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Vera Magalhães: DEM já (bem) dividido entre Doria e Huck

Já está avançada a divisão interna dos principais caciques do DEM, uma das jóias mais vistosas das eleições de 2020, entre o apoio ao projeto presidencial de Luciano Huck e o de João Doria (PSDB) em 2022. Não são poucos os interesses em jogo no tabuleiro, e cada um dos lados tem apoiadores de peso para o seu projeto, além de argumentos sólidos e que envolvem a geopolítica estadual em sua ponderação.

Neste momento e diante do avanço das duas hipóteses, o namoro com Ciro Gomes (PDT) é a hipótese menos avançada, embora tanto o presidente nacional da sigla, ACM Neto, quanto o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mantenham uma ponte estendida rumo ao pedetista.

Avançou muito nos últimos meses a aproximação de Luciano Huck com o DEM. O partido passou a ser o destino mais provável do apresentador de TV caso ele finalmente deixe a hesitação de lado e decida se lançar num projeto presidencial. Neste caso, ele faria isso como candidato do DEM, e não do Cidadania, como chegou-se a ventilar.

O partido de Roberto Freire, embora tenha em sua órbita os chamados movimentos de renovação, plataforma importante do projeto de Huck, vem perdendo fôlego eleitoral, ao passo que o DEM vem crescendo. Maia, ACM Neto e Eduardo Paes compõem a tríade demista que conversa com Huck, e espera uma resposta sua até março do ano que vem.

As conversas começaram no meio do ano, e já evoluíram muito. O convite para a filiação foi feito sem rodeios, e está subentendido que Huck já está convencido de que, se for mesmo candidato, terá de ser por um partido estruturado como o DEM. A hesitação do apresentador ainda é de se apresentar como um candidato de centro-direita, quando prefere ser classificado como progressista. Mas os aliados têm alertado que esse campo já está congestionado e que, nele, Huck tem poucas chances.

Para tê-lo no time, o DEM aceita fazer uma revisão programática que contemple a defesa de um liberalismo nas duas pontas: na economia e também na pauta de costumes, o que o afastaria do reacionarismo bolsonarista e daria discurso a Huck.

O namoro cada vez mais sério acendeu o alerta na seção paulista do DEM e no PSDB. O vice-governador de São Paulo, Rodrigo Garcia, sempre foi um general importante na configuração do primeiro escalão demista. Fechou uma aliança muito explícita com João Doria Jr. de que, caso o tucano conseguisse cumprir uma série de tarefas entre 2019 e 2022, seria o candidato ao governo de São Paulo, numa inédita cessão de lugar do PSDB no Estado que governa desde 1995.

Acontece que nenhum cacique do DEM fora de São Paulo acredita que o PSDB vá abrir mão de ter candidato em São Paulo, ainda mais depois de uma eleição municipal em que saiu com sotaque ainda mais paulista (encolheu no resto do Brasil e cresceu em São Paulo). Além disso, os demistas do Nordeste temem repetir 2018, quando, mesmo dividido, o DEM decidiu sair em aliança com o PSDB pela sétima (!) vez e Geraldo Alckmin foi humilhado nas urnas.

Esses dirigentes do DEM argumentam que Doria tem um perfil muito “arrumadinho”, difícil de emplacar fora de São Paulo, ainda mais diante de uma disputa que vai ter Jair Bolsonaro e o PT. “Corremos sério risco de ficar de novo assistindo a um segundo turno entre Bolsonaro e o PT”, me disse um importante player do DEM entusiasta a saída Huck.

Mas o apresentador do Caldeirão não é igualmente janota, além de ser alguém ingênuo e pouco versado nas artes da política? A essa pergunta os partidários de sua filiação ao DEM respondem que ele tem uma inserção nacional que precede a política, e é alguém identificado com preocupações sociais graças a sua imagem consolidada na TV.

O que mais seduz o DEM, para além dessas questões de imagem, é a possibilidade de ter uma candidatura própria pela primeira vez desde 1989, com Aureliano Chaves. “Essa é uma dívida que nunca que se paga? Onde está escrito que precisamos ser linha auxiliar do PSDB o resto da vida?”, pondera um demista.

A sedução parece sublimar até o cálculo de vir a ter o governo de São Paulo, algo muito além da atual estatura do DEM, mesmo diante das vitórias em capitais (Rio, Salvador, Curitiba e Florianópolis). Rodrigo Garcia, sempre muito cauteloso na articulação política, tem se mostrado internamente disposto a bancar a briga, mesmo se tiver de ficar em lado oposto de seus tradicionais aliados Neto e Maia.

Tem dito que, caso seu partido o trate como peça descartável e ache que é pouco ter o governo de São Paulo, vai tentar vencer uma eventual convenção. Se fia no fato de que é um dos mais reconhecidos operadores do partido em votos no Congresso e em convenções, profundo conhecedor dos humores das bancadas da Câmara e do Senado.

Se, ainda assim, for derrotado, tem dito explicitamente que se filiará a outro partido para apoiar Doria e disputar o governo paulista. Esse destino pode ser o próprio PSDB, o que não interessa tanto a Doria, pois deixa de somar tempo de TV em sua coligação, o PSD do antigo aliado Gilberto Kassab (com quem rompeu há alguns anos, mas, segundo interlocutores de ambos, voltou a ter boa relação) ou mesmo o MDB, partido que se aproximou da órbita do Palácio dos Bandeirantes na sucessão paulistana.

E a opção Ciro? Deixou de ser tão sedutora aos olhos dos pais fundadores (ou herdeiros) do DEM. Isso porque o mapa do Brasil após as eleições se mostrou ainda inclinado à centro-direita, com os partidos da política tradicional voltando a mostrar força. A avaliação interna do DEM é que o caminho para vencer Bolsonaro é por aí, e não pela centro-esquerda (que, ademais, estará congestionada por Ciro, pelo PT e pela estrela ascendente Guilherme Boulos, do PSOL).

Tudo isso é o retrato de 2020, que depende de 2021 para desaguar em 2022.

Algumas respostas precisarão ser dadas:

Huck vai deixar a Rede Globo e o conforto da fama e dos contratos milionários para se aventurar no terreno pantanoso, pouco conhecido por ele e violento da política? Nem seus entusiastas têm certeza disso;

Doria vai conseguir fazer nos próximos dois anos um governo bem avaliado, que lhe permita sair de São Paulo com capital eleitoral suficiente para se nacionalizar?

Bolsonaro vai conseguir recuperar seu eleitorado à base de reação da economia e composição com o chamado centrão? Nesse caso, o DEM ficará no governo e ainda flertará com a possibilidade de apoiá-lo (algo que hoje, com exceção de Onyx Lorenzoni e Ronaldo Caiado, ninguém no partido quer?)

Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre vão para o tapetão e conseguirão se reeleger para novos mandatos à frente das presidências da Câmara e do Senado? Isso elevará ainda mais o já alto cacife do DEM para a sucessão presidencial.


Eliane Brum: Precisamos falar sobre o PSDB

Como o partido abandonou a social-democracia, migrou para a direita e deixou amplas digitais na destruição do processo democrático

Um dos principais riscos da polarização é justamente embaralhar o que é continuidade e o que é ruptura. Neste momento, em que o PSDB, hoje um partido de direita, tenta se vender como o “centro” que um dia foi, é fundamental recuperar a perspectiva do processo histórico. A falta de responsabilização do PSDB como um dos principais agentes de destruição da democracia é um dos enigmas da atual paisagem política brasileira. Ao embarcar no discurso do antipetismo, o PSDB colaborou fortemente para colocar na conta exclusiva do PT todo o desencanto com a política e os políticos, ao mesmo tempo em que se aproximou de tudo o que Jair Bolsonaro representa e defende. O partido deixou amplamente suas digitais na corrosão da democracia cujas consequências são Jair Bolsonaro. O PSDB não é apenas mais um que tem seu DNA na mais recente escalada autoritária do Brasil. O PSDB está em sua gênese.

Ao longo de suas primeiras fases, o Partido da Social Democracia Brasileira construiu uma fama de ficar em cima do muro, manter-se nem lá nem cá, nem à esquerda, nem à direita. Durante muitos anos foi o mais próximo de um partido de centro, ainda que mais para a esquerda do que para a direita, já que alguns de seus fundadores e principais expoentes, como Fernando Henrique Cardoso e José Serra, tinham sido exilados pela ditadura civil-militar (1964-1985). Com o tempo, ser “tucano”, como eram chamados os pessedebistas, por conta do pássaro que simboliza o partido, passou a significar não tomar posição clara. A expressão valia para a política, mas ampliou-se e passou a valer, como gíria, também para qualquer pessoa que ficava no sim, só que não.

Os tucanos, majoritariamente homens brancos, eram vistos como gente culta, com diploma universitário e pós-graduação, de gestos educados e boas maneiras, mais afinados com os salões europeus e sua arrogância blasé do que com o exibicionismo explícito e movido por fortunas familiares dos Estados Unidos. Também se vendiam como modernos, urbanos e de mente arejada, o que os mantinha longe do coronelismo truculento da política brasileira, marcas de clãs como Sarney, Magalhães e Barbalho, que preferiam liderar partidos assumidamente de direita ou fincar seus bigodes no amplo guarda-chuva do PMDB, hoje MDB.

O quanto de verdade continha essa imagem de senso comum é algo a se discutir, mas o mais importante é perceber que hoje essa imagem não tem nenhuma correspondência na realidade. Dela ainda resiste, como a rainha da Inglaterra num rodeio de Barretos, a figura de Fernando Henrique Cardoso, às vezes chamado a dar um lustro na imagem externa do partido, mas que já pouca influência tem na vida cotidiana do PSDB.

O próprio Fernando Henrique Cardoso, duas vezes presidente do Brasil (1995 a 2002), ainda lida com a persistente suspeita de que, em 1997, o partido comprou os votos para aprovar no Congresso a emenda constitucional que permitiria —como permitiu— a sua reeleição. Os indícios de que houve compra de votos eram —e seguem sendo— fortíssimos, mas diferentes esferas do judiciário e do legislativo impediram o prosseguimento das investigações e engavetaram as denúncias. Geraldo Brindeiro, procurador-geral da República, passou para a história como “engavetador-geral da República”. A mancha sobre a figura de FHC permanece até hoje e o assunto, como aqueles fantasmas com pendências a resolver no mundo dos vivos, volta de tempos em tempos, como agora. Os fatos são como os corpos sepultados em covas clandestinas: teimam em emergir por mais camadas de terra e silêncio que se empilhe sobre eles.

Fernando Henrique Cardoso fez uma transmissão bonita da faixa presidencial a Lula, em 2003. Ele estava visivelmente emocionado ao passar o bastão para o primeiro presidente de classe operária eleito na história do Brasil, como um seguimento natural e desejável ao seu próprio Governo. Lula foi um tanto ingrato neste sentido, incapaz de reconhecer o que havia de positivo no Governo do antecessor. E isso mesmo tendo continuado a política econômica de FHC tal e qual, o que causou estupor na ala mais à esquerda do partido.

No Governo durante mais de 13 anos, o PT se tornou mais parecido com um partido de centro. Em alguns campos, porém, como na política de imposição de grandes hidrelétricas na Amazônia e na aproximação crescente com o agronegócio, que chegou instalar a ruralista Kátia Abreu no Ministério da Agricultura no segundo mandato de Dilma Rousseff e um ex-diretor de manicômio ligado a torturas de pacientes na coordenação da saúde mental, foi francamente conservador. Parte da esquerda do PT deixaria o partido nos anos que se seguiram à primeira posse de Lula para fundar o PSOL, em 2004 —ou para fundar seu próprio partido, como fez Marina Silva ao deixar o Governo e depois o PT, durante o segundo mandato de Lula, por não compactuar com a política ambiental e para a Amazônia, cada vez mais influenciada pelo desenvolvimentismo predatório de Dilma Rousseff.

Não estou aqui a resgatar os fatos para fazer textão, mas porque é importante revisitar o processo e onde cada personagem nele se situa para compreender o que hoje está em jogo. Neste momento, o PSDB de Bruno Covas, assustado com a possibilidade de perder a Prefeitura de São Paulo, essencial para os planos de João Doria para disputar a eleição presidencial de 2022, tenta carimbar Guilherme Boulos, do PSOL como “radical”, o mesmo truque que era usado contra Lula quando o então sindicalista despontou na política partidária nos anos 1980. Naquele momento, o Brasil iniciava a redemocratização do país, depois de 21 anos de ditadura civil-militar (1964-1985), período em que 8.000 indígenas e centenas de opositores foram mortos por agentes de Estado que nunca foram responsabilizados e período também em que os atuais generais no entorno de Bolsonaro fizeram sua formação.

Resgato aqui um trecho do meu último livro —Brasil construtor de ruínas, um olhar sobre o paísde Lula a Bolsonaro (Arquipélago), para que não me acusem de plagiar a mim mesma. O nome do capítulo é sugestivo: “O tucano arrasta as penas na sarjeta”. Busco mostrar o papel que José Serra pode ter desempenhado nos acontecimentos que começaram a desenhar o abismo do Brasil. Um dos fundadores do PSDB, Serra foi ministro do Planejamento e depois da Saúde de Fernando Henrique Cardoso, foi também prefeito e governador de São Paulo e ainda ministro de Relações Exteriores de Michel Temer. Hoje é mais um senador da República às voltas com denúncias de corrupção movidas pela Operação Lava Jato.

1) O PSDB, José Serra e o aborto como moeda eleitoral: o momento em que o vale-tudo faz sua entrada triunfal nas campanhas políticas

Há uma data marcando o momento em que um limite que jamais poderia ter sido ultrapassado foi rompido na política brasileira. O ato foi precursor das quebras que viriam depois. Aconteceu na campanha de 2010. Na ocasião, os caminhos de Eduardo Cunha se cruzaram com os de Dilma Rousseff e de seu adversário José Serra. O PSDB começava o declínio que o levaria a alcançar os dias atuais com o rosto de João Doria.

Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura civil-militar, a maioria dos candidatos costumava evitar abordar o tema do aborto. Nem enfrentar a questão, para evitar perder eleitores, nem usá-la como moeda eleitoral para ganhar apoio entre os mais conservadores. Se não havia coragem para enfrentar o tema a partir de um debate responsável, também existia pudor para não baixar o nível, fazendo proselitismo com uma das causas de morte de mulheres jovens no Brasil, a maioria delas negras e pobres. Fernando Collor de Mello ensaiou romper essa fronteira, ao usar a filha de Lula com Miriam Cordeiro para atacar seu principal adversário, em 1989. Mas uma espécie de acordo tácito foi mantido nas eleições que se seguiram.

Em 2010, ao constatar o potencial eleitoral dos evangélicos, em especial dos neopentecostais, que seguem crescendo e podem superar o número de fiéis católicos nas próximas décadas, políticos e marqueteiros perceberam que jogar o aborto na mídia e no palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores com escrúpulos de se tornarem crentes de última hora. Ninguém fez isso com maior afinco do que José Serra, na campanha eleitoral em que disputou a presidência com Dilma Rousseff.

No final do primeiro turno, a Internet e as ruas foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma Rousseff era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos, e também parte dos bispos e dos padres católicos exortou os fiéis a desistirem de votar nela. Circularam suspeitas de que o ataque teria partido da campanha de Serra, mas a autoria não chegou a ser provada. O que se pode afirmar é que Serra se empenhou em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante.

Dilma Rousseff, por sua vez, correu a buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nesta carta, Dilma comprometeu-se, caso vencesse a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava suas trajetórias. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e, usando o mote dos grupos extremistas do catolicismo, afirmou que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.

A campanha de 2010 marcou o momento mais baixo desde a redemocratização do país. Isso significa que foi o momento mais baixo em 21 anos de eleições presidenciais. E inaugurou o primeiro de uma série de momentos cada vez mais baixos que se seguiriam a ele, culminando com o discurso de ataque aos negros e aos indígenas, às mulheres e aos homossexuais e transexuais de Jair Bolsonaro em 2018.

O que se passou em 2010 escancarou as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual. Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que seria usado nas escolas públicas para trabalhar o respeito às diferenças e prevenir a violência contra homossexuais.

O kit Escola Sem Homofobia foi batizado pejorativamente de “kit gay” por pastores e políticos homofóbicos —ou apenas oportunistas— e lembrado em todas as campanhas eleitorais que se seguiram, inclusive a que deu a vitória ao declaradamente homofóbico Jair Bolsonaro, em 2018. Também vale a pena lembrar da retirada do ar do vídeo de uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida por doenças evitáveis.

A campanha de 2010 mostrou que rebaixar o tema do aborto à moeda eleitoral atingia dois propósitos: 1) fazer com que o adversário, liberal nos costumes, o que caracteriza a esquerda, de modo geral, e a direita genuinamente adepta do liberalismo, perdesse uma grande quantidade de votos entre as pessoas religiosas, em especial evangélicos neopentecostais e católicos carismáticos; 2) pressionar candidatos que, caso eleitos, poderiam levar adiante o debate do aborto como o problema de saúde pública que efetivamente é, assim como outras pautas relativas à sexualidade e à diversidade, de forma a se comprometerem a deixar tudo como está ou mesmo a retroceder.

A campanha de 2010 provou, principalmente, que o aborto e outros dos chamados “temas morais” são um eficaz instrumento de barganha política, quando não de chantagem. Desde então, parlamentares se agarraram a essa pauta, deram declarações públicas e lançaram projetos de lei marcados por um retrocesso que não parecia mais possível. Muitos desses oportunistas fizeram nome e ganharam importância na guerra moral assinalada pela imoralidade das práticas e pela desonestidade dos argumentos dos religiosos de ocasião.

O rebaixamento do nível da campanha de 2010 rompeu uma barreira ética no debate público do Brasil —e esse rombo nunca mais parou de ser escancarado. É necessário jamais esquecer que essa fronteira não foi derrubada nem pela parcela mais fisiológica do PMDB, hoje MDB, nem pelos líderes evangélicos mais inescrupulosos. Ela foi ultrapassada por José Serra, um representante do PSDB histórico, de raiz.

Este não é um detalhe. E sim um fato crucial para compreender o papel que o PSDB desempenhou para os rumos do Brasil. O modo de operação do MDB é muito mais pesquisado, esmiuçado e conhecido, tanto por intelectuais que se dedicaram a ele, caso da tese do “pemedebismo”, do filósofo Marcos Nobre, quanto pelo público que acompanha a política de Brasília. No campo da Justiça, a Operação Lava Jato mostrou muito mais claramente como o MDB e o PT atuavam do que o PSDB.

O PSDB desempenhou um papel determinante para a ampla e múltipla crise vivida hoje pelo Brasil —e esse papel precisa ser iluminado. Não foi por acaso, nem sem a responsabilidade dos tucanos mais emplumados, que o rosto do PSDB deixou de ser o de FHC para se tornar o de Doria, com uma transição pela face de Geraldo Alckmin.

É também em 2010 que Eduardo Cunha enxerga uma brecha para ampliar seu poder de influência. Com o aval de Lula, esse personagem nebuloso vai peregrinar por templos evangélicos para afirmar que Dilma Rousseff é contra o aborto. É este novo “aliado” que lidera o contra-ataque e pede votos para Dilma nos redutos do evangelismo neopentecostal. Por pragmatismo eleitoral, ao se ver atacada, Dilma capitulou diante de seus princípios. Naquele momento, nem ela nem ninguém poderia saber, mas se iniciava ali, mesmo antes de Dilma se eleger para o primeiro mandato, sua triste marcha rumo ao impeachment.

Nos anos seguintes, Eduardo Cunha se tornaria o rei do “centrão” —grupo de parlamentares ligados menos à direita ou a qualquer ideologia e bem mais a seus interesses pessoais e privados, que tem como característica o apoio a qualquer Governo, em troca de cargos e favores. Em resumo: se elegem para se colocarem à venda. Eduardo Cunha uniria também as bancadas conservadoras da Câmara dos Deputados para barrar, na prática, o aborto legal. A partir de 2015, já como presidente da Câmara, tornou-se o principal ator do impeachment de Dilma Rousseff, depois de concluir que o PT não impediria a investigação de seus atos de corrupção. O impeachment foi movido por muitas razões e também paixões, entre elas a vingança do vilão.

2) O PSDB, Aécio Neves e o pré-bolsonarismo ou pré-trumpismo: a estratégia nojenta de duvidar do processo eleitoral

A cena produzida em 2010 marca a derrocada ética do PSDB, assim como assinala o ponto aparentemente sem retorno em que o partido se desliga do que existia de progressista em sua história. O momento em que o corpo das mulheres virou moeda eleitoral no Brasil tem seu impacto na história recente minimizado, até porque a maioria dos analistas é composta por homens.

Tucanos-pena-longa se omitiram ao testemunhar José Serra arrastar as asas —as suas e as do partido —nos esgotos, em 2010. E se omitiram mais uma vez quando outro membro do PSDB histórico, Aécio Neves, desferiu o ataque mais grave à democracia desde o fim da ditadura civil-militar. Aqueles brasileiros que hoje torcem a boca de indignação, ao acompanhar o estrago que Donald Trump tem feito na até então aparentemente sólida democracia dos Estados Unidos, deve olhar com mais atenção para o seu próprio quintal.

Aécio Neves, neto do ícone Tancredo Neves, teve a irresponsabilidade criminosa de duvidar do resultado eleitoral, sem uma única prova, abrindo espaço para toda a corrosão da democracia que veio depois. Quando Aécio Neves perdeu a eleição de 2014 para Dilma Rousseff, ele e seu partido cometeram o ato, ao mesmo tempo oportunista e irresponsável, de questionar o processo eleitoral sem nada que justificasse a suspeição do pleito. O Brasil, com as urnas eletrônicas, tem um dos mais confiáveis e eficientes sistemas de votação do mundo. Aceitar a derrota faz parte das regras fundamentais da democracia. E negá-la, como hoje faz Donald Trump, para assombro do mundo, e fez Aécio Neves, em 2014, é um ataque inaceitável ao voto de todos os eleitores.

Aécio iniciava ali uma nova crise, e isso já num cenário grave para o país, marcado por dificuldades econômicas crescentes e pela perda acelerada do apoio à presidenta reeleita. Naquele ato, abriu um precedente mais do que perigoso. Mais tarde, uma gravação revelaria Aécio afirmando que pediu a auditoria dos resultados eleitorais só “para encher o saco”. Aécio deve entrar para a história não só pelos seus crimes de corrupção, mas por esse gesto contra o país. Aécio Neves e José Serra devem ser lembrados como políticos que praticaram gestos determinantes para a destruição da democracia brasileira.

Quatro anos depois, em 2018, mais uma eleição. Durante a campanha, de dentro do hospital, onde se recuperava de um atentado a faca, Jair Bolsonaro gravou um vídeo questionando as urnas eletrônicas e sinalizando que poderia não aceitar o resultado do pleito, em caso de derrota. Seu vice, o general Hamilton Mourão, já havia dado uma entrevista à Globo News afirmando a possibilidade de um autogolpe do presidente eleito, com o apoio das Forças Armadas. Bolsonaro e os generais anunciavam ali que não aceitariam a derrota. A democracia, pelo visto, só valia se o resultado fosse positivo. O que planejavam não foi usado, já que Bolsonaro venceu a eleição de 2018 pelo voto. E, como venceu, suas suspeitas sobre as urnas eletrônicas desapareceram de imediato.

Nas recentes eleições municipais de 15 de novembro, perfis bolsonaristas nas redes sociais atuaram fortemente para lançar suspeita sobre o processo de apuração eleitoral, já sinalizando o que planejam para 2022. Bolsonaro, porém, não inventou esse truque absolutamente repugnante. No Brasil, o responsável atende pelo nome de Aécio Neves —e, ainda assim, o playboy de Minas conseguiu se eleger deputado federal em 2018, apesar de toda a ficha corrida, da qual faz parte a literalidade de uma mala cheia de dinheiro da corrupção.

3) O PSDB acelera rumo ao botox: tardia autocrítica de Tasso Jereissati, nenhum efeito concreto sobre o partido engolido por João Doria

O PSDB desempenhou um papel importante no impeachment de Dilma Rousseff e participou do Governo de Michel Temer (MDB). Quando aderiram aos movimentos das ruas a favor do impeachment e contra o PT, vestidos com a camiseta da seleção brasileira, políticos tucanos também se iludiram que a rua era deles. Não era nada disso, como logo descobririam.

Em setembro de 2018, um dos tucanos de plumagem grossa, Tasso Jereissati, afirmou, em entrevista ao jornalista Pedro Venceslau, no jornal O Estado de S. Paulo: “O partido cometeu um conjunto de erros memoráveis. O primeiro foi questionar o resultado eleitoral. Começou no dia seguinte [à eleição]. Não é da nossa história e do nosso perfil. Não questionamos as instituições, respeitamos a democracia. O segundo erro foi votar contra princípios básicos nossos, sobretudo na economia, só para ser contra o PT. Mas o grande erro, e boa parte do PSDB se opôs a isso, foi entrar no Governo Temer. Foi a gota-d’água, junto com os problemas do Aécio. Fomos engolidos pela tentação do poder”.

Autocrítica importante, ainda que tardia. E além de tardia, sem efeito, porque o PSDB apenas acentuou sua guinada às piores práticas com João Doria. Quem acha que controla as ruas não estudou nem a história nem a psicologia humana. Com telhado de vidro fino, tanto Serra quanto Aécio e o PSDB são hoje muito menores do que no passado, em todos os sentidos.

Pior do que não ter ressonância, porém, é perder o respeito. O PSDB que surgiu com a volta da democracia não existe mais. O que existe agora é outra coisa. Que coisa é essa, o presente já está mostrando. O PSDB atual tem o rosto, o estilo e a estética de Doria, um milionário exibicionista, esteticamente muito mais parecido com Trump do que com Bolsonaro, mas sem nenhum ponto de contato com Joe Biden, o moderado recém-eleito para a presidência dos Estados Unidos, por exemplo. É fácil imaginar como a face, o estilo e a estética devem horrorizar os tucanos ainda “finos” que sobrevivem como decoração nas prateleiras empoeiradas da história do partido. Mas se calaram demais diante de tantas atrocidades ao longo dos anos e hoje só lhes resta engolir sem cuspir.

Não se pode esquecer de Geraldo Alckmin, o padrinho traído de Doria no partido, que ao governar São Paulo mostrou que era tudo menos picolé de chuchu. É difícil trabalhar com a hipótese de “e se”, mas também faz sentido imaginar o que teriam sido os protestos de 2013, que mudaram o Brasil, não fosse Alckmin ter despachado sua Polícia Militar para bater em manifestantes e jornalistas, expulsá-los das ruas com gás lacrimogênio e spray de pimenta, num nível de violência que revoltou até mesmo a classe média, sempre tão conservadora.

Alckmin e uma das mais assassinas polícias do mundo —que também morre muito, é preciso dizer— foram protagonistas às avessas dos protestos. Mesmo assim, Alckmin não aprendeu. Em 2015 colocou a mesma truculenta PM para bater em crianças e adolescentes que protestavam contra uma reforma imposta à comunidade escolar sem suficiente consulta e debate, alunos de escolas públicas apanhando como se o país vivesse numa ditadura e como se manifestações não estivessem contempladas na Constituição. João Doria, o afilhado de Alckmin, se elegeu prefeito em 2016 fazendo discurso contra a política e os políticos e autoproclamando-se “gestor”, em mais um ataque à democracia.

Em 2018, Doria deixou sem pena a Prefeitura de São Paulo, depois de uma coleção de maldades como demolir um prédio do que chamam “Cracolândia”, ferindo pelo menos três moradores. João Doria elegeu-se governador literalmente colado a Jair Bolsonaro, no slogan “BolsoDoria”. Agora, de olho na disputa pela eleição presidencial de 2022, o governador de São Paulo descolou-se do atual presidente e desde então busca se apresentar, e também o partido, como o último reduto da moderação. Algo como “Doria, o pacificador”.

O governador de São Paulo, João Doria, acompanha Bruno Covas no primeiro turno da eleição, em 15 de novembro.
O governador de São Paulo, João Doria, acompanha Bruno Covas no primeiro turno da eleição, em 15 de novembro.DIVULGAÇÃO/GOVERNO DE SP

4) Bruno Covas e o vice-problemão: a prefeitura foi deixada para os vices nos últimos dois mandatos do PSDB

Para distanciar-se de Bolsonaro e da extrema direita, o PSDB precisa mostrar que ainda guarda na alma uma lembrança carinhosa do tempo em que era centro político. Neste sentido, apostar na eleição de Bruno Covas para a prefeitura de São Paulo foi uma jogada esperta. Covas tem o sobrenome certo, na medida em que é neto de Mário Covas, ex-governador de São Paulo e fundador do PSDB, portanto herdeiro de uma espécie de aristocracia do partido, hoje tomado por novos ricos com a cara cheia de botox. Se há várias críticas a se fazer a Bruno Covas no comando de São Paulo, é preciso reconhecer que ele está ainda longe de poder ser equiparado ao trio Doria-Aécio-Serra.

Espertamente, Bruno Covas tentou se afastar de Doria e de Bolsonaro para chegar ao segundo turno, mas a realidade acaba sempre se impondo. Além de outros partidos e figuras de direita, Covas tem hoje o apoio formal de Celso Russomanno (Republicanos), candidato derrotado no primeiro turno, declaradamente apoiado por Bolsonaro. O maior complicador, porém, atende pelo nome de Ricardo Nunes (MDB), seu candidato a vice. Ricardo Nunes foi imposto a Bruno Covas por João Doria, em sua articulação para que o MDB apoie o seu nome para a eleição presidencial de 2022. Nunes é um sapo de um tamanho difícil de passar na garganta para alguém que se anuncia como “centro” e como “moderado” e como “responsável”. Covas o defende e até afirma que Ricardo Nunes foi escolhido por ele mesmo, mas o sapo só aumenta de tamanho.

Em 2011, o vice da chapa de Covas foi acusado pela mulher de violência doméstica e um mês mais tarde ele mesmo acusou-a de lesão corporal. Hoje eles vivem juntos. Vereador influente na zona sul de São Paulo, Ricardo Nunes é alvo de um inquérito policial que investiga corrupção nas relações de políticos com entidades gestoras de creches conveniadas, caso conhecido como a “máfia das creches”. Na Câmara de vereadores de São Paulo atua contra os direitos das mulheres e dos homossexuais e transgêneros e apoia o ultraconservador projeto Escola Sem Partido, que busca criminalizar professores, dinamitar a educação sexual e reescrever a história do país.

Seria possível alegar que um vice influi pouco nos rumos do Governo, mas, no Brasil, apenas dois presidentes não foram substituídos pelo vice desde a redemocratização do país. Em São Paulo, dois vices viraram prefeitos porque o titular, do PSDB, resolveu concorrer a um cargo de mais poder. O próprio Bruno Covas era vice de João Doria, que deixou a prefeitura para concorrer ao cargo de governador, o que até hoje é pouco perdoado por seus eleitores. Antes dele, em 2006, foi a vez de José Serra deixar a prefeitura para concorrer ao Governo do Estado, e então assumiu um quase desconhecido Gilberto Kassab. Hoje, Kassab é um dos principais líderes dessa praga política que atende pelo nome de “centrão”, mas que é muito mais à direita do que próxima a qualquer ideia de centro ideológico.

Vale a pena observar que tanto Serra quanto Doria assinaram compromissos de que jamais fariam o que efetivamente fizeram. Serra assinou um documento afirmando que cumpriria o mandato até o fim. Mais tarde, ao ser cobrado por trair a própria assinatura, disse que era só um “papelzinho”. E Doria, durante a campanha, também assinou um documento a pedido do portal Catraca Livre: “Eu, João Doria, comprometo-me a cumprir integralmente meu mandato nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 caso seja eleito prefeito de São Paulo em 2016”. Bem, o que aconteceu todos sabem.

Diante do histórico do PSDB na prefeitura de São Paulo, faz bastante sentido o eleitor paulistano se preocupar que o prefeito acabe se tornando Ricardo Nunes. Com a biografia embrulhada e sob investigação, Nunes foi orientado —ou talvez proibido— de participar de debates com a vice da chapa opositora, Luiza Erundina. Uma das mais experientes políticas brasileiras, ex-prefeita de São Paulo, atual deputada federal, Erundina tem uma biografia de absoluta coerência, uma história pessoal fascinante e, para aumentar os pesadelos do PSDB, é uma debatedora afiada. A campanha para o segundo turno já começou com uma intensa campanha nas redes, com o título de “Exigimos o debate dos vices”, mas Ricardo Nunes e o PSDB deram uma de Jair Bolsonaro e fugiram da raia pelos fundos, o que também diz bastante a um eleitor minimamente atento.

Desde que Guilherme Boulos e Luiza Erundina chegaram ao segundo turno, o PSDB joga sujo, apostando no discurso sacana da suposta “radicalidade” de Guilherme Boulos. Considerar “radical” a luta por moradia, no sentido pejorativo, e buscar criminalizar movimentos sociais são gestos muito mais ligados à extrema direita truculenta de Bolsonaro do que a qualquer aceno de “moderação”. O antipetismo quase patológico apresenta o PT como o principal responsável pela crise múltipla vivida pelo Brasil nos últimos anos. Sem tirar a responsabilidade do PT, que é grande, o que hoje vive o Brasil está longe de ter um único responsável e muito menos exime a direita que se rearranja durante toda a história republicana para seguir no poder e não perder privilégios de raça e de classe. As ruínas construídas pelo Brasil ao longo dos séculos são um bem-sucedido trabalho de longo prazo das elites conservadoras.

5) Uma eleição municipal que é nacional: o que está em jogo no voto de São Paulo diz respeito ao futuro de todo o Brasil

O antipetismo dos últimos anos permitiu que o PSDB fosse menos cobrado pelos seus ataques à democracia. Por isso é urgente refletir sobre o papel do PSDB no momento em que está em curso mais um rearranjo da direita que apoiou Bolsonaro e hoje se descola quase vergonhosamente dele para disputar 2022 se vendendo como “pacificadora” e “moderada”. Doria é o expoente deste movimento. Era BolsoDoria há menos de dois anos, hoje é anti-Bolsonaro desde bebezinho. João Doria, como Geraldo Alckmin aprendeu duramente ao ser traído pelo afilhado, é como Jair Bolsonaro: só tem um partido, que é ele mesmo.

A surpreendente chegada de Guilherme Boulos e do PSOL ao segundo turno da maior, mais rica e mais influente cidade do país foi um susto para o projeto de poder de João Doria e de seus mais novos sócios. Nos últimos meses, o atual governador de São Paulo, o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro Sergio Moro e o apresentador da TV Globo Luciano Huck tentam costurar uma candidatura com o mote da “moderação” e da “união do país”. Uma candidatura proposta como sendo de centro.

Doria e seus amigos da direita travestida de centro estão muito preocupados com o que dirão as urnas no próximo domingo, 29 de novembro. Eles davam a esquerda por enterrada, com boas razões, já que até esse momento os partidos de esquerda e de centro-esquerda não conseguiam se entender para fazer oposição real a Bolsonaro. A consolidação de um novo líder, fora do guarda-chuva do PT, aponta que a esquerda pode chegar a 2022 com uma frente ampla e chances reais de disputar a sucessão de Bolsonaro —ou de pelo menos atrapalhar bastante os acertos da direita consigo mesma. O apoio de expoentes como Lula (PT), Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede) e Flávio Dino (PCdoB), mostram que uma frente ampla à esquerda se tornou realidade no segundo turno da eleição de São Paulo e já está no campo das possibilidades também para a sucessão de Bolsonaro.

Mesmo que o PSOL perca, o cenário político mudou no Brasil. Se Guilherme Boulos e Luiza Erundina vencerem, São Paulo é uma força poderosa. No próximo domingo, os eleitores paulistanos vão determinar muito mais do que o futuro da cidade de mais de 12 milhões de habitantes. É o futuro do Brasil e de mais de 210 milhões de pessoas que já está sendo tecido no presente.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Vera Magalhães: Novo começo de era?

Disputa em São Paulo mostra que tutela de padrinhos é dispensável

É redutor atribuir o bom nível do debate entre Bruno Covas e Guilherme Boulos ao fato de serem dois políticos moderados. O adjetivo é impreciso para rotular dois políticos com características, trajetórias e propostas tão distintas.

Além do que, avaliar suas chances e seus projetos para São Paulo a partir de uma palavra tão vaga não faz jus ao momento rico e importante que a improvável eleição da pandemia acabou por provocar.

Covas é um político de centro. As circunstâncias dos diferentes momentos de sua carreira política – deputado, vice-prefeito, prefeito – mexeram esse ponteiro ora para a centro-esquerda, ora para a centro-direita.

Apostou, quando assumiu a cadeira de prefeito, que, no embalo da eleição de Jair Bolsonaro e do próprio João Doria, enfrentaria um adversário da direita neste ano.

Vestiu um figurino de social-democrata a partir dessa avaliação, e procurou se distinguir do “Bolsodoria”, o personagem que seu correligionário vestiu em 2018, e rapidamente caiu em desuso depois da posse.

O drama pessoal que viveu e a pandemia foram novas oportunidades para Covas procurar mostrar personalidade dentro do PSDB paulista, resgatando a imagem do avô, inclusive.

Muitos imaginaram que, diante da ida ao segundo turno contra Boulos, um candidato de esquerda, ele flertaria com o discurso de direita para atrair os bolsonaristas. Houve, inclusive, ensaios dessa mutação no discurso logo após a posse, quando ele classificou Boulos três ou quatro vezes de “radical” e fez uma exortação à “lei e à ordem”.

Mas, a partir desta segunda-feira, a ordem no comitê era manter o tom sereno, por vezes gélido, que ele demonstrou no primeiro turno. Um gesto neste sentido foi telefonar para Boulos para pedir desculpas por uma ofensa de um aliado.

E o candidato do PSOL? Moderado ou radical? Ele mesmo refuta o primeiro adjetivo e qualifica o segundo: gosta de dizer que é radicalmente diferente do PSDB em doutrina social e econômica.

Mas Boulos demonstra que mudou desde os primórdios de sua atuação à frente do MTST: refinou conceitos, estudou a cidade, compreendeu a necessidade de construir pontes para alcançar objetivos. Isso nada tem de exótico: é o caminho natural dos políticos e dos partidos quando enfrentam sucessivas eleições e amadurecem.

O risco, para ambos, é serem tragados para as caricaturas deles mesmos e de seus partidos por aliados mais interessados em usá-los como cavalos de Troia para os próprios projetos que em contribuir com sua eleição.

Ambos prescindiram de padrinhos no primeiro turno, por motivos distintos. No caso de Covas, andar com Doria era ruim eleitoralmente, dada a rejeição do governador na cidade.

Para Boulos foi meio falta de opção. A candidatura de Jilmar Tatto impediu Lula de apoiá-lo. Mas, na primeira hora, quando as urnas não saíam do 0,39% apuradas, o cacique petista já tratou de pular em cima do palanque do candidato do PSOL, avistando nele uma chance de reduzir o tamanho da derrota do PT.

Doria também já ensaiou o discurso de que o resultado em São Paulo aponta para a viabilidade da “frente ampla”, um papo lá para 2022 e que interessa só a ele.

Covas e Boulos demonstrarão maturidade se recusarem a tutela de padrinhos. Uma característica nacional desta eleição foi a renovação geracional mais qualitativa, diferente da horda de youtubers de 2018.

Ambos têm um futuro político promissor pela frente se souberem entender o que seus partidos e seus campos políticos fizeram de errado para causar repulsa no eleitor. Isso tem menos a ver com conceitos como esquerda e direita, moderado ou radical, que com práticas políticas e de gestão e propostas para o País e a sociedade. Até aqui, a eleição de São Paulo é um alento nesse sentido.


Dora Kramer: Pé no chão

Uma coisa é certa: em 2022 a política tradicional não embarca outra vez na canoa de Bolsonaro

A notícia do encontro de Luciano Huck com Sergio Moro levou de volta à cena da sucessão presidencial o apresentador que andava sumido desde a eclosão da pandemia. Outro efeito foi expor o ex-juiz ao frio e à chuva dos ataques à direita e à esquerda e enquadrá-lo na moldura de companhia questionável: um tanto tóxica no meio político, mas bem-aceita na sociedade.

Por ora, fica por aí o andamento da construção de uma candidatura de centro capaz de enfrentar Jair Bolsonaro em 2022. Isso no tocante ao que os artífices da empreitada estão dispostos a revelar ao público, porque nos bastidores a coisa segue o ritmo das conversas, aproximações e lances antecipados para futuras alianças que vêm acontecendo desde o ano passado.

Huck recolocado, Moro testado e João Doria instigado, mas mais interessado em se firmar como contraponto a Bolsonaro do que em disputar espaços internos na articulação de uma alternativa ao presidente. Este é o quadro e dele não veremos grandes evoluções até que se possa dar por encerrada a crise sanitária, definida a troca (ou repetição) do comando no Congresso e delineados os rumos da economia, para o bem ou para o mal.

Aqui o mapa do resultado do primeiro turno da eleição municipal tem importância relativa. Para antecipar definições sobre vencedores e perdedores em 22, o peso é zero. Temos exemplos a mancheias de derrotados numa e vitoriosos na seguinte, e vice-versa. Importa sim o tamanho do eleitorado que sairá representado por essa ou aquela força política, aí sim projetando uma tendência do estado de espírito do eleitorado.

Pelas pesquisas, o desenho revela uma inclinação ao já conhecido e/ou testado: Bruno Covas em São Paulo, Eduardo Paes no Rio de Janeiro, o atual prefeito em Belo Horizonte, os herdeiros de Eduardo Campos e ACM Neto no Recife e em Salvador, respectivamente. Se confirmadas as intenções de voto, teremos a prevalência do ânimo conservador (não no sentido ideológico) sobre humores pautados por revolta e ressentimento.

É verdade que não temos nada parecido com figuras de escol em matéria de experiência e biografia. Temos de desconsiderar perfis ideais e trabalhar com as hipóteses postas. No campo da candidatura dita de centro, Sergio Moro não agrega e Luiz Henrique Mandetta não passa pelo crivo dos interesses do partido dele (DEM). Restam Luciano Huck e João Doria. Numa avaliação crua, Huck por enquanto se situa na desvantagem em relação a Doria.

Pelo seguinte: o governador é do PSDB e já compôs uma aliança com o DEM e o MDB que inclui a eleição municipal em São Paulo e outras capitais (Rio e Salvador, por exemplo), a composição da chapa de 2018 com a cessão ao DEM da vice e a chance de assumir o governo a partir de abril de 2022, além da escolha dos próximos presidentes da Câmara e do Senado. Fechou, assim, com as forças políticas de maior peso.

Esse pessoal pode mudar e se transferir para uma candidatura de Luciano Huck? Até pode, mas não fará isso antes de o apresentador mostrar capital eleitoral/partidário e transformar-se de celebridade popular em candidato competitivo. Uma coisa é este ou aquele político demonstrar simpatia e posar para fotos com Huck, outra é ver esses personagens embarcar na canoa dele para valer.

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Doria, contudo, tem obstáculos fortes para ultrapassar: o pouco conhecimento em âmbito nacional, uma certa antipatia país afora com a supremacia paulista e a desconfiança do eleitorado do próprio estado pelo fato de ter abandonado a prefeitura para concorrer ao Palácio dos Bandeirantes depois de ter prometido cumprir o mandato.

Para vencer essas dificuldades, Doria se posiciona como um contraponto a Bolsonaro a fim de ganhar projeção e firmar imagem de governante civilizado e eficaz. Ciente do peso do quesito aversão a “paulistices”, no lugar de se referir aos “paulistas”, adota a expressão “brasileiros que moram em São Paulo”. Por sua vez, Huck e até Ciro Gomes não têm responsabilidades governamentais e podem se movimentar com mais liberdade.

A despeito da indefinição do panorama hoje mais calcado em hipóteses a ser definidas a partir de meados de 2021, uma coisa é certa: os políticos tradicionais que em 2018 ficaram com Bolsonaro de modo utilitário e entraram na eleição desarticulados não vão repetir a dose.

E o papel do Centrão? É como diz um dos donos da voz da experiência na política tradicional: “o centrão é o primeiro na fila dos cumprimentos ao vencedor”.

Publicado em VEJA de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713


Vera Magalhães: Masculinidade frágil

Derrota de Trump e agruras do 01 abalam confiança de Bolsonaro

Jair Bolsonaro é uma cobaia ambulante para qualquer tese psicanalítica. Ontem, diante de tantos “eventos adversos graves” para si, sua família e o seu projeto político, o presidente surtou. Como sempre acontece com ele, esses surtos envolvem ao mesmo tempo decisões graves, com consequências para o País, e arroubos que funcionam mais como cortina de fumaça para tentar esconder suas fragilidades.

Vamos separar o joio do trigo. Ou o joio do joio, pois não há trigo nesse silo.

No rol dos absurdos com graves consequências para o Brasil está a decisão da Anvisa de paralisar os testes da Coronavac por conta de um efeito adverso grave com um entre mais de 13 mil voluntários dos testes clínicos da vacina desenvolvida em parceria entre o Instituto Butantan e o laboratório Sinovac. Acontece que a morte desse paciente nada teve a ver com a vacina.

Sem fazer questão de esconder o caráter puramente político da decisão, que escancara o aparelhamento da agência, o presidente se arreganhou: “Mais uma que Bolsonaro ganha”.

A masculinidade frágil é um fenômeno que atinge homens heterossexuais inseguros, que precisam a todo momento reafirmar sua superioridade. Ganha? O presidente comemora vitória sobre seu adversário João Doria Jr. sapateando desrespeitosamente nos cadáveres dos mais de 162 mil brasileiros mortos pela covid-19, e especialmente no desse paciente transformado em bode expiatório.

Como esses surtos denotam justamente o contrário de “vitória”, vê-se que Bolsonaro sentiu as derrotas recentes. A começar pela de Donald Trump, para a qual passou recibo na “superterça” da alucinação. Numa solenidade oficial, buscou ajuda do infalível Ernesto Araújo para dizer que Joe Biden, a quem chamou de postulante a chefe de Estado (a negação é outra característica da psique bolsonarista) estaria ameaçando nossa soberania e, nesse caso, não bastaria a diplomacia. “Tem que ter pólvora, senão não funciona.” É de um ridículo de dar pena.

Não faltou, claro, o tradicional comentário homofóbico, também recheado de desdém com a morte. Diante das perdas para a covid-19, sapecou que temos de deixar de ser “um país de maricas”.

Até quando o Brasil terá de aguentar esse tipo de postura por parte de seu mais importante mandatário?

Para as bravatas e as grosserias que denotam a masculinidade frágil há pouco a fazer, a não ser esperar as urnas e que a onda de racionalidade que ajudou a varrer o trumpismo nos Estados Unidos sopre para cá.

Mas a paralisia da pesquisa de uma de várias vacinas que podem nos livrar do flagelo da pandemia é outra história. Nesse caso é urgente e inescapável que os que têm prerrogativa ajam. É preciso que Ministério Público da União, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Instituto Butantan ou entidades da sociedade civil tomem a frente de uma ou múltiplas ações com pedido de cautelares no Supremo Tribunal Federal para sustar a decisão da Anvisa.

Bolsonaro e o almirante Antonio Barra Torres, o bolsonarista no comando da agência, sabotam o combate à pandemia tendo como objetivo atingir um adversário político. A fala do presidente é prova cabal contra si, e nela há vários indícios de que ele recebeu informações que a agência não poderia lhe fornecer.

E o Supremo precisa voltar a conter os ímpetos letais de um presidente atordoado por derrotas políticas, como o péssimo desempenho de seus candidatos a prefeito de Norte a Sul, o fim do sopro de popularidade do auxílio emergencial, a derrota do “amigão” na América e o agravamento das evidências de crimes variados por parte de seu filho Flávio. É um pacote pesado para quem tem masculinidade frágil, mas descontar na vida da população é crime de responsabilidade.


Bernardo Mello Franco: A captura da Anvisa

O bolsonarismo já havia capturado a Polícia Federal, a Receita Federal, a Procuradoria-Geral da República e a Abin. Agora chegou a vez da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Numa decisão exótica, a Anvisa ordenou a suspensão dos testes da CoronaVac, vacina desenvolvida pela chinesa Sinovac e pelo Instituto Butantan. A agência atribuiu a medida à morte de um voluntário. Era um pretexto enganoso. De acordo com a polícia, o homem cometeu suicídio.

O presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, disse que a decisão de interromper os estudos clínicos foi “técnica”. Ele é contra-almirante e aliado próximo de Bolsonaro no governo. Em março, acompanhou o presidente numa manifestação golpista em frente ao Planalto. Os dois desfilaram sem máscara, desrespeitando as recomendações sanitárias.

O capitão trava uma guerra contra a CoronaVac. No fim de outubro, ele humilhou o ministro Eduardo Pazuello, que havia anunciado a compra de 46 milhões de doses do imunizante. Mandou cancelar o negócio e disse que não bancaria a “vacina chinesa de João Doria”.

Ontem a desfaçatez foi ainda maior. Bolsonaro festejou a suspensão dos testes — e a morte do voluntário — como se comemorasse um gol na arquibancada. “O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, celebrou.

Na campanha, o presidente prometeu acabar com o “aparelhamento” no governo federal. No poder, ele submete órgãos de Estado para proteger os filhos e atingir adversários políticos. Na guerra das vacinas, o alvo é o governador de São Paulo. A Anvisa mirou Doria e acertou o Butantan, que tem 119 anos de serviços prestados à ciência e à saúde.

Enquanto a oposição sonha com 2022, o capitão avança com seu projeto de destruição nacional. Ontem ele definiu o Brasil como um “país de maricas”. Em seguida, ameaçou declarar guerra aos Estados Unidos. Depois de 19 minutos de surto, deixou escapar duas frases sensatas: “Não estou preocupado com a minha biografia. Se é que eu tenho biografia”.


Merval Pereira: O medo da morte

A atitude desprezível e repugnante do presidente Bolsonaro de festejar a paralisação dos testes com a Coronavac, vacina chinesa que está sendo produzida pelo Instituto Butantan em São Paulo, como uma vitória política sobre o governador João Dória, dá bem a dimensão desumana desse político, que brada que o país tem de parar de ser “terra de maricas” e encarar de frente a pandemia.

Se não fosse a barreira do Centrão, esta seria a milionésima vez em que Bolsonaro, cometendo mais um crime de responsabilidade, poderia ser impedido pelo Legislativo de continuar à frente do governo. Não tem a menor condição psicológica ou moral para exercer a presidência da República uma pessoa que não consegue ter empatia com os cidadãos do país que teoricamente lidera.

O tiro de misericórdia tentado acabou saindo pela culatra, pois o pobre do voluntário que morreu, cometeu suicídio ou foi vítima de uma overdose, ocorrência que nada tem a ver com a vacina. O fato de que, mesmo depois de esclarecido o caso, a Anvisa não autorizou a retomada dos testes, mostra que há mais do que uma exagerada cautela por parte do órgão governamental.

Mas há indicações de que o prejuízo pode ser muito maior, pois pesquisas realizadas pelo cientista político Carlos Pereira, com Amanda Medeiros, da Fundação Getulio Vargas do Rio, e Frederico Bertholini, da Universidade de Brasília (UNB), mostram que a maneira como o governo brasileiro está tratando o combate à COVID-19 tem feito com que muitos dos seguidores de Bolsonaro abram divergência em relação ao desprezo que ele tem pelo distanciamento social e uso de máscara.

A crise da vacina é apenas mais uma fase desse negacionismo governamental, apesar dos mais de 5 milhões de infectados e mais de 160 mil mortos. Há também indicações de que a polarização entre os extremos, da esquerda e da direita, está cansando os cidadãos, assim como nos Estados Unidos a virulência de Trump abriu espaço para a vitória do conciliador Joe Biden.

Pereira diz que já é possível observar esse fenômeno nas eleições municipais, “pois os candidatos que estão sendo apoiados por Lula e por Bolsonaro estão apresentando performance pífia nas pesquisas de opinião”.

As pesquisas que Carlos Pereira e outros vêm fazendo sobre as consequências da pandemia mostram, segundo ele, “choque exógeno de proporções tectônicas”. Segundo sua análise, o jogo polarizado entre os extremos estava em relativo “equilíbrio” não apenas no Brasil, mas no mundo, cada um dos polos se retroalimentando. Consumiam informações que reforçavam suas crenças anteriores, e rejeitavam à princípio qualquer informação que contrariasse as suas respectivas identidades.

“As identidades próprias de cada grupo serviam, por um lado, como elementos de pertencimento e aconchego. Mas, por outro, como um escudo ou filtro protetor contra as identidades e valores do grupo rival”. As pesquisas de opinião experimentais que vem desenvolvendo, agora na terceira fase, sugerem que a COVID-19 “foi um choque exógeno de grandes proporções que abalou ou mesmo deslocou os eixos da polarização política no Brasil”.

O “medo da morte” gerado pela pandemia trouxe muitas incertezas, “e nessas condições de risco aberto, as saídas polares começaram a perder sentido, capacidade de agregação e fadiga”. Segundo Carlos Pereira, “uma parcela não trivial de eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018 abandonaram o presidente e não mais consideram votar em sua reeleição em 2022”.

Esse extrato populacional de perfil mais pragmático, as pesquisas mostram, está em busca de alternativas moderadas que preencham suas expectativas. O efeito da proximidade com o risco de morte associado à COVID-19 também é percebido nas avaliações sobre as ações do presidente e dos governadores, ressalta Pereira.

Muitos dos que se autodenominam de direita e centro-direita “se tornaram mais maleáveis quanto mais próximos esses eleitores se encontram de pessoas que desenvolveram a doença, em especial se vieram a óbito”. A gravidade da contaminação que eventualmente venha a gerar óbito leva as pessoas a minimizar as potenciais perdas econômicas.

“O medo da morte parece não aproximar apenas polos ideologicamente opostos, mas também diferentes classes sociais e pessoas que estão vivenciando diferentes níveis de prejuízos econômicos em decorrência da política de isolamento social”.


Ricardo Noblat: O centro está engarrafado com aspirantes a candidatos em 2022

Política é a arte da conversa em busca do entendimento

Sem conversa não se faz política. É saudável que os diretamente interessados nas eleições presidenciais de 2022 comecem a conversar. Daí porque é estranha a reação do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, à notícia de que o apresentador Luciano Huck e o ex-juiz Sérgio Moro se reuniram.

Huck ainda não teve coragem para se assumir como candidato à sucessão de Jair Bolsonaro, e pode ser que jamais venha a ter. Mas ele se mexe como se pudesse ser. Moro é mais discreto. Mas mesmo que não concorra, seu apoio será disputado.

Maia disparou em Moro ao dizer que não apoiará “uma chapa integrada por alguém de extrema-direita”. A mulher de Moro, no passado, disse que o marido e Bolsonaro são a mesma coisa. À época, Moro e Bolsonaro estavam de bem.

Foi a declaração de uma mulher eufórica com a perspectiva de ver o marido ocupar uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal. Ela não repetiria, hoje, o que falou. De resto, se Moro é um extremista de direita como quer Maia, Bolsonaro é o quê?

Lula e Ciro Gomes também conversaram. Lula nada revelou a respeito. Ciro, provocado, afirmou: “Lavamos roupa suja pra valer. Sob o ponto de vista das compreensões da questão brasileira, continuamos como estávamos antes de conversar”.

Fiel ao seu estilo briguento, Ciro aproveitou para bater em Moro, no governador João Dória (PSDB) e indiretamente no ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta que andam tendo muitas conversas. Acusou-os de ser de direita. De centro, seria ele, Ciro.

O “Efeito Joe Badin” já se faz sentir nas preliminares da eleição presidencial de 2022. São muitos os aspirantes a candidatos desejosos em se credenciar como possíveis nomes do centro. Ou de centro-esquerda. De centro-direita, só se for muito necessário.

Derrotado nos EUA, Bolsonaro prepara-se para perder aqui

Deve haver alguma razão para que ele se comporte assim

Foi ontem que o presidente Jair Bolsonaro, no que chama de seu programa eleitoral gratuito no Facebook, apareceu ao lado da Delegada Patrícia Amorim (PODEMOS), candidata a prefeita do Recife. Mas foi na semana passada que anunciou seu apoio a ela.

Até então, Patrícia estava bem nas pesquisas de intenção de voto. Superara o candidato do DEM, Mendonça Filho. E ameaçava atropelar Marília Arraes (PT) para disputar o segundo turno com o deputado João Campos (PSB). Por enquanto, já não ameaça.

A mais recente pesquisa Ibope mostra que Patrícia caiu quatro pontos percentuais, que Mendonça Filho cresceu e Marília também. O índice dos eleitores que dizem que não votarão de jeito nenhum em Patrícia dobrou nos últimos sete dias.

Em São Paulo, Celso Russomanno (Republicanos), o candidato festejado por Bolsonaro, continua andando para trás. Despencou de 20% para 12% e ficou um ponto percentual atrás de Guilherme Boulos (PSOL). A rejeição a Russomano bateu a casa dos 40%.

Bolsonaro ainda tem esperança de que seu candidato a prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), dispute o segundo turno com Eduardo Paes (DEM). Ele está um ponto à frente da Delegada Martha Rocha (PDT), mas cresce entre os eleitores mais pobres.

Cresce também a torcida de Paes para enfrentar Crivella no segundo turno. Seria para ele o adversário mais fácil de derrotar. Em sua live no Facebook, Bolsonaro citou outros candidatos que têm o seu apoio nas capitais. Todos na rabeira das pesquisas.

Votar neles, segundo disse Bolsonaro, seria uma maneira de fortalecê-lo e ao seu governo, e de derrotar os que lhe fazem oposição. Sim, Bolsonaro disse isso, sujeitando-se a que se diga mais tarde que seu apelo não foi atendido e que ele perdeu.

Bolsonaro começou a cavar sua derrota nas eleições deste ano quando abandonou o PSL pelo qual se elegeu presidente da República, e tentou, mas não conseguiu criar um partido para chamar de seu. Prometeu então que ficaria neutro. Não ficou.

No caso das eleições americanas, para quem se diz amigo de Trump que não fala a sua língua, nem Bolsonaro a dele, poderia até ser compreensível que apostasse em sua vitória. Mas não a ponto de negar-se a reconhecer que Joe Biden ganhou.

Escolheu, portanto, comportar-se como se ele, Bolsonaro, também tivesse perdido, e, como Trump, alimentasse a esperança de reverter a derrota no tapetão da Suprema Corte. A opção por ser vencido lá e cá deve ter alguma misteriosa explicação.

Dizem ministros que o cercam que Bolsonaro com isso quer dar mais uma demonstração de fidelidade à sua base eleitoral de raiz que não admite recuos. Ela está incomodada com o fato de ele ter se rendido à política tradicional que antes dizia abominar.

É, pode ser. Mas essa base já foi muito maior. E tende a encolher mais quando aparecerem nomes para disputar seus votos com Bolsonaro em 2022. Aí o bicho vai pegar para ele.


Sergio Fausto: O delírio contra a ‘vacina chinesa’

Sem imunização em massa corremos o risco de o novo coronavírus persistir entre nós

O maior risco na política é o delírio. Quando fomentado por um líder, pode arrastar grande contingente de pessoas a adotar comportamentos destrutivos para si e/ou para os outros. Quando mobiliza o poder do Estado, as consequências podem ser catastróficas.

Na semana que passou tivemos um pequeno exemplo dos graves problemas que o delírio pode provocar quando passa a condicionar decisões de política pública. Não merece outro nome a recusa presidencial de adquirir a vacina contra a covid-19 ora em produção na China, em fase final de testes para comprovar a sua eficácia.

Por trás da recusa está uma teoria conspiratória com duas versões: a mais amalucada sustenta que a vacina altera o material genético das pessoas e pode servir de veículo para a inoculação de chips capazes de controlar o pensamento dos indivíduos vacinados; a menos endoidecida, mas ainda assim disparatada, vê na vacina produzida pela Sinovac, em parceria com cientistas e governos de distintos países do mundo, um instrumento a serviço da projeção global do poder da China. Num caso ou no outro, é incitada a fantasia paranoica de que nos estaríamos submetendo ao comando do Partido Comunista daquele país.

A versão tosca do delírio é disseminada nas mídias sociais pela rede de apoiadores do presidente Bolsonaro. A versão supostamente sofisticada da maluquice é articulada pelo chanceler Ernesto Araújo, o mesmo que enxerga em Donald Trump a salvação da cultura judaico-cristã e na China, o motor do globalismo e do marxismo cultural.

Não é preciso gastar muita tinta para demonstrar a insânia da referida teoria conspiratória, tampouco para mostrar as consequências desastrosas da eventual recusa, se definitiva, de se adquirir uma vacina, venha ela de onde vier, desde que comprovadas sua segurança e sua eficácia, em meio à maior pandemia dos últimos cem anos. A rigor, as consequências, neste caso, vêm antes do fato, uma vez que as declarações presidenciais atiçam o irracionalismo antivacina que ganha fôlego no Brasil e no mundo.

Basta observar a queda na cobertura vacinal da população brasileira nos anos mais recentes para se dar conta da tempestade que pode estar se formando. Sem imunização em massa, corremos o risco de que o novo coronavírus persista entre nós, junto com o ressurgimento de doenças já erradicadas, das quais o sarampo é apenas um exemplo. Vale a analogia com o que vem acontecendo no meio ambiente, visto que os sinais emitidos pelo candidato e pelo presidente Bolsonaro tiveram inegável papel no aumento dos incêndios na Amazônia e no Pantanal.

Diante desse quadro me pergunto o que significa a “normalização” do governo Bolsonaro. Outro exemplo: seria “normal” a aliança que selamos, sob a liderança dos Estados Unidos, com outros 30 países que não apenas criminalizam o aborto, como também as relações homoafetivas?

A cegueira ideológica, beirando o fanatismo, é um grande mal, em particular quando passa a condicionar decisões sobre questões essenciais à vida, como são a proteção contra doenças contagiosas e o controle sobre a mudança climática.

Não fosse trágica, a cegueira ideológica do governo nessas matérias seria patética. Mimetizam-se, como bichinho amestrado, as ações e os gestos da política externa de Trump. Nem sempre o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, muito menos quando o governo americano se move exclusivamente em função de seus interesses unilaterais de curto prazo. Menos ainda quando se está em meio a uma eleição que, tudo leva a crer, provocará importante mudança política naquele país.

Países não têm amigos, têm interesses, disse originalmente lorde Palmerston, ministro da Guerra do Reino Unido no início do século 19. Certo, mas os países têm interesse em cooperar entre si quando se veem diante de desafios que não podem resolver sozinhos. Em nenhuma época da História houve competição tão acirrada quanto na guerra fria, entre Estados Unidos e União Soviética. Confrontavam-se duas ideologias distintas que buscavam arregimentar os demais países em blocos antagônicos. Ainda assim, americanos e soviéticos cooperaram em questões vitais.

Na área nuclear, a construção de acordos e mecanismos formais e informais de consulta e verificação impediram que a guerra fria evoluísse para uma guerra quente de consequências devastadoras. Em momentos decisivos, como na crise dos mísseis, em outubro de 1962, a racionalidade pragmática prevaleceu na Casa Branca e no Kremlin e o mundo se salvou da mútua destruição nuclear entre as duas grandes potências.

Menos conhecida é a cooperação entre Estados Unidos e Rússia na erradicação da varíola, doença que na década de 1960 ainda matava cerca de 2 milhões de pessoas nos países do então chamado Terceiro Mundo. Os soviéticos contribuíram com centenas de milhões de doses da vacina, os americanos com outras tantas e com a logística de distribuição.

Não se tem notícia de que o comunismo se tenha espalhado nos países que receberam as vacinas soviéticas. Em tempos de delírio, cabe esclarecer: isso é uma ironia.

*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP


Carlos Andreazza: Vacina - O Queiroz do futuro

É um debate falso, fora de lugar e tempo

Não existe vacina. Nunca foi tão necessário afirmar obviedades. Não há, infelizmente. Mas já se discute — até com o entusiasmo do presidente de nossa corte constitucional — sobre se a vacinação será obrigatória. Um debate falso, fora de lugar e tempo, que só mesmo a mentalidade autoritária poderia forjar.

Advirta-se — nova notícia do óbvio — que ninguém entrará na sua casa para lhe meter agulha ao braço. Tampouco seus filhos e netos serão levados pela orelha, sob a vara de um agente policial, ao posto de saúde — lá onde os esperaria a seringa compulsória. Não estamos no começo do século XX, embora esse discurso de que “ninguém me obrigará” seja estímulo a uma revolta da vacina a ter lugar não nas ruas, mas no zap-profundo. Funciona. Para um líder sectário que cultiva nicho: funciona.

Diga-se que essa pregação reacionária bolsonarista — contra ameaça inexistente — só tem campo para se exibir porque houve bravateiro, da cepa dos que confundem liderança e coação, que falasse em vacinação obrigatória como produto da autoridade coerciva do Estado. Para quê, João Doria?

A combinação das leis brasileiras — uma das quais sancionada por Jair Bolsonaro —impõe a vacinação. Ponto final. Não precisa de força. Basta que as obrigações do Estado, conforme previsto na legislação, sejam cumpridas para que a sociedade corra à vacina sem qualquer necessidade de coerção. As pessoas querem se vacinar.

O conjunto de obrigações do Estado: adquirir doses de produto certificado em quantidade capaz de cobrir o território brasileiro, distribuí-las universalmente e comunicar a disponibilidade da vacina e a importância de se imunizar. Pronto. As pessoas irão se vacinar. Temos uma cultura vacinal sólida. Seria só chamá-la.

Mas não. O concurso de autoritarismos fundou um debate que judicializará a questão; como já, com muito gosto, antecipou Luiz Fux, outro virtuoso, quase que implorando por ações a respeito. Ele quer decidir. Ele cuida de nós, como Doria. E o presidente agradecerá, mais uma vez ganhando de presente um palanque sobre o qual exercitar seu liberalismo reacionário de resignação.

Já posso mesmo enxergar-lhe a mensagem alguns meses adiante, lavando as mãos, depois de seu governo haver comprado milhões de doses da CoronaVac. Dirá: “Ninguém deveria ser obrigado a se vacinar, mas, novamente, fiquei de mãos atadas”. Vimos variação desse texto de vitimização — que distorce decisão do Supremo — ser bem-sucedida, para a popularidade de Bolsonaro, quando a Corte garantiu a autonomia de estados e municípios para baixar decretos sobre como enfrentar a pandemia.

Voltemos ao presente, porém. Não existe vacina. Mesmo assim, já há vacina — comunista! —vetada. Este é o presente, interditado por intensa trama de teorias da conspiração — desde onde se projeta um futuro que, mesmo ainda apenas incerto, veste-se para a guerra. O inimigo será obra de fantasia. Bolsonaro saberá vencer. Ou melhor: saberá comunicar a vitória. Que não houvesse oponente é sempre detalhe.

Quem falou em ministrar vacina à população sem comprovação científica e à revelia do aval da Anvisa? Ninguém. A exigência de que se cumpram todas as etapas de certificação é raro consenso. Mas Bolsonaro novamente planta o falso problema, o algoz imaginário. Prospera assim.

A falsa responsabilidade, amparada em mentira: afirma que não gastará dinheiros em vacina ainda não segura, como se o entendimento com o Butantan, mera carta de intenções, previsse dispêndios anteriores à aprovação pela autoridade brasileira; e como se não tivesse sido o governo dele — sob ordem direta dele —a jogar, aí sim, milhões fora para adquirir um medicamento, a hidroxicloroquina, inútil para o tratamento do vírus.

Não existe vacina. Mas há esperança. Há também o medo. Quando tivermos uma testada em todas as etapas, e avalizada pela Anvisa, e se essa primeira disponível for a chinesa, o fato se apresentará a Bolsonaro. E então veremos como agirá. Ele sabe ser objetivo. É intuitivo. Fareja quando a própria carne se acerca do espeto, circunstância em que o futuro de luta pela liberdade e contra o sistema se materializa em presente à mesa com Toffoli etc. O tal do medo.

Não comprar a vacina significaria botar em risco a saúde da população. Será crime. Tipificado. Significa também arriscar a própria popularidade. E falamos de alguém que é mestre em equilibrar vários pratos concomitantemente, tanto quanto em derrubar discurso em nome do pragmatismo de ocasião.

Não me surpreenderei se, enquanto mantém no alto a pipa anti-China, Bolsonaro já tiver autorizado uma costura por baixo que resulte, mais adiante, em o governo registrar mesmo o compromisso de compra da vacina ora amaldiçoada —que logo será brasileira. A realidade se impõe. A vacina chinesa pode ser um novo Queiroz diante de si, a hora de baixar a pressão da valentia e compor com o Centrão.

Não me surpreenderei se Bolsonaro vacinar Doria. Ninguém será obrigado. O presidente sabe que a vacina aplicada por Alexandre de Moraes machuca.


Alon Feuerwerker: Algumas dúvidas nesta eleição municipal

São elas: 1) Qual o efeito da polêmica das vacinas de Covid-19 no desempenho dos candidatos que mais se identificam com Jair Bolsonaro? 2) Qual o peso real dos padrinhos? 3) Haverá na reta final do primeiro turno alguma onda, e qual seria? 4) Qual será o anti da vez, que rejeição vai prevalecer?

Sobre o primeiro ponto, é razoável projetar que vai ganhar fichas quem for identificado como preocupado em tornar a vacina disponível em massa para a população. Aqui, o governador de São Paulo, João Doria, conseguiu uma pegada no quimono melhor que seu adversário de tatame, o presidente Jair Bolsonaro.

Um segredo da política é nunca desvelar que os interesses mesquinhos estão sempre em primeiro lugar. A sabedoria reside em embalá-los no papel de presente do “interesse público”. Bolsonaro tentou fazer isso com o argumento de que o povo não será cobaia, mas depende de o medo da vacina tornar-se maior que o medo do vírus. Improvável.

Outro problema do governo: a ira do presidente contra o governador de São Paulo terá o efeito colateral de vir a despertar desconfianças sobre uma eventual morosidade da Anvisa na liberação da vacina objeto da polêmica. E isso legitimará ainda mais a provável intervenção do Judiciário, uma instituição já atraída pelos holofotes do ativismo.

Sobre os padrinhos, até agora o peso deles tem se mostrado apenas relativo. Uma hipótese é funcionarem melhor quando há correspondência de cargo. Por exemplo, um prefeito seria mais efetivo como padrinho na própria sucessão do que políticos de outras esferas. Pois a força do apadrinhamento refletiria em algum grau a avaliação da gestão.

O próprio conceito de “padrinho” é duvidoso. Parte da premissa de o eleitor pertencer ao político. Melhor considerar a relação inversa de pertinência. O eleitor na verdade vê o político como um funcionário, e escolhe o que lhe for mais conveniente. Isso vale em toda a escala social. Não pensam assim só os ricos e a classe média. Os pobres também.

E qual será, se houver, a onda no primeiro turno? A “nova política” dá sinais de fadiga, mas nunca é bom subestimar. E a quarta pergunta? O antipetismo anda meio esquecido, até porque o desempenho do PT, como era de esperar, não tem sido até agora dos mais brilhantes. Se esta onda vier, deve vir como antiesquerda, que anda bem pulverizada.

Uma possibilidade é um certo antibolsonarismo, que por enquanto anda de breque de mão puxado. Pois é difícil fazer o casamento do jacaré com a cobra d’água, a junção da esquerda com o pedaço da direita que desgarra do presidente em busca de projetos próprios. Mas é bom ficar de olho.

Quem tem escapado de virar alvo do anti são exatamente a direita que descolou de Bolsonaro e a autonomeada centro-esquerda que descolou do PT para se vacinar contra o antipetismo. São candidatos a boas colheitas.

E uma lembrança: é bom ficar atento a sua excelência, o imprevisível. No nosso modelo eleitoral, raios em céu azul costumam provocar incêndios inesperados. E o imprevisível, não custa repetir, é das coisas mais difíceis de se prever.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Vinicius Torres Freire: A 'vacina paulista' no outro lado do mundo

Indonésios correm, mas ainda não têm certeza de quando começam a usar a Coronavac

A Indonésia pode ser um dos primeiros países do mundo a vacinar sua população contra a Covid-19. De início, vai usar a mesma vacina comprada pelo governo paulista, a CoronaVac, da empresa chinesa Sinovac. Mas pretende começar uma vacinação emergencial e por ora apenas prevista para fins de novembro. Pode ser bem depois, talvez em janeiro ou depois. Não é bem como dizem por aqui.

Um ex-colega de faculdade deste jornalista trabalha no governo da Indonésia, embora não no ministério da Saúde. Conta que eles ficaram tão interessados no que se passa no Brasil como nós agora começamos a nos informar sobre o que se faz por lá com a “vacina paulista”.

A associação dos médicos e parlamentares indonésios dizem que o governo não deve se apressar e deve esperar a publicação dos testes. O próprio governo diz que precisa da aprovação da vigilância sanitária, permissão por ora apenas para vacinação emergencial, e das autoridades religiosas.

Meu ex-colega conta que a resistência às vacinas aumentou faz uns anos, depois de um rolo com a vacinação contra o sarampo. Certas autoridades islâmicas disseram então que a vacina talvez não fosse “halal”, permitida pela religião (talvez fosse contaminada por algum produto proibido pela lei religiosa). O rolo foi tamanho que as autorizações religiosas foram distribuídas por três instituições diferentes –cerca de 87% dos indonésios são muçulmanos.

Outra preocupação meio “pop” é se a vacina seria adequada às etnias indonésias (centenas) e apropriada para evitar o vírus que circula no país.

A vacinação vai começar em cerca de 9 milhões dos 270 milhões de indonésios, prioritariamente em trabalhadores de saúde ou em situação de risco, em pessoas de 18 a 59 anos, sem comorbidades. Os pesquisadores responsáveis pelos testes clínicos diziam no início deste mês, em entrevistas à imprensa local, que os primeiros exames de eficácia ficariam prontos apenas em dezembro. E então, como fica?

É esse o debate, diz meu ex-colega. Todo mundo quer a vacina, mas não quer ser cobaia, embora exista confiança na universidade, na estatal que vai fabricá-la e na vigilância sanitária, diz.

Brasil e Indonésia estão quase no mesmo estágio de teste da Coronavac. Os indonésios começaram a avaliação em agosto, três semanas depois do programa brasileiro. Há testes em estágios ainda mais preliminares na Turquia e um para começar no Chile. Os indonésios vão comprar a Coronavac e outras duas vacinas chinesas, além daquela desenvolvida pela Astra Zeneca e pela Universidade Oxford. Desenvolvem uma vacina nacional, que pretendem testar em massa a partir de meados do ano que vem.

A Indonésia conta muito menos mortos de Covid que o Brasil, 12.857, ante mais de 155 mil –em termos relativos, o número de vítimas por aqui é 15 vezes maior. O país é uma das 20 maiores economias do mundo. A renda (PIB) per capita do Brasil é 26% superior, o Índice de Desenvolvimento Humano é maior e a expectativa de vida também, embora não muito mais.

O país é uma democracia desde o fim da ditadura de Suharto (1966-1998). O presidente Joko “Jokowi” Widodo foi acusado de causar confusão na política anticoronavírus, de ter subestimado a doença etc., entrando em conflito com governos locais que impuseram medidas de distanciamento social. Mas Jokowi jogou a toalha ainda em abril. O governo central agora diz que, mesmo com a vacina, não será possível relaxar no distanciamento e no uso de máscaras.

Parece uma situação bem melhor do que a nossa. Né.