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Com 'Ilustre clandestino', Vladimir Carvalho fala sobre sua obra

Documentário de Vladimir Carvalho, entra em cartaz na plataforma streaming e será exibido também amanhã no Canal Brasil

Ricardo Daehn / Correio Braziliense

“Brasília foi, para mim, e continua sendo, uma ampla e inesgotável temática, porque, atuando como uma caixa de ressonância de toda problemática brasileira, me oferece oportunidade de conhecer e explorar cada aspecto deste país”, observa o cineasta Vladimir Carvalho, vinculado, pela vida, aos ideais utópicos irradiados pela capital. Precedido por debate (no Instagram do Canal Brasil, amanhã, às 18h) com participação dos pesquisadores Amir Labaki e Ana Cecília Costa, Giocondo Dias- Ilustre clandestino será apresentado, às 20h, no Canal Brasil, na faixa É Tudo Verdade.

A política toca o novo filme, detido na figura do baiano comunista, em muito, sufocado pela clandestinidade. Curiosamente, o atual massacre às artes não desencoraja o diretor, que detecta um estimulante culto (de nicho) à vivência cineclubista. “Quanto ao descaso pela cultura neste momento, penso que temos de nos municiar de paciência histórica e chegarmos à outra margem em 2022! Vejo, no cinema, um surto de renovação nos métodos: na Lapa (RJ) há um cineclube que só passa filmes inéditos, da moçada nova que vai ali com seu filme debaixo do braço para ser submetido a debates que são tremendamente calorosos. É uma novidade na área, um neocineclubismo”, celebra.

Como o senhor se remodelou aos tempos virtuais? Como vê o streaming?
Penso que conquistamos um espaço infinitamente maior e a adaptação se impôs a todos que lidam com os meios de comunicação. Mesmo agora, com as restrições impostas com a suspensão do modo presencial, os que fazem cinema, como seria previsível, logo se encaixaram no novo cenário. Entendo que o streaming não significa a morte da forma clássica e costumeira de se colocar uma produção no mercado. Pelo contrário, o streaming representa uma sobrevida para o cinema e será uma convivência proveitosa. Sempre curti a sala de cinema como um forma de circulação social dos espectadores, até como possibilidade de diálogo com seus pares. É o velho animal gregário que o homem carrega, em busca de convívio com o outro.

O que na atualidade fica de inspiração do Giocondo Dias?
O Giocondo, personagem de meu documentário, a ponta para as transformações que já no seu tempo davam um sinal de alerta àqueles que sabiam interpretar os sinais do tempo. Giocondo, na juventude, foi alcunhado de Cabo Vermelho, uma vez que, na Intentona de 1935, tomou de assalto o quartel ao qual servia em Natal (RN), e disse a seu comandante: “O senhor está preso em nome do general Luis Carlos Prestes”. Nesse lance heroico, levou vários, e, por milagre, não morreu. Essa lição lhe calou fundo. E, ao longo do tempo, durante dois terços de sua vida, dedicou-se à luta para convencer os seus companheiros que a saída para o Brasil não era a luta armada, mas a conquista do povo em geral, pelos caminhos do voto prescrito pelo regime democrático. Por isso, ele virou pelo avesso a história do Partido Comunista no Brasil e tanto se destacou com seu jeito manso e humano que chegou ao ponto de substituir Prestes no comando do Partido. E, depois de intermináveis batalhas ideológicas, nos anos 1980, reconduziu o partido à legalidade.

O que a visão do Giocondo Dias representa para os tempos de fissuras sociais de hoje?
Nos nossos tempos, adotei para o filme o slogan “Um adeus às armas e um apelo ao diálogo” (presente no cartaz) em reverência à postura histórica de Giocondo. Em virtude disso, esperava que o lançamento do filme de Wagner Moura sobre a figura de Marighella estreasse ao mesmo tempo que o nosso. Tudo para termos um prélio junto ao público porque Marighella era tão lendário (enquanto o Giocondo era o seu oposto), ao “pelear” pela luta armada como meio de chegar ao poder. Nada contra o filme do Moura em si, mas para provocar, quem sabe, um salutar debate. Numa hora em que o nosso presidente se esmera na tentativa de armar o povo indiscriminadamente. O seu partido chegou a confeccionar uma bandeira composta toda ela de balas de fuzil! Nesse ponto meu filme é superatual!

Os 90 anos de Ruy Guerra, quatro décadas sem Glauber Rocha e sete anos sem Eduardo Coutinho: o que efemérides significam para quem esteve, ombro a ombro, ao lado desses gigantes?
Glauber, Coutinho e Ruy são inexpugnáveis de nossa história cinematográfica. Não são simplesmente ícones, são os artífices de um legado de transformação, com o movimento do chamado Cinema Novo, que agrega à cultura brasileira um capítulo último e definitivo do nosso modernismo. Deveríamos, para celebrar essas efemérides, deflagrar um movimento em defesa, não só do cinema, mas de toda a cultura tão vilmente atacada pelo governo de Jair Bolsonaro. Talvez ainda possamos recompor as estruturas de sustentação de nosso patrimônio e apagar o fogo maligno que visa destruí-lo.

Como vê, aos 86 anos, ter uma obra estreando? Como mantém a vitalidade?
Você me suscitou uma lembrança que faz parte de minhas circunstâncias: sou o último sobrevivente da pequena equipe do seminal Aruanda (filme de 1960) e rendo aqui minhas homenagens a Linduarte Noronha (diretor), João Ramiro Mello (assistente de direção) e Rucker Vieira (produtor), saudosos companheiros. E, a propósito, também recordo que da equipe de criação do Cabra marcado para morrer só Antonio Carlos da Fontoura sobrevive. Portanto, reverencio a memória de Eduardo Coutinho, Marcos Farias e Cecil Thiré. Tive a sorte de demorar mais um pouco por aqui e poder tocar meu barco em frente e esse filme que estreia (Giocondo Dias) me trouxe um suplemento extra de energia para continuar na faina de sempre. Penso que devo isso à boa cepa que vem do meu avô Esperidião Figueiredo da Silva, descendente dos índios cariri de São João do Rio do Peixe, na Paraíba. Tinha a cor do bronze e uma saúde de ferro.

Numa revisão de obra, qual o filme indispensável? Se arrepende de alguma escolha ou sequência feita em algum filme do passado?
Minha atividade como documentarista tem, inconscientemente, me levado a uma espécie de compasso binário: fiquei nesses mais de 60 anos de ofício entre o campo e a cidade, que coincidentemente, ou não, compõem a estrutura da sociedade brasileira, e tem promovido um fluxo e refluxo mais visível no migrante nordestino sempre em demanda do sul maravilha. Nesse sentido, o meu filme Conterrâneos velhos de guerra (1992) é como se fosse uma súmula de tudo o que tenho feito, ora com filmes realizados no campo, sobretudo no Nordeste, ora no âmbito urbano. Conterrâneos é uma somatória. Sobre revisões e olhares pelo retrovisor: não tenho do que me arrepender, mas no caso de Giocondo Dias só lamento não ter alcançado ele com vida, de forma que pudesse entrevistá-lo e filmá-lo como bem merecia.

Quais são os seus projetos futuros?
Estou justamente nesse momento trabalhando todo um arquivo resultado das filmagens que venho realizando desde mais de meio século em Brasília. Penso que vivenciei boa parte de sua história, ou pelo menos fiz um esforço para assimilar, mesmo que de forma canhestra. Quero usar esse material para contar parte da história política do país, a partir de uma imagem-mãe, a da Esplanada onde se situam os três poderes e os ministérios, imortalizados pela obra de gênio de Oscar Niemeyer, num espaço para o qual o grande Burle Marx idealizou, esse é o termo, um panorama bem diferente do monótono relvado que domina, mas desestimula a vista do cidadão que o contempla. Era algo colorido e poético, como quase tudo em que pensou o velho jardineiro, pintor e paisagista. Tenho planos de jogar dialeticamente com esses elementos, sem dispensar crueza dos dias tenebrosos de hoje! Será meu próximo filme.

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2021/08/4946753-com-o-filme-ilustre-clandestino-vladimir-carvalho-fala-sobre-sua-obra.html


RPD || Lilia Lustosa: É tudo pra ontem, tá ligado?

Dividido em três atos, AmarElo - é tudo pra ontem é uma aula de história da cultura brasileira que é também a própria história da cultura negra, herdeira da escravidão e dos maus-tratos, avalia Lilia Lustosa

O palco é o Theatro Municipal de São Paulo. O ano, 2019. Na programação, nada de óperas, orquestras sinfônicas ou coros líricos … A estrela hoje é o rapper Emicida em seu show de lançamento do disco AmarElo, premiado com o Grammy Latino de melhor disco de rock ou música alternativa em língua portuguesa. Show que virou filme pelas mãos do estreante Fred Ouro Preto e foi lançado recentemente em outro palco de elite: a Netflix.
Dividido em três atos, AmarElo - é tudo pra ontem é uma verdadeira aula de história da cultura brasileira que, como bem deveríamos saber (e não sabemos), é também a própria história da cultura negra, herdeira da escravidão e dos maus-tratos. História de um povo (nosso povo!) que foi apagada de nossos livros didáticos. História de personagens invisibilizados por tantos líderes brancos que ocuparam nossos tronos.

Impossível não nos sentirmos envergonhados de nossas ignorância, impotência e aquiescência diante do que vemos. Sentimentos que se misturam também ao da indignação: como não nos ensinaram tudo isso na escola? Por que não fomos incentivados a ler Lélia Gonzalez? Por que não aprendemos sobre Tebas – escravo que virou arquiteto e que tanto fez pela cidade de São Paulo? Por que não tivemos capítulos em nossos livros dedicados ao Movimento Negro Unificado (MNU) e à sua marcha de 1978? Por que não aprendemos sobre a força dessa gente de pele escura que, em plena ditadura, ousou subir as escadarias desse mesmo Theatro Municipal e fazer dali a tribuna de seu protesto?

AmarElo joga tudo na nossa cara! Mais que isso, esse filme-show-aula-de-história abre as portas do teatro mais importante de São Paulo para o brasileiro comum, para a gente pobre, de classe média baixa, vestida de jeans e camiseta. Gente de cabelo enrolado, liso ou afro, de pele escura, parda, branca, amarela. Uma amostra verdadeira de nosso povo que pode se ver ali enfim representado. Gente que nunca ousou pisar naquele palco, nem ocupar aquele espaço!

O filme ensina, toca, embala, enche nossa alma. Apresenta-nos músicas novas e antigas repaginadas, como a que dá nome ao disco (e ao filme), que tem como sample-base a Sujeito de Sorte (1976), de Belchior, e seu refrão mais que apropriado: “Ano passado eu morri, mas esse ano não morro!” AmarElo mostra-nos ainda variações do rap, gênero de protesto já consolidado no Brasil, mas que segue em eterna (r)evolução. Um rap menos masculizado, híbrido, fluido, que amplia sua área de atuação, fugindo dos padrões de uma arte feita por “machos”, ao incluir as artistas Majur e Pabllo Vittar em seu número principal. O resultado é de arrepiar! A música cola na cabeça, liberta a alma e instiga a criar coragem para fazer a diferença. Emicida impressiona por sua lucidez, seu pensamento filosófico e grandeza de sua arte.

Sem jamais cair no piegas, o filme, conduzido pela voz firme do rapper paulistano, navega por várias cores e texturas, formando uma espécie de colagem com imagens granuladas em preto e branco justapostas a imagens coloridas em alta definição, entremeadas por belas lustrações que se animam e dão cor e leveza à história ali apresentada. Emicida vai mostrando de forma não linear o caminho que o levou até ali, desde sua infância na periferia, passando pela confecção do disco, pelos encontros com personalidades artísticas, até a explosão do show no Municipal. Um caminho alimentado pelo resgate da verdadeira História do Brasil. Dá vontade de continuar assistindo, de descobrir um pouco mais, de puxar aquele novelo e desenrolá-lo por completo.

Só não entendi a menção ao filme Orfeu do Carnaval (1959), do francês Marcel Camus, que, apesar de ter levado a música brasileira mundo afora, mostra uma realidade caricata do Brasil e de suas favelas, pintando nossos negros como os “bons selvagens” de uma terra exótica e feliz. Melhor seria ter citado algum filme de Adélia Sampaio, primeira mulher negra a dirigir um longa em nosso país. Ou obras como Ganza Zumba (1964), de Cacá Diegues, e Barravento(1962), de Glauber Rocha, que inovaram ao dar protagonismo a personagens negros até então relegados à subalternidade.

De toda maneira, o AmarElo de Emicida é um filme urgente para estes tempos tão sombrios, já que traz à tona e põe em xeque temas da ordem do dia: gentrificação, apagamento histórico, masculinidade, racismo estrutural, genocídio negro… Seus densos 89 minutos de duração nos obrigam a olhar para trás e entender que é preciso reescrever nossa história, reparando injustiças e erros cometidos. E é pra ontem!

*Lilia Lustosa é crítica de cinema. Doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).


RPD || Henrique Brandão: Exclusão e preconceito unem Samba e Rap

Forte na construção do mito, documentário do show que o rapper fez, em novembro de 2019, no Theatro Municipal de São Paulo, reivindica para si os lugares da história cultural do país

O documentário “Emicida: AmarElo – É tudo pra ontem” tem recebido rasgados elogios na imprensa e nas redes sociais, desde que estreou na Netflix, em 8 de dezembro. O filme é o registro do show de lançamento do álbum homônimo do rapper paulista. Assisti-lo vale o ingresso, ou, mais apropriado para os tempos pandêmicos atuais, o clique no canal de streaming.

O local da apresentação é o palco do tradicional Theatro Municipal de São Paulo. Noite histórica. Teatro lotado, não pela costumeira plateia de melômanos de música clássica, mas por pessoas que sabiam na ponta da língua as rimas carregadas de contundência do rapper paulista. O público estava à vontade.

O que poderia vir a ser apenas o registro de um momento de ocupação de um espaço elitista por natureza, nas mãos de Emicida, do roteirista Toni C. e do diretor Fred Ouro Preto, transformou-se em um filme-manifesto muito original. Ao mesmo tempo em que carrega a visão particular de um artista oriundo da periferia de São Paulo, o documentário vai além e procura traçar um panorama da música brasileira de matriz africana e suas ligações com o rap.

Sem pretensões sociológicas, mas com críticas incisivas ao caráter excludente da formação social brasileira, Emicida é o condutor da história. No palco, divide músicas com convidados. O making off revela artistas que participaram da gravação do disco: (Zeca Pagodinho, Marcos Valle, Fabiana Cozza e Fernanda Montenegro). Em off, sua voz costura imagens atuais com cenas do passado, narrando a história do Brasil à sua maneira. Não a história triunfalista, mas o outro lado da moeda, em que a cara impressa é a dos pobres e negros que viveram – vivem – no país que foi o último das Américas a abolir a escravidão.

Emicida comenta: “de alguma forma meus sonhos e minhas lutas começaram muito tempo antes da minha chegada”. É a deixa para o início do passeio pela trajetória musical do país, estabelecendo conexão com o samba, outro gênero que enfrentou preconceitos e dificuldades para ser reconhecido.

Do início do século XX, quando o samba surgiu no Rio de Janeiro, até os dias atuais, muito aconteceu no panorama musical, mas pouca coisa mudou no que diz respeito à criminalização do pobre. “Os artistas de morro foram perseguidos por todos os meios. O Estado Brasileiro [criou] um instrumento jurídico conhecido como Lei da Vadiagem que, ao longo dos anos, aprisionou sambistas. O bizarro é que essa lei segue em vigor até hoje”, diz Emicida. Para comprovar a tese, imagens mostram a polícia reprimindo a gravação de um clipe do artista em uma comunidade da Zona Norte paulistana. É o presente repetindo o passado.

“O samba é o Brasil que deu certo”, exalta o rapper. “Não tem vitória possível para este país distante do samba”, enfatiza. Na tela, vão desfilando personagens que tiveram papel decisivo no gênero: Pixinguinha, Donga e os “Oito Batutas”, Ismael Silva, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Lecy Brandão, Riachão, Nelson Cavaquinho, entre outros.

Para Emicida, o rap e o samba são da mesma cepa. Jovelina, Jackson do Pandeiro, Jair Rodrigues e Wilson Batista “já eram hip-hop antes de nós existirmos”, defende. “Este fruto, ora azedo, ora adocicado que conhecemos como rap, hoje vem de uma grande árvore, e, se você for buscar as suas raízes, vai encontrar o samba.”

Não à toa, Emicida aproxima o rap ao samba. Traz para junto de si Wilson das Neves, ídolo confesso, descoberto em suas garimpagens discográficas pelos sebos, que vira seu parceiro em uma faixa do disco. O lendário baterista, com seu swing peculiar, elegante por natureza, faleceu antes da apresentação no Municipal paulista, para tristeza do rapper.

Em uma conversa com Marcos Vale, Emicida revela sua ambição: fundar um novo ritmo, uma nova linguagem artística: “com o AmarElo, eu tenho chamado de neosamba”.

Pelo sucesso que o disco vem fazendo, (conquistou o Grammy Latino na categoria “Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa”) e com esse poderoso inventário audiovisual, o rapper, com sua postura ao mesmo tempo altiva e serena, é hoje uma figura relevante da música brasileira.

Como mostra com cristalina evidência no documentário, Emicida sabe que, para mudar as coisas que se perpetuam há anos, é necessário juntar forças. “A única coisa que nós temos é uns aos outros”. Este é um mantra que perpassa o filme.

O rap está assentado no sampler, no uso da contribuição de “amostras” de outros artistas. Emicida resgatou versos de Belchior e criou a trilha sonora da pandemia: “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.

Que assim seja.

*Henrique Brandão é jornalista e escritor


RPD || Lilia Lustosa: O filme é… Babenco

Dirigido por Bárbara Paz, "Babenco" é carta de amor visual ao artista que levou o cinema brasileiro ao mundo. É o primeiro documentário escolhido pela Academia Brasileira para tentar uma vaga no Oscar

A Academia Brasileira de Cinema surpreendeu ao indicar pela primeira vez, neste ano, um documentário – ou ensaio poético – para representar o Brasil na corrida por uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Babenco - Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou (2019), de Bárbara Paz, que levou o prêmio de Melhor Documentário em Veneza em 2019, foi o filme escolhido. Uma grande conquista para o gênero documentário, que vem ganhando cada vez mais fãs pelo mundo, graças sobretudo às plataformas de streaming, seu novo grande palco. E grande conquista também para as mulheres diretoras de cinema, que finalmente começam a ter seus trabalhos reconhecidos.

Com foco posto nos últimos anos da vida de Héctor Babenco, não se pode dizer, porém, que o documentário seja “inspirado” na vida do cineasta. Tampouco “baseado” em sua vida… a diretora mesmo não aprovaria tal fala! Porque o filme de Bárbara Paz é Babenco! Um homem de espírito anarquista, cuja vida-filme acabou sendo eternizada pelos olhos e lentes de sua companheira de forma original, sensível e linda. Filme-testamento, filme-poesia, filme-passagem. Passagem para outra vida, para um além-filme desconhecido. Passagem também de bastão, de Héctor para Bárbara, do marido para a amada, do mestre para a discípula que, deixando-se guiar pelo mestre-filmado, aprendeu com ele a manipular a câmera e as lentes até encontrar o melhor foco, o melhor ângulo, o melhor enquadramento. E essa proximidade – e cumplicidade – entre ser-filmado e ser-filmante acabou por gerar uma obra intimista, sensível e, ao mesmo tempo, universal, já que trata de temas que tocam a todos os seres humanos, em qualquer parte do planeta: vida, morte, amor, paixões, medos, angústias, escolhas, tristezas, alegrias…

Bárbara foi grande na composição de cada cena, na escolha de cada som (que, aliás, tem papel protagonístico), na captura de cada confissão de Babenco, na seleção de cada fala extraída da vasta filmografia do marido. Pixote, O Beijo da Mulher-Aranha, Carandiru, Meu Amigo Hindu e tantos outros levam-nos a percorrer a vida-filme do cineasta, deixando-nos com um gostinho de quero-mais, com vontade de rever – ou de ver pela primeira vez – cada um daqueles filmes. Vontade de conhecer mais de perto quem foi esse bravo guerreiro argentino-brasileiro que nunca fugiu à luta, passando boa parte de sua existência convivendo com um câncer, sem nunca se entregar à dor, sem nunca se deixar vencer pelo monstro, sem nunca parar de filmar. Até porque era justamente isso que o mantinha vivo.

Composto por vários closes e cenas fora de foco, registrados com uma câmera quase endoscópica, o Babenco de Bárbara penetra na alma de Héctor, permitindo-nos enxergar seus medos, dúvidas, sonhos, inspirações, lembranças de sua Mar del Plata natal, de seus tempos de presídio na Espanha e até mesmo de sua origem judaica, aspecto não tão conhecido nem discutido de sua vida. O preto e branco dão um tom poético à história contada, ao mesmo tempo que padronizam a textura das imagens usadas, suavizando as transições entre cenas de diferentes naturezas, transformando-as assim em uma coisa única, sem limites entre ficção e realidade. Tudo ali é Babenco! Tudo é a vida do cineasta! Essa escolha reforça ainda os laços que amarram a história do diretor à história mesmo do cinema, arte mágica em que, ao apagar as luzes, apagam-se também as fronteiras entre o real e o inventado. Arte-viagem capaz de transportar-nos a universos distantes. Arte-máquina-do-tempo, capaz de levar-nos ao passado e ao futuro, ou até mesmo, como no caso de Babenco, de eternizar a vida.

Se o Brasil tem chances com Babenco? Difícil responder sem ter assistido aos concorrentes, que parecem bem fortes neste ano. Talvez o filme tivesse mais chances na categoria Documentário… Mas, em um ano em que “acreditar é preciso”, não mata sonhar com essa possibilidade! Babenco - Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou tem a seu favor o fato de tratar de temas universais e de ter ainda como protagonista um membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos. Um diretor respeitado e apreciado pelos seus pares, já tendo trabalhado com figuras de peso como Meryl Streep, Jack Nicholson, Wiliam Hurt, Willem Dafoe, tendo ele mesmo concorrido ao Oscar de melhor diretor por seu O Beijo da Mulher-Aranha. Além disso, o filme é uma linda homenagem ao próprio cinema e a todos aqueles que amam a sétima arte e fazem dela sua própria vida. Babenco é o filme!

*Lilia Lustosa é crítica de cinema


Vera Magalhães: Perdemos o trem

Documentário ‘O Fórum’ mostra Brasil deslocado do resto do mundo

O trem que conduz ativistas, chefes de Estado, jornalistas e empresários à idílica cidade de Davos, nos Alpes suíços, funciona como uma metáfora do caminho que o documentário O Fórum, recém-lançado nas plataformas de streaming, mostra, de um mundo em lenta, mas inexorável transformação. E o Brasil que aparece na tela perdeu o trem e ficou perdido na estação.

Não é só a cena da conversa que mais parece uma brincadeira de telefone sem fio entre Jair Bolsonaro e o ex-vice-presidente norte-americano Al Gore, que viralizou nas redes sociais como um teaser do documentário, que mostra o quão deslocado o País está. São todos os aspectos abordados, da quarta revolução industrial às emergências climáticas. Somos párias, motivo de piada e preocupação por parte dos atores mais relevantes.

O filme tem duas partes. Uma mais otimista mostra um fórum concorrido em 2018, com Donald Trump posando de dono do mundo, Theresa May ainda não derrotada e um sorridente e galante Emmanuel Macron exalando charme pelos corredores. A edição de 2019 é mais melancólica e cercada de ceticismo, após o Brexit, com a crise comercial entre Estados Unidos e China já deflagrada e com Macron cercado pelos coletes amarelos. Nesse cenário, a presença de Bolsonaro é um constrangimento para todos.

A equipe do premiado diretor alemão Marcus Vetter teve acesso pleno a reuniões preparatórias de Klaus Schwab, fundador e figura central do Fórum, com sua equipe, empresários, ativistas para as duas edições que o filme retrata. Também acompanhou os bastidores, as conversas informais e as iniciativas que acontecem off-Davos, a partir do que é tratado ali.

Schwab tenta fugir de todas as formas do mico de ter de moderar o painel com Bolsonaro. Tenta passar o fardo para o presidente mundial da Nestlé, que declina gentilmente. Sua preocupação com a chegada do presidente brasileiro é mostrada em detalhes. Até que, já nos 15 minutos finais do filme, Bolsonaro entra em cena. Seu bizarro discurso de dois minutos na abertura do evento é mostrado na íntegra, com cenas intercaladas da plateia atônita e o filho 03, Eduardo, filmando tudo com cara de “meu paipai” na primeira fila.

A cena da conversa com Gore dá ainda mais vergonha quando mostrada sem cortes. Bolsonaro está na sala de café absolutamente deslocado, acompanhado apenas de Ernesto Araújo. Na conversa com Gore, além de tratar Alfredo Sirkis como seu “inimigo na luta armada”, uma mentira completa e desnecessária, ainda termina o breve e desastrado encontro dizendo que sabe quem o ex-vice-presidente norte-americano é, e não o tem como inimigo.

Em seguida Bolsonaro é abordado por Jennifer Morgan, diretora-executiva global do Greenpeace, que diz que ficou satisfeita em ouvir seu compromisso com a preservação da Amazônia. Bolsonaro não a olha nos olhos, não responde e diz só um “thank you” enfezado ao final. Em seguida, ela tira sarro com uma colega ativista por ter conversado com o presidente brasileiro, e a interlocutora ri de sua “coragem”.

É esta a imagem do Brasil que emerge de um filme que mostra ainda outros líderes mundiais em ação para mitigar os efeitos crise ambiental no mundo. “Pronta?”, pergunta Schwab a Angela Merkel. “Estou sempre pronta”, responde ela, sem a enorme entourage do presidente brasileiro (outro motivo de chacota dos organizadores).

O documentário deixa claro que as discussões sobre mudança de mentalidade de nações e empresas em relação ao meio ambiente não são acessórias, mas essenciais. Isso era verdade no pré-pandemia e será no pós. O Brasil não está no mesmo vagão de todos os demais tomadores de decisões, inclusive os investidores. Passamos vergonha e ficamos perdidos na estação junto com Bolsonaro.


Bernardo Mello Franco: Novo documentário sobre 2016 ajuda a entender 2018

Estreia nesta semana o 3º documentário sobre o impeachment. A queda de Dilma já parece pré-história, mas o filme ajuda a entender como Bolsonaro se elegeu

Estreia na quinta-feira “Excelentíssimos”, o terceiro documentário sobre o impeachment de Dilma Rousseff. A derrubada da ex-presidente já parece pré-história, mas o filme mantém interesse pelo que viria a seguir. As cenas captadas em 2016 ajudam a entender o processo que desembocou na vitória de um candidato da direita radical em 2018.

O diretor Douglas Duarte chegou a Brasília com o objetivo de mostrar os bastidores do Congresso. A crise o convenceu a abandonar o roteiro original. O foco passou a ser a articulação para varrer o PT e a esquerda do poder.

Com a promessa de que o filme só seria exibido depois da votação, os deputados adotam uma sinceridade incomum em conversas gravadas. “Eu vou ser franco com você”, diz o emedebista Carlos Marun. “Fosse o que dissessem lá, eu votaria a favor do impeachment. Se dissessem lá que ela roubou um picolé, eu votaria”, admite.

No discurso oficial, a razão do processo de impeachment eram as pedaladas fiscais. Mais tarde, Marun seria recompensado com o cargo de ministro do governo Michel Temer.

Em outra sequência, o documentário acompanha uma reunião fechada em que líderes partidários contam votos para derrubar a presidente. Mendonça Filho, do DEM, interrompe a conversa para saber se os microfones estão abertos.

Diante da resposta afirmativa, a equipe é convidada a deixar a sala. Entre os novos deputados presentes, dois virariam ministros de Temer. Um terceiro, Onyx Lorenzoni, chefiará a Casa Civil de Jair Bolsonaro.

O presidente eleito foi um coadjuvante no impeachment, mas tem papel de destaque no filme. Numa comissão dominada por ruralistas, ele se refere a líderes sem-terra como “vermes” e “carrapatos”. Seu filho Eduardo chama o presidente da Contag de “vagabundo”.

As cenas gravadas no gramado em frente ao Congresso mostram como os Bolsonaro estavam afinados com o humor das ruas. Numa passagem que ilustra a fúria contra o sistema político, deputados pró-impeachment tentam confraternizar com os manifestantes, mas são convencidos a voltar sob uma chuva de pedradas.

Durante a votação decisiva, manifestantes de verde e amarelo urram palavrões contra o PT e seus aliados. “Sua bicha!”, reage um homem ao ouvir o voto de Jean Wyllys, do PSOL. “Fora, Dilma, sua p...”, grita uma mulher ao festejar o resultado final. No lado derrotado, o descontrole aflora quando uma militante chama o deputado José Carlos Aleluia, do DEM, de “fascista” e “bandido assassino”.

“Excelentíssimos” fica devendo bastidores do grupo afastado do poder. Dilma só aparece em solenidades no palácio e numa rápida saída, cercada de seguranças. O deputado Sílvio Costa desponta como voz solitária do governismo. Numa fala tragicômica, ele desdenha da oposição. “Sabe qual é a probabilidade de ter impeachment? É a mesma de eu casar com a filha do Obama. Zero!”, garante.

Um discurso de Temer mostra que os vencedores também fizeram previsões furadas. “O povo precisa colaborar e aplaudir as medidas que venhamos a tomar”, diz o vice ao virar presidente. Não foi exatamente o que aconteceu.


#ProgramaDiferente apresenta "Púlpito e Parlamento: Evangélicos na Política"

O #ProgramaDiferente, da TVFAP.net, apresenta o documentário "Púlpito e Parlamento: Evangélicos na Política", do jornalista Felipe Neves, 22 anos, recém-formado pela PUC de São Paulo. É um filme muito bem feito, apresentado como trabalho de conclusão do curso no final de 2015. Assista.

De uma pequena família da periferia de São Paulo ao Congresso Nacional, uma análise sobre como o discurso político nasce, cresce e se fundamenta entre os evangélicos, grupo cristão que mais ganha adeptos no Brasil. Nesse caldeirão religioso, o filme encontra um pregador de rua, militantes pela intervenção militar, apoiadores da causa LGBT, defensores dos direitos humanos e parlamentares que levam a crença às últimas circunstâncias. "É ver para crer", brinca o diretor.

Entre os trabalhos do jornalista Felipe Neves está o blog Focas no Foco e a vídeo-reportagem Ocupado no Natal, sobre o movimento sem-teto. Participou do Projeto Repórter do Futuro e foi estagiário no gabinete do vereador Ricardo Young (PPS).