Eduardo Bolsonaro

Eduardo Bolsonaro ganha apelido de desafetos após curtir jogo no Catar

Terra*

A ida do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) ao Catar para curtir a vitória da Seleção Brasileira contra a Suíça na última segunda-feira, 28, rendeu muitas críticas de opositores e desafetos e até um apelido.

Após aparecer em fotos ao lado da esposa, Heloisa Bolsonaro, no Estádio 974, o filho do presidente Jair Bolsonaro (PL) foi chamado de “radical de ar-condicionado”, segundo informações da coluna de Bela Megale, do jornal O Globo.

Eduardo Bolsonaro e esposa curtem jogo do Brasil no Catar
Eduardo Bolsonaro e esposa curtem jogo do Brasil no CatarFoto: Reprodução

O batismo foi feito por moderados do partido de Eduardo - e também do presidente Jair Bolsonaro - o PL, que consideram um tiro no pé a viagem do parlamentar ao País da Copa em meio à turbulência política envolvendo o pai, que contesta o resultado de parte das urnas utilizadas no pleito.

Nas redes sociais, Eduardo também foi alvo de críticas de outros parlamentares, como Kim Kataguiri (União-SP) e o deputado federal eleito Guilherme Boulos (PSOL-SP).

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https://twitter.com/GuilhermeBoulos/status/1597295648990457859?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1597295648990457859%7Ctwgr%5Eaccafee040fa2501c3cddddb1aa97f879fcaae16%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.terra.com.br%2Fnoticias%2Fbrasil%2Fpolitica%2Feduardo-bolsonaro-ganha-apelido-de-desafetos-apos-curtir-jogo-no-catar76a400e28882c08b8159f19dd05057d7g7583yfy.html

Além do delicado momento político no Brasil, o deputado ainda viajou para outro país com a intenção de assistir a um jogo de futebol em um dia que tinha compromissos na Câmara. O Terra consultou a agenda do parlamentar e encontrou dois compromissos de Eduardo no Brasil na mesma data em que foi para o Catar.

*Texto publicado originalmente no site Terra


O Estado de S. Paulo: Eduardo Bolsonaro manda população ‘enfiar no rabo’ máscara contra covid-19

Filho do presidente, deputado federal critica cobertura da imprensa sobre uso de itens de proteção contra infecções pelo coronavírus

André Borges, Lorenna Rodrigues e André Shalders, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Visivelmente irritado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) mandou a população brasileira enfiar as máscaras de proteção contra a covid-19 “no rabo”. Em uma aparição ao vivo que fez em seu perfil pelo Instagram, o filho “03” de Bolsonaro criticou o uso do principal item de proteção contra a contaminação do vírus que, dia após dia, causa recordes de mortes no País. 

“Eu acho uma pena, né, (que) essa imprensa mequetrefe que a gente tem aqui no Brasil fique dando conta de cobrir apenas a máscara. 'Ah a máscara, está sem máscara, está com máscara'. Enfia no rabo gente, porra! A gente está lá trabalhando, ralando”, afirmou o deputado. As declarações de Eduardo foram feitas no dia em que o presidente Jair Bolsonaro mudou o discurso, usou máscara e passou a defender as vacinas. Nesta quarta-feira, 10, o Brasil também atingiu mais um recorde de mortes: pela primeira vez foram registradas 2.349 mortes por covid-19 em 24 horas.

Em tom agressivo, enquanto seguia em um carro no banco de carona, o deputado comentou, ainda, o caso das rachadinhas de Fabrício Queiroz e a compra de uma mansão de R$ 6 milhões por seu irmão, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).

“Você, retardado mental, que fica falando ‘o problema são os filhos, cadê o Queiroz?’, pagou o apartamento R$ 50 mil em dinheiro. Seu animal, larga de ser um peão nesse tabuleiro de xadrez chamado política e começa a pensar um pouquinho, ver o perigo que está por vir e ver como o sistema trabalha porque não dá ponto sem nó, não. Fique com Deus e não consuma cachaça em excesso igual a uns e outros aí”, disse.

Eduardo Bolsonaro também afirmou que iria comentar o resultado da viagem que fez com uma comitiva para conhecer o spray contra a covid-19 em testes iniciais em Israel. Na prática, porém, o que acabou dizendo é que o Brasil é que está desenvolvendo a sua vacina. E não só uma, mas três vacinas próprias.

“Você sabia que o Brasil está desenvolvendo três vacinas?”, perguntou. “A vacina brasileira ainda está em desenvolvimento, não é para agora”, comentou ele, acrescentando que o Brasil terá seu próprio spray e que outros países deverão vir ao País comprar esse produto. Ele não deu nenhum detalhe sobre o que estava falando.

“É importante a gente dominar essa tecnologia e dominar, ter a vacina brasileira. Além disso, isso coloca o Brasil em outro patamar internacional. Ao invés de nós irmos atrás de outros países, eles é que virão atrás de nós. Pode ser inaugurada uma vacina que não precise mais de insumos de outros países. Os israelenses gostaram muito disso”, afirmou.

Além do spray definido pelo presidente de “milagroso”,  que atuaria em conjunto com uma vacina, Eduardo disse que o Brasil tem uma segunda tecnologia em análise, com efeito “dois em um”, que curaria covid-19 e influenza.

“A terceira vacina vai diretamente em seu sistema imunológico. O Brasil está desenvolvendo tecnologia nesta área”, observou, sem nenhum detalhe, data ou previsão de testes.

“Depois que está a invenção feita, aí ‘tá’ o mundo inteiro correndo atrás da vacina, o mundo inteiro correndo atrás dos insumos… Aí já era. Isso que a gente foi fazer em Israel é à semelhança do que ocorreu com a vacina de Oxford. É chegar primeiro, chegar no começo. Quando estávamos saindo de Israel, estava chegando uma delegação de outro país, da República Checa”, lembrou o deputado. “Já procurou Israel não só a Grécia, mas também a Dinamarca, o Chipre, e alguns outros países. Acho que a Áustria também. Então, onde há tecnologia, o mundo inteiro está proativamente se deslocando.”


Ricardo Noblat: Bolsonaro volta a atacar a imprensa e humilha seu filho Eduardo

“Você teve um voto. O resto foi meu”

Ao assumir a presidência da República em janeiro de 2019, a prioridade número um de Jair Bolsonaro era reeleger-se dali a quatro anos. Quanto ao resto, empurraria com a barriga.

Depois, à medida que seus três filhos zeros começaram a ser alvos de denúncias por corrupção, a reeleição passou a ser a prioridade número dois. Se não salvar os filhos, não se salvará.

É preciso, pois, desacreditar os autores das denúncias, especialmente a imprensa, que as divulga e pressiona os demais poderes a investigá-las a fundo.

A mais recente denúncia bateu diretamente à porta do gabinete presidencial no terceiro andar do Palácio do Planalto, e isso explica a escalada recente dos ataques de Bolsonaro à imprensa.

Ele reuniu-se com advogados do seu filho Flávio, acusado de embolsar dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio, com o propósito de ajudá-los no que fosse possível.

Estavam presentes o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e seu subordinado, o delegado Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Dois relatórios, mais tarde, enviados por Ramagem aos advogados, são a prova de que a Abin deu o caminho das pedras para que eles fossem bem-sucedidos em sua tarefa.

A descoberta de que isso aconteceu, pode configurar crime de responsabilidade praticado por Bolsonaro e, no limite, até custar-lhe o mandato, deixou o presidente da República apoplético.

Sua entrevista, ontem, ao canal do filho Eduardo no Youtube não contém nada de novo, mas é uma demonstração de como ele está fortemente incomodado com o episódio.

“Me chama de corrupto, vamos lá”, desafiou Bolsonaro referindo-se à imprensa. “Me chama de corrupto, porra. Não tem mais grana mole para vocês. Acabou a treta. O fim de vocês está próximo”.

“Imprensa canalha, não vale nada”, insistiu. “Não leiam jornais. É tudo um lixo. Vão para a internet. […] Ai do ministro se eu souber que [no seu local de trabalho] tem jornais”.

Como seria impossível ocupar mais de uma hora de entrevista somente falando mal da imprensa, Bolsonaro revisitou seu estoque de temas preferidos. Ao fazê-lo, repetiu as velharias de sempre.

Sobre a facada que levou em Juiz de Fora: o caso foi mal apurado porque Sérgio Moro era o ministro da Justiça. Líderes políticos da esquerda queriam matá-lo, e ainda querem.

Sobre o voto eletrônico: não confia nele e, por seus cálculos, mais de 70% dos brasileiros também não. Perguntou: “Em que país do mundo esse sistema foi adotado?”

Sobre tortura no período da ditadura militar de 64: “[Os que reclamam] não eram presos políticos, eram terroristas. E eram tratados [nos porões do regime] com toda a dignidade”.

Sobre as eleições municipais: “A imprensa falou que eu perdi. Quantos prefeitos eu tinha? Zero. Então vou dar uma de Dilma aqui: Eu não ganhei nem perdi”.

E sobre a pandemia: “Ela está chegando ao fim. A pressa da vacina não se justifica. Vão inocular algo em você. O seu sistema imunológico pode reagir ainda de forma imprevista”.

Por último, em meio a risadas, humilhou o filho ao trocar de posição com ele. Travou-se então o seguinte diálogo:

– Vamos ver se você está ficando inteligente. Você teve quantos votos nas últimas eleições? – perguntou Bolsonaro.

– Eu fui eleito [deputado federal por São Paulo] com 1.843.735 votos em 2018 – informou Eduardo.

– Não aprendeu nada. Você teve um voto. O resto foi meu.

Enquanto o pai gargalhava, o filho apenas retrucou:

– Você não acha que foi o meu trabalho?

Bolsonaro não respondeu.


Gil Alessi: Do ‘01’ ao ‘04’, Bolsonaro entra na mira do STF por suspeita de blindar seus filhos com a máquina pública

Suspeita de que a Abin produziu relatórios para ajudar a defesa de Flávio Bolsonaro se soma à lista que inclui troca no comando da PF, influência nas eleições do MP do Rio e outras manobras

O presidente Jair Bolsonaro sempre disse ser um “defensor da família”. Com quase dois anos à frente do Governo, transparece a preocupação do mandatário em proteger pelo menos uma delas: a sua própria. A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, determinou nesta sexta-feira que a Procuradoria-Geral da República investigue a suposta produção de relatórios pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) com o objetivo de auxiliar a defesa do senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente. O parlamentar é investigado ao lado do seu ex-assessor Fabrício Queiroz por ter supostamente organizado um esquema de rachadinha em seu gabinete à época em que era deputado estadual pelo Rio.

Esta “Abin paralela”, como vem sendo chamada, teria municiado a advogada de Flávio, Luciana Pires, com material a ser usado no caso, segundo reportagem da revista Época. De acordo com a defensora, as orientações teriam vindo diretamente de Alexandre Ramagem, diretor-geral da Abin e homem de confiança de Bolsonaro. Um dos relatórios deixa claro seu objetivo: “Defender FB [Flávio Bolsonaro] no caso Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro] demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”. A própria Luciana Pires confirma ter recebido o relatório, segundo a reportagem, uma afirmação que contradiz o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e a própria Abin, que negaram a produção de material para ajudar o senador. Ramagem confirmou, no entanto, ter participado de reunião com a defesa do parlamentar na qual estiveram presentes o presidente e Heleno. Em nota, a Agência e o GSI afirmam que o encontro foi “completamente regular”.

A repercussão do suposto relatório da Abin incendiou a oposição, que já se articula para protocolar mais um pedido de impeachment do presidente, como afirmou nas redes sociais a presidenta nacional do PT, Gleisi Hoffmann. O Governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), fez coro à petista: “Caso confirmado, o uso da Abin para interesses exclusivamente pessoais de Bolsonaro não é apenas crime de responsabilidade, sujeito a impeachment. É também crime comum e ato de improbidade administrativa”. Por sua vez, o PSB e a Rede pediram a saída de Ramagem do cargo. No momento, a bola está com o procurador-geral, Augusto Aras, que terá que investigar o caso e prestar contas ao STF sobre suas descobertas.

Caso fique provado que a Abin agiu para ajudar Flávio, será escrito mais um capítulo em uma história de episódios nos quais a atuação do presidente parece borrar a linha que separa os negócios privados do clã e a máquina pública. Do mais velho, o “01”, como Flávio é conhecido, até o “04”, referência a Renan, 22, o mais novo de seus quatro filhos homens, toda a prole de Bolsonaro (com exceção da caçula, Laura) foi afetada por ações do pai. Como o próprio presidente disse: “Pretendo beneficiar filho meu sim, pretendo, se puder dar um filé mignon para o meu filho, eu dou”. Veja as acusações de interferência do mandatário em órgãos públicos para ajudar a família:

A Justiça investiga Flávio, o “01”, e Carlos, o “02”

O suposto envolvimento da Abin para ajudar a defesa de Flávio é apenas o último movimento de um xadrez político que levou o presidente tomar medidas enérgicas para tentar aliviar a pressão sobre o senador e seu irmão, o vereador Carlos Bolsonaro, o filho “02”, que também entrou na mira das autoridades.

Sobre Carlos, pesam várias suspeitas. Uma delas é de peculato, ao empregar em seu gabinete funcionários fantasma. A mais rumorosa, no entanto, é a de que ele poderia ser o articulador de um esquema criminoso de disseminação de fake news. Um inquérito, com investigação da Polícia Federal, corre atualmente no Supremo. Nele, o “02″ é aparece como suspeito de ser líder do chamado “gabinete do ódio”, um grupo de assessores que se encarregam de espalhar mentiras sobre ministros do STF e apoiar manifestações antidemocráticas nas redes sociais e em grupos de apoiadores do presidente, pedindo o fechamento do Congresso e do STF.

Nos últimos meses, a PF desencadeou uma série de operações de busca e apreensão relacionadas a este caso, levando à prisão, inclusive, de influenciadores bolsonaristas. Foi o caso, na própria sexta-feira, do blogueiro Oswaldo Eustáquio. Ele estava em prisão domiciliar, mas descumpriu as restrições definidas pelo STF para ir participar de uma reunião no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, da ministra Damares Alves. A tornozeleira eletrônica denunciou seu deslocamento e ele foi recolhido por determinação do ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito.

Com os dois filhos mais velhos na mira de investigações, o clã presidencial passou para o ataque. O primeiro passo foi articular a troca no comando da Polícia Federal em abril deste ano, com a exoneração do diretor-geral da entidade, o delegado Maurício Valeixo —visto pela mandatário como muito independente. O então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, denunciou a orquestração: em seu discurso de renúncia, ele acusou o presidente de tentar influenciar politicamente a PF. “O presidente me disse, mais de uma vez, que ele queria ter uma pessoa do contato dele que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, colher relatórios de inteligência”, afirmou.

Posteriormente, o ministro demissionário apresentou à TV Globo uma troca de mensagens entre ele e o presidente na qual o mandatário teria sugerido a saída de Valeixo para proteger aliados. Posteriormente vieram à tona imagens de uma reunião ministerial na qual Bolsonaro diz que não esperaria alguém “foder” a família dele, ou amigo, para trocar alguém da “segurança”. A fala do mandatário também fazia referências ao Rio de Janeiro, onde as investigações se aproximam de Flávio e Carlos.

A suposta influência do presidente na chefia da PF para proteger aliados —dentre eles seus filhos— deu origem a um outro inquérito que tramita atualmente no STF para apurar se houve irregularidade. Não há prazo para sua conclusão, e o presidente ainda não foi ouvido.

Em outra frente para tentar blindar Flávio e Carlos, o clã entrou nas eleições para a chefia do Ministério Público do Rio, Estado onde correm investigações contra ambos. O atual procurador-geral, Eduardo Gussem, foi criticado pelo “01” por sua atuação no caso da rachadinha no gabinete. Os Bolsonaro cerraram fileiras em torno do procurador Marcelo Rocha Monteiro, bolsonarista assumido, como uma opção para a lista tríplice, definida em dezembro, de onde é escolhido o nome do próximo procurador-geral de Justiça do Estado. No final, Monteiro foi o quarto mais votado pelos promotores. Agora cabe ao governador interino Cláudio Castro optar por manter a tradição e indicar para a chefia um integrante da lista, ou fazer um aceno ao presidente nomeando o candidato da família para o cargo ―uma opção caso algum dos três integrantes da lista tríplice desista da candidatura.

Publicamente, o presidente alega que estes órgãos estão agindo para prejudicar seus filhos em uma tentativa de atingi-lo —ele chegou até a dizer que se tratava de perseguição política do então governador Wilson Witzel. Agora alvo de processo de impeachment, Witzel buscava se cacifar para disputar o Planalto em 2022, o que justificaria, segundo Bolsonaro, as tentativas de desmoralizar sua família.

Uma embaixada para Eduardo, o “03”

Em julho de 2019 o presidente fez um de seus mais ousados movimentos com o objetivo de colocar nas mãos da família um importante cargo público. Jair afirmou que iria indicar o deputado federal Eduardo Bolsonaro, o “03”, para a vaga de embaixador do Brasil em Washington, uma das mais cobiçadas e prestigiadas representações do país no exterior, tradicionalmente reservada para diplomatas de carreira que se destacam no exercício da função. “Vou nomear, sim. E quem disser que não vai mais votar em mim, lamento”, chegou a afirmar o presidente ao ser questionado sobre a medida. “Eu quero uma pessoa de confiança minha na embaixada dos EUA (...) Vocês acham que eu colocaria um filho meu em um posto de destaque desse para pagar vexame?”, indagou.

A indicação logo começou a fazer água. Sob acusações de nepotismo, parlamentares de oposição e mesmo alguns aliados do presidente começaram a boicotar a nomeação de Eduardo, alegando que ele não seria aprovado na sabatina a que teria que se submeter no Senado antes de ser empossado. A reação da população também desencorajou o Planalto a manter o nome do deputado para a vaga, com 62,8% dos brasileiros se opondo à ascensão do filho do presidente para o novo emprego, segundo uma pesquisa da consultoria Atlas Político. No final de outubro, pouco mais de um mês após o início das articulações em prol do “03” em Washington, o próprio Eduardo tomou a palavra da tribuna da Câmara e anunciou a desistência, alegando que precisava ficar no Brasil para ajudar a manter viva a onda conservadora que o elegeu.

O empreendedorismo de Renan, o “04”

Os negócios do filho caçula se misturaram recentemente com os do Governo, em ações que suscitaram críticas por possível tráfico de influência do presidente. A primeira sinalização de que Renan estava entrando no jogo político político com suacompanhia startup ocorreu em 13 de novembro, quando o caçula articulou e participou de uma reunião entre o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e um grupo de empresários da Gramazini Granitos e Mármores —companhia que patrocina a Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, fundada pelo caçula e cuja sede fica em um camarote do estádio Mané Garrincha. O compromisso não constava na agenda oficial do ministro e foi revelado pela revista Veja. A Gramazini apresentou a Marinho durante o encontro um projeto de moradias populares feitas em pedra. A pasta informou que Renan “participou na qualidade de ouvinte e por acreditar que o sistema construtivo teria potencial de reduzir custos para a União”, e que a reunião foi um pedido do Planalto.

Mas as relações da empresa de Renan com o Planalto vão além de promover reuniões entre os investidores de seu negócio e ministros. A Astronautas Filmes, produtora de audiovisual que possui contrato milionário com o Governo —tendo feito vídeos para os ministérios da Saúde, Educação e Turismo— realizou gratuitamente a cobertura da festa de inauguração da Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo. O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) solicitou à Procuradoria da República que investigue suposto tráfico de influência no caso.

Em nota, a Astronautas Filmes afirma que “a chamada ‘parceria’ com Renan Bolsonaro foi restrita à produção de um único vídeo de lançamento para um projeto social, que tinha como público-alvo empresários da cidade de Brasília. Ressalte-se, a convite dos organizadores do evento. Por se tratar de um público de interesse, optamos por inserir a marca da produtora na comunicação do evento em contrapartida ao produto entregue”. Eles também alegam que não existe nenhum “laço de favorecimento”.


RPD || Hussein Kalout: A diplomacia do caos

Política externa sob Bolsonaro se destaca pela irracionalidade, sem responder a interesses concretos do país, se pautando pelo combate frívolo a ameaças imaginárias, além de não refletir interesses ou valores nacionais, avalia Hussein Kalout

Desde a fundação da República, a política exterior do Estado brasileiro tem sido reflexo de consensos nacionais, balizada nos ditames do Direito e executada em conformidade com a dinâmica da ordem internacional. Pela primeira vez em nossa vida republicana, contudo, uma política externa destrutiva e irracional passou a ser implementada por meio de uma antidiplomacia, que, no lugar de buscar soluções, gera conflitos e tensões desnecessários.

Apesar da dissonância de visões ou de ênfases, ao largo dos diferentes governos republicanos, mínimos denominadores comuns uniam aqueles que assumiram a responsabilidade de formular os rumos da política externa nacional. O princípio da não-intervenção, o respeito à soberania do Estados, a defesa da autodeterminação dos povos e o respeito ao Direito Internacional compuseram as linhas mestras do processo decisório de nossa política exterior e guiaram a perseguição do interesse nacional desde pelo menos o Barão do Rio Branco.  

Hoje se assiste a uma ruptura com essa linha de continuidade. Não se trata de uma política externa simplesmente diferente. Trata-se, antes, da irracionalidade erigida como política de governo, uma vez que não responde a interesses concretos do país, mas se pauta pelo combate frívolo a ameaças imaginárias. Ao contrário do que apregoa, não reflete interesses ou valores nacionais, mas generaliza como visão nacional o que não passa de uma linha de pensamento marginal, cujo principal traço distintivo é a crença em teorias conspiratórias.

Essa política levou à destruição da reputação internacional do Brasil por meio da implementação de uma “estratégia” única: contra os perigos ilusórios do globalismo, supostamente refletidos nas instituições multilaterais e na aliança improvável de financistas, progressistas e grande mídia, que seriam os responsáveis últimos pela decadência do Ocidente, só restaria a alternativa da aliança subserviente com o governo Donald Trump. Trata-se de um equívoco monumental que seria risível se não fosse trágico.

Uma relação equilibrada e produtiva com os EUA é desejável e sempre foi o objetivo do Estado brasileiro. Mas o recurso à submissão não coaduna com a vocação de uma nação da envergadura do Brasil. É, na realidade, francamente contrária à vocação universalista da política externa brasileira e sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, tanto desenvolvidos quanto em desenvolvimento, em benefício de nossos próprios interesses.

"Não reflete interesses ou valores nacionais, mas generaliza como visão nacional o que não passa de uma linha de pensamento marginal, cujo principal traço distintivo é a crença em teorias conspiratórias"
Hussein Kalout

Essa subserviência está por trás das posições, ações e omissões desastrosas de nossa política externa, em contradição com os dispositivos da Constituição. Alguns dos exemplos vergonhosos são o apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a compra por valor de face da narrativa norte-americana sobre o Oriente Médio.  

O projeto em curso, além de violar flagrantemente a Constituição Federal e seus ditames, impinge ao país custos irreparáveis como o desmoronamento de nossa credibilidade, perdas econômicas e fuga de investimentos.

Na área ambiental, o Brasil que era visto, desde Rio-92, como líder natural no tema do desenvolvimento sustentável, agora é tratado com “pária ambiental”. A medíocre participação na COP-25, em Madri, foi o mais puro retrato da imposição de um auto fracasso diplomático –– e de custos irreparáveis ao nosso país.  

No sistema multilateral, éramos reconhecidos como ícones do respeito a uma ordem internacional baseada em regras, mas hoje somos vistos como um Estado “rejeitado”. Em vez de reformar e fortalecer o multilateralismo, para aprimorar sua capacidade de encontrar soluções comuns para problemas compartilhados, preferimos tecer loas ao unilateralismo, em detrimento de nossos próprios interesses, uma vez que o Brasil, embora seja país grande, conta com o poder suave da persuasão e não com o poder duro da força para influenciar processos decisórios internacionais.

Na América do Sul, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas e antidemocráticas. A relação entre Brasil e Argentina levou duas décadas para que as mútuas desconfianças fossem eliminadas, e a relação, estabilizada. Graças a uma diplomacia presidencial consciente de sua responsabilidade histórica, José Sarney e Raul Alfonsín, ainda nos anos 1980, puseram fim às fricções entre os dois países. A rivalidade deu ligar à cooperação. Como resultado, nasceu o Mercosul. Contudo, a abordagem ideológica e a tensão desnecessária com Buenos Aires podem arruinar as conquistas de uma diplomacia construtiva entre os dois países.

Prevalece, atualmente, o ceticismo em relação à integração regional, além do desprezo a qualquer iniciativa que não seja empreendida por governos afins ideologicamente. Com isso, o Brasil cede terreno a potências extrarregionais e abre mão da capacidade de defender seus interesses, como demonstra a retirada de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro da Venezuela, um verdadeiro tiro no pé motivado pelo sectarismo.  

Na Europa ocidental, o Brasil perdeu seu peso gravitacional. Qual é o ganho em confrontar parceiros estratégicos e tradicionais como França e Alemanha? O acordo Mercosul-União Europeia e o projeto de ingresso na OCDE dependem, em boa medida, de amplo consenso entre os países europeus. A antidiplomacia atual somente afasta o país de seus objetivos estratégicos, ao hostilizar países essenciais para a própria implementação da agenda econômica do atual governo.

O papelão de nossa diplomacia diante da maior crise mundial de saúde é estarrecedor. A ausência de liderança, o desrespeito à ciência e às instituições de pesquisa científica e a desnecessária agressividade contra o nosso maior parceiro comercial que é a China, revelam o nível de degradação institucional. Atacar os chineses em um momento em que a nossa economia precisa preservar o escoamento de sua produção e garantir acesso a produto hospitalares é um crime lesa-pátria. O atrito com Pequim somente irá gerar desinvestimentos, declínio da produtividade e aprofundar o fosso do desemprego. É difícil encontrar uma justificava racional mínima para explicar tamanho despautério.  

A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e necessária. Não há mais tempo a perder. O resgate dos princípios constitucionais das relações internacionais do Brasil não requer a reinvenção da roda, apenas o retorno à racionalidade e à nossa tradição diplomática, para que deixemos de lado a subserviência e a importação de conflitos que não nos pertencem. E para que o foco volte a ser no que interessa: a segurança, o bem-estar e a prosperidade do Brasil.

Sem os ingredientes do realismo e do pragmatismo não será possível construir qualquer projeto de política externa minimante defensável. Sem abandonar a ideologia, as fantasias e as alegorias fantasmagóricas que atualmente animam nossa “política externa” de corte fundamentalista, não será possível voltar a enxergar a realidade tal como ela é e não através de lentes psicodélicas. É preciso trabalhar para restaurar o corolário doutrinário da política externa. Devemos trazer a política externa ao seu leito tradicional, de Rio Branco a San Tiago Dantas, cujos elementos centrais foram consagrados pela Constituição Federal.  

Homens públicos de diferentes estirpes e crenças legaram ao país, por gerações e gerações, resultados tangíveis e amparados na melhor feição do patriotismo e da decência republicana. Para implementar uma política externa da destruição, ao arrepio dos princípios constitucionais, é preciso que se instale a amnésia diplomática, é imperativo que se desaprenda a fazer diplomacia, entendida como um método racional, implementada com base em memória histórica e institucional, enriquecida por uma tradição consolidada de maneira laboriosa por um corpo diplomático profissional.

Enfim, o que está sendo legado ao Brasil, desde o início da administração Bolsonaro, é a promoção de rupturas paradigmáticas nos cânones da política externa e, consequentemente, a tentativa de fundar um novo corolário doutrinário para expressar o interesse nacional sob o falso trinômio de liberdade, democracia e nacionalismo. Tudo para combater, em suma, o que se erigiu, fantasmagoricamente, de males que ameaçam o Brasil: comunismo, globalismo e autoritarismo. Essa diplomacia do caos e seus tentáculos obscurantistas cedo ou tarde têm encontro marcado com história.  

(*) Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard.  Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018).  


Ruy Castro: Bolsonaro oficializou o faroeste

Eduardo Bolsonaro tem razão em andar armado. Com tanta bala à solta ninguém está a salvo

Há anos fui abraçar um amigo, amado por muitos, e senti sob o casaco algo sólido na sua cintura. Uma arma, claro, e recolhi a mão. Ele não percebeu minha repulsa, mas fiquei triste. Por que alguém iria armado a um encontro de pessoas que se estimavam? Temia ser atacado, precisaria se defender e, talvez, reagir atirando? O que teria feito para isso? E só então o travo se dissipou. O objeto era um celular.

Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, deixou-se fotografar há dias com pai e irmãos no gabinete presidencial com um trabuco no cinto. O Planalto tem segurança própria, donde ninguém deveria sentir-se em perigo. Mas, conhecendo bem o governo de que faz parte, Eduardo Bolsonaro está atento. Com a quantidade de armas de fogo em mãos de particulares no Distrito Federal, nem o palácio é seguro. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o registro de armas no DF cresceu 539% em 2019, e um em cada 11 de seus cidadãos anda armado —sem contar o mercado ilegal.

Para sorte dos Bolsonaros, muitos dos brasileiros armados são seus amigos. Como a polícia acaba de descobrir, Ronnie Lessa, acusado de assassinar Marielle Franco e ex-vizinho do presidente num condomínio na Barra, comprava ferramentas pela internet para a montagem de fuzis de guerra. Imagino que, em seus churrascos, eles trocassem dicas sobre balas dum dum e silenciadores.

Bolsonaro oficializou o faroeste. Um decreto seu dificultou o rastreamento das armas em circulação. Com isso, o armamento apreendido diminuiu e o que volta para o crime aumentou. Qualquer um compra agora 300 munições por mês —eram 50 por ano até há pouco. Pessoas apontam armas no nariz uns dos outros e bandos praticam assaltos de cinema. Aumentou o feminicídio. Bandidos e policiais continuam matando e morrendo e, cada vez mais, sobram balas para as crianças.

Eduardo Bolsonaro tem razão em andar prevenido.


Bruno Boghossian: Os valores da família

Clã presidencial explora a estrutura do governo em benefício próprio

Não bastavam três filhos do presidente agarrados ao poder do pai. Nas últimas semanas, o quarto descendente de Jair Bolsonaro também decidiu apitar em decisões oficiais e misturar ações do governo com seus interesses particulares.

Aos 22 anos, Jair Renan Bolsonaro descolou uma reunião no Ministério do Desenvolvimento Regional para os donos de uma produtora de granito e mármore. Segundo a revista Veja, eles eram os novos patrocinadores de uma empresa de eventos e mídia fundada poucas semanas antes pelo filho 04 do presidente.

Os representantes da firma foram recebidos em 13 de novembro pelo ministro Rogério Marinho e apresentaram um projeto de casas populares. Jair Renan estava lá "por acreditar que o sistema construtivo teria potencial de reduzir custos para União". Ninguém explicou qual é a experiência do jovem no assunto. Ele cursa faculdade de análise e desenvolvimento de sistemas.

A reportagem informou que a reunião havia sido solicitada ao ministério pelo gabinete de Jair Bolsonaro. Numa ponta, o Palácio do Planalto se moveu para ajudar um financiador do filho do presidente. No outro lado, um ministério estendeu um tapete para agradar ao chefe.

A tranquilidade com que o lobby escancarado caminhou pela estrutura do governo é um exemplo menor da ocupação do poder liderada pela família. Afinal, outro filho do presidente já acionou o Gabinete de Segurança Institucional e a Agência Brasileira de Inteligência para resolver uma questão particular.

Flávio Bolsonaro pediu auxílio aos órgãos oficiais para conseguir provas que possam anular as investigações sobre as rachadinhas na Assembleia Legislativa do Rio. A Procuradoria-Geral da República disse que vai investigar o caso, mas é pouco provável que o 01 seja incomodado.

Já o Itamaraty trabalha para atender ao aos jogos ideológicos de Eduardo. Quando o filho 03 lançou mais uma ofensa à China, a chancelaria escreveu uma carta para defendê-lo. A República se move para servir ao clã.


El País: Na briga entre Eduardo Bolsonaro e a China, Planalto deveria temer destino da Austrália

Igor Patrick e Lucas Wosgrau para o El País

Presidente vê o Brasil como intocável, mas deveria olhar com atenção para as reprimendas comerciais que Pequim impôs ao gigante da Oceania

“Não temos problema nenhum com a China (...), nós precisamos da China e a China precisa muito mais de nós”. A mais recente declaração do presidente Jair Bolsonaro em relação ao maior parceiro econômico do Brasil é menos um reconhecimento da importância estratégica da relação bilateral que a tentativa de deixar claro que seu governo não vê —ou, pelo menos, evita anunciar— a China como um inimigo.

O presidente assumiu um papel pelo qual seu vice, o general Hamilton Mourão, se tornou conhecido na China: o de bombeiro de posicionamentos incendiários do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). A confusão patrimonial entre o que é governo e o que é família —marca da atuação dos Bolsonaro na política doméstica— revelou finalmente seu potencial de minar a relação estratégica entre Brasil e China.

A fala em dia eleitoral conclui uma semana marcada por tweets pró-Estados Unidos, e anti-China, assinados pelo deputado federal e membro da família presidencial. Provocativas, ameaçadoras e filosóficas, as mensagens trocadas na rede social favorita dos Bolsonaro (e dos diplomatas chineses) esticaram a corda na já tensionada relação Brasil-China.

A postura da embaixada da China, porém, denota uma subida de tom. Desta vez, a diplomacia não foi velada quanto a ameaças ao Brasil. Pelo Twitter, reagiu alertando para “consequências negativas” ao relacionamento bilateral e acusou o parlamentar de “solapar a relação amistosa” entre os países. É um sinal inequívoco de que, mais do que relegar ao quase-embaixador em Washington o papel de um simples parlamentar com viés sinofóbico, Pequim começa a dar ao “03” a importância de um oficial do Governo.

É óbvio —aqui e na China— que Eduardo Bolsonaro não é um deputado abusando de sua liberdade de expressão. Mourão, em março, deixou clara a mensagem que o pai do deputado, e presidente da República, não poderia dizer: “Se o sobrenome dele fosse Eduardo Bananinha, não era problema nenhum (...), ele não representa o Governo”.

O vice —personagem frequente na imprensa chinesa pela sua defesa da evolução das relações comerciais e culturais entre os dois países— tentava superar a verborragia do filho do presidente, que dias antes comparava a pandemia de covid-19 ao encobrimento da catástrofe nuclear em Chernobyl e acusava diretamente a China pelo espalhamento do vírus.

Se havia alguma dúvida sobre a origem e o respaldo aos comentários dentro do Palácio do Planalto, foi o chanceler Ernesto Araújo, o responsável por corroborar a impressão. A despeito dos apelos da embaixada chinesa por uma intervenção do Itamaraty na contenção de danos, o ministro criticou as declarações irritadas do embaixador Yang Wanming e negou que o deputado tivesse ofendido o Estado chinês.

À época, coube ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) colocar panos quentes. O recado veio por meio de uma reprimenda pública a Eduardo, cuja “atitude não condiz com a importância da parceria estratégica Brasil-China e com os ritos da diplomacia”, nas palavras de Maia. Em parte, também era uma tentativa de blindar o Congresso: pelo menos por enquanto, Eduardo segue como presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e, se não fala pelo Planalto, em alguma medida representa seus colegas congressistas.

Entre política de Estado e estratégia eleitoreira

Os tweets de Eduardo Bolsonaro foram percebidos em março como perigosa provocação e depois como tomada de posição. A China vem denunciando mundialmente o que considera “antagonismo à moda da Guerra Fria” e os danos dessa mentalidade ao multilateralismo, ao direito internacional e à possibilidade de avanço do desenvolvimento global percebido desde sua entrada na Organização Mundial do Comércio em 2001.

Em um país democrático, a representação oficial chinesa no Brasil deveria esperar opiniões críticas e expressões de parlamentares que buscam representar um eleitorado tradicionalista —mais que conservador— insensível a qualquer argumento econômico. A disputa se justifica, no entanto, porque o sentimento vocalizado por Eduardo ecoa na opinião pública brasileira, normalizando a antítese do pragmatismo ganha-ganha que marcou a construção da relação bilateral desde Geisel até Dilma.

A política doméstica chinesa e a legitimidade do governo Partido Comunista da China se tornaram assunto nos salões do Itamaraty e do Alvorada. A chancelaria de Ernesto Araújo reservou à Fundação Alexandre Gusmão (a histórica FUNAG) o espaço de crítica intelectual —por falta de melhor adjetivo— ao comunismo, globalismo e materialismo anti-ocidental.

Essa ideologia esquerdista teria encontrado na China —após a queda do muro de Berlim— uma campeã irresistível apoiada por elites liberais, Hollywood, Wall Street e o Vaticano do papa Francisco. Os aliados ideológicos da China, por serem modernos, são os inimigos íntimos do tradicionalismo defendido por Olavo de Carvalho e Araújo. É compreensível que os chineses critiquem a convivência de pragmatas —capitaneados por Mourão e os ministros Teresa Cristina (Agricultura) e Tarcísio Freitas (Infraestrutura)— e cruzados dedicados à metapolítica.

Há, portanto, pouca margem de questionamento sobre por que a China deixou de ver Eduardo como um parlamentar sem filtros, com pouca influência na política externa brasileira para alguém que legitimamente fala em nome do governo. A resposta está em seu entorno, quando o líder da chancelaria, os membros da ala ideológica e, em alguma medida, até o presidente endossam seu discurso (mesmo que de forma mais sutil e, por vezes, normalizando embaraçosamente ideias pouco convencionais no debate público).

Esta abordagem caótica é, em parte, o reflexo direto de um problema nunca superado na cultura política brasileira e aprofundado consideravelmente nesta gestão bolsonarista: o patrimonialismo do presidente e sua família desconhece (ou ignora) a personalidade jurídica simbolizada na figura do Estado. Jogam para a claque porque o eleitorado fiel ou compra de bom grado a narrativa ou não se importa com as consequências dela. O bolsonarismo instrumentalizou o Itamaraty como braço da campanha de 2022.

Para os chineses —onde os limites entre Partido e Estado também são nebulosos—, os ruídos de comunicação são mais barulhentos que as vozes sensatas espalhadas em outras esferas políticas ou mesmo dentro da administração. Ainda que o Ministério das Relações Exteriores evite liderar acusações à China em matérias polêmicas, como as causas da pandemia da covid-19 e o leilão do 5G, o dano midiático já está feito.

Perdida, culturalmente ignorante sobre a história, a cultura e a política chinesa, a imprensa pouco faz para contestar o discurso xenofóbico e ignorante que escorre dos esgotos de Brasília. Sem repertório e com pouca tradição na cobertura de eventos internacionais, se fia pelos exemplos de outros países do hemisfério Norte na tentativa de encontrar alguma pista do que o futuro nos reserva nessa briga sem sentido. Mas as respostas não estão nos Estados Unidos: estão em um país da Oceania.

“Australização” das relações é ameaça real

No espectro de trocas bilaterais, poucos governos ocupam um espaço tão destacado para a política externa chinesa quanto o australiano. Não obstante ser o lar da maior comunidade chinesa fora da China em todo mundo, Camberra mantém fortes laços educacionais e comerciais com Pequim, essenciais ao seu crescimento. É a Austrália —não o Brasil— a principal fornecedora de carne bovina, vinhos e minério de ferro ao gigante asiático. Sua matriz exportadora é muito semelhante à nossa, guardadas as proporções em volume: a balança comercial deles com a China chegou a 103 bilhões de dólares (cerca de 600 bilhões de reais) em 2019, número maior que o Brasil registrou no mesmo período (pouco mais de 98 bilhões de dólares, ou 560 bilhões de reais).

Nada disso evitou as duras reprimendas comerciais chinesas aos australianos. Com o acirramento de relações e acusações que vão desde espionagem até crimes de guerra, passando pela insistência do premiê Scott Morrison em comandar uma investigação independente sobre as origens da covid-19, as trocas comerciais foram duramente afetadas.

Em agosto, a alfândega da China já tinha banido a importação de cinco tradicionais frigoríficos australianos, justificando a decisão por motivos sanitários (de acordo com os chineses, amostras indicavam o uso de cloranfenicol, um antibiótico veterinário para combate à febre tifóide). Coincidência ou não, a ordem foi anunciada dias após Morrison apresentar uma legislação dando ao governo federal o poder de veto a acordos com potências estrangeiras, uma clara tentativa de barrar cooperação comercial do Estado de Vitória com a iniciativa chinesa Um Cinturão, Uma Rota.

A mais recente investida de Pequim? A decisão de impor tarifas de até 212% ao vinho australiano, uma decisão que contrária ao próprio posicionamento chinês na Organização Mundial do Comércio, mas com potencial para efetivamente falir a indústria australiana.

Números e retórica tão dura assim ainda deixam margem para pensar que a China depende mais do Brasil que nós deles? Se ainda restar dúvidas, basta ver os movimentos recentes dos chineses. Em agosto, a Rússia anunciou que pretende ampliar o volume de suprimentos de soja para os chineses em 3,7 milhões de toneladas até 2024. Dois meses depois, Pequim fechou acordo para importar 103 milhões de toneladas de soja anualmente da Tanzânia, país com ambiente político muito mais favorável aos chineses. São iniciativas tímidas e incapazes de substituir o peso de Brasil e Estados Unidos para suprir a demanda do grão, mas funcionam como mensagem cifrada. Há alternativas.

A conta pelo isolacionismo promovido por Bolsonaro vem chegando aos poucos. Sem o apoio do “amigão” Donald Trump na cadeira da Casa Branca, os apelos de socorro podem encontrar uma comunidade internacional conscientemente surda e ansiosa por um escolha melhor e minimamente civilizada nas urnas de 2022.

Igor Patrick é um jornalista especializado na cobertura da China e mestrando em Política e Relações Internacionais na Yenching Academy da Universidade de Pequim. É diretor de comunicação da Observa China.

Lucas Wosgrau Padilha é advogado especializado em Direito Econômico e Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). É mestrando em Direito e Sociedade na Yenching Academy da Universidade de Pequim e diretor de estratégia da Observa China.


Míriam Leitão: A conta será do agronegócio

Sim, a China pode nos atingir com as consequências negativas desse tipo de agressão grosseira, gratuita e infantil como a do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). O agronegócio precisa se mexer, porque é o alvo. Basta que a China queira fazer um gesto de boa vontade em relação ao governo Biden e passe a redirecionar sua compra de soja para lá. Ou que invista em países que substituam pelo menos em parte as exportações brasileiras de alimentos. Uma pequena redução já nos afetará.

Essa é a visão de um diplomata experiente que vê com perplexidade os movimentos sem eira nem beira da nossa política externa. A palavra dura também cabe na diplomacia, mas só deve ser usada com algum propósito bem definido. Nada da política externa do governo Bolsonaro tem rumo. Uma política biruta.

Um analista bem próximo ao governo Bolsonaro que, contudo, discorda da tendência que tem tomado a política externa, explica a raiz do problema. O verdadeiro chanceler é o assessor internacional Filipe Martins, um jovem sem qualquer qualificação para a ascendência que tem sobre assunto tão relevante. “O Ernesto é um maria vai com as outras”, explicou esse analista.

De fato, o atual ministro só mostrou seu fervor de extrema-direita durante a campanha presidencial, criando um blog para se alavancar para o cargo. Uma vez lá, passou a aceitar todo tipo de interferência e se coloca subserviente aos ditames tanto de Eduardo Bolsonaro quanto de Filipe Martins, um fanático olavista, sem qualquer experiência no ramo.

A mensagem postada pelo filho do presidente era tão absurda que foi apagada depois. Eduardo Bolsonaro estava fazendo mais um ato explícito de vassalagem ao governo de Donald Trump, que está nos seus dias finais. Como foram muitas outras agressões dele, de Araújo, do próprio presidente, a embaixada chinesa reagiu falando que o deputado está solapando as relações entre os dois países. E disse que ele deveria “evitar ir longe demais” para não “arcar com as consequências negativas”.

A China é o nosso maior parceiro comercial, um dos maiores investidores. Mesmo que não fosse, não há razão alguma para que se dê ao filho do presidente o direito de ofender qualquer país na hora que decide postar algo nas redes sociais.

A relação Estados Unidos e China vai passar por um outro momento agora com a posse de Joe Biden. Pode vir a ser até mais tensa do que antes. Com Trump, havia escaramuças intempestivas, ataques via Twitter, idas e vindas. Com Biden, haverá mais estratégia na disputa que continuará existindo entre as duas potências. Mas, uma carta no baralho chinês, em qualquer contexto, será sempre a de aumentar as compras de soja e de outras commodities agrícolas no mercado americano. Nesse caso, o agronegócio exportador brasileiro pagará a conta. Se os empresários não se insurgirem, se acharem que basta resmungar, estarão mais vulneráveis.

Em artigo publicado ontem no “New York Times”, o analista David Leonhardt disse que o governo Trump foi um presente para a China. “Ele antagonizou aliados que estavam também preocupados com o crescimento da China, em vez de construir uma coalizão com Japão, Europa, Austrália e outros.” Foi, segundo ele, citando um professor chinês da London School, um “presente estratégico para a China”. De fato, nesta hora poente de Trump no poder, a China fechou um acordo, no último dia 15, com um grupo de 15 países asiáticos, inclusive o Japão, considerado o maior acordo de livre comércio do mundo. Trump havia retirado os Estados Unidos da Parceria Transpacífica, costurada por Barack Obama, para estabelecer com vizinhos da China um acordo de comércio. A China aproveitou o erro de Trump e fez seu próprio tratado. Esse episódio mostra como a diplomacia é um jogo para profissionais. Amadores acabam atirando sempre no próprio pé.

Biden, em artigo publicado na revista “Foreign Affairs”, disse que os Estados Unidos precisavam ser “duros” com a China. Com Biden, os Estados Unidos voltam ao multilateralismo, mas a rivalidade com os chineses continuará. Só que, ao mesmo tempo, na área comercial e econômica, há uma simbiose entre os dois países, ao contrário do que havia na bipolaridade da Guerra Fria. Diante de relação tão complexa, cabe ao Brasil não tomar partido, porque a missão da política externa brasileira é defender os interesses brasileiros.


Merval Pereira: Visão obtusa

O preocupante é que o que o deputado federal Eduardo Bolsonaro fez, colocando no twitter uma acusação à China de que usa a tecnologia 5G para fazer espionagem, corresponde ao que pensam seu pai, o presidente Bolsonaro, e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.

Se fosse um deputado qualquer, como sempre foi, Eduardo ou seus irmãos poderiam fazer as bobagens que sempre fizeram, e ninguém ligaria, como nunca ninguém ligou antes de eles sairem do anonimato para o proscênio da vida política nacional pelos azares da sorte.

Mas houve repercussão porque, além de filho do presidente, Eduardo Bolsonaro preside a Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Então, o que ele diz vale mais do que qualquer deputado, vale como sendo o pensamento do presidente da República. Essa é a gravidade da atitude irresponsável que tomou.

Tentou remediar, apagou a mensagem, mas não dava mais para evitar a crise. É uma posição ideológica burra, e os membros da Comissão de Relações Exteriores já começam a se movimentar para retirá-lo da presidência. Ou pelo menos deixar claro que suas postagens pessoais no Twitter não representam o pensamento da maioria da Comissão. 

A China é nosso maior parceiro, e tem sido o responsável pelo superávit de nossa balança comercial. O Brasil não tem que entrar nessa disputa ideológica dos EUA com a China. Os EUA têm razões para essa postura, porque a a disputa pela tecnologia 5G é a disputa do futuro, e quanto mais países ficarem do lado dos EUA, melhor pra eles. Faz sentido a Inglaterra, o Japão, e outros países barrarem as companhias chinesas em favor dos Estados Unidos, são regiões e países que dependem muito diretamente dos EUA, economicamente e até mesmo em questões de segurança nacional, e pretendem ser protegidos em caso de conflito.

Essa posição dificilmente mudará com o governo democrata de Joe Biden, mas provavelmente será menos truculenta do que atualmente. O objetivo, porém, é o mesmo: tentar neutralizar o avanço chinês. Mas o Brasil não tem nada a ver com essa geopolítica, tem que aproveitar o melhor dos dois mundos, dos EUA e da China. Não precisa necessariamente fechar com um deles para ter benefícios, tem que fazer uma análise técnica, ver o que é melhor para nosso estágio de desenvolvimento.

É certo que a tecnologia 5 G da China é mais adiantada, e se adapta melhor ao nosso sistema já instalado, porque muitas ferramentas e dispositivos já em uso no 4G são de empresas chinesas. Diante desse quadro, é preciso ver se há vantagem em optar por outra tecnologia.

A questão da espionagem chinesa parece ser uma fabulação trumpiniana, mas temos que ser realistas. A espionagem é uma atividade que todos os países utilizam, e é quase ridículo assumir que apenas um dos lados na disputa pelo predomínio internacional faz uso dela.

Recentemente, o Brasil já teve problemas com os Estados Unidos nessa área. Em 2015, o site Wikileaks divulgou uma lista classificada pela Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos como "ultrassecreta", a qual revelava que, além da própria presidente Dilma Rousseff, cerca de 30 números telefônicos, incluindo o de ministros, diplomatas e assessores foram espionados. Até mesmo o telefone via satélite instalado no avião presidencial era um desses números.  O então vice-presidente Joe Biden esteve no Brasil para tentar aparar as arestas depois da revelação. Provavelmente os Bolsonaro devem ter achado pouco e bom o governo petista ter sido espionado.

Não é necessário, pois, criar embates diplomáticos com o maior parceiro comercial do Brasil. A nota da embaixada da China foi dura, fora dos padrões diplomáticos, mas a mensagem de Eduardo Bolsonaro foi fora dos padrões diplomáticos também, sem falar na reincidência.

Meses antes, o deputado acusara pelo Twitter o governo da China de ter espalhado propositalmente o coronavírus Covid19. Como se vê, o filho 03 não tem a menor noção do que seja diplomacia. Queria ser embaixador do Brasil nos EUA, mas não tem a menor capacidade, nem mesmo de diálogo, quanto mais de usar uma linguagem mais sutil no embate diplomático.


Cacá Diegues: Pensar com liberdade

Radicalização serve às ações que populistas autoritários desejam consagrar

Desde junho de 2016, encontra-se paralisado, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, um projeto de lei, do já então deputado Eduardo Bolsonaro, que pretende tornar crime o elogio, a pregação, a apologia das ideias do comunismo e do regime delas decorrente. A pena prevista pode chegar a 30 anos de prisão, conforme a gravidade do delito.

No documento que justifica o projeto, o deputado tenta justificar também os crimes de tortura praticados durante a ditadura no Brasil, de 1964 a 1985, considerando que o terrorismo político havia antecedido à tortura, como se esta fosse uma justa e bastante resposta àquele. “O Estado brasileiro teve de usar seus recursos para fazer frente a grupos que não admitiam a ordem vigente”, diz o documento.

Além das ideias comunistas, o projeto também considera crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que usem a foice e o martelo ou quaisquer outros meios para fins de divulgação favorável ao comunismo”. Num esforço de isenção, o documento considera igualmente criminosas as ideias e a propaganda nazistas.

Não sei dizer se o projeto de Eduardo é anterior ou posterior àquele da “pílula do câncer”, o projeto de seu pai, então também deputado, pedindo o reconhecimento dos milagrosos efeitos do tal comprimido contra a doença fatal. Este foi um dos três únicos projetos de lei apresentados por Jair Messias, durante seus 28 anos de estrela do chamado baixo clero, titulares muito especiais de nossa Câmara Federal. Mas sendo ou não simultâneos, os dois formam uma indiscutível dupla do barulho legislativa.

São projetos que bem podiam ter sido pensados e promovidos pelo líder deles todos, o presidente americano Donald Trump, incentivador e avalista dos passos mais significativos do populismo autoritário que o mundo vem desenvolvendo nesses últimos tempos, na diluição das democracias convertidas em espetáculos grotescos de piadas e notícias falsas, em redes sociais. É preciso criminalizar as iniciativas ideológicas que se opõem ao sistema, não deixar que elas se manifestem à vontade, com normalidade.

Esse momento de radicalização das ideologias serve às ações que esses populistas autoritários desejam consagrar. Não se trata apenas de uma estratégia simplista de cobrar a radicalização das ideias; mas, disfarçado por trás dessa máscara, do esforço de evitar todo o debate de referência política, ética e cultural, um modo de evitar o confronto de ideias proibindo-as simplesmente.

Acusar todo progressista de comunista ou todo conservador de fascista, atirar todo discurso de esquerda nos braços do projeto comunista ou todo discurso de direita nos do fascista é eliminar as possibilidades que se encontram ao longo da distância entre um e outro. A humanidade levou séculos pensando alternativas a modos de viver, rompendo com as hierarquias produzidas, ao longo desse tempo, em ações e ideias que a faziam progredir apesar de tudo. Não é possível, nem seria justo, eliminarmos tudo o que se encontra entre os dois extremos, eliminarmos as nuances, as combinações, os erros que teremos que cometer para o nosso bem. E, talvez, para o bem de todos.

Se o fascismo é um exercício de poder discricionário sobre o outro, não vi recentemente nada mais fascista, em nosso ambiente social, do que aquilo que o desembargador Eduardo de Siqueira fez com Cícero Hilário, o corretíssimo guarda municipal de Santos. As consequências são menos graves do que as do Holocausto ou as das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Mas a democracia abriu um espaço para tornar mais grave, para nós, aquilo que nos acontece num momento especial. Tornou-se talvez impossível evitar um sentimento de prioridade ao que nos sucede.

Há cerca de um mês, Ascânio Seleme nos contou uma história sobre Muhammad Ali que eu, seu velho fã, não conhecia. Em junho de 1967, quando Ali, convocado para lutar no Vietnã, recusou-se a integrar as Forças Armadas americanas, 11 dos mais renomados desportistas negros dos EUA se reuniram com ele para demovê-lo dessa decisão. O chamado “Ali Summit” durou quatro horas e, ao seu final, os 11 atletas saíram apoiando o boxeador. Quem estava com a verdade? Ou: como estabelecer a verdade?

Durante a nossa ditadura, como escreveu José Casado, o governo militar “ajustava o câmbio, arrochava salários, reprimia protestos e as empresas lucravam”. Se havia ganhos concretos, acionistas e dirigentes multinacionais estavam pouco se importando com o que acontecia no Brasil, não era da conta deles. Nos EUA, uma lei, no fim dos anos 1980, ressarciu moradores japoneses, vítimas de discriminação civil durante a Segunda Guerra Mundial. Mas os ex-escravizados, em muito maior número, sofrendo durante muito mais tempo, nunca foram recompensados com nada. Os diversos julgamentos serão sempre relativos e nunca decisivos. Se os aprisionarmos em correntes de qualquer espécie, nos enganaremos sempre.


El País: Esforço de Eduardo Bolsonaro para demonizar China copia Trump e ameaça elo estratégico do Brasil

Embaixador chinês em Brasília é ameaçado por telefone após responder filho de presidente. Pequim negocia ajuda ao Brasil na crise do coronavírus

Acostumada a criar suas próprias crises, a família Bolsonaro decidiu entrar de cabeça em mais uma briga, com todas os elementos de estratégia diversionista. Dessa vez, envolve a China, o maior parceiro econômico do Brasil, que responde por um quarto da balança comercial —neste ano foi de 15,5 bilhões de dólares até fevereiro. O responsável pela mais recente autossabotagem contagiosa foi o terceiro herdeiro de Jair Bolsonaro (sem partido) e presidente da Comissão de Defesa e Relações Exteriores da Câmara, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Na quarta-feira, o parlamentar comprou pelo Twitter uma narrativa comum entre a rede de militantes da ultradireita. Segundo esse discurso, se a China fosse uma democracia, não uma ditadura, a pandemia de coronavírus teria sido barrada.

“Mais uma vez, uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução”. Foi uma crise iniciada por uma breve declaração em 45 palavras, em resposta à outra postagem de um usuário. No dia seguinte, como também é comum no jogo bolsonarista de vai-e-vens, o filho do presidente ensaiou baixar o tom em um textão de 560 palavras, no qual diz que não quis ofender o povo chinês. Ao mesmo tempo, no entanto, repetiu ofensas semelhantes em entrevista ao canal CNN Brasil, ao vivo.

Se tudo faz parte do cardápio típico dos Bolsonaro, que sabem como poucos criar uma controvérsia para desviar um assunto incômodo —como os panelaços contra o pai, por exemplo—, inusual foi a reação da China. Pouco frequentador do Twitter, o embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming, recorreu à rede para se queixar de Eduardo, cobrou que ele pedisse desculpas ao seu povo e falou que protestaria junto ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e ao chanceler Ernesto Araújo. Também na rede, a embaixada da China foi ainda mais dura. Acusou o deputado de, após ter voltado de uma viagem a Miami na semana passada, teria contraído um “vírus mental”, que estaria afetando a amizade entre os dois povos.

“Aconselhamos que não corra para ser o porta-voz dos EUA no Brasil, sob a pena de tropeçar feio”, diz uma das postagens da embaixada. O embaixador ainda compartilhou uma postagem na qual a pessoa chamava a família do presidente de “Bozonaro”. A alfinetada, citando os EUA, não é à toa. Eduardo Bolsonaro tem se comportado como um disciplinado defensor dos interesses da Casa Branca no Brasil, inclusive fazendo campanha contra a participação de uma empresa chinesa no leilão da tecnologia 5G. Além disso, Trump também tem usado a crise do coronavírus para irritar Pequim. Sempre que pode chama a Covid-19 de “vírus chinês”.

Ameaças ao embaixador pelo telefone e ‘bombeiros’
Nesta quinta, a embaixada voltou a responder após a entrevista na CNN: “São absurdas e perconceituosas as suas palavras, além de ser irresponsáveis. Não vale a pena refutá-las”. Fontes da diplomacia disseram que Yang foi ameaçado por telefone, depois que respondeu aos ataques do filho do presidente. A alfinetada chinesa não é por acaso.

Os bombeiros tiveram de agir. Do Palácio do Planalto, o vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que o parlamentar não representava o Governo de seu pai. “O Eduardo Bolsonaro é um deputado. Se o sobrenome dele fosse Eduardo Bananinha, não era problema nenhum. Só por causa do sobrenome. Ele não representa o Governo”, disse à Mourão ao jornal Folha de S. Paulo. Da Câmara, Maia pediu desculpas em nome dos deputados. “A atitude não condiz com a importância da parceria estratégica Brasil-China e com os ritos da diplomacia”, afirmou pelas suas redes. E do Itamaraty, o ministro Araújo chamou a atenção tanto do embaixador Yang quanto do deputado Eduardo. Afirmou que o chinês ofendeu o presidente brasileiro e que sua reação às críticas do deputado eram desproporcionais. E ressaltou que o parlamentar não falava em nome do Executivo.

A repercussão no Parlamento e entre empresários foi quase imediata e dura. Em nota, assinada pelo seu presidente, Alceu Moreira, a Frente Parlamentar da Agropecuária, da qual participam quase 300 dos 584 parlamentares brasileiros, ressaltou que “declarações isoladas não representam o sentimento da nação ou de qualquer setor”. O Instituto Sociocultural Brasil-China (IBRACHINA) repudiou as críticas do congressista e a tratam como um “ataque discriminatório contra a comunidade chinesa”. Em documento assinado pelo presidente do órgão, Thomas Law, a entidade comparou a atitude de Eduardo a de fascistas. “Culpar o povo chinês, que mais sofreu com o coronavírus, é inadmissível. O filósofo alemão Theodor Adorno definiu esse tipo de ataque com clareza em 1947 ao afirmar que ‘culpar a vítima é uma das características mais sinistras do caráter fascista’”.

Nas redes bolsonaristas, entretanto, o discurso do parlamentar foi aplaudido. Em quatro grupos de WhatsApp que a reportagem monitora era comum receber mensagens como: o “vírus é chinês” ou a “China ataca o Brasil”. Neles, os autores das postagens e das imagens diziam que o deputado Eduardo tinha razão. E apresentavam teorias conspiratórias como a de terraplanistas que creem que os chineses criaram o vírus para ganharem mais dinheiro nas bolsas de valores.

Em seu Twitter, o professor de relações internacionais da FGV e colunista do EL PAÍS, Oliver Stuenkel, disse que o ataque de Eduardo à China era calculado. “[Ele] desvia a atenção da resposta incoerente do Governo à pandemia e mobiliza apoiadores contra um inimigo comum. Tentará criar sentimentos anticomunistas e nacionalistas”. Também classificou a reação do embaixador chinês como um erro. “Afinal, é exatamente isso que ele [Eduardo] precisa para começar a briga. Teria sido melhor ignorar o episódio”.

Assessores do presidente Bolsonaro reclamaram das críticas feitas pelo seu herdeiro e lembraram que, além dos negócios entre os dois países, a parceria no combate ao coronavírus pode ser afetada. Desde a semana passada o Brasil negocia a doação de respiradores e equipamentos de proteção individual que os chineses não estão mais usando após a contenção da pandemia no país.

Até esse episódio de autossabotagem, a relação Bolsonaro-Xi Jinping estava normal, mesmo após as palavras inflamadas do brasileiro na campanha eleitoral e tendo as visões ideológicas distintas. Eles se encontraram em reuniões bilaterais em ao menos duas ocasiões no último ano. Uma demonstração do bom relacionamento foi quando a equipe de Xi concordou em ajudar a gestão Bolsonaro a repatriar 34 brasileiros que viviam em Wuhan, o epicentro da pandemia no mês de fevereiro. Agora, no Ministério da Saúde a expectativa é que prevaleçam os argumentos técnicos, não os de palanque eleitoral.

À noite, a embaixada da China emitiu uma nota na qual cobrou maior empenho do Itamaraty para solucionar essa crise. “Esperamos que o Itamaraty possa tomar ciência do grau de gravidade desse episódio e alertar o deputado Eduardo Bolsonaro a tomar mais cautela nos seus comportamentos e palavras, não fazer coisas que não condigam com o seu estatuto, não falar coisas que prejudiquem o relacionamento bilateral e não praticar atividades que danifiquem a nossa cooperação.”