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El País: Vacinas trazem alento ao Brasil em dia de redenção para a ciência e revés político para Bolsonaro

Aprovação de uso emergencial de imunizantes pela Anvisa coroa triunfo simbólico dos cientistas sobre negacionismo, mas vacinação ainda tem obstáculos logísticos e políticos pela frente

Breiller Pires e Carla Jiménez, El País

A decisão da Anvisa, que, neste domingo, aprovou por unanimidade o uso emergencial das vacinas de Oxford e AstraZeneca no Brasil, é celebrada não apenas como um alento diante do recrudescimento da pandemia de coronavírus, mas também como uma vitória do aparato científico sobre o negacionismo e os discursos antivacinas que ecoam até mesmo no Governo federal. Decisiva para o desenvolvimento dos imunizantes contra a covid-19, a ciência foi aclamada, sobretudo, nas análises técnicas e justificativas de votos favoráveis ao aval para o início da vacinação em território brasileiro.

“No nosso vocabulário, não há espaço para negação da ciência nem para a politização das vacinas. Verdadeiramente, não há”, disse Alex Machado Campos, ex-chefe de gabinete de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, ao proferir o voto que decretou maioria para a aprovação das vacinas. Antes, o diretor da Anvisa elogiou o rigor científico do parecer conduzido pela relatora Meiruze Freitas, que, ao esmiuçar seu relatório, cobrou que autoridades e governos sensibilizem a população sobre a importância de se vacinar. “A vacinação contra a covid-19 ajudará na proteção individual e coletiva. Uma vacina só é eficaz se as pessoas estiverem dispostas a tomá-la”, discursou. Ela ainda criticou a prescrição de medicamentos sem comprovação científica.

Durante a apresentação técnica da análise das vacinas, o gerente geral de Medicamentos e Produtos Biológicos, Gustavo Mendes, destacou que o panorama de “muita tensão pela falta de insumos necessários para o enfrentamento da doença” no Brasil justifica a autorização para o início de aplicação dos imunizantes. Ao longo da reunião, a Anvisa deixou claro que um dos motivos que embasaram a decisão de liberar o uso emergencial é a “ausência de alternativas terapêuticas” para o vírus, contrapondo a tese de “tratamento precoce” —sem comprovação científica— defendida pelo Governo Bolsonaro.

Miguel Nicolelis, colunista do EL PAÍS e coordenador do projeto Mandacaru, um coletivo de pesquisadores voluntários no combate à pandemia, encara a aprovação em caráter de emergência das vacinas no Brasil como um marco para a ciência global. “É um ponto de partida muito importante, uma vitória da ciência em termos gerais”, diz o neurocientista. “Presenciamos uma ampla colaboração entre a ciência chinesa, que desenvolveu a tecnologia das vacinas com uma agilidade sem precedentes, e a ciência brasileira. Se Butantan e Fiocruz não tivessem sido capacitados ao longo de décadas, não viveríamos esse momento. É uma prova de sucesso do método de colaboração científica sem fronteiras, e de que as instituições de Estado devem ser sempre apoiadas, independentemente de quem governa o país.”

Nas redes sociais, a autorização da Anvisa também foi comemorada sob ares triunfais pela comunidade científica. “Estamos vendo a história ser escrita e transparência é fundamental. Assim como critérios técnicos”, escreveu o pesquisador Atila Iamarino ao elogiar a exposição minuciosa da agência reguladora. “Nós temos a solução que a ciência nos trouxe: vacinas seguras e eficazes.” Segunda pessoa a ser vacinada no Brasil, logo após a enfermeira Mônica Calazans, o também enfermeiro Wilson Paes de Pádua, 57, exaltou o trabalho científico por trás da batalha contra o coronavírus. “Nós temos de lutar pela vacina, lutar pela ciência, para melhorar a saúde e sair dessa pandemia. Eu me sinto muito orgulhoso de fazer parte desse momento histórico.”

Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) acompanhou a reunião da Anvisa ao lado de uma comissão científica, congregando, segundo ele, “alguns dos mais renomados cientistas do país”. Assim que foi anunciada a aprovação, Doria publicou um vídeo para comemorar o início da imunização de profissionais da saúde no Estado. “Dia histórico para ciência brasileira”, afirmou o governador. “A vacina do Butantan é uma vitória da ciência. Vitória da vida. Vitória do Brasil.” Para ele, particularmente, uma vitória política sobre o presidente Jair Bolsonaro, com quem passou a travar corrida para exibir a primeira foto de uma pessoa vacinada no país.

O baque do espetáculo midiático protagonizado por Doria, que chegou ao fim do dia com mais de 100 pessoas imunizadas em São Paulo, foi rapidamente acusado pelo Governo. Enquanto o governador paulista posava para as câmeras com a enfermeira Mônica Calazans, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, abria uma coletiva de imprensa irritado com o que qualificou como “jogada de marketing” do rival de Bolsonaro. “Nós poderíamos iniciar a primeira dose em uma pessoa hoje mesmo, num ato simbólico. Em respeito a todos os governadores, não faremos isso. Não podemos desprezar a lealdade federativa”, disse o ministro.

Pazuello ainda fez uma espécie de desabafo, em que cobrou do Instituto Butantan, ligado ao Governo de São Paulo, exclusividade sobre as 6 milhões de doses atualmente disponíveis da Coronavac. Para o ministro, a aplicação de doses neste domingo “está em desacordo com a lei” e acusou “movimentos políticos e eleitoreiros” de capitalizarem com a pandemia. “Ouço calado, o tempo todo, a politização da vacina. A produção do Butantan, por exemplo, foi bancada com recursos do Ministério da Saúde.” Doria, por sua vez, rebateu o ministro, afirmando que não houve investimento da pasta nem nos testes nem na fabricação da Coronavac. “Não há um centavo do Governo Federal na produção da vacina”.

De acordo com o Ministério da Saúde, a distribuição proporcional das vacinas aos Estados começará a partir das 7h desta segunda-feira, e a data inicial da vacinação segue mantida para quarta, 20 de janeiro, apesar do atraso na remessa de 2 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca e do embate político com São Paulo pelo estoque de 6 milhões da Coronavac. Por enquanto, Doria só assegura o envio de 4,7 milhões de doses, pois 1,3 milhão ficam em São Paulo. O governador dedicou grande parte do tempo de coletiva de imprensa para criticar o Governo Bolsonaro e identificá-lo como afeito à morte, uma característica cruel em plena pandemia.

Pazuello, por sua vez, também fará seu ‘marketing’ num ato simbólico às 7 da manhã em Guarulhos, na grande São Paulo, para marcar a distribuição das doses da Coronavac. O ministro espera que, até o fim da semana, a Índia libere o lote retido dos insumos produzidos pelo Serum Institute. O Ministério da Saúde não detalhou como pretende distribuir o percentual de cada Estado nem como será a logística de entrega das vacinas. A única sinalização do Governo é de que o Ministério da Defesa auxiliará o transporte por via aérea.

Ainda na entrevista coletiva, o ministro Eduardo Pazuello afirmou que a China não tem dado celeridade aos trâmites burocráticos para fornecimento de matéria-prima das vacinas ao Brasil. Remessas de Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), necessário para a produção tanto do imunizante de Oxford quanto da Coronavac, ainda não chegaram à Fiocruz. Segundo o ministro, o ministério está mapeando essas “resistências” para avançar na produção.O ministro só esqueceu que o Governo Bolsonaro, os filhos do presidente e seus seguidores, tem se notabilizado por ataques à China, inclusive com deboches ao composto desenvolvido pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, pejorativamente chamado de “vachina” pela tropa de choque bolsonarista.

Neste domingo, o esforço de bolsonaristas em assumir a paternidade do imunizante era escancarado. “Governo Bolsonaro bancou a vacina do Butantã!”, escreveu em letras maiúsculas o senador Flavio Bolsonaro, filho do mandatário. Uma ironia aos brasileiros que viram seu pai questionar até os efeitos nos sistema imunológico de quem tomasse a Coronavac, incluindo virar “jacaré”.

Para além da vitória de Doria neste domingo, a guerra pública entre ele e Bolsonaro até mesmo durante o dia de uma boa notícia nacional deixa claro que o caminho para a vacinação tem percalços políticos pela frente. O tucano anunciou que enviaria diretamente 50.000 doses da Coronavac a Manaus por não confiar no ministério numa provocação explícita. As frases causam desconforto em quem conhece as engrenagens da saúde pública por entender que não há benefício numa relação tensa entre um Estado que vai responder pela produção de vacinas e o governo federal.

Em que pesem as barreiras políticas e logísticas para a distribuição dos lotes, a vacinação em massa da população brasileira tem pela frente processos ainda mais complexos que a autorização de uso emergencial. Vacinas como a de Oxford e a Coronavac ainda precisam requisitar a aprovação definitiva na Anvisa, algo que não ocorrerá de imediato, já que a agência reguladora informou que há pendências de documentação para a manutenção do aval provisório votado neste domingo. Por outro lado, o país observa um crescimento alarmante dos números de casos e mortes por coronavírus em todas as regiões.

Para Nicolelis, a aprovação das vacinas não pode gerar a ilusão de que o Brasil está próximo de superar a pandemia. “A decisão da Anvisa é uma vitória a ser celebrada, mas existem ações em paralelo que precisam ser tomadas imediatamente”, afirma o cientista, que defende que o país deveria adotar um lockdown nacional, de duas ou três semanas, para frear a onda de novas infecções e ganhar tempo para a imunização gradual, citando o drama vivido pelo Reino Unido —onde a vacinação começou em dezembro, mas o número de contágio ainda não desacelerou de maneira significativa. “O impacto desse avanço sincronizado do vírus pelo Brasil tende a ser pior que o da primeira onda. A vacina vai demorar meses para fazer efeito por aqui e neste momento, temos um percentual mínimo de doses. É hora de reimplementar as medidas restritivas. Não podemos abandonar o barco enquanto a vacina está longe de contemplar a maioria da população.”

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Míriam Leitão: Conspiração Bolsonaro

A oposição ao governo Bolsonaro só não pode dizer que não entendeu aonde ele quer chegar. Conspiradores como Donald Trump e Jair Bolsonaro fazem tudo às claras, e o daqui repete o roteiro com alguma defasagem. A distância que existe é entre original e cópia. Quando parlamentares do PT, PDT, PSDB se alinham ao candidato que Bolsonaro defende para presidir o Senado sabem o que estão fazendo. Compactuam. Os votos serão no escurinho, onde Tancredo ensinou que é o lugar das traições, mas os oposicionistas fazem às claras achando que todos entenderão o pragmatismo.

A História olhará esse distópico tempo nosso de forma implacável. Não adiantará explicar que foram oferecidos bons lugares na mesa diretora, distribuídas presidências de comissões. Não há nada contra o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), em si. Não é pessoal. É porque na situação em que ele se encontrará terá que pagar o apoio. O presidente se mobilizou, seu padrinho Davi Alcolumbre (DEM-AP) negocia lugar no Ministério. Pacheco se abrigou sob esse teto. Isso terá de ser pago. E o preço é o apoio à pauta que o presidente acha relevante para o seu projeto.

Bolsonaro quer tumultuar a próxima eleição, reduzir o poder dos estados sobre as polícias para aumentar sua força sobre os efetivos armados, quer armar seus seguidores, quer bloquear recursos para a ciência, quer estimular o desmatamento da Amazônia, quer incentivar garimpeiros e invasores em terras indígenas, quer enfraquecer instituições de controle do combate à corrupção. Bolsonaro sonha, como diziam as faixas dos atos que estimulou e dos quais participou, com o fechamento do Congresso e do STF. Esse é o plano, essa é a pauta.

Nenhuma candidatura, seja de Baleia Rossi (MDB-SP) na Câmara, seja de Simone Tebet (MDB-MS) no Senado, se propôs a fazer oposição. A promessa é mais simples. É de autonomia. O poder legislativo precisa ser autônomo para garantir a governabilidade. Há quem defenda candidatos governistas com o argumento da governabilidade, mas é o exato oposto. O equilíbrio dos freios e contrapesos nos ajudará a atravessar este momento tão pantanoso.

O poente presidente Donald Trump está diante da acusação de incitação à insurreição contra a democracia. Ele construiu o plano lentamente. Começou dizendo em 2016 que a eleição que ele ganhou era fraudada. Muita gente achou que era apenas uma esquisitice. Era movimento feito de caso pensado. Se soa familiar, é porque é o mesmo que se passou aqui em 2018. A lista das similitudes é imensa. Chega a ser monótono.

Os americanos têm a tradição de pessoas armadas. Aqui, Bolsonaro ordenou numa reunião ministerial a liberação do acesso às armas. Até quando o país vai acreditar que são “colecionadores e caçadores”? A caça é proibida no Brasil. Bolsonaro quer uma milícia. Por que tirar poderes dos governadores sobre as polícias e criar o generalato nas PMs? Por que distribuir tantos mimos às Forças Armadas, da ativa ou da reserva? Ora, direis, por ideologia, para seguir a ala ideológica. Não. Não há uma ideologia, há um projeto autoritário em curso. O presidente quer se cercar de vários efetivos armados, legal ou ilegalmente, para intimidar adversários. No dia D e na hora H. Como fez Trump, quando mandou seus mal-intencionados seguidores marcharem sobre o Capitólio. Na celebrada democracia americana foram vistas cenas de enorme selvageria. Os gritos de “enforquem Pence” e “onde está Nancy Pelosi” foram descritos na imprensa americana e entendidos pelo seu valor de face.

Na casa dos conchavos, tudo se passa como se não vissem o que há pelo Brasil. O presidente conduz de forma criminosa a gestão da pior pandemia que já se abateu sobre o país, mas o PT acha que pode se alinhar ao candidato que Bolsonaro defende, e o PDT, também. O PSDB acha que pode continuar em cima desse muro e permanecer nunca decidindo em tempos de decisão. O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) falou em trincar os dentes. Quando trincarão os dentes? Quando for tarde demais.

Trump conspirou durante quatro anos, e o resultado foi visto por todos. Bolsonaro conspira, e temos visto o resultado. É da natureza de governantes autocratas que chegam ao poder pelo voto na democracia enfraquecer por dentro as instituições que os hospedam. Querem se espalhar pelo organismo, enfraquecê-lo e destruí-lo. Como um vírus oportunista e mortal.


Elio Gaspari: O chaveco do Chavismo bolsonariano

Treze anos de poder petista não fizeram estragos nas Forças Armadas semelhantes ao que o capitão Bolsonaro conseguiu em dois anos

Treze anos de poder petista não fizeram estragos nas Forças Armadas semelhantes ao que o capitão Bolsonaro conseguiu em dois anos. Durante os governos de Lula e de Dilma Rousseff, nenhum general foi demitido de forma constrangedora e sem motivo razoável. Os oficiais-generais nomeados pelos presidentes petistas para funções civis tiveram desempenhos discretos. Bolsonaro jogou militares em torvelinhos, associando a disciplina da carreira às suas fantasias. O que sucede ao general Eduardo Pazuello é prova disso.

As cerejas desse bolo anárquico, reveladas pelo repórter Felipe Frazão, são os projetos de parlamentares bolsonaristas que tramitam no Congresso. Teriam jogado meia dúzia de jabutis em cima da ideia de reorganizar as polícias civil e militar. Olhando-se os detalhes, nem jabutis são. Transformaram a ideia num terreno baldio, onde cada um que passa joga o que quer.

É conhecida a admiração de Bolsonaro pelas PMs, apimentada pela simpatia de oficiais do pelotão palaciano diante de alguns motins.

Pelos projetos, os comandantes das PMs deveriam ser escolhidos a partir de listas tríplices saídas da corporação. (Os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica são de livre escolha do presidente, dentro do quadro de quatro estrelas.)

Esses comandantes teriam mandatos de dois anos. Vale ouvir o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro: “Dentro da estrutura militar, ninguém pode ter mandato”.

As PMs e os Corpos de Bombeiros teriam generais. É o caso de se perguntar porque os Corpos Marítimos de Salvamento não devem ter almirantes.

A fiscalização das empresas de segurança privada sairiam da alçada da Polícia Federal, passando para a jurisdição das Polícias Militares. O perigo embutido nesse sofá velho jogado no terreno é simples: Basta lembrar a carreira do capitão Adriano da Nóbrega, o miliciano foragido morto na Bahia. Ou o caso do PM Ronnie Lessa, acusado de ter matado a vereadora Marielle Franco. Nenhum dos dois era um bandido iniciante. Ronnie havia sido guarda-costas de um bicheiro e perdeu uma perna numa briga de quadrilhas. O ex-capitão Adriano comandava a milícia batizada de Escritório do Crime.

Projetos legislativos de deputados governistas não têm necessariamente o apoio do governo, mas Bolsonaro, que é tão rápido no gatilho, jamais disse uma palavra contra os pneus velhos e colchões sujos jogados nesse terreno baldio.

O comandante Hugo Chávez desgraçou a Venezuela distribuindo boquinhas para militares da ativa e criando uma milícia.

Urucubaca

Bolsonaro dizia que, se os argentinos elegessem Alberto Fernández para a presidência da Argentina, os gaúchos veriam um fluxo de hermanos atravessando a fronteira. Seria uma repetição do que sucedeu em Roraima com a migração dos venezuelanos

Passou o tempo, e brasileiros gostariam de ir para a Argentina, onde há vacinas. Além disso, a montadora Ford anunciou que sairá do Brasil, mas ficou na Argentina, onde investe cerca de R$ 3 bilhões.

O general Eduardo Pazuello, o estrategista da logística no acolhimento dos venezuelanos, assumiu o Ministério da Saúde e está dando o que está dando. Na segunda-feira, ele foi a Manaus, falou pouco, mas fez propaganda da cloroquina. Na quarta-feira, pacientes morriam em hospitais da cidade por falta de oxigênio.

Diante da falta de oxigênio nos hospitais de Manaus, o governo do Amazonas e empresas pediram ajuda à Venezuela.

Brandão no Banco do Brasil

André Brandão fez carreira na banca privada antes de aceitar a presidência do Banco do Brasil. Lá, um executivo tem sua qualificação medida pelo discernimento com que assume riscos. O doutor comprou o Risco Bolsonaro e deu no que deu.

Se der tempo, deveria telefonar para o médico Nelson Teich, que aceitou o Ministério da Saúde e foi-se embora 28 dias depois.

As pessoas entram nos governos pelos mais diversos motivos, mas são poucos aqueles que sabem sair deles. Joaquim Levy, por exemplo, aceitou a presidência do BNDES em janeiro de 2019, viu-se enfarinhado em maio e saiu frito em junho.

Marquetagem

Quem sabe ouvir nas entrelinhas percebeu há três semanas que o índice de eficácia geral da Coronavac passava pouco dos 50%. (Ficou em 50,38%.)

Em vez de abrir a discussão em torno dos diversos aspectos desse índice, preferiu-se o caminho do emparedamento da Anvisa. A agência estava fragilizada pelo negacionismo do governo, que jogou seu almirante em mar tempestuoso.

Piada de caserna

Quando o general Eduardo Pazuello disse que a vacina começará a ser aplicada na hora H do dia D, ele recorreu a um tipo de humor da caserna, para disfarçar o fato de que não sabia uma coisa nem a outra.

Algumas piadas de caserna são engraçadas, mas quase sempre ironizam a ignorância.

Pazuello apresentou uma variante de uma velha piada: toda árvore tem uma altura aproximada.

Os cadetes diziam isso quando não sabiam a altura da árvore.

O Dia D virou quarta-feira, e hoje ele é uma data aproximada.

Trump e Hitler

Para quem discute o futuro de Donald Trump: em novembro de 1923, a milícia nazista tentou um golpe de estado a partir de uma cervejaria de Munique. Robert Murphy era um jovem diplomata americano baseado em Berlim e saiu em busca de informações.

Foi ao Núncio Apostólico e ouviu dele uma sentença: acabou a carreira política de Adolf Hitler. Deu no que deu.

Em 1945, ele reencontrou o Núncio Eugenio Pacelli, que àquela altura atendia pelo nome de Pio XII. Cobrou-lhe a previsão e ouviu:

“Você está falando da infalibilidade do Papa, mas naquela época eu era um simples monsenhor.”

A morte de um patrono

Morreu o bilionário americano Sheldon Adelson, de 87 anos, uma das pessoas mais ricas do mundo, com US$ 35,1 bilhões.

Dono de resorts com cassinos em Las Vegas, Macau e Singapura, ele financiava o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, Donald Trump e iniciativas de direita pelo mundo afora. Adelson contou que pretendia gastar US$ 100 milhões para derrotar Barack Obama.

Ele deixou rastro na campanha eleitoral brasileira de 2018. Veio em seu avião, hospedou-se no Copacabana Palace e encontrou-se com o candidato Jair Bolsonaro, que estava acompanhado pelo “Posto Ipiranga”, Paulo Guedes. Ambos chegaram à suíte do magnata entrando pela cozinha do hotel.

Um eco do que conversaram ressoou no ano passado, quando Guedes defendeu a abertura de grandes cassinos, durante a tétrica reunião ministerial de abril.

Naquele encontro, Bolsonaro garantiu a Adelson que transferiria a embaixada brasileira para Jerusalém.

Filho de um taxista, Adelson ralou cada dólar que ganhou e viveu na defesa intransigente de sua herança familiar. Em 1988, já bilionário, visitou Israel calçando um velho par de sapatos. Eram de seu pai, um descendente de judeus da Lituânia, que não viveu para visitar Israel.


Dorrit Harazim: Misericórdia

Numa cidade agonizante chamada Manaus, um cilindro de oxigênio pode valer ainda mais do que a vacina

 ‘Bem-vindo ao inferno’ anunciava em inglês a gigantesca faixa levada por policiais no Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, numa manhã radiosa de julho de 2016. Na Cidade Maravilhosa que escancarava seu abraço a turistas e atletas olímpicos do mundo inteiro, o protesto informava que, devido ao atraso no salário dos agentes de segurança, a Rio-2016 era um território sem lei. “Estamos morrendo. Os criminosos olham para a nossa identidade e nos matam”, acrescentava a faixa.

Neste início de 2021, basta substituir “criminosos” por “governantes” ou, ainda melhor, juntá-los como “governantes criminosos”, e temos o retrato do horror nacional. O inferno é aqui . O Brasil inteiro está no direito de se insurgir, de cobrar responsabilidade, ação, vergonha na cara — não de quem já é criminoso, mas de quem silencia apesar de ter voz e poder. A começar pelo Congresso Nacional.

De Jair Bolsonaro nada há a esperar. Como escreveu a jornalista Eliane Brum, “afirmar que Bolsonaro é incompetente ao tratar da Covid-19 é colaborar com ele. A negligência é deliberada. Não é incompetência para enfrentar a Covid, e sim, competência para o extermínio”. Gritar contra a montanha de inépcias das três esferas do poder (prefeituras, estados, Brasília) no combate ao coronavírus aplaca momentaneamente nossa consciência, alivia por um átimo a sensação de impotência. Mas até para gritar é preciso ter ar, conseguir respirar, sair da asfixia interior na qual estávamos confinados até sermos sacudidos pelo sufocamento real de Manaus.

“Fizemos nossa parte”, diz Bolsonaro sobre as pilhas de cadáveres que haverão de alicerçar seu lugar na história. “Imposição de disciplina em cima do brasileiro não funciona”, emenda o general da reserva e dublê de vice Hamilton Mourão, como se a obrigatoriedade do cinto de segurança e a proibição de fumar não vigorassem no país. O que não funciona em cima do brasileiro , general, é o descaso com a vida física para aniquilar a vida democrática do país.

 “Temos aqui um mundo em desordem/ Quem então está pronto/ Para lhe devolver ordem?”, perguntava Bertolt Brecht na estrofe cantada de uma peça que jamais concluiu. Na semana passada, faltando apenas duas semanas para Donald Trump deixar o poder, o Legislativo dos EUA deu seu passo para interromper a desordem revolta: mesmo sitiados no Capitólio, democratas e alguns republicanos ratificaram a vitória de Joe Biden na eleição de novembro. Quatro dias depois, aprovaram o impeachment do Aprendiz de Déspota. A desordem e a violência emanada da Casa Branca haviam atingido níveis alarmantes de sedição e violência.

O mais alarmante, no caso de Trump, talvez tenha sido a extorsão que o 45º presidente e seus celerados haviam tentado impor aos legisladores: a ameaça de que a violência poderia ser ainda maior e mais errática, caso mexessem com o líder do culto. Quase deu certo por lá. E pode parecer sedutora para outros aprendizes agarrados ao poder. Tragicamente, no Brasil, foi preciso testemunharmos a asfixia nos hospitais, lares e ruas de Manaus para o despertar da sociedade antes da débâcle nacional.

Poucos dias atrás, o alemão Jürgen Stock, secretário-geral da Interpol, alertava o mundo para o fato de vacinas contra a Covid terem se tornado “o ouro líquido do momento”. Contrabando, mercado ilegal, contrafações, roubos audaciosos e leilões clandestinos estarão na mira da agência de 194 países-membros. Mas Stock certamente nunca imaginou que, num país moribundo chamado Brasil, e numa cidade agonizante chamada Manaus, um cilindro de oxigênio pode valer ainda mais do que a vacina. Até porque é preciso estar vivo para almejar a chegada da vacina.

E, por falar nela, roga-se o impossível a prefeitos, governadores e ao presidente da República que veem na vacina o cabo eleitoral supremo: sumam da foto. Nenhum país civilizado inaugurou o tão ansiado processo de imunização com protagonismo político personalista. O governador em exercício no Rio planeja um “ato” no Cristo Redentor. O de São Paulo e o capitão de Brasília só pensam em obscurecer o outro na foto. Talvez seja hora de a imprensa responsável não embarcar nessas pataquadas. O braço estendido de um cidadão comum recebendo a vacina por um profissional de saúde também anônimo num hospital público do SUS é o maior incentivo para injetar o Brasil de esperança. E retratar o que o país tem de melhor.


Merval Pereira: Novo atraso na vacinação

Há a perspectiva de um novo atraso, esse ainda mais grave, no calendário nacional de vacinação, pois o envio do IFA ( Ingrediente Farmacêutico Ativo) para a produção na Fiocruz das doses de vacinas da AstraZeneca/Oxford ainda não foi liberado pelas autoridades da China. O primeiro carregamento deveria chegar na próxima semana, mas problemas burocráticos impedem a liberação.

O Brasil já está cobrando da matriz da AstraZenaca na Inglaterra, se essa documentação não for liberada pela China em tempo de chegar aqui ainda este mês, como estava previsto, que a remessa seja feita através de outros países. Eles têm o compromisso por contrato de nos entregar a IFA de outro lugar, ou a vacina pronta. A multa prevista no contrato não é em dinheiro, mas em vacinas. Como a vacinação está com problemas em vários países, não é certo que a farmacêutica tenha doses extras para o Brasil.

A linha de produção da Fiocruz já está pronta para produzir, depois desses 2 milhões de doses simbólicas a serem importadas da Índia, em fevereiro mais 5 milhões de doses e iniciar em abril a produção de mais 50 milhões de doses. Outros 50 milhões estão  previstos até julho, com acerto de entrega de IFA a cada quinze dias, o que, a esta altura, não é garantido.

Mas esse cronograma pode ser alterado dependendo da chegada da IFA. Os problemas burocráticos giram em torno do protocolo internacional de transporte biológico de vírus vivo, mas técnicos da Fiocruz estranham que somente agora, quando já deveria estar sendo enviada a primeira remessa do IFA, esse problema tenha surgido, já que o contrato foi feito em agosto.

A Fiocruz escolheu o “sítio” (na linguagem técnica) da China como responsável pelo contrato do envio porque temia que os Estados Unidos de Trump pudessem criar obstáculos caso a vacinação por lá tivesse problema. A vacina da AstraZeneca foi uma das selecionadas para receber investimento do governo dos Estados Unidos através do programa “Warp Speed”, vinculado à Secretaria de Saúde do governo americano.

A vacina teve ampliada sua ação, pois a segunda dose pode ser aplicada até 12 semanas depois, ou três meses. Isso quer dizer que os 50 milhões de doses que a Fiocruz pretende produzir até abril vão vacinar o dobro das pessoas inicialmente previstas. Esses dois milhões iniciais, que estão sendo trazidas da Índia, não estavam previstos, mas equivalem à vacinação de dois milhões de pessoas, porque a dose está sendo aprovada como na Inglaterra.

Os 6 milhões de doses que o Instituto Butantan  tem no momento podem vacinar 3 milhões de pessoas, pois, ao contrário da AstraZeneca, o intervalo da vacina da CoronaVac é de de duas semanas. O governo federal já requisitou o total de doses da CoronaVac que o governo paulista tem estocadas para poder dar inicio à vacinação ainda em janeiro, se as doses não chegarem da Índia a tempo.

O governo mais uma vez trabalhou errado nessa negociação com o governo indiano. O Primeiro-Ministro Modi acertou com Bolsonaro a liberação desse lote de vacinas, mas não contava com a indiscrição do governo brasileiro, que festejou o acordo e irritou a oposição na Índia. O avião da Azul com um enorme adesivo falando sobre o plano de vacinação no Brasil teve que adiar o vôo, orientado pelo governo indiano, pois sua presença no aeroporto de Mumbai poderia provocar tumultos. Havia até mesmo a possibilidade de o avião brasileiro ser arrestado pelo governo indiano para dar uma satisfação à opinião pública.

O governo, que inicialmente renegou a “vacina chinesa”, agora se agarra a ela para começar simbolicamente a vacinação em massa ainda em janeiro. Mas, ao que tudo indica, se fizer isso estará cometendo outro erro, pois a primeira etapa da vacinação prevê atender grupos de risco como idosos morando em asilos, trabalhadores de saúde, idosos acima de 75 anos, população indígena e ribeirinha, que perfazem cerca de 15 milhões de pessoas. Só teremos vacinas para no máximo 5 milhões de pessoas, isso se contarmos com os dois milhões de doses únicas da AztraZeneca.

Se, como se teme, a importação da Índia demorar duas semanas, o início da vacinação só ocorrerá otimisticamente em fevereiro. Antes disso, porém, são previsíveis novos embates políticos entre os governos de São Paulo e Federal. Se a ANVISA aprovar hoje a vacina CoronaVac, o governo de São Paulo quer começar a vacinação amanhã mesmo, o que o Ministério da Saúde vai querer impedir. Essa disputa vai acabar no Supremo Tribunal Federal, além de provocar revolta entre os habitantes de São Paulo, que serão impedidos de se vacinarem com as vacinas prontas e aprovadas.


Antonio Carlos do Nascimento: Nosso adoecimento democrático

Presenciamos um extremismo desmedido, que pensávamos ter ficado na década de 40

Em 28 de março de 2020 o governo de São Paulo estampou em seu portal o recorde histórico de imunização contra a gripe no Estado, com 2,3 milhões de pessoas vacinadas em quatro dias. A ação foi executada pela estrutura do SUS, cabendo elogios às gestões estadual e municipais na coordenação das ferramentas de nosso Sistema Único de Saúde. Virtualmente, nesse ritmo o País inteiro seria vacinado em um ano ao menos com uma dose, de qualquer imunizante.

Em 10 de junho de 2020, o governo de São Paulo assinava acordo com a biofarmacêutica chinesa Sinovac Biotech, envolvendo o Instituto Butantan no desenvolvimento tecnológico da vacina Coronavac; 17 dias depois o governo federal chancelava pacto semelhante entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o projeto desenvolvido pela Universidade de Oxford em parceria com o laboratório AstraZeneca.

Causou enorme entusiasmo o anúncio feito pelo Butantan, em 7 de janeiro, apontando a eficácia da Coronavac em 78% na prevenção de casos leves de covid-19 e 100% nos casos graves. Esses dados sustentaram que 78 em 100 pessoas imunizadas pela Coronavac evoluíram sem sintomas ou com sintomas leves, mas sem necessidade de internação, enquanto a totalidade foi protegida da forma grave da doença, dispensando cuidados de terapia intensiva.

Quatro dias depois, em novo pronunciamento, a mesma instituição informou que a eficácia global é de 50,3%, no que nos assegura que 50 em cada 100 indivíduos vacinados não desenvolvem nenhum sintomatologia, sem invalidar as informações anteriores. No quanto se mostraram sem didática, os porta-vozes devem admitir as críticas, mas no que a vacina representa, são vítimas de imensa injustiça.

Um monitorado e ideológico desprezo foi destinado à parceria firmada pelo governo paulista com a farmacêutica chinesa, durante todo o processo. Em suas origens a depreciação tem cunho político, mas nos seus destinos seu compartilhamento é inconcebível, seja pela ingratidão reservada ao Butantan e ao Estado de São Paulo, ou pela incoerência, no que me refiro ao desdém aos produtos chineses.

Em tempos em que nem o futebol nos notabiliza fora de nossas fronteiras, deveria fazer-nos muito bem saber que o mundo tem o Instituto Butantan como uma das instituições mais importantes e respeitadas na produção de vacinas. O Estado de São Paulo merece respeito, não fosse pelo que representa em seus 33% de participação no PIB brasileiro, ao menos por ser o maior investidor em pesquisas cientificas no País, albergando cérebros de todas as unidades federativas em seus centros de estudos.

Por outro lado, a imensa maioria de todos nós, se não possui, ao menos sonha adquirir um aparelho eletrônico de vanguarda, para o que não aponto novidade ao afirmar que a quase totalidade desses artigos é proveniente de território chinês, assim como a maioria dos insumos e maquinários hospitalares utilizados em todo o mundo. Seria legítimo, não fosse dissimulado, questionar o estímulo que tal comércio promove na perpetuação de uma relação empregado-empregador que não aceitamos no Ocidente.

O Reino Unido e os Estados Unidos iniciaram a vacinação em 8 e 14 de dezembro de 2020, respectivamente. Mas estávamos em 8 de janeiro de 2021 e os britânicos contabilizavam 1,5 milhão de doses administradas, enquanto os americanos alcançavam 6 milhões, número distante dos prometidos 20 milhões de vacinas antes que o último ano findasse. Não vou pormenorizar as dificuldades enfrentadas pela União Europeia em sua marcha vacinatória anticovid-19.

A OMS define saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças. Talvez isso possa explicar como uma fração substancial de brasileiros deixa de contemplar a possibilidade real de fazermos história. Com o SUS somos capazes de efetivar campanha de vacinação de qualquer dimensão, com resolutividades sem precedentes em âmbito nacional. Além de devolver nossa gente à reconstrução econômica brasileira, apagando para os olhos do mundo a mancha que o negacionismo irracional nos impregnou.

Porém estamos presenciando devoções cegas, obediências incondicionais, um extremismo desmedido que pensávamos ter ficado na década de 1940, com o colapso do fascismo e do nazismo. Os insurgentes de agora já não despontam pela fome e pela desigualdade, emergem unidos em suas incapacidades de diálogo e aceitação da ciência.

A invasão do Capitólio por manifestantes apoiadores de Donald Trump mutila, pelo menos por algum tempo, a (aparente) sólida democracia americana, talhando ferida de cicatrização incerta. Entretanto, pior que isso é o exemplo democrático sonhado por grande parte do planeta apresentar suas suscetibilidades.

Por aqui, preocupam os entraves provocados na saúde pública por desinformação orientada. Mas também entristece a perspectiva de que nosso jovem processo democrático possa estar adoecendo gravemente.

DOUTOR EM ENDOCRINOLOGIA PELA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), MEMBRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ENDOCRINOLOGIA E METABOLOGIA (SBEM)


Míriam Leitão: Butantan e Fiocruz na luta real do país

Vamos entender o que aconteceu nesta pandemia. As duas grandes e centenárias instituições de saúde pública, com as quais o Brasil sempre contou, fizeram de novo o seu papel. Foram atrás de vacinas, estabeleceram parcerias, negociaram contratos para trazer os imunizantes e, depois, produzir localmente dois produtos que nos ajudarão a salvar vidas. O país soube em momento extremo, uma vez mais, que pode contar com a Fundação Oswaldo Cruz e com o Instituto Butantan. Com o presidente da República, o Brasil não pode contar.

Nos últimos dias o governo de São Paulo errou na comunicação. Principalmente na semana passada, quando sobrou discurso político e faltou objetividade científica. Especialistas ouvidos pela coluna acham que eles acertaram na comunicação de terça-feira, quando informaram a taxa de eficácia global de 50,38%. Bolsonaro ironizou ontem o percentual, perguntando aos do cercado, na porta do Palácio: “Essa de 50% é uma boa?” Todos os cientistas e médicos ouvidos dizem que é sim uma boa. Se o percentual de eficácia fosse maior, seria melhor.

Uma fonte do governo, mas que não vê o momento atual com olhos de torcida política, me disse o seguinte: “Os infectologistas avaliam que será uma vacina importante para prevenir formas graves da doença e impedir as mortes, o que já justifica. Seu papel na redução da transmissão da doença será menor, mas a vacina cumpriria um dos papéis esperados: reduzir muito as formas graves.”

A epidemiologista e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP, Maria Amélia Mascena Veras, disse que a CoronaVac e as outras vacinas desta pandemia não foram desenhadas para evitar a transmissão. Elas pretendem diminuir a carga da doença na população e reduzir os casos graves. E, se isso acontecer, já terão um efeito importante, inclusive de abrir espaço nos hospitais para tratar outras doenças que não tenham a ver com a pandemia.

— A vantagem da CoronaVac é que é tecnologia conhecida, muito segura. Pode ser produzida no Brasil com custo baixo e imunizar muita gente. A segurança é importante, não ter efeitos colaterais graves. Toda a logística de implementação de uma vacina como essa facilita muito a vida. A vacina de Oxford tem os mesmos requisitos de vacinação. As duas atendem muito o contexto brasileiro. Que venha logo também a da AstraZeneca — disse.

O Butantan nos trouxe a CoronaVac. A Fiocruz, a Oxford-AstraZeneca. Os cientistas e servidores dos dois institutos passaram por terreno minado para trazer imunizantes. A Fiocruz nem importadora é, mesmo assim, fez o acordo com o Instituto Serum, indiano, para comprar o primeiro lote de dois milhões de doses. O Butantan já colocou no país seis milhões de doses e está preparando outras quatro milhões. É o que se esperava dos institutos de pesquisa e é o que eles têm feito.

O governo de São Paulo usou um tom político na divulgação. Deveria abandonar isso. O momento é de sobriedade. O governo federal tem errado muito mais, porque o tom é dado pelo próprio presidente, que faz blague no meio da tragédia e alimenta a campanha antivacina. Bolsonaro torce contra a vacina.

Cientistas e médicos brasileiros criaram o Observatório Covid-19 BR. Uma iniciativa independente para ajudar o país a compreender esse emaranhado de informação. Dele faz parte a médica Maria Amélia Veras. Dele faz parte José Cássio de Moraes, que é doutor em saúde pública pela USP e também é professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Perguntei a ele se a CoronaVac é boa:

— O desfecho que se quer para uma vacina, qualquer uma, é evitar casos graves e mortes. Nenhuma está neste momento tentando evitar a transmissão. O objetivo da vacina do sarampo é eliminar o sarampo, o objetivo da vacina da pólio é erradicar a pólio, o objetivo imediato de todos os desenvolvedores de vacina nesta pandemia foi reduzir a gravidade, diminuir o número de casos graves e dar uma folga à rede de saúde. A queda dos casos graves tem um efeito indireto nas transmissões, porque são os que têm mais carga viral. A CoronaVac não é tudo o que a gente desejaria, mas para o objetivo a que se propôs é boa.

Enquanto Bolsonaro brinca com assunto de extrema gravidade, os médicos trabalham, os cientistas pesquisam, nossos dois institutos de saúde pública buscam proteção para a vida dos brasileiros. É isso que está acontecendo no Brasil.


Bruno Boghossian: Doria fica mal na foto e dá munição a opositores alucinados da vacina

 Doria fica mal na foto e dá munição a opositores alucinados da vacina

Na semana passada, o showman João Doria anunciou que a Coronavac tinha "eficácia de 78% a 100%" contra a Covid-19. "Esse resultado significa que a vacina tem elevado grau de eficiência para proteger a vida dos brasileiros", derramou-se. Já nesta terça-feira (12), o governador João Doria não apareceu para explicar que a taxa global de eficácia do imunizante é de 50,38%.

Sedento pelos dividendos políticos da guerra de imunização travada com Jair Bolsonaro, o tucano decidiu maquiar os dados de uma boa vacina para que ela parecesse ainda melhor. Não funcionou: Doria ficou mal na foto e prestou um desserviço ao país ao dar munição para os alucinados opositores da vacina.

O Instituto Butantan tem um imunizante promissor. A Coronavac é segura, reduz pela metade a chance de desenvolvimento da doença, pode ser produzida em larga escala e tem características que permitem sua distribuição com facilidade. Deveria ser suficiente, mas a política parece ter falado mais alto.

Foi Doria quem criou a ilusão de que a eficácia de 50,38% –acima do sarrafo da Organização Mundial da Saúde– poderia ser considerada decepcionante. Quando apresentou o dado turbinado de 78%, ele mesmo escolheu dizer que "esse resultado" era sinal de que a vacina tinha "elevado grau de eficiência". Um número menor, portanto, corre o risco de ser observado com outros olhos.

O governador paulista deixou a ciência no gabinete no anúncio da semana passada. Contou só metade da história e escondeu uma parcela importante dos dados. Se Doria optou pela manobra ou se foi mal assessorado, a discussão se dará entre o Palácio dos Bandeirantes e o Instituto Butantan. De qualquer modo, a responsabilidade política é só dele.

Doria apostou alto na Coronavac e forçou o governo federal a correr atrás dos planos paulistas. O tucano fez festa em cada etapa do processo de desenvolvimento do imunizante, mas se omitiu no momento crucial de mostrar os detalhes da vacina. O showman engoliu o governador.


Alon Feuerwerker: Que comece o jogo

Como já foi dito aqui, uma vantagem da disputa política entre o governo federal e o paulista em torno da vacinação contra a Covid-19 é a corrida ter entrado no estágio em que ambos querem mostrar serviço. Bom para a população que precisa ser vacinada. Afinal de contas, que os políticos briguem, mas o cidadão e a cidadã comuns querem mesmo é uma vacina segura e eficiente.

O ministro da Saúde informou que os estados receberão as vacinas três a quatro dias após a chegada delas ao país ou a liberação pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) (leia). Que este dia chegue o mais rápido possível. Há muita espuma no debate, mas ainda estamos em tempo, na comparação com outros países da dimensão do nosso.

E temos uma vantagem: uma máquina de vacinação construída e azeitada ao longo de décadas. Basta que a entropia política dê uma folga e as autoridades se concentrem na missão de fazer a coisa acontecer. Pois, ao fim e ao cabo, elas serão julgadas nas urnas de 2022 pelo que fizeram ou deixaram de fazer, e não tanto pelo que se disse delas.

Acabou o pré-jogo, agora a decisão é em campo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Marco Aurélio Nogueira: Brincando com coisa séria

Não é compreensível o vaivém na questão da eficácia das vacinas. A competição é outra

A cena assemelha-se a uma competição de adolescentes para saber quem atira a pedra mais longe ou que repica mais vezes na água do lago. Só que os personagens são adultos e a brincadeira está mexendo com coisa séria, afeta diretamente a vida de milhões de pessoas.

Se você começar a vacinação no dia 25, eu começo a minha antes, no dia 20. E se você passar para dia 20, eu empurro a minha para o dia 19. E assim segue a valsa, em tom de disputa de fundo de quintal. Triste demais.

O fato é que o País está sem um plano de vacinação pronto e acabado, ao qual o sistema SUS possa se acoplar e funcionar, juntamente com coordenadores estaduais, municipais e federais, de modo a recobrir o território nacional e toda a população, em um prazo de tempo razoável.

Mais importante do que saber quando será dada a primeira dose é saber o cronograma, a disponibilidade das vacinas e a logística. Aí a mula manca. É um silêncio que machuca.

Também não é compreensível, para os leigos sobretudo, o vaivém na questão da eficácia da Coronavac, que já está em fase avançadíssima de aprovação. O governo de São Paulo diz ter passado todos os dados (10 mil páginas) para a Anvisa que, por sua vez, diz ter recebido somente parte deles. A Sinovac e o Butantan afirmam uma eficácia de 78% para casos leves e de 100% para casos graves, o que significaria que a vacina evita a morte. Mas não foram divulgados os dados globais e outras informações importantes. Faltam números do desfecho primário do imunizante, nos quais estão incluídos os recortes populacionais e as faixas etárias, sem os quais a avaliação fica imperfeita. Também não se divulgou a eficácia em idosos.

Tudo indica que a vacina do Butantan será fundamental em termos de proteção e de neutralização das formas mais severas da doença. A briga para definir se sua eficácia é de 78% ou de 65% é completamente irrelevante, mas os gestores parecem acreditar que os números são essenciais em termos de concorrência e mercado. Uma competição esdrúxula, suicida. O que a move é outra coisa. Não é ciência e pesquisa.

A secretaria estadual de Saúde informa que divulgará tudo numa entrevista coletiva convocada para amanhã, dia 12. Isso sugere que ela já tem os dados à mão. Por que então não os apresenta logo e termina com a ansiedade geral da nação? Quem está escondendo o jogo, a Sinovac, o Butantan ou o governo paulista? Ou tudo não passa de problemas com a Anvisa, e seu diretor bolsonarista?

Tudo isso pega muito mal, gera insegurança e desconfiança, mostra falta de pulso e sugere que há mais “política” e malandragem do que seria correto. Politizar nesse grau uma questão tão vital quanto vacinas e vacinação mostra bem o nível a que chegamos


Alon Feuerwerker: Lição de Brasil

De vez em quando é preciso ser otimista. E hoje é um dia assim. Depois da espera, não um, mas dois registros de vacinas contra a Covid-19 foram pedidos à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa.

Da CoronaVac, parceria entre a chinesa Sinovac e o Butantan, e da AstraZeneca/Oxford, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz. A primeira é a aposta do governo de São Paulo (João Doria). A segunda é a aposta principal do governo federal (Jair Bolsonaro).

Está instalada a competição, começou a corrida. Em disputa, não apenas os imunizantes, mas a estrutura e os instrumentos, principalmente as seringas. Quem vai ganhar ao final? Quem mais eficazmente realizar a missão nos próximos meses. E a vacina que se provar mais efetiva no essencial: imunizar a população contra o SARS-CoV-2, inclusive suas novas variantes.

Restam dúvidas? Que sejam esclarecidas pela Anvisa, perfeitamente equipada para tanto.

O episódio é mais uma lição de Brasil. Sobre nosso país, nunca convém otimismo excessivo sobre as possibilidades, mas tampouco é conveniente ceder ao catastrofismo. É o caso agora. A Covid-19 não vai desaparecer num passe de mágica por aqui, mas não seria sensato supor que ficaríamos para trás enquanto o mundo todo já estivesse se vacinando em massa.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Hélio Schwartsman: Vacinação pública ou privada?

Vacinações são por excelência uma estratégia coletiva de saúde

A vacinação só será capaz de pôr fim à epidemia se estiver no âmbito de um programa universal e público. E, se a circulação do vírus permanecer muito elevada, nem quem tem dinheiro para pagar por um imunizante estará livre de riscos. Vacinações são por excelência uma estratégia coletiva de saúde.

Isso dito, não vejo problemas em permitir que clínicas particulares importem e apliquem vacinas contra a Covid-19. A rigor, qualquer agente que consiga trazer para o Brasil biofármacos que de outra forma não chegariam aqui está contribuindo para o esforço comum.

É preciso, contudo, alguns cuidados. Seria decerto um despropósito se a iniciativa privada e o setor público entrassem numa disputa suicida pelos mesmos imunizantes. Mas há fórmulas menos drásticas que o veto às clínicas particulares para evitar esse tipo de situação.

Uma objeção que merece consideração é a de que a participação privada, ao criar oportunidades diferenciadas de acesso à vacina com base em renda, corrompe o caráter público da fila e o princípio do acesso igualitário. Não vejo como discordar, mas receio que o argumento seja forte demais. Parece-me complicado usá-lo para vacinas, mas deixá-lo de lado para todo o resto.

Nós, afinal, não adotamos a fila única para leitos de UTI em hospitais públicos e privados. E não é só na pandemia. Há décadas aceitamos que pacientes de câncer do SUS morram à espera de vagas para tratamento, enquanto elas sobram na rede particular. A aplicação consistente do princípio da igualdade de acesso implicaria uma espécie de veto à medicina privada, o que não ocorre em nenhum país democrático.

O fato de eu não ver com maus olhos a participação de clínicas particulares na vacinação não significa que ela seja solução. Só voltaremos a algum tipo de normalidade depois que a maioria dos brasileiros tiver recebido sua vacina —e apenas o poder público é capaz de fazer isso.