investigações da Lava Jato. Nas palavras do senador Romero Jucá, estancar a sangria. Fazer aquele grande acordo nacional para colocar o Temer. Teve alianças de grupos que pediam a volta do regime militar. E o motivo do afastamento dela, pedaladas fiscais, já ocorreu em outras épocas. Ou seja, um impeachment bem diferente do que aconteceu com o ex-presidente Collor. O senhor enxerga uma ruptura da ordem democrática? A democracia brasileira foi abalada ou ela continua sólida?
FHC – Eu custei muito tempo a aceitar a ideia do impeachment do presidente Collor, Ulysses Guimarães também. Por que é que nós relutamos nisso? A acusação era a básica. Eram duas. Uma, ele tinha recebido um Fiat Elba de presente. O outro é que havia aquele PC Farias, que faria concessões de favores caso houvesse dinheiro. Por que relutamos no começo, eu especificamente. Porque impeachment é sempre um trauma. Na verdade, o que leva ao impeachment, é a paralisação do governo. Agora, pela lei, tem que haver uma infração de ordem constitucional. O presidente Collor renunciou no último momento, mesmo assim fizeram o impeachment. Porque ele tinha perdido bases de legitimidade, não aceitavam mais o comando dele embora não tivessem apurado completamente a questão da legalidade constitucional do impeachment. Então, como ele tinha essa acusação do Fiat Elba, isso foi levado ao supremo tribunal federal. E ele ganhou. Por três a dois. E um dos votos a favor dele foi o Sanches. Por que que ele votou a favor dele em um caso e comandou o outro? Eu vi o Sanches falar isso na televisão. Porque, diz ele, não estava caracterizado como corrupção. Caracterizou uma quebra do decoro. Não é decoroso que um presidente receba um presente, agora, não havia lei. Mas havia outra questão. O que que ele deu em troca? Nada. Então não tem como caracterizar, aquilo foi um erro funcional, quebrou o decoro. Então você vê que a base para o impeachment do Collor foi frágil. E não obstante seguiu a lei. O da Dilma foi a mesma coisa. A causa real do impeachment, foi a perda de confiança da sociedade que se reflete no congresso. Não é o pretexto. Tem que haver além disso alguma coisa constitucional. Você disse que isso foi prática antiga. Não é certo. Foi dito pelo PT e não é verdade. No caso da Dilma houve a abertura de crédito de 50 bilhões de reais. E isso foi protestado, o pessoal do tesouro se rebelou, mandou documentos mostrando que era ilegal, etc. 50 bilhões. E o dinheiro não foi pra ela, foi usado para pagar os programas sociais. Mas foi usado o dinheiro que era dos bancos privados, o meu dinheiro, o seu, para fazer funções do estado, o que não pode, a lei não permite. O que houve no passado foi coisa pequena, 1 milhão, 2 milhões, era acerto de contas. Não houve a reiteração de um ato de respeito à constituição. Portanto havia razões objetivas pro impeachment. Foi por isso que ela caiu? Não. Ela caiu porque deixou de governar. E a sociedade ficou contra. É ruim? Todo processo de impeachment é traumático. Eu tenho um amigo muito gaiato que me disse “Fora Temer!” E por que vai dizer isso para mim? Você que votou nele. Quem votou no Temer são os que gritam “Fora Temer” hoje. Então é complicado. A situação do vice-presidente que assume depois de um impeachment é delicada. O que aconteceu no governo de Itamar Franco? Primeiro o Itamar pediu a união nacional logo. E forçou a Erundina a ser ministra, contra a opinião do PT que era contra também. Mas ela topou e foi. Depois, o começo do governo de Itamar foi muito difícil. Eu fui para o ministério da fazenda, você não imagina a quantidade de greve que nós tínhamos. E para vir para São Paulo, o policiamento era enorme. Porque o pessoal era contra. E de repente ficaram a favor. E por quê? Por causa do plano real, que parou a inflação. O que legitimou o governo foi o fato de que ele teve bons resultados na questão da inflação. Suponha que o governo Temer tenha bons resultados na questão do Rio de Janeiro. Muda tudo. Mas não vai ter, porque o resultado da inflação, você sente na hora. E no Rio é um processo longo, não vai acontecer isso.
Mas acho que o impeachment é sempre traumático. Nos dois casos, não são diferentes. Do Collor e da Dilma. Os preceitos constitucionais foram seguidos. Havia infração mas havia além do mais uma sanção política. É insustentabilidade política e até certo ponto social do governo. Então, “ é golpe, é golpe, é golpe”, cadê o golpe? Qual é a liberdade que em consequência disso foi tolhida? Não houve. E hoje quem fala que é golpe pode falar, mas não tem efeito. Não mobiliza a gente porque não é verdade. Não é que não tenha sido traumático, foi. Eu sou contra o sistema presidencialista. Fui presidente, mas sou contra porque sei o que significa isso, a dificuldade de governar. Venho de uma [época de] regime autoritário. A mudança foi total. Você tem liberdade de imprensa plena. Você me pergunta o que você quer, eu te respondo o que eu quero. Isso vai pro youtube, espero que milhões de pessoas vejam. Isso tem pra todo lado. Tem fake news? Tem, mas isso no mundo todo, é assim. Você não tem medo. Quando você tem um regime realmente autoritário, quando toca a campainha na sua casa, de noite, você leva um susto. Você não sabe se é a polícia quem vem. Aqui a polícia não faz assim. Quando fui eleito, na hora da pesquisa, veio alguém dizendo “Você ganha a eleição sozinho”, e era o Lula do outro lado. Sozinho quer dizer o que? Partido não tá nem aí, é você quem ganha. Como o Lula ganhou. Não foi o PT, não foi o PSDB, foi o Lula e fui eu. É o sistema errado, mas é o nosso personalismo. Vou voltar para cultura. Eu digo: “Bom, eu ganho e como é que eu governo?” Tinha umas discussões dificílimas. O PSDB poderia ganhar a eleição sem alianças? Fazer alianças. Por quê? Ganhar eu ganho, como é que eu governo? Tem que ter a maioria. Então nós estamos numa situação no Brasil paradoxal. Os partidos são fracos, vou a esse ponto. Uma enorme multiplicidade de partidos, mas o congresso é forte. O presidente que não tome em consideração o congresso, ou paralisa ou cai. Quando você tem, nós fizemos aliança com o PFL, o que na época era dificílimo, que o PFL era parte da arena que se rebelou contra o regime militar no fim.
Fernando Grostein – Com fortes laços com corrupção?
FHC – Na época nem tanto. Na verdade, o PFL tinha, no decorrer do tempom, menos corrupção que o PMDB, até hoje. Mas ficou com a imagem. Curioso isso, mas não tem. Difícil saber quem tem mais e quem tem menos. Mas não é um partido corrupto. Não ficou marcado assim. Problema não era esse, era partido que tinha apoiado o governo militar. O Sarney que era um dos fundadores foi para o outro lado e entrou para o PMDB. De qualquer maneira fizemos o acordo e forcei o PMDB a me apoiar também. Os deputados descobriram o seguinte. “Olha, se eu faço um partido, eu entro na divisão do bolo mais facilmente”. Então hoje nós temos 28 partidos. Não há 28 posições ideológicas no mundo. Não são partidos, são agregados de pessoas que tem interesse e usam o tempo de televisão, o recurso que vem do governo para eles, e pedaço do poder. Então virou uma colcha de retalhos. É um erro institucional. Enfraquece a democracia, o povo olha e não gosta. Bom, por trás disso tá nossa cultura, que não é democrática. E é mais difícil mudar nossa cultura do que mudar as instituições. Qual é a cultura que não é democrática? É a cultura do favor, do compadrio. Isso resulta, no nosso caso, em corporativismo e em patrimonialismo. Porque nossa cabeça é corporativista. A nossa cultura é assim. E a ideia que está expressa na constituição, como é normal em qualquer democracia. “Todos são iguais perante a lei” é só uma ideia, não é a pratica. É uma mudança de comportamento. Os abusos que nós assistimos no Brasil tem a ver com instituições e também com abuso de comportamento. Impunidade. “Eu sou poderoso, eu posso roubar e não vou ser descoberto nunca. Eu tenho que fazer favor aos meus amigos, tenho que ajudar meu filho a ganhar dinheiro, tenho que ajudar meu partido, tenho não sei o que.” A cultura brasileira tá mudando. Lava Jato é a expressão dessa mudança. Eu sou muito a favor do Lava Jato. Não tô dizendo que não posso ter feito erros, abusos, isso é outra coisa. Vocês são de outra geração. Eu ainda tinha na casa de meus pais, meus avós, pessoas que tinham sido escravos do meu bisavô. Ou filhos de escravos do meu bisavô. Imagina o que pesa isso na cabeça e comportamento das pessoas. Eu sou de uma geração em que não era de bom tom que um menino jovem falasse, especialmente sendo homem, se dirigisse aos empregados. Dizia em abstrato o que você quer, e eles vêm e te servem. Mudar essa cabeça é muito complicado.
Fernando – Recentemente saiu uma pesquisa que o Brasil tem a maior população de empregados domésticos do mundo e que se somar a quantidade de empregados domésticos dá a quantidade de população da Dinamarca.
FHC – Certamente. E você vai na favela, tem empregados. É uma loucura. A cabeça nossa é essa. Quem viveu no exterior aprende que não é fácil. Não pode ser assim. Tem que fazer certas coisas. Essa questão da divisão do trabalho doméstico do homem com a mulher, não tá na nossa cabeça. Agora com a nova geração já está. Na minha geração não tava. Eu não sei pegar em criança até hoje, pequenininha. Tá errado. Mas você tem que ver a vida do jeito que ela é. A cabeça nossa foi formada de outra maneira. Quem vive no exterior aprende que não é assim. Tem que ter certa autonomia. Você faz as coisas. É a cultura brasileira e ela não é democrática. Como se muda uma cultura? Com tempo e exemplaridade. Quando terminei o governo fui para a França. Fiquei no apartamento de uma amiga que dizem que é meu até hoje. Não é infelizmente. Peguei emprestado lá um tempo. E como a embaixada te oferece condução. A Ruth teve a formação pessoal mais democrática do que a minha. Mas nós íamos de metrô. Eu precisava do metrô? Não. Eu tava me educando. Porque senão você se acostuma com a mordomia. Não é fácil. Nossa cultura tem que mudar, ela não é democrática.
Fernando – Você acha que é isso que explica o fato de que Bolsonaro está em primeiro nas pesquisas para presidente. Um candidato que já defendeu o assassinato do senhor, o fechamento do congresso…
FHC – Ele tá expressando um sentimento que tá na rua. Que é o da ordem. Porque a pessoa tem medo. A insegurança é muito grande. Isso não é uma questão de direita. Isso é uma questão da vida. E eu acho os candidatos tem que responder essa demanda. Eu não conheço Bolsonaro. O que ele vai fazer com o câmbio? Com a questão de educação? Com a saúde? Isso que conta. Ele não disse nada.
Fernando – Qual o risco que você acha que o Brasil corre se um cara desse for eleito?
FHC – Em primeiro lugar tem o risco de o que que vai fazer com o governo. Não se sabe. Não tem experiência de governo. Nunca teve compromisso. Tá mudando de partido agora. Outro dia perguntaram sobre o Ciro. Quis ser gentil, até digo “Olha, mudou de muitos partidos, ele ziguezagueia muito.” Eu acho que as pessoas têm que ter um pouco mais de coerência pra vida. Você sabe, previsibilidade o que vai fazer. Pega o Lula, eu sei o que ele vai fazer. Bem, não sei. Mas eu sei que o Lula tem marras. Ele foi do sindicato, ele tem o PT. Ele tem uma coisa consistente. Posso tá a favor ou contra, mas existe né. Pega o PSDB, também tem. Menos, mas tem. Consistência. Como é que pode surgir um novo? Pode, deve surgir um novo. É bom que surja um novo. Como aqui me atribuíram muito que eu estava apoiando o Luciano [Huck]. Por quê? Você sabe, sou amigo dele, gosto dele. Ele tem noção da vida e traria um componente desse tipo. Eu sou do PSDB, não vou sair do PSDB e nem vou votar em alguém que não seja. Mas eu acho que um novo melhora o conjunto dos candidatos. Mesmo que ele não ganhe. Melhora. Precisa arejar mais a vida. Dificuldade. É difícil pro novo governar. “Mas o Macron”, pô o Macron não é novo. Foi ministro da Economia. Foi professor de filosofia. Foi assistente do Paul Ricœur que é dos melhores pensadores da França. Bom, quem que é novo? O Trump. E olha o que tá dando? Só por que é novo é bom? Não. Não basta ser novo, tem que ter ideias. Mais do que ideias, tem que ter práticas. Daí é importante o debate político. Acho que a razão pela qual as pessoas apoiam o Bolsonaro é porque ele tá levantando um tema que é real, que é o da insegurança.
Fernando – Você não acha irresponsável o Banco BTG que inclusive teve um sócio preso nos escândalos da Lava Jato abrir um espaço para Bolsonaro dar uma palestra?
FHC – Eu acho.
Fernando – Depois tem o economista que nem o Paulo Guedes que endossa um programa econômico liberal sendo que o Bolsonaro é estatista. Você acha que existe um certo desespero não só da população, mas do mercado financeiro?
FHC – Medo, é o mesmo medo. Porque o mercado financeiro vive vendo fantasmas né? Eu digo ha muitos anos, o mercado financeiro especialmente, não entende a política e a política não entende o mercado financeiro. É uma conversa de surdos. E quando um entra na área do outro faz bobagem. É o que tá acontecendo, faz bobagem. Pra que convidar alguém que tem esse tipo de pensamento?
Fernando – Recentemente o presidente Lula deu uma entrevista na Folha de S. Paulo em que ele falou que “eles” não queriam que ele governasse. Ele foi interpelado pela jornalista Monica Bergamo que falou: “Mas como assim? O senhor teve de certa forma o apoio da elite, principalmente no começo de seu mandato.” Na sequência o presidente Lula rebateu dizendo que se referia aos yuppies do mercado financeiro. É disso que você estava falando?
FHC – Veja, o mercado financeiro é importante. Hoje, todos somos capitalistas, talvez com a exceção da Coreia e um pouco de Cuba, China tem bancos e tudo mais. Você precisa de banco. O banco tem uma função importante no sistema de acumulação, de distribuição e tudo mais. Mas o que ele não pode é pensar que ele é o todo. Ele não vai resolver o problema dos pobres. Não. Esse é o governo. Você não pode imaginar que o mercado resolva as coisas que são próprias do outro setor. Assim como disse que o outro setor quando se mete a resolver as coisas financeiras, vai fazer bobagem. Acho que o Lula é uma pessoa rápida, competente. Ele sabe, tá falando para o público. Ele sabe, o que ele fez? Meirelles o que que era? Hoje é ministro do que?
Fernando – Foi deputado do PSDB, ministro, presidente do Banco Central no governo dele…
O tempo todo foi apoiado por ele. Lula acha que o Meirelles tem competência nessa área. Tudo bem, mas o Lula não vai fazer a bobagem de imaginar que essa área vai resolver o problema dos sem-terra. Ou da bolsa-escola, porque não vai. Nós no Brasil polarizamos. Eu não conheço Paulo Guedes, mas pelo que leio ele acredita que basta liberalizar que tudo se resolve. Tá na lua né?
Fernando – Menos as drogas.
FHC – No caso dele, menos as drogas.
Fernando – O senhor foi testemunha de defesa do presidente Lula nos processos da Lava Jato. E hoje em dia tem uma forte onda de anti-petismo que quase tira a dignidade de quem se declara do PT. Como você vê isso dentro do jogo democrático?
FHC – Eu acho que isso é negativo pro jogo democrático. A democracia supõe um certo grau de tolerância a adversidade. Nós falamos de cultura e comportamento. As pessoas têm que ter uma personalidade democrática. Eu sei que não basta. Precisa ver instituições, a lei que obriga e tal. Mas a democracia é o governo da pluralidade, da diversidade. Se você considera que o seu adversário é o seu inimigo, você vai matar o seu inimigo. Não é democrático isso. Eu acho que está havendo uma intolerância grande no Brasil. O PT semeou a intolerância, lá atrás. Comigo foi um horror o tempo todo, como se eu fosse agente do capital, essas coisas. Mas não importa, embora tenha semeado, estão colhendo tempestade. Eu sou contra tempestade. Eu fui almoçar com o Haddad, que era prefeito. Depois eu e ele fomos assistir uma ópera no municipal. Eu fui de propósito, porque tava todo mundo tão anti-petista. Olha aqui, você pode ser anti o que seja, mas você deve ter relação civilizada e deve aceitar o outro. Não precisa concordar com o outro. Você pode discordar do outro, mas nem por isso você considera que o outro é o inferno, o inimigo. Esse sentimento existe, tá corroendo a democracia brasileira. Eu não sou favorável a isso. Eu acho o PT um partido que representa o setor. Tem seu papel. Não vou votar no PT, nunca votei no PT. Discordei da formação por razões ideológicas e teóricas. Eu achava naquela época que era um partido que tinha inspiração Leninista. Que no fim acabou sendo muito mais Gramsciano, uma mistura esquisita de Gramsci com Lenin. Vou impor a minha hegemonia pela cultura, pela dominação cultural. Mas então eu não concordo com isso, mas isso não quer dizer que ele não tenha um significado. E que você vai eliminar… Não vai eliminar. O PSOL vai crescer às custas do PT. Porque o PT ficou mais abalado. E não foi abalado pelo que fez no governo, mas pelo que fez de errado. Corrupção e tal. Foi o único? Não foi. Mas os líderes do PT têm a responsabilidade de terem institucionalizado isso. Dizem que corrupção também teve no meu governo. Provavelmente sim, mas eu nunca fui parte disso. Nunca apoiei. Eu posso não ter tido força para tirar um ou outro, mas eu não apoiei, não organizei, nem o PSDB. Fulano e Beltrano no PSDB, mas não tem nem o tesoureiro do PSDB na cadeia. Não tem nenhum. Não tem nem condição de organização pra fazer isso.
Fernando – Mas você não acha que existe seletividade da justiça? Não só perante o PT, PSDB, mas também, você vê que o PSDB é formado mais pela elite enquanto o PT tem uma vocação que, tem muitas pessoas da elite, mas também tem muitas camadas populares. A justiça brasileira inocentou os PMs do massacre do Carandiru. Mandou uma moça que roubou um Shampoo para a cadeia para cumprir vários anos. Você acha que a régua que a justiça e a sociedade medem os equívocos de corrupção do PSDB é a mesma que a do PT? De certa forma isso tá colaborando para a corrosão da democracia?
FHC – O que você disse é verdade, a justiça é de classe, seletiva. Se você for negro você vai pra cadeia mais depressa do que se você for branco, ainda mais na área de droga. Isso é indiscutível. Mas o Lava Jato fez o oposto. Botou na cadeia gente rica, muito rica e poderosa, muito poderosa, de todos os partidos.
Fernando – Mas a intensidade que a Lava Jato centrou fogo no PT foi muito desigual ao escândalo dos trens do PSDB.
FHC – O que do PSDB? Os trens de metrô? Aquele negócio de metrô não tem ligação com o PSDB. Ele não recebeu dinheiro daí. Pode ser que alguma campanha tenha recebido, eu não sei. Nem foi o governador. Não tá metido, não tem. É diferente. Alguns partidos entraram mais profundamente num jogo, sobretudo os que tinham poder federal. Eu não vou negar que nos estados tenham feito a mesma coisa. Mas como tudo, no Brasil. Nas prefeituras também. Nas prefeituras nem se sabe. Nos estados sabe menos e no nacional sabe mais. Porque a mídia é mais nacional. O que dá relevo não é justiça, é mídia. Dá relevo ao que aparece. Não é que esteja perseguindo um ou outro. Agora, dizem “Não tem ninguém do PSDB”, o Eduardo Azeredo foi condenado! Qual é a diferença? É que a lei da ficha limpa é mais recente. E ela justamente foi feita pra que? Pra evitar que com o tempo tudo prescreva. Só que o Eduardo não entrou na ficha limpa e no tempo dele não havia ainda essa decisão que tá ainda na dúvida sobre a partir da segunda instância pra cadeia ou não. Mas tá condenado né? Qual é o outro que foi acusado? Quem foi inocentado? O que acontece é que a justiça é lenta. Uma das críticas persistente no Brasil é de que a justiça é lenta. Por que o foro privilegiado provocou tanta onda? Primeiro que houve excesso. Tem 28 mil, 30 mil pessoas que têm foro privilegiado, segundo que o foro privilegiado quando foi pensado foi para proteger a instituição, poder público, para proteger a pessoa. Se você é presidente e dá um tiro em um amigo e mata, é crime comum. Não é foro privilegiado. Isso o tribunal vai resolver, tá decidindo.
Fernando – Você acha que teve desvio de finalidade?
FHC – Sem dúvida. Espero que o tribunal resolva essa questão. Que o Supremo Tribunal aprove que não precisa lei nada. É decisão deles. Se você fez alguma coisa na sua função, aí você tem esse foro, vai ser julgado. Por quê? Porque senão você tem o promotor de qualquer lugar do mundo e politicamente, às vezes, acusa porque dá ibope. Acusar alguém importante. Não pode ser assim. Agora também não pode que você tenha leis que permitam você prescrever a vida inteira. E prescreve o crime.
Mas eu não vi que tivesse havido no Lava Jato, poupado algum setor. Não poupou, todos os partidos estão lá.
Fernando – Por exemplo, o escândalo de Paulo Preto.
FHC – Mas Paulo Preto é um escândalo estadual. Não tem nada de federal. É uma acusação, está sendo processado, não foi julgado. É isso. Quantos estão na mesma situação do PT? Agora mesmo não absolveram Vaccari? A justiça absolveu algumas acusações. Então eu não acho que a justiça nesse caso, da Lava Jato, tenha sido seletiva. A Lava Jato entrou pra valer em vários partidos.
Fernando – Mas de maneira geral, você considera a justiça brasileira seletiva?
FHC – Isso eu considero. Socialmente seletiva, não partidariamente.
Fernando – Mas você acha que por ela ser seletiva de classe, e o PSDB?
FHC – Eu acho que não chega a esse ponto. Estão acusando todo mundo, gente. O Aécio não tá com processo? O Serra não tá com processo? Todos com processo. Agora, não foi julgado. São da mesma natureza dos processos que levaram muitos do PT para a cadeia, não. Porque eles não quiseram essa conexão sistemática entre o dinheiro público que passa ao privado que passa pro partido. Não houve isso. Aqui o que houve é o seguinte: campanha eleitoral. As campanhas eleitorais no Brasil foram frequentemente financiadas pelo setor privado. Ao caixa um e caixa dois. O Lula quando foi acusado pela primeira vez do mensalão em Paris deu uma declaração: “Isso não é nada porque é caixa dois”. Não é isso? Era considerado assim. Caixa dois é crime, eu sei que é, mas não é o mesmo crime. O uso de dinheiro não declarado para campanha eleitoral. Tudo bem, é crime, tá capitulado, não pode. Porque faz isso? Ou porque a empresa tem caixa dois e quer se livrar do caixa dois, ou porque o partido não quer dizer que recebeu da tal empresa, ou porque alguém roubou. Tem que separar essas condições. Outra coisa que aconteceu a partir do mensalão é organizar um sistema de corrupção. Nomear gente porque vai pra tal posto e tal posto para pegar dinheiro e isso vai pro partido, manter o partido no poder. Mais grave que isso é uma corrupção da democracia.
Quando o Roberto Jefferson abriu a caixa de pandora: “Olha isso aqui, tão pagando para manter o voto aqui no congresso, e estão pagando deputados.” Não foi campanha eleitoral. Não tô dizendo que campanha eleitoral pode, estou dizendo que era usual. E estou dizendo isso com tranquilidade. Primeiro que na minha campanha eleitoral comparada com as de hoje não custou nada. A última campanha custou, declarado, 44 milhões de reais. O PT declarou que era 2 milhões. Não queria dizer de onde veio. Estou dizendo que em geral, as campanhas, tradicionalmente, era aceito isso. Deixou de ser aceito. A sociedade mudou. Ela é mais exigente, é bom isso. Agora você não pode fazer um anacronismo, julgar o passado pelo presente.
Fernando – Existe uma percepção coletiva de que a quantidade de habeas corpus concedidos pelo Ministro Gilmar Mendes em favor de acusados de corrupção contribui para uma sensação generalizada de impunidade no país. Teve até marcha de Carnaval. Você se arrepende de ter indicado ele como Ministro?
FHC – Eu indiquei três ministros supremos. Nelson Jobim, Ellen Gracie e o Gilmar. Por quê? São 3 pessoas competentes. Possuem boa formação jurídica. Gilmar talvez é quem tenha maior formação jurídica. Agora o que acontece? Nesse momento o Brasil tem um sentimento de vingança. Quando o juiz, pela lei, resolve soltar, a pessoa fica com raiva. Eu não sei se o Gilmar mandou soltar porque tinha a lei que mandava soltar. Todo mundo quer que fique na cadeia, mas tem a lei. Muda a lei então. Não tô arrependido de colocar o Gilmar. O Gilmar, como vários outros ministros, fala além do limite sobre suas posições. Eles falam muito. Mas eles brigam, é até bom que a gente sabe que são seres humanos que brigam. Pode ter errado? Pode. Mas atribuir uma intenção de defender bandido ou corrupto é muito mais complicado, porque precisa ter uma base pra isso. E precisa ter muita coragem hoje para você dizer a lei a mandar soltar. Por exemplo um caso delicado é caso de prisão provisória. Tem gente que fica dois anos na prisão provisória. Se for pobre, fica a vida inteira. Tá errado. Pro pobre e pro rico. Tá errado para todos. Provisória é provisória. A lei tem que ser mais clara quanto ao tempo. Pegar um caso quente. O Supremo Tribunal Federal decidiu que uma pessoa julgada em segunda instância, portanto por um coletivo, daí por diante, se um coletivo mandar, pode ser preso. Caso o Lula, que foi julgado por um coletivo e o coletivo decidiu já, decidiu que vai discutir as apelações lá, depois prende. O Supremo Tribunal vai ter que decidir essa questão. Porque ficou esse problema como se fosse um problema? Porque a constituição diz: Tem que ser passado e julgado. Até passar e julgar você é inocente. A lei da ficha limpa já vem porque não julga nunca. Então, pode não ser preso, mas é inelegível. Mas em função da morosidade da justiça, agora uma discussão no Supremo Tribunal e alguns juízes propõem que não seja na segunda instância, seja no STJ. Eu não teria nada a opor desde que dessem prazo ao STJ. Porque se não derem prazo é impunidade. Bom, eu não sei qual o pensamento de A, de B e de C, nem do Gilmar nem de ninguém a respeito disso. Mas se alguns julgarem assim como estou dizendo. Se julgarem “vai pro STJ”, toma a seguinte decisão, olha, Lava Jato esqueça que ninguém vai pra cadeia. Se julgarem ir pro STJ com um prazo, pode ser razoável. Eu não sei como vão julgar. Mas eu quero ver qual a argumentação deles. Mesma coisa no que diz respeito ao habeas corpus. Tem que ver qual a argumentação. Em certos casos tem que dar o habeas corpus. É direito constitucional de todo mundo. Se houve abuso do poder, dá habeas corpus. O Lula agora tá movendo um habeas corpus preventivo. Eu não sou jurista, não sei se ele tem razão, mas tem que julgar. Vai ter o habeas corpus? É porque é o Lula ou é para todos? Se for só pro Lula não pode, se generalizar, é outra questão. Enfim, eu acho que tem que ter prudência ao julgar a motivação dos outros. Eu tomo a decisão e diziam: “É porque quer tal coisa.” Eu não sei se quero tal coisa. Dizem que Temer quer ser reeleito. Não sei se ele quer. Quem é que sabe? As vezes nem a pessoa que é o ator do ato sabe. Tem que ir pro psicanalista para ele te explicar por que você fez aquilo. Ou um padre confessor. “Errei, pequei.” Mas ninguém sabe. Tem que julgar mais o ato. Tá na lei? Não tá na lei? Foi correto? Não foi? Se fez por tal, qual motivo? Pode até ser, sou amigo de fulano, mas tá na lei? Lei para todos. Isso que é democracia. Às vezes é difícil, porque tem interpretação da lei. Mas eu não atribuo sempre motivos negativos aos juízes porque interpretaram de um jeito ou de outro. Senão como vai manter a democracia?
Fernando – Você acha que o julgamento do presidente Lula tá sendo justo? O julgamento tanto judiciário quanto o público? Porque para muita gente o Lula virou sinônimo de capeta encarnado no Brasil.
FHC – Eu não diria a mesma coisa, que ele é o capeta. Mas eu acho que ele tem muitos processos. Vários. 5, 6… Eu só tomei conhecimento de um. Que era uma acusação da questão do instituto Lula, dos documentos que ele recebeu e eu fui em defesa. Então não tem sentido fechar o documento do Lula. Eu acho errado. E ele foi absolvido, nesta parte. Agora eu não sei o resto, porque não li. Eu sou prudente. “Ah, porque o sítio do Lula… O apartamento do Lula…,” Mas eu não vi. Acho também que uma vez que a justiça julgou primeira, segunda, terceira, você tem que respeitar. Eles não são malucos também. Você não pode fazer o que o PT tenta fazer. Desmoralizar a justiça. Sobra o que? Agora não é meu estilo ficar jogando pedra no adversário, muito menos no Lula. Acho que esse sentimento de vingança tá muito errado. Muito ruim na política. O que ele fez ou não fez a justiça é quem vai julgar.
Fernando – Mas você considera ele um líder importante?
FHC – Sem dúvida. Não só isso, eu já disse mais de uma vez. O Lula veio bem de baixo. Eu conheci o Lula na casinha dele, operário. Ele e a Marisa. Estive na casa dele mais de uma vez. Jantei com Lula lá perto do sindicato. Participei das greves, todo esse negócio. O Lula vem daí e ele é um negociador, um líder sindical. Nunca foi de esquerda, não foi mesmo. Nem de direita. Era um homem pragmático que tinha um lado que era o lado do sindicato.
Chegou a presidência. Isso é bom? Para o Brasil sim. Mostra mobilidade política, social. Eu votei nele, não. Eu queria o Serra. Mas quando ele ganhou, respeitei o resultado. Além disso o Lula fez coisas. Tudo o que ele fez, o que eu fiz, ele disse que era porcaria e fez mais ou menos parecido. A bolsa-escola virou bolsa-família. Eles eram contra, ficaram a favor e tal. Tinha que respeitar as regras do jogo cambial. Reforma agrária foi feita no Brasil por duas pessoas. Duas pessoas não, dois governos. O do Lula e o meu. Antes também o Sarney tentou. Mas quem distribuiu terra, ninguém sabe o quanto de terra foi distribuído. É uma barbaridade! Mas fui eu e o Lula quem fizemos. O MST ajudou, porque faz barulho, ocupa terra, não pode, não deixa, mas chama atenção. Então o Lula fez várias coisas que eu acho positivas. A história vai registrar e você não apaga a história. Apagaram Trotski, bom aqui não se trata disso. Não vai apagar a história dele, nem a minha, nem a da Dilma. A história tá lá. A história julga e muda de opinião. Alguém que é herói de uma época passa a ser bandido na outra. Então tem que preocupar com você mesmo. Com sua consciência, sua disposição. Fez ou não fez e tal. Conseguiu, não conseguiu, tudo bem. Acho que a cabeça do Lula mudou. Um exemplo simples: Quando eu terminei o governo, estava inimistado com a maioria dos líderes locais. Que eram patrimonialistas, os chefes locais. Que com o tempo foram rompendo porque fui tentando afetar aqui, afetar ali. O Lula, quando terminou o governo dele, ele trouxe o Sarney para São Bernardo. Eu sou amigo do Sarney e gosto dele, uma pessoa agradável, fomos colegas na Academia de Letras. Também fez suas coisas positivas e negativas assim como eu. Mas o Lula, simbolicamente, se juntou com a política mais tradicional do Brasil. Ele veio em nome do novo. Ele fez algo de novo, mas ele se juntou com a política mais tradicional. Isso não foi bom. Seria melhor que tivesse se marcado mais. Porque o PT e o PSDB nunca se juntaram? Nem quando tá lá no Congresso a coisa é positiva. Por disputa de poder, não por disputa ideológica. Se tivéssemos mais capacidade de diálogo, teria sido melhor. Não considerar como inimigo. Lembro que estava nos Estados Unidos. Tinha recebido um prêmio. O Zé Dirceu deu uma declaração que era melhor eu cuidar dos meus livros e meus netos. Porque? Achavam com razão, que o competidor era o PSDB, mas não precisava tirar o tapete. Disseram uma porção de coisas e tal. Mas é a vida política. Se eu pudesse reviver a história eu tentaria me aproximar não só do Lula, mas de forças políticas que eu achasse progressistas em geral. Que ajudasse a governar. E acho que o PT deveria ter feito a mesma coisa. Estou dizendo, fui lá almoçar. Eu gosto de Fernando Haddad, vou votar no Fernando Haddad se ele for candidato? Não vou, mas eu tô dizendo que ele é uma pessoa correta.
Fernando – Você acha que sem querer essa disputa partidária pode ter causado o fenômeno Bolsonaro?
FHC – Acho, sem querer pode. PT tentou caracterizar o PSDB sempre como de direita. E não é verdade. Agora abriu espaço para uma direita reacionária. Que talvez seja saudável porque você marca melhor as posições. Mas reacionária não acho agradável porque é agressiva e é anti institucional.
Fernando – Eu pessoalmente como gay estou muito preocupado. E principalmente com os desfavorecidos.
FHC – E você deve ficar. Porque você tem uma direita nos costumes, conservadora. E aqui fazem mistura. Eu sou liberal em matéria de costumes. Completamente liberal. Acho que a diversidade tem que ser respeitada. O pessoal da direita reacionária não acha isso. E querem punir. Está errado! É perigoso. E tem uma onda que eu sou muito contra. Devemos nos manifestar abertamente contra. Acho bom ser liberal nos costumes e não tão liberal assim na economia, no mercado. Não tão liberal não quer dizer que você vai fazer loucura. Nem que o estado substitui o privado, não substitui, mas regulamenta.
Fernando – Quem você acha que foi mais injusto com seu legado, o PT ou PSDB? Nas campanhas seguintes, nenhum candidato do PSDB teve a coragem de defender as privatizações dos setores de telecomunicações promovidas pelo senhor e ironicamente quem defende privatização hoje, com exceção do Doria, é o Paulo Guedes aliado ao Bolsonaro.
FHC- Não apenas o Paulo Guedes. Na verdade, o PSDB na campanha não defendeu. Mas quem atacou foi o PT. Atacou muito mais o meu legado do que o PSDB. O PSDB ficou acovardado. Certos setores, nem todos. Agora, porque? Eleitoralismo. Por achar que o povo é contra. Acho que a função do líder não é ouvir o que a opinião pública quer e fazer. Não, não. É convencer a opinião pública daquilo que ele acha que é certo. Quem é líder vai tentar. A maioria vai ta contra, mas o que você acha? Acha que é certo ou errado? E tem que lutar pelo que acha certo e mudar a opinião pública. Não pode se conformar com pesquisa de opinião. “Ah, faz pesquisa de opinião” a pena de morte ganha no Brasil. É certo isso? Não é certo. Então você tem que defender o que acha certo. E tem que informar. Ganhar a opinião pública. Não quero fazer crítica ao Lula, principalmente na situação em que ele se encontra agora. Mas o que eu acho lamentável é que ele, tendo acesso mais amplo a setores, a base da sociedade, ele não tivesse sido mais didata. Ele fosse mais eleitoreiro nessas coisas. Mas enfim, cada um faz o que quer. Não quero jogar toda a responsabilidade no Lula e no PT. Todos nós temos uma parte, uma responsabilidade.
Fernando – Como você vê por exemplo, deputados como Jean Wyllys, que acho que é o único deputado que defende no congresso os direitos dos gays, o aborto, legalização de drogas. É quase uma liderança isolada sofrendo diversas ameaças de morte, nesse contexto de onda pró-bolsonaro?
FHC – Eu já defendi o Jean Wyllys publicamente. Tive um debate com ele e em geral coincidimos. Ele me ataca de vez em quando, eu não leio, também não tem importância. Mas eu o defendi publicamente, porque acho que ele é corajoso. E acho isso. Não quer dizer que esteja sempre de acordo com ele, mas eu acho. Eu defendi o caso dele com o Bolsonaro, defendi. Alguém tem que falar nessas questões e dizer que não pode tratar com repressão. É errado. Tá moralmente errado.
Fernando – O Brasil é um dos países que tem uma das maiores populações carcerárias do mundo. A maior parte afrodescendentes. E como já conversamos, a sensação que dá é que a justiça, os setores da polícia têm uma disposição política maior com os negros. As injustiças judiciais parecem proliferar mais com os negros. Como é que você vê essa relação Casa Grande e Senzala, a herança escravocrata do Brasil? Existe um apartheid social? Existe um muro que atravessa muito desses jovens do mercado financeiro, que a gente conversou? O mercado financeiro geralmente endeusa o senhor e coloca a meritocracia como um de seus principais valores, mas não reconhecem que nós, brancos de classe média temos mais oportunidades, mais acessos do que jovens afrodescendentes das comunidades. Como o senhor enxerga essa tragédia social?
FHC – Eu comecei a minha vida fazendo pesquisa sobre negro. Então para mim é óbvio que você tem uma sociedade que manteve discriminação e preconceito. Portanto eu acho que essa sociedade deve reparar o que fez. Eu sou a favor das cotas. Eu sei que as cotas é uma solução transitória, que o ideal é ter oportunidades iguais. Mas eu sou a favor das cotas porque, dada a desigualdade que existe no Brasil e as dificuldades de acesso que os negros e seus descendentes têm, eu acho importante que seja, na prática, respostas. Inclusive com medidas assim. A primeira vez que fui para os Estados Unidos tem muitos anos. Décadas. 60 anos, sei lá. Ainda havia lugar no ônibus para negro, banheiro para negro. Havia o sentimento legal e moral da discriminação. No Brasil nunca houve legal e o moral ficou abalado, porque? Porque nós sempre mentimos dizendo que aqui tinha igualdade racial. A expressão que você usou, afrodescendente, é americana. Eu falo negro, porque eu nunca falo ítalo brasileiro, nem polaco brasileiro, os americanos falam. Na nossa consciência tradicional, havia mais tendência a mistura do que nos Estados Unidos. Afrodescendente é descendente de negro. É mais direto. Não tem o conteúdo que tem nos Estados Unidos que é outra coisa, eles aceitam. Lá tem muita ênfase na política identitária. Nós devemos ter políticas de favorecimento porque há discriminação, há preconceito, há desigualdade de oportunidades. Você vê objetivamente, na polícia certamente prendem mais negros que branco. Na droga nem se fale. As cadeias são cheias de negros e poucos brancos. Na renda, há sempre distribuição desigual. Eu tenho um amigo que é médico e que eu prezo muito. Ele é diretor de um instituto de medicina na Escola Paulista de Medicina e ele tem um programa que é para apoiar os que entram pela cota para medicina. No começo, entrou pela cota, em comparação com os que não entraram pela cota, tem menor vantagem, menor desempenho. Com o tempo, fica igual. Você tem só que dar oportunidade. Eu sou favorável, acho que tem que ter movimentos abertos de reparação e tudo mais. O único cuidado que tem de ter é evitar o racismo anti-racista, porque aí vira igual. Tem que ter uma ideologia que vai além da segmentação, da identidade é essa. Tem que ter democracia, enfim.
Fernando – Falando em desigualdade. Rico paga, geralmente, menos imposto no Brasil. E também tem a questão do imposto de herança. Nos Estados Unidos é 50% e aqui é 4%. Geralmente os mais ricos pagam imposto menor sobre o acúmulo de capital, os juros do capital e geralmente o mais pobre que tem carteira assinada paga 25%. Sem contar os impostos embutidos em alimentos, etc. que são muito menos significativos para os ricos do que para os pobres. Você acha que de certa forma o estado brasileiro agrava a desigualdade e, acaba sendo, principalmente se você colocar a luz nos escândalos das empreiteiras e tal, veículo para uma banda predatória da nossa elite brasileira?
FHC – O nosso sistema de imposto é regressivo. Quer dizer, ele cobra mais de quem menos pode. Primeiro que tem escapatórias maiores para quem pode mais. Isso é complicado porque os americanos estão baixando mais ainda o imposto sobre o capital. E se você quiser competir, vai ter que abaixar. Pode baixar, mas vai ter que aumentar a tributação direta que é baixa. E aqui a classe média profissional, nós incluídos, nós pagamos como pessoa jurídica. E isso é uma maneira de pagamento. Pessoa jurídica paga 17 e a pessoa física paga 25 pelo menos. Por aí.
Então eu acho que essa questão do imposto é muito difícil porque a matéria é difícil de assimilar, de entender. O próprio congresso não entende bem. Mas nunca houve uma luta real sobre como depois dos impostos você tem um aumento da desigualdade, e não uma diminuição da desigualdade. Os partidos sociais democrata europeus cresceram muito na base de você ter um sistema menos regressivo. Aqui, se você falar em aumentar o imposto de herança a pessoa morre de emoção, não quer. Eu mandei regulamentar o imposto de grande fortuna. Você não imagina a onda das pessoas da minha geração, até familiares, contra mim. Eu não fiz nada, eu regulamentei todos os itens da constituição e uma era essa. A constituição diz que deve haver imposto sobre grandes fortunas. Hoje esse imposto é menos eficaz porque você tem fortuna de qualquer parte do mundo. Aumenta imposto aqui você faz registros e empresas lá fora. Então não estou insistindo nesse imposto. Mas o imposto de herança, aqui, é de 4% a 8%. Quase todos os estados cobram 4. E alguns não cobram nada, porque não se paga. É escandaloso. Agora, qual é a justificativa de quem não quer pagar o imposto? Por que vou dar mais dinheiro pro estado que é ineficaz e corrupto? Então tem um argumento. Eu não conheço bem, mas nos Estados Unidos você vai a qualquer universidade, você vê edifícios, locais com nomes de famílias. Porque? Com a sua herança, você pode distribuir em vida, mas você diz pra onde. Eu acho que devia ter um sistema aqui que permitisse isso. Dizer: “Eu quero que você dê para instituição científica.” É 4%. Vamos passar de 4 para 10%. Esses 6 ou metade desses 6% você decide para onde vai. Que aí evita esse problema. Um pouco a lei Rouanet faz isso. Ela permite que você deduza e você diz para onde vai ser usado esse dinheiro. Tem abuso? Tem abuso. Precisa controlar o abuso, mas foi uma lei positiva.
Fernando – Eu enxergo a sociedade brasileira encurralada na ilegalidade. Seja os mais pobres na questão da droga, dos presídios, que tem forte correlação entre raça, narcotráfico e encarceramento em massa. Também enxergo a classe média encurralada com taxas de impostos, muitas vezes ilegítimas em especial com a corrupção e ainda tem que pagar serviços em duplicidade: paga os impostos, mas tem que contratar o guarda da rua. Tem que contratar uma escola, porque a escola pública não é boa, plano de saúde. Eu vejo que o senhor revolucionou o Brasil com o plano real através de um acordo. E a gente tá aqui falando de democracia e quem tá ganhando nas pesquisas é alguém que não fala em acordos, fala em eliminar acordos, fechar o congresso. De certa forma o senhor mesmo convivendo com corrupção inerente em Brasília conseguiu promover uma grande reforma. “Hackear” o sistema por dentro, os ganhos com o plano real são inegáveis para qualquer pessoa que se predispõe a encarar seriamente os fatos. Qual o caminho para a sociedade retomar o caminho do acordo para corrigir essas injustiças que são muito graves? Tanto com os mais pobres quanto com os da classe média e até com a banda voou da elite que não se vê com motivação para investir no país e que tá boa parte deixando o país, seja mandando seu capital para fora ou até imigrando mesmo? Eu lembro claramente de ter o cruzeiro quando o senhor criou a URV, como veio esse progresso para todos nós, e hoje em dia parece que não existe mais esperança.
FHC – É preciso reencantar a democracia. Como é possível isso? Você falou do plano real. O que eu fiz com o plano real? Juntei quem entendia. Não ter medo do outro. Qual foi o meu papel? Foi o de explicar. Explicar ao congresso, explicar a sociedade, explicar ao sindicato, explicar ao governo. Acreditamos, botando no conjunto. E debatemos. Falei com todos os líderes sindicais. Eles queriam a vida inteira que houvesse a atualização do salário a cada três meses. E você cada dia…Você não tem argumento. Mesmo assim, os líderes do sindicato do PT. Comigo concordavam. Na rua diziam que era errado, que era contra o trabalhador. Depois o trabalhador viu que não era contra eles. Nós estamos precisando de novo falar com o país. Precisamos de uma liderança democrática que seja capaz de dizer: “Olha, chegou um ponto que não dá mais” não dá mais na segurança, não dá mais na questão de distribuição de renda, que você mencionou, não dá mais na questão de desigualdade da escolarização. Pega a escola que você falou, as universidades. A universidade gratuita é importante, sem dúvida. Não dá pra cobrar mais o imposto de renda de quem tem filho na universidade gratuita e pegar essa diferença e dar pra escola? Não é o cara que vai pagar, ninguém paga a universidade, agora o pai do aluno que tá se beneficiando e que tem recursos dá um percentual do imposto de renda dele que vai para a escola. Mas tem que negociar isso aí. Tem que dizer, tem que explicar. Isso que você falou da questão do imposto de renda e outros impostos serem mudados para progressividade. Tecnicamente tem muitos projetos nessa direção. Tem gente que sabe fazer. Agora, tem que conversar com o país e convencer o país que tem que fazer. E isso precisa de que? Liderança. Não há democracia sem líder. Em nenhum lugar do mundo. Vou dizer uma coisa que pode ser chocante. Eu conheci o Putin do ano 2000. Passei 3 dias no Kremlin. O Putin me disse que não tava entendendo porque os americanos estavam fazendo balísticos intercontinentais e radares para cercar a URSS. Ele queria que os americanos reconhecessem a Rússia. Agora eu li um livro do Oliver Stone, um debate do Oliver Stone com o Putin. O que que diz o Putin com o Stone: “Vocês não quiseram fazer o acordo e agora tenho um míssil que vocês não conseguem segurar com a balística de vocês.” Quer dizer, mesmo num regime como o russo, que é autocrático, tem outra cultura. As pessoas têm que ter um certo realismo, uma certa compreensão de negociar. Bom, os americanos nem sempre negociam. As vezes tem mania de que são superiores. Não são superiores. Você não vai mudar os russos, nem os chineses, nem os brasileiros e nem os iraquianos. Tem um melhor que o outro? É diferente um do outro. Deve ter coisas gerais? Deve. Direitos humanos e esses tipos de reivindicação que dão humanidade. Nós no Brasil chegamos a um ponto em que não dá mais. Vai ter que sentar na mesa e dizer, como se resolve a segurança? Chama o Bolsonaro que seja, chama o PT, o PSDB, o governo, o bandido. Pergunta ao bandido, porque você chegou a esse ponto? Tem que conversar. Somos 210 milhões de habitantes. Quantos países tem isso? 7, 8? É uma tremenda responsabilidade. Foi tudo errado no Brasil? Não. Olha aqui a janela. Olha São Paulo. Cheguei a São Paulo em 1940, nasci no Rio. Isso aqui era atrasado, comparado ao Rio. Olha hoje. Uma megametrópole. Você vai a qualquer lugar, tem ônibus, tem luz, tem mais ou menos lixo, tem farmácia. Fizemos isso aqui. Não tinha nada da saúde, temos o SUS hoje. “Ah é ruim.” mas tá lá. É melhor porque não tínhamos nada e hoje tem. Mesmo na educação. A universidade é boa? Depende de onde? Em geral, não. Na média, não. Vamos juntar. É preciso liderança capaz de chamar ao comum, além do segmentado. É isso que precisa. Isso tá faltando nesse momento. É preciso que alguém vista o traje. “Eu vou expressar o conjunto.” Eu sei que o conjunto é fragmentado. Eu sei que é briguento. É, a democracia é assim, mas tem coisa em conjunto ou vamos nos matar? Se tem coisa em conjunto… Dá pra manter essa desigualdade social que temos no Brasil? Não dá. Nós já somos um país suficientemente rico para dividir um pouco. Como é que vai dividir? Tem que negociar. Vão matar o negócio? Se matar o negócio você mata a galinha dos ovos de ouro. Não é para matar o negócio. Mas se o negócio vai parar tudo, ou se o governo vai virar um instrumento para dar dinheiro pra bandido, também não pode. Ou para o próprio partido, também não pode.
Eu acho que estamos num momento que é preciso que tenha uma liderança democrática com visão social e progressiva. Que veja o mundo. As tecnologias que mudaram completamente. Isso muda tudo. O mundo. E os partidos sindicatos são organizações do mundo do passado. Não tem outro ainda, não tem. Vai ter outro? Não sei, mas tem que se abrir. Tem que se abrir. Se não se abrir vai ficar no passado. Que foram os partidos organizados para apresentar interesse de classes. As classes são fragmentadas. Sociedade brasileira é fragmentada. Muita desigualdade social, têm ocupações que não existiam antes. Têm ocupações que ainda não existem. É outro mundo. E o político ainda pensando no mundo anterior. Esse é o nosso problema.
Colaboração Paulo Egídio Dorea e Mandy Paiva

Mary Zaidan: Sempre eles

 

Lula e FHC são as vozes mais presentes no momento

Corre-se atrás do novo, busca-se um outsider, fingem-se mudanças. Mas, 24 anos depois da primeira vitória de Fernando Henrique Cardoso sobre Luiz Inácio Lula da Silva, o ativismo dos dois ex-presidentes é um dos poucos tônicos que animam a política. Para o bem ou para mal.

E não há aqui qualquer pretensão de comparar o incomparável. Só a de apontar o fato de que ambos são as vozes mais presentes no momento. Lideram a audiência em eventos, entrevistas, e no digladio enfadonho das redes sociais.

Lula, em exercícios tortuosos para manter seus fiéis, evitar a prisão e sustentar sua candidatura ameaçada pela condenação em segunda instância. E FHC, na tentativa de sacudir um centro apático, não raro volátil, que jura honrar princípios humanistas e por vezes flerta com a direita irracional.

Com impressionante lucidez ao analisar os desafios globais e nacionais diante das novas exigências da sociedade – e, portanto, da política –, FHC assusta correligionários quando se antagoniza com o mercado ou defende a descriminalização da maconha. E deixa seus pares tucanos enfurecidos com ações como a de apoio explícito à candidatura do apresentador Luciano Huck, abortada antes de existir.

Pré-candidato e com menor espaço de manobra depois de ser condenado a 12 anos e um mês por corrupção, Lula vai no caminho inverso. Praticamente só fala de si. De sua coragem, sua inocência, sua força, sua disposição para a briga.

Os demais agentes políticos – seus companheiros e até o golpista e agora corajoso presidente Michel Temer – só entram no discurso quando se encaixam na realidade paralela de Lula.

De fala fácil e grande habilidade para envolver o interlocutor, foi assim que agiu nas duas entrevistas exclusivas que concedeu em menos de 24 horas para a Folha de S. Paulo e a Agência France Press.

Cuidadosamente articuladas, as entrevistas tiveram pouco em comum além da alegação de inocência.

À France Press, Lula falou de futebol, das chances do Brasil na Copa da Rússia, dos conselhos ofertados a Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Talvez para não virar chacota internacional, não deu um pio quanto ao delírio conspiratório de interferência dos Estados Unidos em sua condenação, tema que detalhou à Folha.

A tese requentada corre solta nos blogs de aluguel, nas redes e nas bocas de pregadores da igreja lulista.

“Governos, quando não são fortes, apelam para os militares”, diz FHC, acertadamente, ainda que irritando muitos. Já ditadores e populistas de uma esquerda para lá de ultrapassada culpam o imperialismo dos Estados Unidos para escamotear suas fragilidades e esconder suas derrotas. Lula é só mais um.

* Mary Zaidan é jornalista.

 


Luiz Carlos Azedo: O candidato oficial

O Palácio do Planalto pressiona a cúpula do MDB para que a legenda assuma compromisso com uma candidatura própria. Esse é o desejo do presidente Michel Temer, que pretende mesmo ser candidato à reeleição se o ambiente econômico, social e político for minimamente favorável a que possa chegar ao segundo turno das eleições. A primeira condição está dada, com a queda dos juros e a inflação baixa. A segunda dependerá do nível de emprego e dos resultados da atuação do governo na área de segurança. A terceira está relacionada às outras duas e à operação em curso para montagem do novo ministério, cuja composição está sendo condicionada ao apoio a uma “candidatura oficial” do governo.

Temer não precisa se desincompatibilizar do cargo para ser candidato. E tem até o dia 15 de agosto para se decidir ou lançar outro candidato. Desse ponto de vista, leva vantagem em relação ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), que precisa se desincompatibilizar do cargo e entregar o Palácio dos Bandeirantes ao vice-governador Márcio França, sem nenhuma garantia de que será apoiado pelo PSB (uma hipótese cada dia mais improvável). No cronograma tucano, Alckmin será lançado no domingo, mas o governador paulista tem até o dia 7 de abril para se desincompatibilizar do cargo.

Para embaralhar as cartas da eleição, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), lançará sua candidatura a presidente da República na quinta-feira, quando o prefeito de Salvador, ACM Neto, assumirá o comando da legenda, no lugar do senador Agripino Maia (DEM-RN). As relações entre Temer e Maia andam muito agastadas por causa de sua movimentação agressiva. Além de se lançar candidato, ampliou a bancada na Câmara de 21 deputados para quase 40 parlamentares. A próxima adesão anunciada por Maia é do relator da reforma da Previdência, deputado Arthur Maia (PPS-BA), que estaria de malas prontas para trocar de legenda (a conferir). O presidente da Câmara também não precisa se desincompatibilizar do cargo para ser candidato.

A chave da estratégia de Temer é a montagem da nova equipe ministerial. O que acontece normalmente, quando os governos se aproximam das eleições, é as pastas serem ocupadas por secretários executivos, com o antigo titular mantendo forte influência nas decisões administrativas. É tudo o que Temer não pretende fazer. A permanência de Aloysio Nunes Ferreira (PSDB) no Ministério das Relações Exteriores, de Blairo Maggi (PP) na Agricultura e de Raul Jungmann na Segurança Pública é comemorada no Palácio do Planalto como uma sinalização nessa direção. Temer abandonou a reforma da Previdência para evitar uma derrota que sinalizaria o fim do governo. A agenda da segurança pública deu nova vida ao que lhe resta de mandato, e pode ajudar a melhorar os índices de aprovação.

Hoje, a 135ª Pesquisa CNT/MDA será divulgada no final da manhã, com cenários de primeiro e segundo turnos de votação para as eleições de 2018. O levantamento também aborda a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo TRF-4 e a opinião dos entrevistados sobre a sua participação nas próximas eleições. Além disso, traz avaliações do governo federal e do desempenho pessoal do presidente Michel Temer; avaliações dos governos estaduais e municipais, bem como a opinião dos entrevistados sobre emprego e renda, saúde, educação, segurança e imigrantes venezuelanos. O cenário político entrou em movimento. Mas isso não significa vida fácil para o presidente da República. Ontem, o ministro Luís Roberto Barroso autorizou a quebra de seu sigilo bancário num inquérito que investiga o esquema de propina da Odebrecht.

Animal ferido
A quinta turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará hoje o habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O recurso é contra a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), com sede em Porto Alegre, que condenou o ex-presidente a 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado. Agora será julgado o mérito da ação, cujo pedido de liminar já havia sido negado pelo vice-presidente do STJ, Humberto Martins, em 30 de janeiro. O PT está pianinho, não convocou nenhuma manifestação; Lula trabalha nos bastidores do tribunal, por intermédio do ex-presidente do STF Sepúlveda Pertence, seu novo advogado, para evitar ser preso.

O coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, Guilherme Boulos, sentiu o cheiro de animal ferido. Filiou-se ontem ao PSol para ser candidato a presidente da República. Principal aliado do PT em São Paulo, incensado pelo líder petista como liderança emergente dos novos movimentos sociais, a candidatura de Boulos deve ser oficializada sábado, tendo como vice a líder indígena Sônia Guajajara.

 


O Estado de S. Paulo: Intelectuais de esquerda iniciam movimento a favor de Haddad

Grupo defende ex-prefeito como primeira opção do PT ao Planalto no lugar do ex-presidente Lula

Por Ricardo Galhardo, O Estado de S.Paulo

Um grupo de intelectuais ligados a esquerda – não necessariamente ao PT – manifestou apoio ao nome do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad  não como plano B, caso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seja impedido pela Justiça de disputar a eleição, mas como primeira opção de uma frente ampla de centro-esquerda para a disputa presidencial do dia 7 de outubro.

A filósofa Djamila Ribeiro, o arquiteto Fernando de Mello Franco (ambos ex-integrantes da gestão Haddad), a historiadora Heloísa Starling, o sociólogo Jessé Souza e a psicanalista Maria Rita Kehl subscreveram o artigo Fernando Haddad, renovação e experiência, publicado na semana anterior pelo antropólogo Ricardo Teperman, o engenheiro Luiz Rheingantz e o economista André Kwak (ex-oficial de gabinete de Haddad na prefeitura) na Folha de S.Paulo.

++ Lula e o vácuo a ser preenchido

Teperman, Rheingantz e Kwak são os criadores do grupo “Eu voto no Haddad, me pergunte por quê”, formado em 2016 para alavancar a candidatura à reeleição do ex-prefeito e inativo desde a derrota para João Doria (PSDB) no 1.º turno da disputa municipal, em 2016.

O texto, feito à revelia do ex-prefeito, foi interpretado por setores do PT como uma tentativa de lançamento informal da pré-candidatura de Haddad à Presidência. Embora tenha sido publicado dias antes da Operação Cartão Vermelho, que teve como alvo o ex-ministro Jaques Wagner, também cotado para ser o eventual substituto de Lula na eleição presidencial, o artigo e o apoio dos intelectuais ganharam força depois que Wagner foi alvejado pela Polícia Federal. Wagner é acusado de receber propina da Odebrecht e da OAS.

++ Desaprovação de presidenciáveis se mantém elevada

Para muitos petistas, a ascensão de Haddad ao posto de principal alternativa do PT à Presidência, caso Lula seja declarado inelegível pela Justiça, é a principal consequência até agora da Operação Cartão Vermelho.

Procurados, nem os autores do texto nem Haddad quiseram se manifestar. Auxiliares do ex-prefeito disseram que ele não foi consultado sobre a articulação e não vai incentivar nem deixar de incentivar o movimento. “Está posto, apenas”, disse uma pessoa próxima a Haddad.

No decorrer desta e das próximas semanas, o “Eu voto no Haddad, me pergunte por quê”, que voltou a se reunir regularmente, vai anunciar novos textos e ações voltados para a construção de um “programa nacional”.

++ Marina Silva lidera corrida eleitoral em site de apostas internacional

Aos poucos, o nome do ex-prefeito deixa de ser citado apenas em conversas reservadas para ser defendido publicamente por lideranças petistas. Em entrevista à Rádio Eldorado, o ex-ministro da Justiça Tarso Genro torceu para que o PT insista na candidatura de Lula, mas caso ela seja inviabilizada, sugeriu o nome do ex-prefeito como candidato do PT. “Todo mundo sabe das ligações políticas, afetivas, de gestão pública que tenho com o ex-prefeito Fernando Haddad, que me parece um dos quadros possíveis nessas circunstâncias”, disse Tarso.

LULA VAI INDICAR EVENTUAL SUBSTITUTO

De acordo com ele, é Lula quem vai indicar o nome de seu eventual substituto. Cresce no PT a certeza de que o ex-presidente não vai deixar o partido naufragar com ele.

++ Para Ciro, 'é mais fácil um boi voar do que o PT apoiar alguém'

Petistas apontam várias pistas de que esse nome pode ser o de Haddad: o ex-prefeito foi o escolhido para o posto de coordenador do plano de governo, mais importante da pré-campanha; se recusou a ser candidato a qualquer outro cargo eletivo em 2018; com aval de Lula tem rodado o País e conversado com governadores e outras lideranças de partidos.

O apoio de Lula, no entanto, é a única chance de Haddad chegar à disputa. Hoje o ex-prefeito conta com a antipatia da maioria do PT que o considera distante da vida partidária, tal como a ex-presidente Dilma Rousseff


Gaudêncio Torquato: A vitimização de Lula

Lula vai vestir por inteiro a fantasia de perseguido por um juiz que, para ele, deveria “ser exonerado a bem do serviço público”.

A taxa de racionalidade no processo decisório da sociedade tem se expandido na esteira da contrariedade contra os políticos. Pesquisas mostram uma expressão dura – chegando ao baixo calão – por parte de grupos de todas as idades e classes. Impressiona o alto índice de votos em “nenhum” candidato nos pleitos estaduais. A indignação até pode indicar “emoção” nas respostas, mas o fato é que o voto sai cada vez mais do coração para subir à cabeça. O eleitor quer decidir de maneira autônoma, livre de ondas emotivas.

Vejamos o caso de Lula. Em entrevista ao jornal FSP (01/03/2017), diz que sua condenação pelo juiz Sérgio Moro e pela 2ª Instância produzirá uma vítima “desnecessária”. Lula vai vestir por inteiro a fantasia de perseguido por um juiz que, para ele, deveria “ser exonerado a bem do serviço público”. O cenário com o petista condenado está desenhado. O povo não foi chamado a ir às ruas, disse, mas poderá fazê-lo, o que criaria imensa balbúrdia pelo fato de que pode “ganhar até no primeiro turno”.

Luiz Inácio é, sem dúvida, um líder carismático. Escolhe o discurso adequado aos momentos, usa o timbre rouco de voz, movimenta-se no palanque como nenhum outro para gerar empatia com plateias. Essa é a síntese do que se tem dito sobre as qualidades de Lula, também conhecido por “esponja” e “teflon”, pois absorve tudo (números, informações, contexto) sem deixar que nada negativo cole nele. Há, porém, uma dúvida a ser respondida ao longo do ano: essa é a moldura atual ou uma fotografia antiga?

A verdade é que o PT e seus líderes não são mais pregoeiros da verdade. Desde o mensalão, descem a ladeira do precipício. José Dirceu, preso, vê seus bens indo a leilão; João Vaccari, ex-tesoureiro, continua preso; o ex-poderoso ministro Palocci está preso e, segundo Lula, “quem faz delação quer ficar com uma parte daquilo que se apoderou” (sobre seu ex-braço direito). O próprio ex-presidente tem seu nome envolvido diariamente na fogueira da Lava Jato. Será que nada cola nele? Ou será que o petismo ainda acredita ser o partido ético, revolucionário e distante da roubalheira na Petrobrás? Seria uma conspiração norte-americana para se apropriar do nosso petróleo? É o que garante Lula, quando diz que interessa a eles “o fim da lei que regula o petróleo”.

É fato que o ex-metalúrgico é líder nas pesquisas. A campanha nem começou, mas ele e Bolsonaro já iniciaram sua perambulação eleitoral. Pouco provável que mantenham os bons índices ante o bombardeio que virá. Mas as ruas poderão ser inundadas com bandeiras vermelhas se houver barreira à candidatura de seu ícone. Que poderá tentar acender o pavio de fogueiras nos Estados. Atenção: o carisma não é uma fonte inesgotável. Pode ser corroído pela rotina de escândalos.

O Brasil está mudando.

* Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação

 


Míriam Leitão: Cenário eleitoral

Doador de dinheiro sujo sabe que agora CEO vai para a cadeia. O quadro eleitoral fica mais presente, ainda que não tenha nitidez. A semana terá lançamento de pré-candidaturas e julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula no STJ. Isso depois de uma semana em que Lula deu a entrevista acenando para Michel Temer e o presidente passou a ser investigado em mais um processo, por pedido de sua escolhida Raquel Dodge e decisão do ministro Edson Fachin.

Há vários motivos pelos quais esta será uma eleição diferente das outras. Uma delas é o financiamento. A doação legal das empresas foi proibida, a ilegal está sendo constrangida fortemente. Hoje, as empresas sabem que o CEO vai pra cadeia, que dono e herdeiro de empresa podem passar uma longa temporada na prisão. Estão todos avisados. E isso, no mínimo, terá o poder de dissuadir muita gente que em outros tempos não hesitaria em encher malas de dinheiro e enviá-las para candidatos. Caso nada disso constranja o dinheiro sujo, quem fizer uma campanha cara ficará exposto.

Os dois partidos que têm o maior volume de dinheiro do fundo partidário e do fundo eleitoral são o MDB, com R$ 304,9 milhões, e o PT, com R$ 300,9 milhões, segundo estimativa feita pelo cientista político Jairo Nicolau. Desses, o MDB ainda não disse com que candidato vai. O PT aferra-se à candidatura de Lula, que muito provavelmente será declarado inelegível. Dois candidatos que têm pontuado bem em todas as pesquisas, Jair Bolsonaro e Marina Silva, terão apenas R$ 14,8 milhões (PSL) e R$ 14,6 milhões (Rede), 23º e 24º lugares na distribuição de recursos públicos. O Podemos receberá R$ 41 milhões. Os grandes partidos ficam com a parte do leão. Ao todo serão 35 partidos recebendo o valor de R$ 2,362 bilhões do dinheiro do contribuinte. Pela estranha legislação brasileira de recursos públicos para as eleições, até os muito nanicos ou que acabaram de se formar terão direito a um bom bocado. Os três últimos serão PCO, PMB e Novo, cada um com em torno de R$ 2 milhões. A lei concentra os recursos nas oligarquias partidárias, e distribui um cala-boca para partidos sem qualquer viabilidade eleitoral.

O MDB não tem candidato a presidente desde 1994, quando Orestes Quércia ficou com 4,4% dos votos, atrás de Enéas. Desta vez, o partido tem um poder inédito: o da máquina da Presidência. Além do maior volume de recursos públicos, num tempo de vacas magras de financiamento. Resistirá ao apelo de ter um candidato mesmo que seja Temer e sua terrestre popularidade?

A entrevista de Lula à Monica Bergamo esclareceu muitos pontos. Ele criou a versão fantasiosa de conspiração americana contra a Petrobras porque essa ginástica nos fatos talvez sirva para os palanques. Com um mínimo de honestidade não dá para explicar o ataque do PT e seus aliados aos cofres da Petrobras sobre o qual há evidências acima de qualquer dúvida. Melhor dizer que tudo é culpa da cobiça americana atrás das reservas do pré-sal. O outro delírio também tem um propósito. Quando ele diz que Temer resistiu ao que ele definiu como tentativa de golpe da Globo está evidentemente querendo construir uma ponte para o futuro com seu velho aliado nas últimas campanhas, o partido do Temer.

Na campanha de Jair Bolsonaro, o economista Paulo Guedes deu entrevistas longas para explicar seu pensamento. Continua sem solução o mistério de como as ideias liberais de Guedes serão colocadas na mente intervencionista do candidato. Já nas ideias políticas, parece haver mais harmonia. À “Folha de S. Paulo”, Guedes declarou: “O Ustra disse que não torturou ninguém. Quem está falando a verdade, quem não está?” Mais de quarenta pessoas que passaram pelo Doi-Codi, entre 1970 e 1974, então sob o comando de Ustra, não podem sequer dar suas versões, porque não saíram vivas.

A eleição cuja campanha oficialmente não começou é um tabuleiro em que as pedras se movem a cada dia, mas ainda está muito longe de se saber como será o jogo para valer.

* Em 2017, exceto por uma semana, passei o ano mergulhada no trabalho neste país intenso e esqueci das férias. Por isso, sairei agora por três semanas. Vocês ficarão com o talento dos colunistas Alvaro Gribel e Marcelo Loureiro.

 


Merval Pereira: Voluntarismo confronta tradição

Voluntarismo confronta tradição de grandes partidos. Os três pré-candidatos mais bem colocados atualmente nas pesquisas eleitorais, partindo-se do princípio de que o ex-presidente Lula está fora da disputa, não têm estruturas partidárias fortes. Jair Bolsonaro, a caminho do PSL, Marina Silva, da Rede, e Ciro Gomes, do PDT, superam até o momento potenciais candidatos dos dois partidos que dominam a política nacional nos últimos 25 anos, PT e PSDB.

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, perde para Bolsonaro em seu próprio estado, nicho tucano que vem sendo desmontado pelo voluntarismo do candidato da extrema-direita. Nas regiões Sul, Sudeste e Centro-oeste, onde os tucanos costumavam reinar, também Bolsonaro aparece bem votado, e um dissidente do PSDB abre caminho em outro pequeno partido, o Podemos.

O senador Álvaro Dias vem crescendo no Sul e crava sua liderança no seu estado natal, Paraná, berço da Operação Lava-Jato. Ciro Gomes domina o eleitorado nordestino na ausência de Lula, e não dá margem a que um candidato petista substitua o ex-presidente na preferência do eleitorado.

Já Marina Silva, com seu minúsculo partido que terá cerca de 1% do tempo de propaganda gratuita de rádio e televisão, e a menor verba partidária de quantos disputarão a eleição, mantém-se na memória afetiva da população e aparece sempre disputando uma vaga no segundo turno, mesmo quando Lula está na parada. Afinal, já teve 20 milhões de votos em duas eleições presidenciais seguidas, o que não é de se desprezar.

Mesmo diante de todas essas evidências de que a política tradicional está sendo atropelada pela indignação das ruas, políticos tradicionais como o próprio Lula, ou até mesmo o vereador e ex-prefeito do Rio Cesar Maia, acham que a disputa final se dará mais uma vez entre petistas e tucanos. Por isso Cesar Maia desestimula publicamente a tentativa de seu filho, o deputado federal e presidente da Câmara Rodrigo Maia, de abrir caminho próprio para disputar a Presidência da República pelo DEM.

Maia filho será lançado esta semana, e vê uma avenida aberta para candidatos novos diante da ausência de Lula e da falta de alternativas apresentadas ao eleitorado até o momento. Rodrigo Maia não acredita na competitividade do PSDB, e muito menos de Geraldo Alckmin.

O governador tucano, no entanto, se movimenta à moda antiga, o chamam de candidato analógico em tempos digitais, fechando acordos com outros partidos da política tradicional como PTB e PSD, da base do governo Temer. As negociações com outras legendas, como PPS e PV, estão avançadas. O objetivo é ter cerca de 25% do tempo de TV em cada bloco diário de 12 minutos, na certeza de que esse será o diferencial numa eleição em que estão em jogo cargos que dependem de acordos partidários amplos para garantir o número de votos necessários.

O único candidato fora das grandes estruturas partidárias que raciocina com elementos da velha política ainda é Ciro Gomes, que, embora descrente devido às divergências que vem tendo com a estratégia de Lula e do PT, ainda vislumbra uma aliança improvável mesmo antes do segundo turno.

O que está em disputa são duas visões distintas da política partidária neste momento por que o país passa: as grandes estruturas partidárias lutam por manter seu espaço tradicional, enquanto as lideranças carismáticas, seja por que motivo for, jogam nas redes sociais para fomentar dissidências, que desestruturariam os acordos estabelecidos historicamente. Ciro ainda acredita que a esquerda acabará vendo nele a salvação do projeto de poder. Lula, a única liderança carismática que tem uma estrutura partidária forte, mesmo que abalada pelos escândalos, não consegue transplantar para um poste essa dupla qualificação.

É o que Rodrigo Maia quer fazer com o DEM, um tradicional parceiro do PSDB que tenta alçar voo próprio na certeza de que o sinal será invertido: os tucanos, constatando a inviabilidade eleitoral de Alckmin, o cristianizariam em seu favor. É o que o PPS tentou fazer com Luciano Huck, comendo por dentro as bases tucanas.

O governador de São Paulo, por sua vez, trabalha seu estilo zen, acusado de anódino pelos adversários, na certeza de que ao final ele será o aglutinador das forças do centro nacional, incluindo aí o MDB do presidente Temer. Assim como Lula acha que, ao final, será o candidato do PT que lançará, e não Ciro Gomes, o destinatário dos votos da esquerda.

 


Eliane Cantanhêde: Meirelles vice de Alckmin

Ministro queria ser vice de Aécio e pode virar de Alckmin com apoio de Temer

Está em gestação a jogada mais pragmática de toda essa campanha eleitoral tão desajeitada: uma chapa com Geraldo Alckmin na cabeça e Henrique Meirelles na vice. Um pelo PSDB, outro pelo MDB, reativando a aliança entre os dois partidos interrompida nos anos do PT e agregando à candidatura Alckmin os êxitos econômicos do governo Temer, mas trazendo como contrapeso sua carga de denúncias e dívidas na Justiça.

As conversas avançam e podem ter evoluído na sexta-feira no encontro do presidente Michel Temer com o tucano Fernando Henrique Cardoso, já que uma costura assim só tende a evoluir com o aval de FHC e o patrocínio de Temer. Se FHC tem sido seguidamente azedo com o governo, vai ter que adoçar o tom.

A operação exige acordos delicados, mas não chega a ser tão complicada. Nem Meirelles é homem de partido, nem o seu partido, o PSD, deu a mínima bola para as pretensões presidenciais dele. Logo, o divórcio será amigável, com todos, ao final, participando da mesma campanha: a de Alckmin.

Se Meirelles é um candidato em busca de uma sigla, o MDB é uma sigla em busca de um candidato. Tenha os problemas que tiver, o MDB é precioso para Alckmin, pelo tempo de TV, ramificação nacional, bancadas no Congresso, governos estaduais e prefeituras. Bem... os emedebistas ajudam a manter o Brasil como a terceira maior população carcerária do planeta, mas que candidato despreza uma aliança assim mesmo?

De outro lado, o presidente do PSD, Gilberto Kassab, é um pragmático flexível e não tem do que reclamar. Tinha horror de Alckmin, mas encomendou a fantasia para ser vice de João Doria em São Paulo e, se “ceder” Meirelles para a coligação do próprio Alckmin ao Planalto, aumenta ainda mais suas fichas para 2019.

O sonho de Meirelles é ser político e a realidade é que ele sempre recua. Saiu do BankBoston para disputar a Presidência da República, mas se elegeu deputado pelo PSDB e virou mesmo foi presidente do Banco Central do PT. Desde então, colhendo troféus e reconhecimento no Executivo, nunca parou de sonhar com a adrenalina das campanhas.

Meirelles se lançou ao governo de Goiás em 2006 e 2010 e chegou a namorar a ideia de ser vice de Aécio Neves em 2014, mas não teve espaço. É natural que agora desça um degrau para trocar a própria candidatura pela vice de Alckmin, aliás, num País em que ser vice é uma aposta e tanto, que o digam Sarney, Itamar e o próprio Temer, em apenas trinta anos. E Meirelles não seria um candidato a vice qualquer, muito menos um vice qualquer.

A candidatura Alckmin tem sobrevivido de solavanco em solavanco, mas vai se afirmando em cima de uma constatação límpida: não apareceu ninguém melhor para unificar o tal “centro”. Doria queimou a largada e vai caminhando para seu Plano B, o governo de São Paulo. Luciano Huck era para valer (apesar do sarcasmo dos mal informados), mas amarelou na hora de acelerar. Rodrigo Maia mal engatou a primeira. E Álvaro Dias, um ex-tucano, não sai do Sul.

O projeto Alckmin avança e tem uma peça chave: Michel Temer. O presidente vive numa gangorra estonteante, ora lá em cima, com intervenção no Rio, dados econômicos, leve recuperação de empregos; ora lá em baixo, com decisões da PGR e do STF sobre o porto de Santos e as relações perigosas do MDB com a Odebrecht. Um fato, porém, é inquestionável: ele recuperou força política.

Temer tem o que mostrar, demonstrou capacidade de iniciativa e, com certeza, será “um player”. O beneficiário tem tudo para ser Alckmin, mas o apoio tem preço: a defesa do seu “legado”. É assim que, nem amado nem odiado, como os bons candidatos, Alckmin vai pela estrada largando concorrentes e colhendo aliados a partir de uma dura conclusão: “Se não tem tu, vai tu mesmo”.

 


Fernando Henrique Cardoso: A intolerância na política

Os ânimos políticos andam cada vez mais acirrados, tratando as diferenças como inimizades

A democracia, além de ser um modo de determinar quem acede ao poder e por quanto tempo, de definir que o povo é soberano e, portanto, os eleitores escolhem quem manda, supõe uma cultura de convivência. Nesta se aceita como legítima a diversidade de pontos de vista, respeitadas a Constituição e as leis, e também se aceita a possibilidade de quem pensa de um jeito vir a pensar de outro. Noutros termos, na luta política há adversários, não gladiadores prontos a matar inimigos.

Infelizmente se está criando no Brasil uma cultura da intolerância. E assim em outros países, como em alguns europeus e nos Estados Unidos. Estamos vendo o renascimento da xenofobia, o horror ao “estrangeiro”, ao diferente. Entre nós os ânimos políticos também andam cada vez mais acirrados, tratando as diferenças como inimizades. Por temperamento e convicção, procuro me comportar dentro das regras da civilidade democrática. Busco ouvir e respeitar não só os “nossos”, mas os “outros”. Ouvir não quer dizer concordar, mas prestar atenção ao ponto de vista do interlocutor.

Vi com bons olhos a formação da Rede. Enxergo em Marina Silva uma figura positiva na política brasileira. Procedi da mesma maneira na formação do (Partido) Novo, conversei com seu presidente, João Amoedo, como converso com muitos políticos. Dentro de minhas limitações procuro incentivar a entrada de jovens na vida pública. Apoiei o Vem pra Rua, participei de seminário da Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), saudei o RenovaBR, assim como faço com o Agora. Manifesto-me positivamente quanto aos “novos”, procuro saber deles e se possível com eles conviver.

Tampouco deixo de me relacionar com adversários políticos. No auge do antipetismo paulista almocei na Prefeitura com Fernando Haddad e em outra ocasião assistimos juntos a uma ópera. Nem por isso aderi ao PT. Boateiros inventaram que em encontro mais recente com Fernando Haddad tratamos de que se Lula desistisse da candidatura o STF não o prenderia. Como se eu tivesse força para tanto...

Sendo assim, por que não haveria de saudar a predisposição de Luciano Huck de participar da vida política? Trata-se de pessoa próxima ao PSDB, a quem prezo e de quem sou amigo. A irritação causada em certos setores pelo simples fato de eu haver dito publicamente que sua entrada na campanha eleitoral era saudável e poderia atrair apoios, sobretudo dos mais jovens que buscam alternativas, mostra o grau de intolerância entre nós. Não disse que o apoiaria, disse que sua disposição de participar era positiva.

De repente, gente que nunca votou nem votará no candidato presidencial que vier a ser escolhido pelo PSDB reagiu com fervor, cobrando de mim o desnecessário, a fidelidade partidária, que nunca deixei de ter. Ela, contudo, não me desobriga de tomar em consideração que o País precisa de renovação política. A entrada de novos contendores – mesmo no PSDB – não me leva a preferi-los automaticamente, mas a reconhecer que eles podem ajudar os antigos a se renovar, e o País necessita de arejamento na política. Isso sem esquecer que a eleição presidencial se faz em dois turnos (Marina, por exemplo, mediante pontos programáticos, apoiou o candidato do PSDB no segundo turno em 2014).

Como Luciano desistiu, imediatamente inventaram que eu estaria mandando fazer pesquisas de opinião em busca de “alguém” (deram até nomes de pessoas com quem não tenho nenhuma proximidade política) porque, segundo leio nos jornais, eu estaria preocupado com o desempenho nas pesquisas eleitorais do eventual candidato do PSDB. E não adianta repetir que minha escolha está feita, Geraldo Alckmin, e que, no momento oportuno, as pesquisas registrarão sua ascensão. As maledicências, contudo, não diminuirão meu ímpeto de ajudá-lo a enfrentar a campanha e se apresentar com um discurso propositivo. O Brasil precisa, neste momento, de alguém que una as forças democráticas e, respeitando o funcionamento dos mercados e da economia, não só cuide de manter em ordem o Orçamento, mas olhe para as carências do povo e seja honesto. Diga-se o que se quiser, o PSDB no comando de São Paulo há 20 anos não se desviou desses preceitos e Alckmin governou o Estado durante quase três períodos administrativos.

As críticas e maledicências certamente continuarão. Uma vez postas na mídia, como pode o leitor separar o falso do certo? Haverá quem insista, utilizando frases minhas, tirando-as do contexto, em manter suas próprias opiniões e imagens como se fossem minhas. Transmitem “informações”, alegando dispor de fontes nunca mencionadas, para tirar as castanhas do forno com as mãos do gato.

É próprio do jogo do poder, sempre foi, construir imagens falsas dos adversários. Logo que comecei a participar de campanhas eleitorais, escrevi um artigo sobre o papel da infâmia, da má fama na vida pública, atribuída aos adversários. E isso muito antes de se falar em fake news, quando as mídias sociais ainda não existiam. Imagine-se agora...

Seria mais honesto, contudo, que quem põe em circulação tais boatos e intrigas assumisse o lado em que está no jogo do poder. Que se despisse do manto protetor de ser apenas um comentador e entrasse na arena política. E que, nesta, agisse como “adversário”, e não como “inimigo”. Sem desacreditar os “do outro lado” com informações falsas ou meias-verdades, para com elas mais facilmente ganhar a parada.

A imprensa deve precaver-se para não ser instrumento de quem está interessado na disseminação de rumores, e não da informação correta. Ser crítica é característica essencial da mídia nas democracias e a nossa imprensa tem cumprido o seu papel. Mas a crítica deve ser assumida por quem escreve, não atribuída a terceiros, sobretudo quando estes recusam o papel que lhes é dado.

* Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República

 


Luiz Werneck Vianna: A vitória da Constituição

A saída do labirinto em que nos perdemos já foi encontrada na obediência ao calendário eleitoral, e não à toa ele já virou alvo dos que desejam mover para trás a roda da História

Para quem queria a ocupação das ruas pelo povo, o cenário deste carnaval que passou, com as multidões que mobilizou nos blocos e nas escolas de samba, principalmente na capital paulista, ainda sem tradição nesse tipo de manifestação carnavalesca, surpreendeu os mais céticos, que não esperavam a volta da alegria na vida popular. Embora sem perder a conotação de crítica social, o momento catártico foi o dominante entre a nova geração, que ainda não conhecia a experiência carnavalesca, em particular entre as jovens que acorreram em massa aos blocos, num movimento indisfarçável de afirmação de gênero.

Com esse registro, a que se deve acrescentar o do desfile das escolas de samba, a política conta com mais uma matéria para a reflexão nesta hora de seleção das candidaturas presidenciais, ainda sem definição. Relativizando o caso de alguns desfiles que optaram por uma crítica política contundente ao governo, uma vez não se pode evitar o comentário do jornalista Ancelmo Gois, ao lembrar que no Brasil “prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e uma escola comandada por um bicheiro, a querida Beija-Flor, vence o carnaval que fala de corrupção” (O Globo 15/2).

Essa hora de escolha que já tarda, não só pelas dificuldades naturais ao momento que se vive, mas também porque a cultura do golpismo, essa segunda pele da nossa política, já encontrou uma nova modalidade de conspirar contra o processo eleitoral, a partir de uma declaração de um delegado de polícia sobre um inquérito de presumidas ações praticadas pelo presidente da República. O mais triste desse episódio está no fato de envolver um alto membro do Poder Judiciário, de quem sempre se esperam atos e palavras de concórdia, e esteja ele puxando a corda em favor do prolongamento da nossa agonia.

A saída do labirinto em que nos perdemos já foi encontrada na obediência ao calendário eleitoral, e não à toa ele já virou alvo dos que desejam mover para trás a roda da História, em mais uma tentativa de destituição por um processo judicial do chefe do Executivo, como está em curso, uma vez que não contam nem com as ruas nem com os quartéis. Nos seus cálculos malévolos maquinam que com o governo acéfalo caberia ao Poder Judiciário o exercício de um governo de transição que dirigiria, amparado pela Polícia Federal, o processo eleitoral. Tal solução, ou algo próximo a ela, talvez seja o que nos falta para nos converter num imenso manicômio em que todos os internos se apresentem como candidatos à Presidência da República.

Mas o mundo gira e a Lusitana roda, imprevistamente o cenário e o enredo se transfiguram com um movimento de peças desse jogo de xadrez ainda distante de encontrar um vencedor. Nessa nova disposição, provocada pela intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, o centro de gravidade da crise se desloca do tema da corrupção política para o da violência e da criminalidade organizada, cujo poder já ameaçava nacionalizar-se e se projetar no campo da política. Mudando o repertório, o peso dos atores envolvidos igualmente muda, com a depreciação do papel do Poder Judiciário, até então o principal protagonista da conjuntura, que cede lugar ao Poder Executivo, que trouxe a iniciativa para si e para a corporação militar, numa arriscada operação que se esforçou por se manter, malgrado alguns senões, nos trilhos constitucionais, a essa altura chancelada por esmagadora maioria nas duas Casas legislativas.

Um dos efeitos colaterais dessa intervenção foi o de revelar o tema da segurança como central para partidos e candidatos na formulação dos seus programas. Ao contrário da blague famosa, parece que aqui, pelos sucessos recentes, o tema da economia valerá na hora do voto menos do que se previa.

Confirma-se, mais uma vez, o desamor da política brasileira pela linha reta. Aos sobressaltos, dia após dia, avança-se para o momento eleitoral, quando o destino das urnas será selado pelo êxito ou fracasso da intervenção federal na política de segurança.

Os dados estão lançados. E ainda sujeitos à manipulação humana, que pode ser decisiva para a boa sorte da iniciativa de alto risco do Executivo. Muitos não a querem por cálculo eleitoral, ou pelo temor de que as Forças Armadas, peça central na intervenção sobre os aparatos de segurança, venha atropelar a ordem constitucional em nome de uma política de salvação nacional, pondo-se no lugar dos juízes que tinham como alvo o mesmo propósito. Neste tempo em que reina a suspicácia, conta contra a hipótese malévola o fato forte de que a corporação militar se tem comportado sob estritos padrões constitucionais e das normas que regulam seus princípios hierárquicos.

A competição eleitoral, tenha o resultado que tiver, importa mais por provocar a agregação de vontades e de programas do que pela candidatura vitoriosa, que, seja qual for, estará pautada pela agenda das questões discutidas exaustivamente ao longo destes três últimos anos. Será uma oportunidade, que não pode ser perdida, para uma recomposição partidária que nos emancipe do domínio das corporações que às nossas costas pretendem guiar nosso destino. Desde as magistrais lições de Pierre Bourdieu sobre o Estado se sabe que o segredo da força das corporações está em revestir os interesses particulares dos seus membros em pleitos públicos de caráter geral. No nosso caso, liberar a política transita pela limitação do poder das corporações, que com frequência impõe a todos a sua agenda de interesses particulares, em detrimento dos da maioria.

Mas, apesar de tanta confusão, neste país onde todos querem ser califa no lugar do califa, há algo a ser comemorado, qual seja, o fato de que todos os envolvidos nesse charivari nacional jurem estar agindo em nome da Constituição. E, de fato, se as aparências ainda contam, a sorte parece que vai sorrir para quem persuadir o maior número de eleitores de ser aquele que melhor representa o espírito do texto constitucional, que favorece a igualdade.

 

 


Alon Feuerwerker: As instituições não estão funcionando

“As instituições estão funcionando” é a platitude do momento. Num aspecto, é obrigatório reconhecer que elas funcionam bastante bem: nosso sistema de freios e contrapesos anda tão azeitado que o mecanismo travou. Em cada ação possível, há travas suficientes para impedir que qualquer coisa aconteça. O sistema político-institucional parece uma moto, ou um carro, sobre cavaletes e de motor ligado: queima combustível e não sai do lugar.

Mas nem tudo está perdido. As eleições vêm aí e teremos novos governantes em janeiro. É a boa notícia. E a má? Bem, o sistema brasileiro de freios e contrapesos produziu uma anomalia: quem é eleito não manda, e quem manda não é eleito. As intenções dos constituintes foram as melhores, mas o produto do trabalho deles acabou não sendo bom: na ânsia de enfraquecer o poder, erraram na dose e criaram uma engrenagem vocacionada à ingovernabilidade.

Só o papel não seria, porém, capaz sozinho de produzir o desastre. O definhamento da democracia brasileira é obra de múltiplas mãos desde o colapso das “Diretas já”, que obrigou a uma transição negociada, para a qual muitos torceram o nariz. Abriu-se então o longo período de apedrejamento que hoje colhe seus frutos mais carnudos. Três décadas de ataques à política, pela esquerda e pela direita, escancararam as portas do inferno para os salvadores da pátria.

Os políticos ajudaram bastante. Principalmente quando consolidaram um sistema rentável e imune à renovação e à alternância. E a coisa foi piorando a cada “aperfeiçoamento” exigido pela “opinião pública”. O resultado é uma política monopolizada por cartórios fossilizados. É impossível disputar com chances o comando desses cartórios. E eventuais desafiantes do establishment político precisam antes de tudo ter um cartório para chamar de seu.

Entre os fatores na raiz dos nossos impasses, um merece destaque especial. O descolamento entre os graus de liberdade e de democracia. Uma não se confunde com a outra. A saúde de uma democracia mede-se também por quanto a vontade da maioria influi na execução governamental e na produção congressual. E é bem possível conviverem por um tempo altas taxas de liberdade e graus apenas relativos de democracia.

O Brasil está meio assim. Convertido numa federação de déspotas supostamente esclarecidos e bem protegidos do voto. Por serem portadores da verdade e do bem, acumulam o poder de impor sua vontade de modo absoluto. Estão espalhados por todos os lugares, e não apenas na burocracia estatal. Legislam, julgam e executam de acordo apenas com o que decidiram ser o melhor para nós. São os mini-sovietes de si mesmos, mas para todos. O que isso tem a ver com democracia?

Toda obra política precisa de uma narrativa legitimadora. Gramsci explicou que sem algum consenso não há coação que dê conta. E a narrativa-candidata é, surpresa!, a “crítica ao populismo”. O “governo ideal” é o capaz de agir independente da, ou mesmo contra a, vontade popular. “Aproveite a impopularidade e faça o que tem de ser feito, presidente”. E se a esmagadora maioria for contra? “A situação é grave. Não é hora de ceder ao populismo.“

Há duas críticas do “populismo”. A primeira, mais elegante, usa a expressão para caracterizar um sistema totalizante. “Democracia não é só voto, é alternância. Se se bloqueiam todos os canais de alternância, accountability, pressão etc., a democracia degringola. E o populismo tende a fazer justamente isso.” Essa é a teoria. Na vida real, o termo é usado para carimbar políticos que governam de olho não no que é “certo e racional”, mas na popularidade.

E tudo estaria bem organizado a partir da “crítica ao populismo”, não fosse o probleminha incômodo: as eleições. Elas introduzem o desconforto de ter de convencer o eleitor. E se o eleitor não se convencer? Bem, então será o caso de fazer, mesmo que ele não esteja convencido. Para que servem então as eleições? Pergunta complicada. Talvez seja hora de chamar os especialistas em teorias igualmente complicadas sobre a “crise da democracia representativa”.

* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Demétrio Magnoli: O marketing acadêmico das disciplinas sobre o golpe de 2016

Na era Lula, acadêmicos eram militantes partidários. Agora, eles ingressam no ofício de marqueteiros
A campanha presidencial simulada de Lula dissolveu a delgada película que ainda separava o pensamento acadêmico do imperativo partidário. O ácido foi derramado pelo professor da UnB Luis Felipe Miguel, que criou uma disciplina intitulada “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”.
Uma reclamação imprópria do ministro da Educação serviu como pretexto para que dezenas de colegas emulassem o gesto de vandalismo intelectual, ofertando disciplinas idênticas em departamentos da USP, Unicamp, UFBA, Ufam e outras. Na “era Lula”, acostumamo-nos com a redução de acadêmicos a militantes partidários. Agora, assistimos ao ingresso deles no ofício de marqueteiros.
O vaga-lume ativa e desativa a bioluminescência segundo suas necessidades biológicas. O PT acende e apaga o sinal de “golpe” de acordo com as circunstâncias políticas. O luminoso foi ativado para reagrupar a militância, na hora do colapso dilmista, mas desativado pouco depois, quando o PT anunciou a retomada das alianças eleitorais com os partidos “golpistas” (o MDB e as siglas do “centrão”). Hoje, pressiona-se novamente o interruptor para denunciar o veto legal à candidatura de Lula. A ciência política tem algo a dizer sobre as funções desempenhadas pela narrativa do golpe. Já os acadêmicos que a reproduzem, aplicando-lhe um verniz de discurso científico, depredam a instituição na qual trabalham.
Na UFBA, a disciplina decola no golpe do Estado Novo, transita pelo golpe de 1964 e aterrissa no “golpe de 2016”, que abriria uma etapa de “autoritarismo”. As leis de exceção, a proibição de partidos, a cassação de parlamentares, as prisões políticas, a tortura, a censura, a repressão a manifestações —nada disso aparece no “golpe de 2016”, que obedeceu à letra da Constituição e procedeu segundo regras ditadas pelo STF. Por qual motivo, além da fidelidade ao partido, a disciplina não contempla o “golpe de 1992” (ou seja, o processo de impeachment contra Collor)?
“O discurso da ‘imparcialidade’ é muitas vezes brandido para inibir qualquer interpelação crítica do mundo”, alegou constrangedoramente Felipe Miguel em defesa de sua obra de marketing fantasiada de disciplina acadêmica. Ocorre que a noção de “imparcialidade”, tão cara ao direito, é estranha à investigação científica. O discurso científico distingue-se do discurso político-ideológico por rejeitar o finalismo: no campo da ciência, é proibido fabricar uma conclusão prévia da qual escorrem as “provas”. A disciplina dos neomarqueteiros não peca por “parcialidade”, mas por violar o método científico.
A prevalência da esquerda nas faculdades de humanidades nem sempre conduziu à dissolução do método científico. Os professores socialistas ou comunistas do passado separavam sua militância partidária de seu trabalho acadêmico, pois acreditavam que a transformação social não seria produzida por eles, mas por uma revolução dos “de baixo”. A ascensão do PT coincidiu com o descrédito da ideia revolucionária —eabriu caminho para o vale tudo intelectual.
Na confusa ideologia original petista, o socialismo nasceria “por cima”, pela construção de uma hegemonia social da esquerda, não da anacrônica insurreição proletária. A missão exigiria a produção de um direito, uma história, uma sociologia, uma antropologia “dos oprimidos”. Na mente dos quadros acadêmicos petistas, a fronteira entre discurso científico e discurso ideológico aparecia como uma conservadora exigência de “imparcialidade” destinada a proteger “as elites”.
Os professores que se entregam ao marketing lulista pertencem à geração de estudantes universitários do “PT das origens”. Tirando os mais ingênuos, eles já desistiram do objetivo socialista, contentando-se hoje com uma migalha: o sucesso eleitoral do partido. O golpe do “golpe de 2016” —eis o título para uma disciplina útil.
* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional