desmatamento

Alertas registrados em dezembro atingiram área do tamanho do Recife (PE) - Valter Campanato/ Agência Brasil

Alertas de desmatamento crescem 54% em 2022 e atingem pior marca da série

Brasil de Fato*

Os alertas de desmatamento na Amazônia Legal em 2022 atingiram a maior área desde 2015, quando teve início a série histórica do Deter-B, sistema de monitoramento em tempo real do Inpe. Os dados foram divulgados nesta sexta-feira (6). 

Entre janeiro e 30 de dezembro do ano passado, os alertas totalizaram 10.267 km², o equivalente a mais de 8 vezes a cidade do Rio de Janeiro. O acumulado entre agosto e setembro também foi o pior dos últimos sete anos (4.793 km²) e teve aumento de 54% em relação ao mesmo período do ano passado. 

Apenas no último mês de 2022, a Amazônia pode ter perdido área equivalente à da cidade de Recife (PE). Em dezembro, os alertas atingiram 218 km², 150% a mais do que em 2021. É o terceiro pior dezembro desde 2015. 

A taxa oficial de desmatamento na Amazônia, divulgada pelo sistema Prodes, é medida de agosto a julho do ano seguinte. Por isso, os recordes de desmatamento destruição serão herdados pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva

"O governo Bolsonaro acabou, mas sua herança ambiental nefasta continua”, disse o secretário executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini.

“Os alertas de destruição da Amazônia bateram recordes históricos nos últimos meses, deixando para o governo Lula uma espécie de desmatamento contratado, que vai influenciar negativamente os números de 2023", complementou.

Corrida pela destruição 

Segundo o Observatório do Clima, as estatísticas comprovam que houve uma corrida pela destruição da Amazônia na reta final do governo de Jair Bolsonaro (PL). Após o resultado das eleições, os alertas cresceram de maneira sem precedentes em redutos bolsonaristas da Amazônia.

Em Rondônia e no Acre, as queimadas na primeira semana de novembro ultrapassaram os piores números já registrados desde o início da série histórica, em 1998. Os estados deram mais de 70% dos votos a Bolsonaro e reelegeram apoiadores do ex-presidente para governador.

Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato já temiam que a troca de governo provocasse um salto no desmatamento. Ao contrário de Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se elegeu prometendo lançar as bases para atingir "o desmatamento zero" até 2030. 

Texto publicado originalmente no portal Brasil de Fato.


Nas entrelihas: Geraldo Alckmin e Marina Silva completam Esplanada

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense*

O vice-presidente Geraldo Alckmin, no Desenvolvimento, Indústria, Comércio e serviços, e a deputada Marina Silva, no Meio Ambiente, protagonizaram, ontem, as cerimônias de posse mais concorridas da Esplanada, com discursos que apontam para duas prioridades, entre outras: a reindustrialização do país, que perdeu complexidade industrial, e o combate ao desmatamento, um verdadeiro ovo de Colombo do ponto de vista ambiental. Os dois setores estão entre os mais prejudicados pela política econômica do governo Bolsonaro.

Ao lado do presidente Lula, Alckmin fez um longo discurso sobre a situação da estrutura produtiva do país e destacou que “a reindustrialização é essencial para que possa ser retomado o desenvolvimento sustentável e que essa retomada ocorra sob o único prisma que a legitima: o da justiça social”. Para Alckmin, a recriação do ministério foi necessária para “reconstruir o país e retomar o caminho do desenvolvimento”. A novidade na proposta de Alckmin, porém, é compatibilizar a retomada industrial com a economia verde, para que o Brasil possa ser um “grande protagonista do processo de descarbonização da economia global” e possa integrar às cadeias globais de valor com investimentos em inovação e novas tecnologias nas áreas onde pode ter competitividade.

Embora o discurso não agrade setores liberais, que veem na política industrial uma forma indevida de intervenção do Estado na economia, Alckmin tem razão quando afirma que o Brasil não pode prescindir da sua indústria se tiver ambições de alavancar o crescimento econômico e se desenvolver socialmente. “Ou o país retoma a agenda do desenvolvimento industrial, ou não recuperará o caminho de crescimento sustentável, gerador de empregos”, disse.

O papel de Alckmin será decisivo, também, do ponto de vista político, porque o vice-presidente da República sempre teve boas relações com o empresariado, principalmente paulista. De certa forma, seu discurso buscou um ponto de equilíbrio entre a política econômica do governo e o mercado.

Há muita especulação no mercado financeiro em relação à política econômica do governo Lula e ao desalinhamento entre os ministros, que gera mais confusão, como as declarações desastradas do ministro da Previdência, Carlos Lupi, sobre a reforma da Previdência. Alckmin será uma peça-chave na articulação da equipe econômica do governo Lula, que inclui Simone Tebet, no Planejamento, e Carlos Fávaro (PR), na Agricultura, ao atuar como algodão entre os cristais, para que a política a ser adotada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tenha complementariedade nas demais pastas.

Desmatamento

Outra estrela a tomar posse foi Marina, que assumiu o Ministério do Meio Ambiente com o propósito de alcançar o desmatamento zero. O impacto que isso pode ter no plano internacional é formidável, porque reduz fortemente a taxa de aquecimento global. É um verdadeiro ovo de Colombo. A primeira-dama Janja acompanhou a posse.

Há razões para otimismo. Com exceção dos últimos quatro anos, nenhum outro país reduziu tanto suas emissões de carbono como o Brasil. Nosso diferencial é a soberania sobre 60% da maior floresta tropical do mundo, a Amazônia. Cerca de 44% de nossas emissões de gases de efeito estufa decorrem da mudança de uso da terra, ou seja, o desmatamento, principalmente na Região Amazônica.

É muito mais fácil e barato — portanto, mais eficiente — combater o desmatamento do que alterar a toque de caixa os sistemas de energia, de transporte, de padrão construtivo, de produção de alimentos, embora isso deva ocorrer. O Brasil tem expertise para isso: entre 2004 e 2012, reduziu o desmatamento na Amazônia em 84% e, consequentemente, suas emissões em 67%. A mudança de rumo no ministério, se houver cooperação e coordenação interdisciplinar com outras pastas, como anunciou Marina, pode perfeitamente tornar irrisório o desmatamento e encontrar outras formas de atender às necessidades de 38 milhões de brasileiros na Amazônia, cerca de 12% da população, em condições em geral precárias, que desejam e merecem uma vida mais próspera.

Não adianta isolar e tratar a floresta como um parque intocado. É inviável politicamente e ineficaz. A chave é combinar controle ambiental com repressão às ilegalidades e iniciativas que tornem a floresta em pé mais valiosa para a população local do que sua derrubada, como propôs Marina. Com o governo Lula, tendo Marina à frente da pasta, abre-se a possibilidade de uma nova economia da floresta, gerando produtos e tecnologia. O potencial de descobertas farmacológicas e químicas a partir da biodiversidade também é enorme e pode substituir a pecuária de baixa produtividade e o garimpo ilegal.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-geraldo-alckmin-e-marina-silva-completam-esplanada/

Os Estados do Matopiba lideraram destruição do segundo maior bioma brasileiro em 2022 Moisés Muálem/WWF-Brasil

Desmatamento no Cerrado aumenta 25% em 2022 e atinge maior valor em sete anos

WWF-Brasil*

A taxa anual de desmatamento do Cerrado estimada em 2022 foi de 10.689 km², segundo os dados oficiais divulgados nesta quarta-feira (14) pelo PRODES Cerrado, programa de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O número, o maior dos últimos sete anos, se refere ao período entre agosto de 2021 e julho de 2022. 

No último dia 30, o PRODES já havia divulgado a estimativa oficial para Amazônia Legal, que mostrou a perda de 11.568 km² em 2022, mantendo o alto patamar das taxas registradas nos anos anteriores. Agora a conta chegou para o Cerrado. 

Além da área desmatada passar dos 10 mil km², os dados apresentados hoje mostram que em 2022 houve aumento de 25% na devastação do bioma em relação ao ano passado, quando a taxa anual foi de 8.531,44 km². Esse é o terceiro ano consecutivo de aumento da destruição no Cerrado, situação nunca vista na série histórica do monitoramento do INPE desde 2000. No governo Bolsonaro, o desmatamento do bioma acumulou uma área de 33.444 km2, mais de seis vezes a área de Brasília. 

“Precisamos mudar a trajetória do desmatamento do Cerrado urgentemente, depois de 3 anos seguidos de aumento da destruição. Preservar o bioma é fundamental para manter os regimes hídricos que irrigam tanto a produção de commodities, como a agricultura familiar, e enchem reservatórios de hidrelétricas pelo país. Desmatar o Cerrado é agir contra o agro, contra o combate à fome e a inflação – menos Cerrado significa alimentos e energia elétrica mais caros”, afirma Edegar de Oliveira Rosa, diretor de Conservação e Restauração do WWF-Brasil.

Em 2022, os estados de maior destruição foram os do Matopiba, chegando a 71 % do total desmatado no bioma. O  estado do Maranhão lidera o ranking da devastação com 2.833,9 km², 27% do total desmatado no bioma. Em seguida aparecem a Bahia, o Tocantins e o Piauí.

Cerrado pede socorro 

O Cerrado tem quase 1 milhão de km² de vegetação nativa remanescente, quase duas vezes a área da França, e contempla as savanas tropicais mais biodiversas do mundo, representando mais de 5% da biodiversidade mundial. O bioma é a casa de 25 milhões de pessoas, cerca de 100 povos indígenas e inúmeras comunidades tradicionais.

No entanto, o Cerrado  já perdeu metade da sua área, e nos últimos anos tem sofrido os efeitos do avanço acelerado da fronteira agrícola, a maior do mundo, especialmente na região do Matopiba, com a monocultura de soja e a pecuária.

Só que a destruição do bioma prejudica o próprio agronegócio, pois contribui para o alongamento da estiagem e o aumento das temperaturas, reduzindo a produtividade e acelerando a crise climática. 

“O Cerrado é a savana mais biodiversa do planeta e abriga as nascentes de oito das doze bacias hidrográficas do Brasil. A expansão da agropecuária foi responsável pela destruição de mais da metade da cobertura original do Cerrado e as áreas remanescentes encontram-se fortemente degradadas e fragmentadas. O resultado disso já tem sido visto – o aumento das temperaturas e da seca nos últimos anos têm sido responsáveis pela redução da produtividade de mais de 20% de soja e de milho no Matopiba, por exemplo", afirma Mariana Napolitano, gerente de Ciências do WWF-Brasil.

Cadeias livres de desmatamento

No último dia 5 de dezembro, a União Europeia aprovou uma lei que visa barrar os produtos associados ao desmatamento. Por enquanto, a lei aprovada trata somente de itens produzidos em áreas de florestas desmatadas após 31 dezembro 2020. Essas áreas cobrem apenas 26% dos remanescentes do Cerrado, deixando 74% do bioma desprotegidos. Em um cenário de destruição assustador, é crucial que a lei europeia inclua com urgência as áreas de savanas arbóreas na sua próxima revisão. Também, o novo governo precisa tomar medidas urgentes para conter o desmatamento no bioma, para que o desmatamento volte a reduzir. 

"A tendência é que leis similares sejam aprovadas em outros países, com debates já avançados no Reino Unido e EUA, por exemplo. As portas estão se fechando para o desmatamento, e precisamos enxergar este movimento como uma oportunidade de colocar o Brasil como referência em produtividade sustentável. O mercado já não aceita a derrubada de nenhuma árvore sequer, e o Brasil é capaz de mais do que dobrar a sua produção usando as áreas já desmatadas", afirma o especialista Frederico Machado, Líder da Estratégia de Conversão Zero do WWF-Brasil.

As áreas de savanas não florestais que ainda não estão contempladas no escopo da lei europeia tiveram uma pressão por desmatamento em 2021 quase duas vezes superior às áreas de florestas do bioma em valor relativo, e perto de quatro vezes  maior em área. No último ano, quase 5.000 km² foram desmatados somente nesses ecossistemas.

Enquanto evidências de perda de biodiversidade global são publicadas na COP15, a rota de destruição das savanas mais biodiversas do mundo acelera. A maior parte das espécies terrestres do Cerrado ameaçadas de extinção é considerada exclusiva dessas formações nativas não florestais. Um aumento de pressão nas savanas do Cerrado poderia significar precipitar a extinção dessas espécies. É o caso da codorna-mineira (Nothura minor) e do pato-mergulhão (Mergus octosetaceus), que depende das áreas úmidas não florestais do Cerrado e que está entre as 10 aves aquáticas mais ameaçadas do mundo.

Outros biomas

Dados inéditos do Projeto Biomas (Monitoramento Ambiental dos Biomas Brasileiros por Satélite - Mata Atlântica, Caatinga, Pampa e Pantanal)  também foram divulgados pelo INPE. Esses dados referem-se às séries históricas do desmatamento e os mapas de perda de vegetação nativa nos quatro biomas brasileiros que ainda não eram objeto de monitoramento anual oficial.

Houve aumento no desmatamento dos demais biomas entre 2020 e 2021, menos a Caatinga. No Pantanal a destruição subiu de 678 para 825 km²; no Pampa foi pior: de 888 para 1.526 km². Já na Mata Atlântica, o desmatamento saltou de 791 para 927 km² Na Caatinga, a área foi de 2.225 para 2.096 km².

Até 2021, 41% da vegetação natural do Brasil foi perdida (3.052.247 km2). Em 2021, essa perda aumentou 14,2% em relação à 2020, com 26.093 km2 desmatados, o que equivale a mais de três vezes a área da região metropolitana de São Paulo.

Esses dados poderão apoiar o novo governo na condução e fortalecimento de políticas públicas voltadas à preservação da vegetação nativa, da biodiversidade e do equilíbrio climático.

Os mapeamentos basearam-se na metodologia do PRODES, cobriram mais de 2,2 milhões de km² e contemplaram o período de 2000 a 2021. É prevista a continuação do monitoramento anual do desmatamento em todos os biomas brasileiros. 

Texto publicado originalmente na WWWF Brasil.


Vilarejo nas Filipinas atingido por tufão em novembro de 2020 | Foto: reprodução/Getty Image/ BBC News Brasil

COP27: o que significa 'perdas e danos' nas discussões sobre as mudanças climáticas

Navin Singh Khadka*, BBC News Brasil

As negociações até agora se concentraram em pautas sobre como reduzir os gases de efeito estufa e como lidar com os impactos das mudanças climáticas. Mas há a expectativa de que outra questão ganhe importância: se os países altamente industrializados, que mais contribuíram para causar problemas climáticos e ambientais, deveriam reparar financeiramente os países que sofrem os impactos mais diretamente.

Desastres como enchentes, secas, furacões, deslizamentos de terra e incêndios florestais estão se tornando mais frequentes e intensos como resultado das mudanças climáticas, e os países mais afetados pedem ajuda financeira há anos para lidar com as consequências.

Isto é o que as palavras "perdas e danos" ("loss and damage", em inglês) significam. O termo abrange tanto as perdas econômicas (casas, terras, fazendas ou empresas) quanto não econômicas (mortes de pessoas, locais culturalmente importantes ou biodiversidade).

Após intensas negociações durante dois dias e a apenas uma noite da abertura da COP27, os delegados concordaram em incluir a questão das "perdas e danos" na agenda oficial.

O dinheiro que os países mais pobres estão exigindo ultrapassam os US$ 100 bilhões por ano que os países mais ricos já concordaram em transferir para os países mais pobres, visando ajudar estes a:

• reduzir os gases de efeito estufa, algo conhecido como "mitigação" nas negociações climáticas;

• tomar medidas para lidar com os impactos das mudanças climáticas, a "adaptação".

"As pessoas estão sofrendo perdas e danos causados ​​por tempestades potencializadas, inundações devastadoras e derretimento de geleiras, e os países em desenvolvimento têm pouco apoio para se reconstruir e se recuperar antes do próximo desastre", diz Harjeet Singh, chefe de estratégia global da ONG Climate Action Network International.

"São as comunidades que menos contribuíram para causar a crise que agora estão na linha de frente dos piores impactos."

Quão grande é a fatura por perdas e danos?

Luz Valdebenito com torneira aberta em seu quintal abre uma torneira depois que um caminhão-tanque lhe entregou água em Til Til, Chile.
Luz Valdebenito abre a torneira depois de receber caminhão-pipa em Til Til, Chile; região central do Chile passa uma longa e fortíssima seca

Um relatório publicado pela Loss and Damage Collaboration, um grupo de mais de 100 pesquisadores e formuladores de políticas de todo o mundo, revelou que 55 das economias mais vulneráveis ​​ao clima sofreram perdas econômicas de mais de US$ 500 bilhões entre 2000 e 2020. E isso poderia aumentar em mais US$ 500 bilhões na próxima década.

"Cada fração de aquecimento a mais significa mais impactos climáticos, com perdas nos países em desenvolvimento estimadas entre US$ 290 bilhões e US$ 580 bilhões até 2030", escreveram os autores.

O documento destaca que o nível do mar nas Américas tem subido a um ritmo mais rápido do que no resto do mundo, especialmente ao longo da costa atlântica da América do Sul, no Atlântico Norte subtropical e no Golfo do México.

"A grande seca no centro do Chile já dura 13 anos. Essa é a seca mais longa na região em pelo menos mil anos, agravando uma tendência mortal e colocando o Chile na vanguarda da crise hídrica."

O ano passado também registrou o terceiro maior número de tempestades nomeadas no Atlântico. Foram 21, incluindo sete furacões.

O Banco Mundial estima que entre 150 mil e 2,1 milhões de pessoas são a cada ano empurradas para a pobreza extrema na América Latina devido a desastres, incluindo aqueles causados ​​pelas mudanças climáticas; e que cerca de 1,7% do PIB da região é perdido a cada ano devido a desastres relacionados ao clima.

"Vários países estão passando por secas mais profundas e prolongadas, por tempestades e inundações mais intensas que estão atrapalhando as atividades econômicas e afetando os meios de subsistência", diz o banco.

"No Uruguai, por exemplo, os choques relacionados ao clima tornaram-se mais frequentes e intensos. As secas de 2017-18 e as perdas na agropecuária custaram cerca de 0,8% do PIB somente em 2018."

O planeta viu um aumento médio da temperatura global de 1,1°C em comparação com o período pré-industrial.

Os países mais pobres e menos industrializados defendem que o impacto do clima extremo prejudica qualquer progresso que façam em termos de desenvolvimento econômico. Alguns apontam que se encheram de dívidas ao tomar empréstimos para reconstruir o que foi danificado e perdido.

Desde quando se discute o pagamento de perdas e danos?

Pessoas caminhando e trabalhando sobre destroços
Equipes de resgate e parentes buscam por vítimas de deslizamentos de terra em Las Tejerias, Venezuela, em outubro deste ano

Sete anos atrás, o inovador Acordo de Paris reconheceu a importância de "evitar, minimizar e lidar com perdas e danos associados aos efeitos adversos das mudanças climáticas". Mas nunca foi decidido como fazer isso.

"Perdas e danos continuam sendo um tópico bastante tóxico e tivemos discussões muito, muito acaloradas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento", diz Jochen Flasbarth, secretário do Ministério de Cooperação e Desenvolvimento Econômico da Alemanha.

"Havia preocupação entre os países desenvolvidos de que isso pudesse se tornar uma obrigação legal para grandes emissores (de poluentes). Isso sempre foi uma linha vermelha para a maioria dos países desenvolvidos."

Alguns negociadores da COP27 disseram que os países ricos queriam deixar claro que não aceitariam qualquer responsabilidade ou obrigação de pagar indenização por perdas e danos, algo a que os países em desenvolvimento se opuseram fortemente. Finalmente, foi acordado que o tema será apenas discutido na conferência atual. No próximo ano, na COP28 em Abu Dhabi, espera-se uma decisão provisória e, em 2024, uma decisão conclusiva sobre a questão.

"Exigimos financiamento regular, previsível e sustentável para lidar com as crises que algum país em desenvolvimento sofre quase todos os dias", defendeu Alpha Oumar Kaloga, negociador-chefe do Grupo Africano, em uma reunião nas Nações Unidas.

Singh, da Climate Action Network, demonstra reprovar a postura dos países ricos.

"Na verdade, é uma traição à confiança a forma como os países ricos encurralaram os países em desenvolvimento para aceitar uma linguagem que mantém os poluidores históricos a salvo de compensações e responsabilidades, sem oferecer qualquer compromisso concreto de apoiar as pessoas e os países vulneráveis", afirma.

Os países desenvolvidos apontam que já existem mecanismos previstos por convenções do clima anteriores que contemplam as demandas dos países em desenvolvimento — enquanto estes consideram que nenhum organismo e convenção existente hoje é apropriado.

Representantes do Grupo Africano e da Aliança dos Pequenos Estados Insulares (Aosis) têm pressionado para a criação de uma nova agência dedicada à reparação financeira, mas Jochen Flasbarth, da Alemanha, afirma que essa proposta talvez não consiga apoio suficiente.

Na prática, já houve problemas tanto com as instituições financeiras que liberam o financiamento climático quanto com os países que o recebem. A burocracia das agências financeiras internacionais faz com que os fundos demorem muito para serem disponibilizados. E, em alguns dos países receptores, há problemas de má governança e corrupção.

Houve algum progresso no período anterior à COP27?

Carcaças de cabras em área aberta e arenosa
Carcaças de cabras nos arredores de Dollow, na Somália; moradores da região de Gedo precisaram deixar suas casas devido à seca

Durante a COP26, a Escócia prometeu pouco mais de £ 1 milhão em fundos para perdas e danos. No mês passado, a Dinamarca anunciou que contribuiria com US$ 13 milhões.

E na semana passada, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução pedindo foco no pagamento a países em desenvolvimento e a priorização de doações sobre empréstimos.

Além disso, o G7 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos) e o V20, um grupo de 55 países vulneráveis, concordaram recentemente em lançar uma iniciativa chamada Escudo Global contra os Desastres Climáticos, que pretende arcar com perdas e danos por meio de um sistema de seguro.

A Aosis demonstrou desconfiança em relação à iniciativa, argumentando que o V20 não tem nem metade dos membros da Aosis.

https://www.bbc.com/ws/av-embeds/cps/portuguese/geral-63593520/p0dfgsg1/pt-BRLegenda do vídeo,

Perdas e danos: a 'conta climática' que pode recair sobre países ricos

"O G7 deve falar com todos nós, e não apenas com os países que selecionou", disse o principal negociador de finanças climáticas do grupo, Michai Robertson.

*Texto publicado originalmente no site da BBC News Brasil


Com proporções históricas, última crise hídrica no sudeste foi a maior em quase um século - Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Mata Atlântica: desmatamento cresce e aumenta vulnerabilidade a novas crises hídricas

Murilo Pajolla,* Brasil de Fato

Mata Atlântica, bioma cujo território original é hoje lar de 70% dos brasileiros, teve a cobertura florestal reduzida de 27,1% para 24,3% entre 1985 e 2021. Os dados foram divulgados nesta quarta-feira (19) pelo Mapbiomas, que alerta para a importância da preservação ambiental do bioma para prevenir novos casos de escassez hídrica, como ocorreu nos estados de São Paulo e Paraná em 2021. 

Mapbiomas ressalta que as áreas urbanizadas na Mata Atlântica passaram de 674 mil para mais de 2 milhões de hectares entre 1985 e 2021. As cidades cresceram majoritariamente em áreas já degradadas (87,5%), mas 12,7% do crescimento urbano se deu sobre áreas florestais. Os pesquisadores apontam ainda que 57% dos municípios inseridos no bioma possuem menos de 30% da vegetação nativa.

Pecuária perdeu espaço, mas ainda é predominante 

Um quarto do solo da Mata Atlântica ainda é usado para pecuária. A prática teve uma perda líquida de 10,5 milhões de hectares nos últimos 37 anos, mas ainda é a principal atividade econômica desenvolvida no bioma.

A agricultura é o tipo de uso do solo que mais cresceu. A atividade avançou 10,9 milhões de hectares, saltando de 9,2% (1985) para 17,6% (2021). Outro destaque é a silvicultura (eucalipto), que ocupava 0,7% (1985) da área e hoje está presente em 3,5% do território. As duas atividades ocupam um quinto da Mata Atlântica.

A redução da área florestal acompanha a degradação da qualidade da vegetação que sobrou. No período analisado, houve a perda de 23% da chamada floresta madura, composta por habitats antigos e menos alterados, que oferecem mais condições ao florescimento da biodiversidade. 

Conservação é fundamental para evitar crises hídricas

Frear a degradação ambiental é fundamental para combater a possibilidade de novas crises hídricas. No período de 37 anos, a bacia do rio Paraná teve queda na cobertura nativa de 22,5% para 21,6%. Nos rios Paranapanema e São Francisco também houve perda de vegetação de 21,3% (1985) para 20,3% e de 57% (1985) para 52,9%, respectivamente.

A SOS Mata Atlântica lamenta que os sucessivos casos de escassez de água nos últimos anos não foram capazes de mobilizar um esforço de conservação ambiental. 

"A preservação do que restou de Mata Atlântica e a restauração em grande escala são essenciais para preservarmos alguma resiliência dessa região à dupla ameaça da crise climática e da crescente irregularidade do regime de chuvas, decorrente do desmatamento da Amazônia", declarou Luís Fernando Guedes Pinto, Diretor Executivo da ONG, em nota divulgada pelo Mapbiomas.  

O cenário é preocupante, mas há exemplos positivos. Entre eles a bacia do rio Tietê, onde há pouca cobertura nativa, mas que foi palco do aumento de 14,29% para 15,0% na vegetação. Já na bacia do Rio Grande o aumento foi de 17,6% para 19,7%.

Mata Atlântica engloba 17 estados 

O levantamento contabiliza dados dos 17 estados abrangidos pela Mata Atlântica, conforme área prevista na lei 11.428 de 2006. O estados com menor cobertura nativa são Alagoas (17,7%), Goiás (19,5%), Pernambuco (23,4%), Sergipe (25,5%), São Paulo (28,4%) e Espírito Santo (29,3%).  Já os com maior vegetação são Piauí (89,9%), Ceará (76,9%), Bahia (49,7%) e Santa Catarina (48,1%).

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.


Lula e Bolsonaro se enfrentam no primeiro debate presidencial do segundo turno das eleições presidenciais | Imagem: Reprodução/Twitter

Debate: Bolsonaro distorce dados sobre desmatamento

Paulo Motoryn*, Brasil de Fato

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu, durante o debate na TV Bandeirantes, na noite deste domingo (16), a preservação ambiental, enquanto o presidente Jair Bolsonaro (PL) distorceu os dados do desmatamento durante o seu governo. O tema dominou boa parte do terceiro bloco do confronto entre os candidatos ao Palácio do Planalto.

"Foi no nosso governo o menor desmatamento da Amazônia. Foi no nosso governo. E o seu é o maior todo ano. Vocês estão brincando de desmatar, vocês estão brincando de abrir cerca, vocês estão brincando de derrubar árvore, vocês vão ver o que vai acontecer com o comércio brasileiro, porque o brasileiro do agronegócio que é sério, aquele que quer ganhar dinheiro, aquele que quer exportar, sabe que não pode invadir a Amazônia", afirmou Lula.

"Nós vamos ganhar as eleições para poder cuidar da Amazônia e não permitir que haja invasão em terra indígena, em garimpo ilegal, e muito menos alguém querer plantar milho, soja ou algum outro produto no lugar que não se pode plantar", declarou o petista.

Na resposta, Bolsonaro disse: "Dá um Google em casa aí: 'Desmatamento 2003 a 2006', quatro anos do governo Lula. Depois dá um Google: 'Desmatamento, Jair Bolsonaro, 2019 a 22'. No seu governo foi desmatado mais do que o dobro do que o meu. Dá um Google em casa. Deixa eu terminar, Lula. Dá um Google em casa. Você desmatou duas vezes e meio mais do que no meu governo".

Logo em seguida, contudo, entidades que atuam com o tema contestaram o presidente nas redes sociais. O Observatório do Clima, rede da sociedade civil que luta contra a crise climática, publicou a seguinte mensagem no Twitter: "Jair Bolsonaro MENTE sobre desmatamento no governo Lula. O PT pegou o desmatamento em 25 mil km2 e reduziu a 4.500 km2. Bolsonaro pegou com 7.500 km2 e levou a 13.000 km2", escreveu.

https://twitter.com/obsclima/status/1581812948343083011?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1581812948343083011%7Ctwgr%5E75d687c7deed192fd355cbc84f39f70784e96de9%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.brasildefato.com.br%2F2022%2F10%2F16%2Fdebate-bolsonaro-distorce-dados-sobre-desmatamento-lula-diz-que-vai-acabar-com-garimpo-ilegal
https://twitter.com/obsclima/status/1581805764955770880?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1581805764955770880%7Ctwgr%5E75d687c7deed192fd355cbc84f39f70784e96de9%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.brasildefato.com.br%2F2022%2F10%2F16%2Fdebate-bolsonaro-distorce-dados-sobre-desmatamento-lula-diz-que-vai-acabar-com-garimpo-ilegal

*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato. Título editado.


Queimadas na Amazônia | Foto: B.Kelly

Alertas de desmate na Amazônia são recorde para setembro

Made for minds*

Alta é a maior da série de medições do Inpe iniciada em 2015. Cifra representa crescimento de 47,7% em relação a setembro de 2021 e quase equivale ao tamanho da cidade de São Paulo

Os alertas de desmatamento na Amazônia em setembro foram os mais altos para esse mês na série histórica iniciada em 2015, de acordo com os dados, divulgados nesta sexta-feira (07/10), do monitoramento por satélite do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

O acumulado de alertas de desmatamento em setembro foi de 1.455 km², quase a área da cidade de São Paulo. Em relação ao mesmo mês de 2021, houve crescimento de 47,7%. A cifra  é ligeiramente maior que o recorde anterior, de setembro de 2019 (1.454 km²), durante o primeiro ano do governo Bolsonaro.

De acordo com o Observatório do Clima, essa devastação pode ter emitido 70 milhões de toneladas de gás carbônico, o equivalente ao que um país como a Áustria emite num ano inteiro.

Com três meses restantes, o desmatamento acumulado para 2022 já superou o registrado de janeiro a dezembro de 2021. As áreas de alerta de desmatamento já somam 8.590 km², cifra 4,5% superior a todos os alertas do ano anterior.

Queimadas

O Inpe também divulgou que o número de queimadas registradas no bioma em setembro foi de 41.282, o maior desde 2010. Na comparação com o mesmo mês de 2021, o crescimento foi de 147%. Ainda no nono do ano corrente, a cifra de 82.872 queimadas já supera o total de 2021, que foi de 75.090.

O Deter produz sinais diários de alteração na cobertura florestal para áreas maiores que 3 hectares (0,03 km²), tanto para áreas já desmatadas como para regiões em processo de degradação florestal.

O Deter não é o dado oficial de desmatamento, mas alerta sobre onde o problema está acontecendo. A medição oficial, feita pelo sistema Prodes, costuma superar os alertas sinalizados pelo Deter.

Texto publicado originalmente no Made for minds.


Dia da Amazônia: floresta foi tema ausente em debate presidencial

Maria Eduarda Portela*, Metrópoles

O Dia da Amazônia é comemorado nesta segunda-feira (5/9) e tem como finalidade conscientizar a população sobre a importância desse bioma, que é um dos principais patrimônios naturais da humanidade. Embora existam diversas campanhas de preservação da floresta, a Amazônia continua sob risco de desmatamento e queimadas.

A conservação e o desenvolvimento sustentável da Região Amazônica, no entanto, são temas que foram praticamente ignorados durante o debate entre presidenciáveis em 28 de agosto.

O Metrópoles conversou com especialistas sobre a importância de discutir a preservação da Amazônia e a economia verde desenvolvida na região.

Para o doutor em Ecologia e cientista sênior do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Paulo Moutinho, os candidatos só citaram a Amazônia no contexto do desmatamento na região, que é um grande problema, mas deixaram de lado as soluções para outros problemas enfrentados pela floresta.

“Eu espero que, no Dia da Amazônia, a gente tenha muito o que comemorar, mas também muito com o que se preocupar, e que isso reflita nos discursos e nos debates que os candidatos farão, especialmente no tocante ao clima”, declara Moutinho.

O secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, lembra que a proteção da Amazônia atualmente é muito mais discutida, em comparação a eleições anteriores, mas ainda não é o suficiente.

“Ainda é muito pouco, precisamos de muito mais. Mesmo porque, quando falamos sobre clima, a Amazônia é o principal componente de clima no Brasil”, afirma Astrini.

“É uma floresta importantíssima nesse debate e, quando falamos sobre clima, não estamos falando apenas sobre dados científicos, negociações diplomáticas, acordos feitos em Paris. Nós estamos falando sobre a vida das pessoas”, reforça o secretário-executivo do Observatório do Clima.

Desmatamento na Amazônia

Dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) apontam que o desmatamento na Amazônia atingiu o maior nível para o mês de agosto nos últimos dez anos. O levantamento mostra que a área desmatada aumentou 7% em relação ao mesmo período do ano passado.

Informações do Imazon apontam que, de agosto de 2021 a julho de 2022, foram derrubadas 10.781 km² de floresta, número equivalente a sete vezes a cidade de São Paulo.

Para Moutinho, a falta de comprometimento dos governos estaduais, municipais e federal é um dos principais fatores para a alta do desmatamento.

“É um desleixo geral dos estados e dos municípios, que ainda acham que a Floresta Amazônica impede um tal progresso, já instalado em uma grande porção da Amazônia, e não traz duas coisas fundamentais: distribuição de renda e distribuição de terra para as pessoas trabalharem”, declara o cientista sênior do Ipam.

Futuro da Amazônia

Para Moutinho, políticos e candidatos atuais não demonstram muita disposição para discutir uma solução de preservação da Amazônia e o desenvolvimento sustentável de uma maneira mais profunda e de longo prazo.

“Isso é extremamente grave, porque a conservação da Amazônia, o uso sustentável dos seus recursos e a necessidade do fim do desmatamento são questões de segurança nacional”, reforça.

O secretário-executivo do Observatório do Clima declara que é possível reverter a situação atual da Amazônia. Segundo o especialista, nesse intuito, é necessário dar autonomia, novamente, para os órgãos ambientais do governo e resolver o problema de caixa das pastas.

“Portanto, é possível reverter o lastimável quadro atual da agenda ambiental no Brasil, mas é preciso tomar algumas atitudes, revogar muitas normas, implementar outras medidas no lugar do que foi revogado, criar novos atos legais e administrativos”, afirma Astrini.

O Metrópoles procurou o Ministério do Meio Ambiente para comentar as ações do governo federal contra o desmatamento da Amazônia; contudo, não obteve respostas até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.

*Texto publicado originalmente em Metrópoles.


Reserva extrativista | Foto: reprodução/ Nanda Melonio/Flickr

Sob pressão do agro, extinção de reserva vira bandeira eleitoral na Amazônia

Pedro Papini , Bettina Gehm, Naira Hofmeister e Fernanda Wenzel*, Brasil de Fato

O piloto conduz o barco rio acima até avistar a casa que está buscando. Ao perceber que há gente na propriedade, baixa o tom de voz e evita se aproximar da margem para não ser visto. Quem olha a cena de longe pode ter a falsa impressão de que ele entrou ilegalmente na Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná, uma unidade de conservação em Rondônia criada para proteger de invasores as famílias que vivem da extração da seringa, da castanha, do açaí e de outros frutos da Amazônia.

Mas nesse território que se estende pela área de três municípios, inclusive a capital Porto Velho, essa lógica se inverteu. Dali, do meio do rio, Rodrigo* vê a casa que ajudou os pais a construírem ser utilizada por grileiros como base para a destruição da floresta que antes complementava o sustento familiar. "Eu tô com raiva, tô com ódio", desabafa, constatando que a roça de macaxeira do pai e os pés de frutas nativas como cupuaçu e abacaxi cultivados pela mãe foram substituídos por bois e tratores.

Em 2018, o casal de extrativistas decidiu fugir do local depois que a casa foi alvejada com tiros de arma de fogo enquanto eles trabalhavam. Antes disso, em duas ocasiões, os cadeados que trancavam as portas foram trocados durante sua ausência.

Desde então, a situação só piorou: de acordo com dados do governo do Estado, já há 765 fazendas dentro da unidade de conservação. E a proximidade das eleições acirra mais os ânimos: "Politicamente, não interessa ao Estado proteger a reserva, que é a mais visada pelos políticos de Rondônia [para extinção]", analisa Aidee Torquato, ex-promotora do Ministério Público Estadual, que esteve à frente de muitas ações para impedir o fim da área verde.

Na Resex Jaci-Paraná tudo funciona com o sinal contrário. Quase 30 anos após sua criação, há mais pasto do que floresta por lá — embora a lei proíba a pecuária dentro da unidade de conservação. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 55,3% dos seus 191.234 hectares já foram transformados em capim.

Apenas dois moradores tradicionais resistem em seus terrenos, mas a população de bovinos cresce exponencialmente sob a proteção dos órgãos oficiais do Estado, que faz, inclusive, o controle de vacinação do rebanho ilegal contra febre aftosa. Enquanto o filho de extrativistas precisa falar baixo e olhar sempre para os lados, evitando ser visto, os invasores criam associações, fazem lobby e erguem faixas pedindo "regularização fundiária". E o poder público está do lado deles.

"A gente tem que parabenizar essas pessoas que estão trabalhando, ralando, com a mão calejada. Esse é o bandido? Não, eu acho que esse é um herói, deveria ter recebido um prêmio", defende Evandro Padovani, que até março de 2022 era o secretário de Agricultura de Rondônia — dias depois da declaração dada à reportagem ele deixou o cargo para concorrer a uma vaga na Câmara dos Deputados pelo PSC (Partido Social Cristão). Em 2018, terminou a disputa como suplente, concorrendo com o slogan "Padovani da Agricultura", que segue ativo em suas redes sociais e deve ser novamente sua plataforma eleitoral.


Evandro Padovani, que até março de 2022 era o secretário de Agricultura de Rondônia, defende publicamente os agricultores que invadiram ilegalmente a Resex / Otávio Lino

Em 2021, o governador Marcos Rocha (União Brasil), que se elegeu na esteira do bolsonarismo e busca mais quatro anos de mandatocontrariou pareceres da própria Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam) e da Procuradoria Geral do Estado e enviou para a Assembleia Legislativa um projeto de lei que praticamente acabava com a Resex. O texto, aprovado sem votos contrários pelos parlamentares — dos 24, 17 votaram a favor do projeto e sete se abstiveram — diminuiria em 90% a área da Resex, de 191 mil para 22 mil hectares.

A tentativa de redução da Resex foi freada apenas pelo Judiciário, que considerou a lei inconstitucional — mas parte do estrago já estava feito. "Medidas como essas vão fomentando cada vez mais a invasão, porque dão a ilusão de que em algum momento essas pessoas vão ser regularizadas", diz Paulo Bonavigo, biólogo e presidente da Ecoporé, uma organização sem fins lucrativos que luta pela proteção do meio ambiente em Rondônia.

A Resex Jaci-Paraná é uma das unidades de conservação onde o desmatamento mais cresce no Brasil, conforme números do Inpe. Não por acaso, está localizada no estado amazônico que mais destruiu suas florestas. "Por causa do agronegócio, Rondônia sempre teve um movimento conservador e antiambiental muito forte. A eleição de Bolsonaro legitimou esse discurso e empoderou ainda mais os invasores", explica Paulo Bonavigo.

O próprio presidente já teceu elogios à atuação dos deputados de Rondônia, estado que virou um balão de ensaio para as políticas de desregulamentação ambiental patrocinadas pelo governo de Jair Bolsonaro. Por isso, o risco é que a extinção de Jaci-Paraná abra um precedente perigoso para as outras áreas protegidas da Amazônia, cuja preservação é essencial para evitar o avanço do aquecimento global.

"O último relatório do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, na sigla em inglês] mostra que a Amazônia está perdendo o poder de fazer o equilíbrio climático, de resgatar o carbono da atmosfera", destaca Txai Suruí, liderança indígena de Rondônia que em 2021 capturou a atenção de importantes chefes de Estado ao discursar na tribuna principal da COP 26, a Conferência Mundial do Clima.


"A Amazônia está perdendo o poder de fazer o equilíbrio climático", destaca Txai Suruí / Otávio Lino

"Essa destruição passa também por comunidades que sempre viveram da floresta e agora estão sofrendo [com invasões e expulsões]”, completa Txai, também coordenadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, que trabalha na defesa dos povos indígenas e do meio ambiente há 30 anos.

Peixe grande, peixe pequeno

Dona Cláudia*, mãe de Rodrigo, não teve tempo nem de sentir o gosto dos abacaxis que estavam começando a brotar quando ela e o marido, Roberto*, tiveram que sair fugidos da casa na beira do Rio Jaci-Paraná. A horta com couve, pimenta, cebola e outros temperos também ficou para trás, junto com uma boa parte da saúde de seu Roberto, que nunca se adaptou à vida em Porto Velho, para onde foram após escapar dos invasores.

"Era um monte de homem chegando armado. O trator veio na frente abrindo a estrada, tirando madeira. A casinha ficou lá, tava toda pintadinha", lembra o idoso.

Assim como eles, a maioria das cerca de quarenta famílias de extrativistas que viviam na Resex Jaci-Paraná quando ela foi criada, em 1996, foi embora por conta das ameaças — realidade que se materializa nas casas abandonadas dentro da reserva. "A gente não vivia em paz, estava sempre assustado. Escutava pau caindo, eles abrindo mato, derrubando para plantar capim para o gado", conta Isabel*, que também se viu obrigada a largar a floresta às pressas, deixando para trás a máquina de costura e a casa de farinha. "A minha vida foi só em seringal. Eu nunca morei na cidade, assim como tô agora. Eles tiraram meu sossego, minha paz."


Na Resex Jaci-Paraná, é possível ver algumas das casas abandonadas pelos extrativistas expulsos por fazendeiros / Otávio Lino

Para Gustavo*, a ameaça chegou uma década atrás, pela boca de um homem armado: "O peixe maior é costume engolir um monte de menor", disse o invasor.

Sabedor de seu direito àquela terra, garantido por lei, Gustavo foi ao Ministério Público, ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), à delegacia ambiental, ao governo do Estado. Mas enquanto era mandado de um órgão público para o outro, viu as invasões ganharem corpo. Sem apoio, teve que deixar seu lote e passou a viver de favor. "Eles entraram como se fossem um bando de bicho, devorando tudo, vieram com trator, com caminhão. Hoje você só vê capim e boi berrando. Mais nada", recorda.

Rebanho ilegal cresce 300% em sete anos

Documentos oficiais do governo do Estado mostram que em janeiro de 2022 havia 174.406 cabeças de gado na área protegida — número quase 300% maior do que o registrado em 2015, quando foi feito o primeiro levantamento do rebanho ilegal na Resex.

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Parte desses animais abastece diferentes frigoríficos de Rondônia, inclusive aqueles pertencentes a grandes empresas que se comprometeram publicamente a não comprar animais de áreas desmatadas ilegalmente. No ano passado, o jornal estadunidense The New York Times revelou que bois criados na reserva foram comprados por frigoríficos da JBS, Marfrig e Minerva. No caso da JBS, a mesma prática já havia sido denunciada anteriormente pelo ((o))eco e pela Anistia Internacional.

A JBS afirma que essas publicações tinham erros metodológicos e que demonstrou, em cada um dos casos, a regularidade de suas compras. No caso da Marfrig, flagrada pela reportagem do The New York Times buscando gado dentro da Resex, a empresa disse que o erro foi da transportadora que embarcou os animais.

Já a Minerva argumenta que a falta de transparência sobre a movimentação do gado impede o monitoramento da origem dos animais desde o nascimento. Como o gado costuma passar por duas, três ou mais fazendas antes de chegar ao frigorífico, as empresas ficam sujeitas a manobras dos produtores que "lavam" o gado de Jaci-Paraná em fazendas regulares no entorno da reserva. Confira a íntegra das respostas das empresas aqui.

Impedir que os animais criados ilegalmente dentro da Resex chegassem aos consumidores, garantindo lucros para os pecuaristas irregulares, foi uma das maiores brigas de Aidee Maria Moser Torquato ao longo dos 18 anos em que esteve à frente da Promotoria de Meio Ambiente do Ministério Público de Rondônia (MP-RO). Para isso, ela adotou a estratégia de pressionar a Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril do estado (Idaron) para que tomasse medidas concretas contra o rebanho ilegal.


Governo de Rondônia fecha os olhos para a ocupação ilegal da reserva para criação de gado / Otávio Lino

O órgão é responsável por garantir que os animais sejam vacinados contra a febre aftosa, por isso sabe quem são os pecuaristas e detém informações preciosas sobre o fluxo comercial entre criadores e frigoríficos. A agência, inclusive, emite os documentos que autorizam o trânsito dos animais de uma fazenda para outra e dessas para os abatedouros.

Caso se abstivesse dessas tarefas, sob a alegação da irregularidade dos bovinos dentro de uma reserva extrativista, o Idaron estrangularia a cadeia que fomenta a grilagem.

Mas as recomendações de Torquato foram solenemente ignoradas pelas autoridades do governo do Estado. "Como o Idaron faz vista grossa e não denuncia quem invadiu a Resex? Como emite a Guia de Trânsito Animal sem questionar a origem do gado? Isso só interessa a quem está lá produzindo gado e enriquecendo", lamenta a ex-promotora, que se aposentou em 2020.

A reportagem entrou em contato com o Idaron, com a Sedam e o gabinete do governador Marcos Rocha, mas não obteve retorno.

A carne produzida nos municípios que abrangem a Resex Jaci-Paraná é exportada, principalmente para Hong Kong, região autônoma da China, mas também para o Egito, Rússia, Itália, Alemanha, Suiça e Dinamarca e outros 37 países.

Para Ivaneide Bandeira Cardozo, a Neidinha Suruí, coordenadora de projetos da Kanindé, quem compra essa carne também tem sua parcela de culpa na tragédia socioambiental da Amazônia. "Há uma guerra do setor econômico contra a natureza, contra os povos indígenas, contra os extrativistas, e essa guerra destrói o planeta. Nós só vamos parar essa devastação quando o mercado internacional der um basta."


"Nós só vamos parar essa devastação quando o mercado internacional der um basta", diz Neidinha Suruí / Otávio Lino

Governo desobedece a Justiça

Desde 2004, já houve pelo menos três decisões judiciais determinando a saída dos invasores da Resex Jaci-Paraná, a restauração da vegetação nativa e o pagamento de multas por parte dos grileiros, mas elas tampouco tiveram efeitos. "O Estado nunca cumpriu", lembra Torquato.

A exceção foi o período entre 2011 e 2013, em que o hoje ambientalista da Ecoporé Paulo Bonavigo esteve à frente do órgão estadual responsável pela proteção das unidades de conservação do estado e tentou forçar a retirada do gado da área por meio de bloqueios nas estradas de acesso à Resex. O objetivo era impedir a entrada de novos animais e de qualquer insumo à atividade agropecuária. A pressão dentro e fora do governo, no entanto, acabou minando a iniciativa e o levou a deixar o cargo. "Às vezes vinha um assessor de deputado me procurar, ou mesmo advogados ligados a políticos, querendo achar uma brecha legal para manter a invasão", conta.

Em um estado que tem o agronegócio como carro-chefe da economia, a luta contra a Resex Jaci-Paraná virou bandeira eleitoral. A Assembleia Legislativa do Estado já tentou extinguir ou reduzir a unidade de conservação quatro vezes: em 2014, 2018, 2020 e em 2021, cujo ponto de partida foi um projeto de lei do governador do Estado.

"Essa pauta de redução de unidades de conservação é uma bandeira eleitoral em Rondônia há muitos anos", explica Paulo Bonavigo, da Ecoporé, que acredita que este ano não será diferente. "Se você pensar que há cerca de 1.600 famílias vivendo ilegalmente dentro da Resex Jaci-Paraná, isso já é quase voto o suficiente para eleger um deputado."

Por isso, não surpreende que, a 12 quilômetros de onde Rodrigo chora a casa que um dia foi sua, mas ainda dentro do perímetro protegido de Jaci-Paraná, João Marcelo da Silva faça planos de se candidatar a vereador mirando no voto dos grileiros. Ele é presidente da Aparar (Associação dos Pequenos Agricultores Rurais do Assentamento Renascer), que representa invasores assumidos: "Quando chegamos aqui sabíamos que era reserva", admite. "Só que todo mundo precisava dum pedaço de terra para manter o sustento", justifica.


"Quando chegamos aqui sabíamos que era reserva", admite João Marcelo da Silva, presidente da Aparar / Otávio Lino

Silva exibe uma faixa com os dizeres "Nós queremos o zoneamento e a regularização fundiária da área da Resex Jaci-Paraná" e acredita que a regularização dos grileiros será o trampolim para sua candidatura. "Antes de deitar tem que fazer a cama", brinca. Trânsito na política oficial Silva já tem — segundo ele, foi a seu pedido que a prefeitura de Porto Velho mandou a retroescavadeira que consertava a estrada dentro da área invadida.

Embora os defensores do fim da Resex argumentem que quem está lá são pequenos produtores rurais, os dados do Idaron mostram que entre os invasores da unidade de conservação há pelo menos 21 fazendeiros com mais de mil cabeças de gado — em alguns casos, os rebanhos somam quase três mil animais, enquanto a média em propriedades familiares obtida pelo último censo agropecuário do IBGE é de 80 cabeças por propriedade em Rondônia.

"Nas investigações do Ministério Público detectamos empresários de outros ramos que exploram pecuária dentro da Resex, mas também laranjas. Pessoas que possuem o gado em seu nome, mas que não têm condição financeira para isso", conta Aidee Torquato. "Já aconteceu de identificarmos uma cabeleireira com 500 cabeças de gado, por exemplo."

"A gente vê desmatamentos de quase 1.000 hectares de uma hora pra outra, e isso exige muito dinheiro, então não são pessoas com pouca renda que foram invadindo essas áreas", salienta Paulo Bonavigo, da Ecoporé.

Vitória do atrevimento

José Maria, um dos fundadores da Organização dos Seringueiros de Rondônia e principal liderança extrativista do Estado, ainda guarda as fotos tiradas em 9 de março de 1996, quando foi realizada a assembleia de criação da associação de extrativistas de Jaci-Paraná. Na imagem, cerca de trinta pessoas, a maioria homens, olham sorridentes para a câmera. Em outro retrato, Zé Maria e um companheiro tomam banho em um rio ainda cercado pela floresta densa, imagem rara atualmente dentro da área.

A extensão do estrago é o principal argumento de quem quer o fim da reserva. "A floresta a gente tem que cuidar enquanto ela não foi derrubada. Depois que derrubou, não adianta", argumenta Padovani.

Mas a Justiça brasileira não aceita a teoria do fato consumado – de que a retirada dos invasores é inútil porque o desmatamento já aconteceu – como justificativa para a perpetuação de crimes ambientais. O desembargador Miguel Monico Neto, do Tribunal de Justiça de Rondônia, reforça esse entendimento: "Seria uma vitória do atrevimento. Vamos premiar a ilegalidade?", questiona o magistrado, que votou contra o projeto de redução da Resex na sessão que declarou a iniciativa inconstitucional.

"Juridicamente, não existe fato consumado quando o assunto é a proteção do meio ambiente. O que é ilegal é ilegal e tem que ser recuperado", frisa Torquato, que desenvolveu, junto com técnicos do MP, um cálculo para cobrar indenizações pela perda de biodiversidade — dinheiro que poderia ser aplicado em programas de recuperação ambiental.

A justificativa de quem quer entregar a Resex aos invasores tampouco encontra respaldo na ciência e na experiência prática, já que a floresta já provou que é capaz de se recuperar pelo simples abandono da área. Apenas na Amazônia, pesquisadores identificaram 7,2 milhões de hectares passíveis de recuperação, o equivalente a 60% da meta assumida pelo Brasil no Acordo de Paris, de recuperar 12 milhões de hectares de florestas até 2030. É quando se encerra o período que a ONU (Organização das Nações Unidas) designou como a "Década da Restauração" para inspirar e apoiar governos, empresas e sociedade civil a promoverem iniciativas de recuperação florestal em todo o mundo.

"Ao contrário do discurso do governo, a gente acredita que dá para recuperar a Resex, reflorestar, devolver aos seringueiros que foram expulsos e desenvolver com eles projetos de reflorestamento", defende Neidinha. "A gente tem que devolver para a floresta aquilo que tiramos dela e só assim que a gente vai conseguir reverter essa crise pela qual estamos passando", acrescenta Txai Suruí.

*Por questão de segurança, os nomes dos entrevistados foram modificados.

*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato. Título editado x2.


Danos provocados pelo garimpo ilegal na região do rio Uraricoera, na terra | Imagem: reprodução

Desmatamento ilegal conecta grileiros, frigoríficos e montadoras de carros

Murilo Pajolla*, Brasil de Fato

JBS, maior processadora de carnes do mundo, descumpriu acordos internacionais e continuou comprando gado de fazendas envolvidas no desmatamento ilegal da Amazônia paraense. É o que aponta uma investigação divulgada no final de junho pela Global Witness, ONG internacional que fiscaliza impactos socioambientais de grandes empresas ao redor do mundo. 

relatório expõe a existência de uma cadeia de empresas que lucram alto com a exploração ilegal de terras e a violação de direitos humanos. Entre elas, estaria a "dinastia" Seronni, família de fazendeiros do Pará e fornecedora regular da JBS. Segundo a Global Witness, os Seronni são acusados de crimes como uso de trabalho escravo, desmatamento ilegal, grilagem e lavagem de gado. 

"Sergio Luiz Xavier Seronni, chefão da dinastia Seronni, tem uma longa e conturbada história de desmatamento ilegal, abusos de direitos humanos e submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão. Essas atividades permitem que Seronni tenha um estilo de vida luxuoso. Ele possui aviões Cessna e Piper 19 e 10 empresas no valor de quase US$ 50 milhões", aponta o relatório da Global Witness. 

Em nota, a JBS afirmou que tem uma "política de tolerância zero para desmatamento ilegal, grilagem de terras, trabalho escravo ou desrespeito aos direitos humanos". Mais sobre o posicionamento da empresa está disponível no final deste texto. A reportagem não localizou representantes da família Seronni. O espaço segue aberto para o posicionamento. 

Bancos internacionais com agenda verde financiam JBS 

A ONG também identificou que as ilegalidades não impediram bancos internacionais e gestores de ativos de financiarem, na casa dos bilhões, as atividades da JBS. O rol de financiadoras inclui instituições bancárias que anunciaram compromissos públicos contra o desmatamento. Entre elas estão Deutsche Bank, HSBC, Barclays, JP Morgan, Santander e BlackRock.

"Embora os governos do Reino Unido, da União Europeia e dos EUA declarem estar planejando leis para garantir que suas empresas não importem commodities ligadas ao desmatamento, estão deixando de fora o setor financeiro", afirma o autor do relatório e chefe de Investigações Florestais da Global Witness Chris Moye.

"A gente conclui que uma maior regulação desse setor é essencial para reduzir sua contribuição ao desmatamento, sobretudo considerando as repetidas falhas de suas iniciativas voluntárias de não desmatamento", completa Moye. 

JBS mantém 144 fornecedores irregulares, aponta a Global Witness  

A Global Witness aponta que a JBS é a principal compradora do gado criado na Amazônia. No bioma, 70% da área desmatada é hoje ocupada pela pecuária. Em 2020, a ONG revelou que a gigante do processamento de carnes tinha entre os fornecedores 3.027 fazendas com desmatamento ilegal. 

A empresa já havia selado obrigações legais de não desmatamento com o Ministério Público Federal (MPF). Em 2021, a JBS fez uma declaração conjunta de combate à devastação ambiental provocada por seus fornecedores. O compromisso foi assumido na COP 26, a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.

"Agora nossa nova investigação conclui que, apesar desses compromissos, a JBS continuou comprando de 144 das mesmas fazendas paraenses expostas em nosso relatório anterior, mais uma vez descumprindo seus acordos com o Ministério Público", afirma o integrante da Global Witness. 

Por outro lado, a JBS atesta que as compras feitas dessas fazendas foram verificadas e estavam dentro dos "regulamentos estabelecidos". 

"Também, contrariando suas obrigações, a empresa não monitorou outras 470 fazendas envolvidas em suas cadeia de abastecimento, chamados fornecedores indiretos, contendo cerca de 40 mil campos de futebol de desmatamento ilegal na Amazônia", prossegue Moye.

Carros de luxo e desmatamento

Segundo a Global Witness, a destruição da Amazônia impulsiona os lucros da indústria automobilística mundial. Os bancos de couro em carros de luxo, símbolos de status para muitos consumidores, integram a cadeia de produção que começa no desmatamento ilegal. 

Um dos objetos das investigações da ONG é o Grupo Mastrotto, da Itália, um dos fabricantes de couro mais prestigiadas do mundo. A empresa teria importado couro dos abatedouros irregulares da JBS que recebem gabo criado em áreas desmatadas ilegalmente. 

O Grupo Mastrotto "possui um faturamento anual de 400 milhões de euros e fornece para o Grupo Volkswagen, proprietário de Audi, Porsche, Bentley, Lamborghini, Skoda, Seat e Bugatti", diz a Global Witness.

"Alguns dos outros clientes do setor automotivo informados pela Mastrotto incluem a Toyota. A Ikea também foi identificada como cliente regular da Mastrotto. Ela também possui subsidiárias que compram couro no Brasil", expõe a ONG internacional. 

Outro Lado

A JBS respondeu que bloqueia fornecedores quando toma conhecimento de práticas ilegais e informou que 15 mil produtores estão de fora da cadeia produtiva por desrespeitarem os critérios socioambientais da empresa.

"No que se refere aos 144 fornecedores da JBS citados no levantamento, a Companhia analisou todas as compras realizadas e comprovou que estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos. No caso do Sr. Seronni, o próprio e seus familiares foram bloqueados assim que as denúncias de práticas ilegais foram informadas à JBS", informou a empresa. 

"Além disso, com base na Lei de Acesso à Informação, requisitamos acesso às GTAs [Guias de Trânsito Animal] relacionadas a esses produtores, o que nos daria visibilidade completa sobre as transações realizadas. Porém, ainda não tivemos retorno, apesar de o prazo legal já ter expirado", finalizou a empresa. 

Procurado, o Grupo Mastrotto não respondeu aos questionamentos. Caso haja retorno, o texto será atualizado.

*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato. Título editado.


Revista online | 10 anos do Código Florestal: retrocessos e pouco a comemorar 

Raul Valle*, especial para a revista Política Democrática online (45ª edição: julho/2022)  

“Agora temos a lei ambiental mais rigorosa do mundo”, bradou o então deputado federal Paulo Piau (MG) sobre o novo Código Florestal que acabava de ser aprovado pelo Congresso Nacional – com seu voto e atuação proativa. Para a senadora Kátia Abreu (TO), outra fervorosa defensora da nova lei, ao contrário do que as ONGs diziam, o desmatamento ilegal iria cair “drasticamente” nos anos seguintes com a aprovação do novo texto, não havendo, portanto, porque temê-lo.

No último dia 25 de maio completou-se 10 anos da aprovação do novo Código Florestal (Lei Federal 12651/12). Em 2021, o desmatamento na Amazônia foi 200% superior ao do ano anterior ao da aprovação da lei. Mesmo na Mata Atlântica, que havia atingido o estágio de quase “desmatamento zero”, este atingiu patamares maiores do que antes da aprovação da nova lei. No Mato Grosso, capital do agronegócio, o desmatamento não apenas aumentou, mas continuou ilegal: 92% do desmatado até 2019 não tinha qualquer tipo de autorização, embora a quase totalidade dos imóveis rurais já esteja dentro do Cadastro Ambiental Rural – CAR. A promessa vendida à sociedade à época da aprovação da lei era de que, em troca das muitas anistias concedidas aos produtores rurais, estes iriam a partir de então parar de desmatar e começar a restaurar os seus passivos remanescentes, pois ao entrar no CAR seriam vigiados de perto pelos órgãos ambientais, que poderiam enviar as multas “pelo correio” caso verificassem qualquer desmatamento ilegal. Ledo engano.

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Fruto de um longo embate dentro do Congresso Nacional, o qual opôs representantes do agronegócio, de um lado, e ambientalistas, cientistas e pequenos agricultores de outro, a lei foi a primeira vitória maiúscula que a então crescente bancada ruralista obteve na sua guerra contra o que, em sua visão, conformava o “eixo do mal”: as regras de proteção ao ambiente, de reconhecimento de terras indígenas e de garantia de direitos trabalhistas. Até então, desde a redemocratização, o setor havia acumulado apenas “derrotas”, com a aprovação de leis ambientais mais rigorosas, que impunham limites ao uso de recursos naturais em propriedades privadas e aprimoravam a forma de punir o descumprimento das regras estabelecidas. Foi após a aprovação do Decreto Federal 6514, em 2008, que o setor resolveu dar um basta e pressionar por uma mudança na lei, que datava de 1965. Até então era simples descumprir as regras estabelecidas. O decreto, no entanto, fechou lacunas jurídicas há muito usadas e tornou real a possibilidade de que a lei teria que ser cumprida. Confrontado com essa perspectiva, o setor resolveu que era melhor mudar a lei do que se esforçar para cumpri-la.

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Floresta em formato de pulmão desmatado | Reprodução/Estratégia
Aligator dies by fire | Foto: Shutterstock/Tiago Marinho
Amazônia crises | Foto: Shutterstock
Amazônia desmatamento | Foto: shutterstock/Rich Carey
Deforestation forest destruction | Foto: shutterstock/Viktor Sergeevich
Desmatamento | Foto: shutterstock/Paralaxis
Floresta queima | Foto: shutterstock/JH Bispo
Global crises | Foto: Shutterstock/Marti Bug Cacther
Pantanal em chamas | Foto: Shutterstock/Rafael Martos Martins
Save the earth | Foto: Shutterstock/studiovin
Save the planet | Foto: Shutterstock/Teekatat Roongruang
World crises | Foto: Shutterstock/Osorio
Floresta em formato de pulmão desmatado
Aligator dies by fire
Amazônia crises
Amazônia desmatamento
Deforestation forest destruction
Desmatamento
Floresta queima
Global crises
Pantanal em chamas
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Floresta em formato de pulmão desmatado
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O balanço de 10 anos da aprovação da lei não é bom. Embora a maior parte dos imóveis rurais já estejam inscritos no CAR – em alguns estados os números superam os 100%, dentre outras razões porque houve fracionamento artificial de imóveis para aproveitar o máximo as benesses da lei, maiores para pequenas propriedades – é ínfima a quantia dos que foram efetivamente analisados para saber se há passivos e obter do proprietário o compromisso de recupera-los. No Pará, apenas 0,1% chegaram nessa etapa e na maioria dos estados o número é ainda menor. A honrosa exceção é o Espírito Santo, que tem o mais robusto programa de apoio à restauração florestal do país e mais de 70% dos imóveis já analisados.

Quando a lei foi aprovada muitos elogiaram seu suposto equilíbrio. Por não ter agradado nem os ambientalistas, que viam com horror regras que dispensavam a recuperação de 21 milhões de hectares de florestas, nem os representantes do agronegócio, que gostariam de eliminar totalmente qualquer restrição legal ao desmatamento, vendeu-se a ideia de que ela seria justa. Se efetivamente o setor agropecuário tivesse se engajado em sua implementação, cumprindo com a promessa de que dali pra frente a coisa seria diferente, ou seja, que mesmo menos protetiva a lei finalmente sairia do papel, talvez pudéssemos concordar com essa análise. 

O que vemos, no entanto, é que a aprovação do novo Código Florestal foi a abertura de uma caixa de pandora. Ao conseguir uma vitória tão maiúscula, o setor agropecuário descobriu que podia fazer muito mais. De alguma forma, normalizou-se a lógica de que, com poder, é melhor mudar a lei que impõe alguma restrição do que cumpri-la. Disso resultaram muitos outros projetos de lei que avançam rapidamente no Congresso Nacional para anistiar grileiros e permitir mais desmatamento. Como podemos perceber, isso tem feito muito mal não apenas ao meio ambiente no país, mas à própria qualidade de nossa democracia.

Sobre o autor

*Raul Valle é advogado, mestre em Direito Econômico e coordenador de incidência política do WWF Brasil.

* Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de julho/2022 (45ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Queimadas na Amazônia | Foto: Pedarilhosbr/ Shutterstock

Amazônia e Cerrado batem recordes de focos de queimadas para mês de junho

Lara Pinheiro*, g1

Amazônia e o Cerrado registraram recordes históricos no número de focos de queimadas para junho, segundo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe).

Na Amazônia, foram detectados 2.562 focos de calor, o maior número para o mês desde 2007, quando 3.519 focos foram registrados. É o terceiro ano consecutivo de alta no número de focos de calor na floresta.

Os meses de maio e junho marcam o início da temporada de queimadas e desmatamento na Amazônia, por causa do período de seca na floresta. Em maio, o Inpe detectou 2.287 focos de calor na floresta, também um recorde histórico: foi a maior quantidade para o mês desde 2004.

Segundo os dados históricos, a tendência é que a quantidade de pontos de queimada na floresta aumente em julho e agosto. As medições são feitas desde 1998.

No acumulado do semestre, já são 7,5 mil focos de calor registrados na floresta, um aumento de 18% em relação ao mesmo período de 2021. A Amazônia também viu um semestre com a maior área sob alerta de desmatamento em 7 anos, ainda sem os dados dos últimos 6 dias de junho.

Em nota, o especialista em políticas públicas do WWF-Brasil Raul do Valle afirmou que "com Bolsonaro correndo atrás nas pesquisas, os grileiros, os garimpeiros e todos que navegam na impunidade" estão "sentindo que precisam correr para consolidar seus crimes, com receio de que um novo governo possa acabar com essa festa".

"É uma verdadeira corrida contra o Brasil e até o final do ano vamos ver o tamanho desse desastre", disse do Valle.

Nesta semana, um documento obtido pelo g1 apontou que o Ministério do Meio Ambiente do governo Bolsonaro colocou em risco a continuidade do Fundo Amazônia, criado há cerca de 14 anos para financiar ações de redução de emissões geradas pela degradação florestal e pelo desmatamento.

Cerrado

Já o Cerrado registrou ainda mais pontos de queimada em junho do que a Amazônia4.239 focos, o maior número para junho desde 2010, quando 6.443 focos haviam sido detectados. Também é o terceiro ano consecutivo de alta nos focos de queimada no bioma.

Assim como na Amazônia, a temporada seca no bioma também já começou: no mês passado, foram registrados 3.578 focos de calor no Cerrado, o maior número para o mês desde que o Inpe começou as medições, em 1998.

No acumulado do semestre, o Cerrado somou quase 11 mil focos de queimadas; o número é o maior para o período desde 2010.

Focos de queimadas no Cerrado no primeiro semestre (2010-2022)

Fonte: Inpe
Fonte: Inpe

Os dados históricos do Inpe também apontam que deve haver ainda mais focos mensais de queimada no bioma pelos próximos três meses. No ano passado, foram detectados 41.937 focos de calor no Cerrado somente no período de julho a setembro.

*Texto publicado originalmente em g1